sábado, maio 30, 2015

Treta da semana (atrasada): a derrota.

Apesar da influência da Igreja Católica, a Irlanda aprovou por referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, considerou o resultado «uma derrota para a humanidade»(1). Infelizmente, não explicou porquê. É consensual que a relação entre duas pessoas que constroem uma vida em conjunto deve ter reconhecimento legal. É também consensual que não se deve discriminar contra alguém em virtude de atributos físicos como a cor da pele* ou o sexo. Por isso, a tese de que duas pessoas devem ser proibidas de casar em virtude do seu sexo teria de ser muito bem justificada. Ratzinger tentou fazê-lo apelando à Bíblia e à doutrina católica e concluindo que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque representa a «aprovação de comportamento depravado» e «obscurece valores básicos que pertencem à herança comum da humanidade»(2). No entanto, fundamentar esta tese em crenças religiosas torna-a irrelevante para legislar numa sociedade laica. Além disso, um dos valores básicos mais importantes na nossa sociedade é o de que a lei seja igual para todos, independentemente da raça, credo ou sexo. É legítimo que a Igreja Católica não queira celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo tal como não celebra casamentos entre muçulmanos ou budistas. Mas, tal como isto não diz nada acerca da legislação do casamento entre pessoas de outras religiões, também é irrelevante para a legalização do casamento homossexual.

No Senza Pagare, o João Silveira tenta uma abordagem diferente, menos assente em premissas religiosas. Segundo Silveira, o «debate deste tema na opinião pública está completamente viciado»(3) porque se propagou a ideia de que «A atracção por pessoas do mesmo sexo é genética […] É uma coisa natural e boa em si mesma [ e ] Essa pessoa só será feliz com uma pessoa do mesmo sexo.» Tenta então refutar estas ideias como se a sua refutação bastasse para justificar uma lei que impeça pessoas de se casarem em virtude do seu sexo. Começa por afirmar que «Tanto quanto sabemos a atracção por pessoas do mesmo sexo não é genética.» Além disto carecer de um fundamento empírico e de ser pouco plausível – não deve ser mera coincidência que a maioria das mulheres se sinta atraída por homens e a maioria dos homens sinta atracção por mulheres, sugerindo que os genes têm alguma influência nisto – este ponto é, acima de tudo, irrelevante. O que é relevante é que a orientação sexual não resulta de uma decisão livre. Tanto faz se é por causa dos genes se por cantar músicas do Frozen (4).

Silveira explica que «A atracção por pessoas do mesmo sexo não é natural», apesar da homossexualidade ser comum em muitos animais, «porque nós somos racionais» e porque «o homem foi feito para a mulher a mulher para o homem, isto é visível em primeiro lugar nos nossos corpos». No entanto, a complementaridade geométrica dos órgãos sexuais é visível também nos outros animais e a orientação sexual não tem nada que ver com racionalidade porque não resulta de uma decisão racional. Finalmente, Silveira alega que «Quem procura a felicidade numa relação com uma pessoa do mesmo sexo está à procura da coisa certa no lugar errado.» É legítimo que Silveira tenha essa opinião mas é apenas a sua opinião. Não justifica que a lei discrimine os nubentes quanto ao seu sexo. Silveira escreve também que «afirmar que quem é contra o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é como se fosse racista é um disparate de todo o tamanho» porque «uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo nasce sempre da vontade dos envolvidos» enquanto que «uma característica física, como por exemplo a cor da pele, não envolve a vontade do visado». Precisamente. O sexo com o qual nascemos também não resulta da nossa vontade, pelo que proibir pessoas de casar por causa do seu sexo é como proibi-las de casar por causa da sua raça. Eticamente, o problema é análogo.

Finalmente, Silveira argumenta que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque «um casamento só pode acontecer entre um homem e uma mulher» e «o Estado apenas tem autoridade para legislar o casamento entre duas pessoas de sexo diferente». Mas isto é precisamente o que está em causa. Aparentemente, quando se vê forçado a fundamentar a sua posição, quem defende que se impeça o casamento entre pessoas do mesmo sexo não consegue dizer melhor do que sim porque sim.

