sexta-feira, março 06, 2015

Ateísmo e religião.

A propósito da “visão ateísta”, o Rui Sousa comentou que «a divisão no debate não deveria ser entre ateísmo e religião, mas sim entre ateísmo e teísmo». Como exemplo, mencionou que «muitas das variantes do Budismo são ateístas. Buda não é visto como uma divindade, Buda foi um homem que morreu há muito séculos, um homem sábio, mas ainda assim um homem» (1). Em parte, o Rui tem razão. Mas é na parte mais pequena porque, além de haver os dois debates, o debate entre o ateísmo e o teísmo é muito menos importante do que o debate entre o ateísmo e a religião.

O problema principal das religiões é assumirem que há uma fonte de factos, valores e prescrições tão superior a nós que a temos de aceitar pela fé, estando-nos vedada a possibilidade de a criticar, corrigir ou substituir. Isto é péssimo. Não só pelo disparate que é assumir tal autoridade quando se lida com factos como também por ser a antítese da ética transformar o problema de decidir o que fazer com a nossa liberdade numa lista pré-fabricada de “faz” e “não faças”. Somando a isto a casta profissional de alegados intermediários que, manipulando os crentes, vão concentrando prestígio e poder indevidos, é evidente que as religiões criam um problema muito maior do que a questão meramente académica de saber se o universo foi criado por uma inteligência sobrenatural ou se surgiu por processos naturais.

Estes problemas que aponto às religiões não exigem teísmo. Passa-se o mesmo na Coreia do Norte, com o culto dos Kim e o juche, e com vertentes religiosas do Budismo que, apesar de não considerarem o Buda como um deus, consideram que os seus ensinamentos estão suficientemente além do humano para que tenham de ser aceites acriticamente. Podemos discutir se estas variantes do culto de uma autoridade superior contam como religião ou não mas, como o que me importa não é a semântica do termo mas as consequências da abordagem, é contra isto que sinto mais necessidade de debater. Além disso, nem todos os teístas cometem o erro de presumir terem uma fonte autoritária de respostas. Felizmente, há muita gente que, mesmo acreditando num deus pessoal, não se fia em autoridades supremas nem nos seus alegados representantes. Por isso, o debate que vejo como mais importante está na oposição às organizações da fé numa alegada autoridade sobre-humana. Tanto me faz se é um Deus, um Buda ou um Kim.

Admito que não é obrigatório ser ateu para opor esta atitude religiosa. Há muita gente que não se identifica com o ateísmo mas que, ainda assim, se preocupa com a influência da religião, quer no sentido estrito que exige teísmo quer no sentido lato como aqui uso o termo. Mas, para mim, este debate é mesmo entre ateísmo e religião. Não só porque o termo “ateu” foi inventado precisamente para designar quem rejeita a tal autoridade suprema – que, nesse tempo, era sempre divina – mas também porque a minha oposição à religião é consequência daquilo que me torna ateu. Por um lado, saber que não existem deuses, algo que sei objectivamente tal como sei que a astrologia é treta e os unicórnios ficção. Por outro lado, a opção de que, mesmo que existissem deuses, não era por isso que ia delegar em alguém, humano ou divino, a tarefa de escolher os meus valores e o que dá sentido à minha vida. Isto põe-me em oposição às religiões, com ou sem teísmo, porque todas as religiões assentam naquela atitude de fé que considero errada.

O debate entre ateísmo e teísmo também é interessante. Entretenho-me com ele e até toca alguns pontos importantes de metodologia. Por exemplo, a defesa do teísmo depende demasiado da selecção enviesada de premissas que conduzam à conclusão desejada em vez de encaixar primeiro os dados em algo mais sólido onde assentar inferências. Mas, comparado com o outro, este é mera curiosidade. Preocupa-me muito mais os efeitos nefastos da fé numa autoridade suprema e as hierarquias privilegiadas que coagulam à sua volta.

1- Comentário em A visão.

3 comentários:

  1. Ludwig,

    «O problema principal das religiões é assumirem que há uma fonte de factos, valores e prescrições tão superior a nós que a temos de aceitar pela fé, estando-nos vedada a possibilidade de a criticar, corrigir ou substituir.»

    O Ludwig não podia ter lido isto em lado nenhum. Só mesmo da cabeça dele. Se uma religião funcionar assim deveremos interrogar-nos como é possível. Até poderá haver historicamente variantes mais ou menos políticas ou de confusão entre política e religião, mas isso é um problema diferente.
    Pelo que respeita ao cristianismo e à minha experiência do cristianismo, a religião é o que há de mais livre e opcional.
    Os seus normativos não são coativos, nem sancionados.
    Sinto-me completamente à vontade para pensar e fazer o que eu quiser, relativamente a crer ou não crer, seguir ou não seguir, concordar ou não concordar. E não conheço ninguém que se queixe do contrário, exceto, claro está, mas sem razão, o Ludwig.
    O cristianismo até pode assumir fontes de factos e valores e prescrições que devemos respeitar, cultivar e cumprir, mas nada é imposto e a ninguém está vedada a possibilidade de a criticar, corrigir ou substituir. Veja-se o caso do Ludwig. Nada nem ninguém o impede de o fazer, por isso eu disse que ele se queixa sem razão.
    O mesmo já não posso dizer do ateu Ludwig e de situações histórico-políticas de domínio da ideologia ateísta, porque são apodíticas, incontestáveis e encerradas no seu próprio absurdo, confinadas ao poder ser e completamente destituídas de dever-ser.
    As críticas que o Ludwig aponta à religião seriam certeiras se apontadas ao ateu e ao ateísmo, mas passam muito ao largo daquela.
    É fácil de compreender porque a religião, ao contrário do ateísmo, não pára de se desenvolver e de se aprofundar e de se enriquecer. É justamente porque é fonte de inspiração, não de imposição ou de proibição, para o homem, para decidir o que for melhor, para si, para os outros, para o planeta, para o universo... É por ser matriz de critérios, racionalidade viva, profunda e complexa, que lhe é reconhecida a fecundidade, até nos sistemas normativos,éticos, morais e jurídicos.