Ao contrário de católicos como Silveira, Parolin e Ratzinger, muitos católicos irlandeses perceberam que, no que toca a leis, não importa o que está na Bíblia ou se é pecado um homem ter relações sexuais com outro homem**. O que importa é que a relação entre duas pessoas que vivem em conjunto não se reduz à mera complementaridade genital ou à reprodução. O que a lei deve reconhecer é o afecto, a confiança mútua, a cumplicidade, a partilha e os projectos em comum. No cômputo geral, o que fazem na cama e o que enfiam onde é irrelevante. Além disso, os valores básicos da nossa sociedade são incompatíveis com leis que discriminem as pessoas pelo seu sexo para negar a uns aquilo a que outros têm direito. Silveira alega que «A família sempre foi o último reduto de defesa da liberdade pessoal». É falso. A pessoa é que é o último reduto da liberdade pessoal e o que está aqui em causa é a liberdade de cada pessoa constituir a sua família como bem entender. Mesmo que os silveiras discordem.

* Em alguns estados dos EUA, o casamento interracial foi ilegal até 1967 (Wikipedia).
** A Bíblia é omissa quanto às mulheres.

1 – Guardian, Vatican says Ireland gay marriage vote is 'defeat for humanity'
2 – Staycatholic.com, Truth and Love: The Vatican Document on Same Sex Marriage
3 – Senza Pagare, A batalha contra o "casamento gay" está perdida?
4 – Time, Pastor Claims Frozen Will Turn Your Children Gay.

sábado, maio 23, 2015

Treta da semana (atrasada): aprendendo teosofia.

A leitora mtavares comentou recentemente um post antigo sobre o Centro Lusitano de Unificação Cultural (CLUC). Dizendo-se admiradora do CLUC, aconselhou o «Senhor Ludwig e companhia [...] a pôr alguma ordem nessas ideias , tentando entender ( juntem os neurónios, contei pelo menos três na vossa verborreia) alguns dos preceitos Teosóficos»(1). Apreciando a crítica construtiva, a simpatia e o humor refinado, não resisti seguir o conselho da estimada leitora e tentar aprender algo sobre os tais preceitos Teosóficos, tão importantes que até como adjectivo merecem maiúscula.

O ponto de partida para esta investigação, que tenciono prosseguir enquanto a paciência mo permitir, é o artigo «Adão ou macaco? O darwinismo no centro do furacão?», da autoria de «Humberto Álvares da Costa, Médico Cardiologista; Secretário-Geral da Sociedade Teosófica de Portugal; Redactor-Chefe da revista “Portugal Teosófico”» (2). O autor parece ser perito em teosofia, aborda um tema com o qual tenho alguma familiaridade e, tal como eu, é um «um não-darwinista assumido». Darwin foi um pioneiro na teoria da evolução, fez um trabalho extraordinário e explicou conceitos importantes como a selecção natural e a ideia das espécies como grupos de populações e linhas de descendência em vez de categorias herméticas como os tais “tipos” que ainda hoje baralham os criacionistas. Mas isso foi há século e meio e, entretanto, tem-se avançado muito neste campo. Hoje conhecemos processos moleculares que Darwin nem imaginava e temos modelos quantitativos rigorosos daquilo que ele apenas pôde conceber de forma qualitativa e vaga. Por muito meritórios que sejam os pioneiros, ao desbravar novos caminhos para o conhecimento tornam inevitável que as suas ideias sejam ultrapassadas. Por isso, quem quiser perceber a teoria da evolução século e meio depois de Darwin tem mesmo de ser “não-darwinista”.