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  2. Ludwig,

    Creio que já trocamos algumas ideias sobre este assunto.
    No entanto a minha ideia ainda é a de que não me parece haver nada de contrário à existência de religiões, que as pessoas sejam crentes numa fé.
    Primeiro porque é bom que as pessoas tenham objectivos, ainda que me possam ser estranhos e até esotéricos. Há alguns estudos curiosos que sugerem que a fé podem ser interpretada como uma espécie de efeito placebo para doentes, em especial para doentes crónicos - nesse caso, mesmo que o efeito seja subtil, ainda assim, é melhor que nenhum. É também assim que vejo o motivo porque tanta gente continua a ir a locais santos à espera de um milagre, ainda que este seja realmente improvável (li já não sei onde, que durante os 150 anos de peregrinações a Lourdes, os cerca de 40 milagres oficiais, dão uma taxa bem mais baixa que a probabilidade de alguém acertar no euromilhões), mas ainda assim, as pessoas procuram esse milagre. Eu não acho isso mal.

    Como também já escrevi noutro post ("A Visão"), parece-me que o problema é a interpretação que cada um dá à religião. Tenho ideia que muitas pessoas, em especial o que chamaremos fundamentalistas e ainda os que chamaremos (à falta de melhor) "verdadeiros beatos falsos", que à medida que se sentem mais próximos do divino, mais se acham moralmente superiores e na condição de criticarem livremente os restantes. Uma vez que em Portugal a maioria é católica ou pelo menos cristã, é realmente interessante observar os textos atribuídos a Jesus Cristo nos evangelhos. Lá vemos constantemente uma critica feroz à classe dos fariseus, gente que da mema forma era fundamentalista, e que se achava moralmente superior aos restantes: temos o exemplo da adúltera que é salva do apedrejamento, o fariseu que reza de pé para que todos o vejam e ainda pensa "eu não sou como aquele pecador", etc.
    Quando surgiram notícias sobre o diário de Madre Teresa de Calcutá, muitos ficaram surpreendidos porque ela estava constantemente a questionar-se se teria ou não fé. Lembro-me de ouver um padre na TSF a dizer que isso era sinal de muita fé, afinal, quem não tem fé não se questiona; os que têm certezas, provavelmente não são crentes.

    Em resumo: o problema da religião é quando os crentes levam a sua fé demasiado a sério, quase a roçar o irracional, assim tipo adepto de futebol. É essencialmente esse o meu medo da religião, e não da fé em si.

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  3. Caro Ludwig, obrigado pela resposta ao meu comentário.

    Tenho dois comentários diretos a fazer e uma pequena conclusao:
    1) Na resposta diz que "O problema principal das religiões é assumirem que há uma fonte de factos, valores e prescrições tão superior a nós que a temos de aceitar pela fé, estando-nos vedada a possibilidade de a criticar, corrigir ou substituir. Isto é péssimo."
    Parece-me que a premissa desta frase é de que “religião” = “aceitar pela fé”. Não concordo com esta premissa porque a fé é vista por pelo menos uma religião como algo inaceitável e como um método inválido para basear as nossas ideias. Bastando uma religião para invalidar esta afirmação, aqui fica um pedaço de um texto Budista (http://www.acessoaoinsight.net/sutta/ANIII.65.php):
    ‘Não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, “Este contemplativo é o nosso mestre. Quando vocês souberem por vocês mesmos que, “Essas qualidades são inábeis; essas qualidades são culpáveis; essas qualidades são criticáveis pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao mal e ao sofrimento” - então vocês devem abandoná-las”
    2) No final diz o seguinte: “Não só porque o termo “ateu” foi inventado precisamente para designar quem rejeita a tal autoridade suprema – que, nesse tempo, era sempre divina – mas também porque a minha oposição à religião é consequência daquilo que me torna ateu. Por um lado, saber que não existem deuses, algo que sei objectivamente tal como sei que a astrologia é treta e os unicórnios ficção. Por outro lado, a opção de que, mesmo que existissem deuses, não era por isso que ia delegar em alguém, humano ou divino, a tarefa de escolher os meus valores e o que dá sentido à minha vida. Isto põe-me em oposição às religiões, com ou sem teísmo, porque todas as religiões assentam naquela atitude de fé que considero errada.”

    Além de ver mais uma vez a premissa errada que mencionei antes, concordo com tudo o resto.
    3) Para concluir a fé não tem lugar no Budismo Theravada, nem no Budismo Zen, e o único método válido para aceitar algo é a observação direta e entendimento direto das coisas através das experiencia. Não serve ler, nem ouvir nem conjeturar. E isto é válido também para o próprio ensinamento, não chega ler os textos, nem ouvir alguém falar sobres as escrituras, é preciso vermos por nós próprios o que e bom e o que é mau.
    Não quero com isto promover o Budismo como melhor que outro caminho, é o caminho que eu escolhi, mas não me incomoda que outras pessoas sigam outros caminhos. Mas também não gosto de fica calado quando vejo o Budismo injustamente colocado no cesto das laranjas teístas, em vez de no cesto das peras ateístas onde penso que deve estar.

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