No entanto, parece acabar aqui a minha concordância com Costa. Alega que há um «triângulo Deus, Homem e o Universo» no qual «O Homem e o Universo, por analogia, representam os dois pólos da Manifestação, que os cabalistas designaram por: Chokmah ou Sageza e Binah ou Sofia (Ciência, Prudência)» A analogia do problema epistemológico com um triângulo de dois pólos parece-me demasiado confusa. Quanto à teoria da evolução, começa por afirmar que «A Evolução existe em toda a parte, é global: átomos, estrelas, seres vivos… O Cosmos é Evolução», o que é falso porque, no sentido técnico, evolução é a variação na distribuição de características herdadas em populações de entidades que se reproduzem. E Costa aponta como problema principal que «É muito diferente orientar a vida na convicção de que somos animais em luta pela sobrevivência da espécie ou de que somos filhos do Divino.» Mesmo que seja, isto é irrelevante por duas razões. Primeiro, porque o impacto que uma proposição tenha na forma como orientamos a vida não permite, por si só, decidir se é verdadeira ou falsa. Por muito desagradável que seja ter uma doença grave não se justifica concluir daí que o diagnóstico está errado. E, em segundo lugar, a teoria da evolução não implica lutar pela sobrevivência da espécie. A espécie é uma categoria transitória, nada mais que o conjunto de populações de indivíduos, numa dada altura, que se podem cruzar para gerar descendentes férteis. Além disso, a teoria da evolução apenas explica o mecanismo pelo qual surgiram as características que agora temos. Não diz nada acerca do que devemos fazer com elas. Culpar a teoria da evolução por alguém viver como se a sua vida só servisse para perpetuar a espécie é como culpar a química por alguém se suicidar com um tiro na cabeça.

Mas onde divergimos mais é na resposta que Costa dá à questão «como reconhecer a Verdade? O homem médio terá muita dificuldade em aceder-lhe directamente mas tudo o que é fundamental saber foi ensinado, nas religiões e métodos espirituais, por Mestres, cientistas perfeitos.» O problema geral de procurar fontes autoritárias onde assentar o conhecimento merece, pelo menos, um post inteiro. Mas, focando apenas este caso, é de rejeitar a confiança na suposta perfeição de “cientistas” como «Helena P. Blavatsky, a discípula dos Mestres de Sabedoria que foi destacada para repor a Teosofia moderna». Ao contrário da ciência de verdade, a teosofia “moderna” de Blavatsky, de meados do século XIX, nada progrediu desde então. É possível que Blavatsky tenha sido uma cientista perfeita e que, por isso, tenha conseguido criar um corpo de conhecimento completo e totalmente correcto de uma só penada, com «tudo o que é fundamental». Mas o texto de Costa sugere uma alternativa mais plausível. Lamenta Costa que, «Quando Newton morreu, em 1727, os estudos alquímicos foram retirados do espólio e classificados como impublicáveis.» É verdade que o legado de Newton na física é muito mais importante do que o seu trabalho na alquimia. Mas isto não se deve a censura ou discriminação. Deve-se ao trabalho de Newton na física ter aberto caminho para novas aplicações, novas descobertas e novas teorias enquanto que a alquimia nunca passou da cepa torta. A alquimia foi apenas um passo na direcção errada.

Esta é a distinção mais importante. Para desbravar caminho em direcção ao conhecimento é preciso cruzar a especulação com o que se pode observar. Isto conduz a explicações testáveis e acaba por revelar erros que terão de ser corrigidos e lacunas que terão de ser colmatadas. Assim, quem contribua para o conhecimento nunca dará a impressão de ser perfeito. Essa ilusão exige isolar a especulação da realidade de forma a que se possa ignorar erros e confundir ideias infundadas com “Verdade”. É o que fazem astrólogos, teólogos, alquimistas e afins. Pelo que aprendi até agora, é o que a teosofia faz também. E o preço desta aparência de perfeição é não poderem dizer nada que se aproveite.

1- Comentário em Treta da semana: Centro Lusitano de Unificação Cultural.
2- Adão ou macaco? O darwinismo no centro do furacão?

quarta-feira, maio 13, 2015

Boa pergunta.

No Público, o Secretário de Estado da Cultura tentou defender a taxa sobre os suportes digitais invocando a “propriedade intelectual”. Esta frase tortuosa resume a justificação: «Querer retirar a autores e artistas a possibilidade de um controlo da sua propriedade sobre os conteúdos por eles gerados no sistema de distribuição da remuneração da cadeia de valor económico da criação e gestão de conteúdos é contribuir para uma sociedade menos plural e para a crescente concentração do poder de informar e formar nas mãos de poucos.»(1)

A afirmação é falsa porque é precisamente o sistema de monopólios legais sobre a distribuição que concentra o poder nas mãos de poucos, que assim decidem o que é distribuído, quando e como. E não justifica uma taxa sobre o armazenamento digital porque, primeiro, a taxa incide sobre equipamento que serve para imensas coisas, como fazer trabalhos de escola, ler correspondência, guardar fotografias das férias, telefonar à avó, consultar o saldo bancário ou preencher a declaração do IRS, tudo taxado em nome da cópia privada. E, em segundo lugar, porque o suposto direito pelo qual estamos a pagar não existe. Como escreve Barreto Xavier, «A cópia privada, enquanto reprodução feita por quem compra dada obra legalmente, é uma exceção ao direito exclusivo de propriedade de um autor ou artista sobre a sua obra». No entanto, no domínio digital não existe essa excepção porque os esquemas de licenciamento e protecção de cópia impedem o cidadão de fazer cópias legais contra a vontade dos detentores de direitos. Quem reproduz uma obra que adquiriu em suporte digital ou está a violar a lei ou fá-lo com a anuência dos detentores dos direitos exclusivos.

Outro problema no argumento de Barreto Xavier é a confusão entre direitos de propriedade e os monopólios legais a que chama “propriedade intelectual”. É verdade que «ninguém põe em causa os direitos exclusivos sobre determinado bem por parte do seu proprietário.» Mas há uma grande diferença entre ser dono de um objecto e mandar nos outros, mesmo quando se cria algo. Quando alguém se lembrou de atar uma pedra afiada a um pau e fez o primeiro machado, esse machado era seu. Não seria legítimo tirarem-lho ou privarem-no do uso exclusivo desse objecto que criou. Mas daqui não segue que, em virtude de ter sido a primeira pessoa a atar um pau a uma pedra, ganhasse o direito de proibir todos os outros de fazer o mesmo. Além de não ter nada que ver com o direito de propriedade sobre o machado original, tal monopólio sobre os machados seria uma violação dos direitos de propriedade que as outras pessoas teriam sobre os seus paus e as suas pedras. Milhares de anos mais tarde, temos o mesmo problema com este texto. Os meus direitos de propriedade sobre o meu computador permitem-me guardar este texto aqui sem que ninguém o venha cá ler ou apagar, se eu quiser. É o meu computador, em minha casa, por isso aqui mando eu. Mas o monopólio legal sobre a cópia do texto publicado implica que eu possa proibir os leitores de, em suas casas, usar o botão da direita do rato e escolher “guardar como...”. Isto não só ultrapassa os limites dos meus direitos de propriedade como viola claramente os vossos direitos de propriedade. Finalmente, a tese de que isto se justificaria por eu ser o proprietário deste texto em abstracto, separado de qualquer suporte, é disparatada porque não faz sentido ter direitos de propriedade sobre entidades abstractas e é irrelevante porque a lei não me dá direitos de propriedade sobre o texto em abstracto. Por exemplo, não posso proibir que memorizem ou texto ou que o leiam em voz alta. A lei apenas me dá o direito exclusivo de distribuir e copiar o texto e isso não tem nada que ver com direitos de propriedade.

Para justificar a taxa, Barreto Xavier alega também que todos os autores «têm direito a ser remunerados pelas suas criações enquanto sua propriedade». No entanto, não só o direito a remuneração carece de um acordo prévio – se eu tocar música na rua não é por esse trabalho em si que os transeuntes passam a ter a obrigação de me remunerar – como nada disto justifica conceder monopólios e, ainda menos, uma taxa. O cabeleireiro também tem o direito de ser pago pelos seus serviços mas isto não implica o direito a deter um monopólio sobre os caracóis ou a receber uma taxa pelo comércio de pentes e secadores.

Mas o mais importante do texto de Barreto Xavier é a pergunta que ele coloca no início. «Devem os modelos jurídicos, económicos, políticos que conformam uma certa ideia de sociedade continuar a defender a propriedade intelectual ou devemos tornar indiscriminado o acesso a conteúdos até agora protegidos?» Pensemos no caso geral da cultura e do acesso ao conjunto de obras, tradições e conhecimento que a nossa sociedade produz. Pensemos nas escolas, nas bibliotecas, nos museus, nos monumentos e naquilo que uma Secretaria de Estado da Cultura devia fazer em vez de leis parvas como esta. Pensemos em Camões e Eça em vez de só na Madonna e no Quim Barreiros. Pensando nisto parece-me claramente errado discriminar ou restringir o acesso à cultura. É verdade que restrições e taxas podem dar lucro a alguns vendedores, mas o que está em jogo é muito mais importante do que a venda de licenças. Pela primeira vez na história temos os meios tecnológicos para garantir um acesso universal à cultura. Não devemos deixar que um punhado de comerciantes nos impeça de aproveitar esse potencial.

1- Publico, A cópia privada

domingo, maio 10, 2015

Treta da semana (atrasada): os representantes.

Na sexta feira, a maioria PSD e CDS votou novamente a favor da Proposta de Lei 246/XII, estendendo as taxas pela cópia privada ao suporte digital (1). A compensação pela cópia privada, imposta por tratados internacionais de copyright, é supostamente devida pelos danos económicos causados aos detentores dos direitos pela excepção legal ao seu monopólio. Isto acontece com a reprodução analógica, cujos exemplares é legalmente permitido ao comprador copiar, para uso pessoal, mesmo que o detentor de direitos não o autorize. Por exemplo, se eu compro um livro posso tirar fotocópias para uso pessoal e não há meio da editora tornar essa cópia ilegal. Por se assumir que essa excepção ao seu monopólio reduz os lucros do detentor dos direitos de distribuição, pagamos uma taxa pelas fotocópias. Mas, no domínio digital, a lei não permite que se contorne medidas de protecção de cópia sem autorização do detentor do copyright. Por isso, neste domínio, não temos direito à cópia privada, que é uma cópia legal mesmo contra a vontade dos detentores dos direitos. Portanto, seremos taxados por um direito que não podemos exercer. Além disso, e ao contrário das fotocópias, o armazenamento digital que vai ser taxado é necessário para comprar as cópias digitais. Estender a taxa aos discos rígidos estende-a muito além da cópia privada, taxando também o armazenamento de obras compradas e de obras criadas pelo próprio. O disparate é tão óbvio que até o nosso Presidente o percebeu e vetou a proposta. No entanto, com esta votação, será forçado a promulgá-la.

Esta lei é injusta, prejudica a generalidade dos portugueses e nem sequer é formalmente necessária. No Reino Unido, por exemplo, legalizaram recentemente a cópia privada mas decidiram que não havia prejuízo demonstrável e que, por isso, não era necessário compensar nada. Também não é particularmente benéfica para os autores portugueses, visto que a maior parte do dinheiro vai para empresas distribuidoras estrangeiras. Os beneficiários desta lei são praticamente só os tozebritos, aquelas pessoas que controlam os canais tradicionais de distribuição e a gestão deste dinheiro. Estes vão receber dinheiro pela compra de todos os suportes, seja para guardar as fotos das férias, cópias ilegais ou até ficheiros comprados. Entre outros propósitos, esta taxa servirá também para penalizar quem queira aproveitar as novas tecnologias para comercializar as suas obras sem ceder os seus direitos de autor a empresas de distribuição, porque todos os seus clientes terão de pagar taxa à concorrência.

Mas mais preocupante do que a injustiça desta lei é o processo pelo qual foi aprovada. Não é de estranhar que os principais beneficiários da lei, aqueles que gerem as sociedades de cobrança e empresas de distribuição, tenham influência junto do Secretário de Estado da Cultura. Também é compreensível que Barreto Xavier tenha conseguido convencer o Primeiro Ministro a apoiar esta proposta. Afinal, visa encher os bolsos de quem já tem dinheiro e o nosso Primeiro Ministro está sempre receptivo a essas iniciativas. Mas, se bem que não seja ideal propor leis com base no lobbying, amiguismos e favores pessoais, isto não seria um problema sério se depois a proposta precisasse do voto favorável de mais de uma centena de deputados que representassem os interesses dos seus eleitores, votando em consciência, com conhecimento e de acordo com os méritos da proposta. Seria a democracia a funcionar bem. Infelizmente, a nossa funciona muito mal.

O problema é que estes deputados não foram escolhidos pelos eleitores. O factor determinante para chegarem ao cargo foi a posição que lhes atribuíram nas listas de candidatura e essa foi determinada pela direcção do seu partido. Os votos contam pouco e nenhum deputado consegue garantir o lugar por representar bem os seus eleitores. A condição principal para continuarem na Assembleia da República é manterem os lábios em contacto firme com as nádegas de quem manda no partido. Somando a isto a aberração da disciplina de voto e basta meia dúzia de amigos nos sítios certos para se controlar a Assembleia da República.

A aprovação desta lei é um exemplo claro de como os nossos supostos representantes não nos representam, obedecendo apenas aos dirigentes dos partidos e, por meio destes, a pequenos grupos de interesse com os contactos certos. Este parece-me ser o maior problema da nossa democracia. É por causa destas coisas que os eleitores sentem que é fútil votar. É por causa deste sistema que quem é eleito não tem de cumprir o que prometeu. É por causa disto que a alternância dos partidos do governo adianta tão pouco.

A única forma de combater esta doença é votando em que tenha incentivos para representar os eleitores. Por isso, daqui em diante, quando estiver a decidir em quem votar, a primeira pergunta que farei é a quem os deputados que ajudar a eleger ficarão a dever o seu cargo. Se entraram nas listas por uma eleição aberta então posso confiar que, pelo menos, vão tentar representar quem votou neles. Mas se lá estiverem por decisão da direcção do partido então não merecem nem a minha confiança nem o meu voto, porque já sei que não serão os eleitores quem eles irão representar.

1- Exame Informática, Cópia privada: taxas aprovadas hoje com votos de PSD e CDS

sexta-feira, maio 01, 2015

Treta da semana (atrasada): falsidades demagógicas antitaurinas.

Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira fizeram um vídeo (1) apoiando a campanha “Enterrar as Touradas” (2), da associação ANIMAL. Nesta campanha, a associação pede assinaturas para duas petições, uma pela proibição do emprego e assistência de menores nas touradas e outra contra o financiamento público destes espectáculos. A associação PRÓTOIRO reagiu acusando Markl e Pereira de serem “taurofóbicos” e de fazerem «afirmações demagógicas que promovem falsidades e preconceitos contra milhões de aficionados portugueses, num atentado à cultura e liberdade dos portugueses»(3).

Esta acusação de promoção demagógica de falsidades é irónica, além de ridícula, por vir de uma associação que defende a tortura pública dos toiros alegando ser pró-toiro. Ainda por cima, chamam “taurofóbicos” aos que não concordam que espetar ferros em bovinos seja uma entretenga aceitável. Se algo aqui é claramente falsidade demagógica é rotular de «atentado à cultura e liberdade dos portugueses» o apelo à assinatura destas petições, que pecam apenas pela modéstia. Proibir a participação de menores e acabar com o subsídio público às touradas seria tratar a tortura pública dos toiros como se trata o consumo de tabaco ou as apostas, que a lei também tenta vedar a menores e que o Estado não subsidia. E mesmo que se quisesse proibir as touradas, não atentaria mais contra a liberdade do que proibir as lutas de cães, proibição que presumo ser consensual mesmo entre os aficionados da tauromaquia.

Atrás desta demagogia da treta há uma confusão mais substancial. O argumento principal dos defensores da tourada é o de que este passatempo merece um estatuto especial porque faz parte da nossa cultura. A premissa implícita é a de que tudo o que faz parte da cultura é, só por isso, automaticamente aceitável independentemente dos defeitos que tiver. Mas não é a pertença à cultura que torna algo bom. É precisamente o contrário. O que queremos é incluir na nossa cultura aquilo que nos ajude a ser melhores seres humanos, individualmente e colectivamente. É por isso que vamos mudando a nossa cultura. Proibimos o trabalho infantil em favor da escolaridade obrigatória para as crianças. Proibimos a escravatura e consagramos na Constituição liberdades inalienáveis. Proibimos a discriminação e defendemos a igualdade de direitos para pessoas de todas as raças, credos e sexos. Em vez de alegar que a tourada merece um estatuto especial por fazer parte da nossa cultura, os defensores deste espectáculo teriam de demonstrar que a tourada merece fazer parte da nossa cultura. O que não conseguem porque a tourada é uma barbaridade cruel que até repugnaria a maioria dos aficionados se a vítima fosse outro animal qualquer que não aquele a cujo sofrimento o hábito os dessensibilizou.

1- Dailymotion, Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira
2- ANIMAL, Enterrar as touradas
3- PRÓTOIRO, Digo NÃO às mentiras e preconceitos taurofóbicos....