domingo, outubro 26, 2014

Treta da semana (passada): sem autoria.

João Grancho, ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, copiou de outros autores uma boa parte da sua comunicação sobre "A dimensão moral da profissão docente", apresentada em 2007 em Espanha (1,2). Como não referiu as fontes nem distinguiu as partes copiadas das partes que escreveu, plagiou. Nas muitas discussões em que me meto a propósito do copyright, por vezes vejo o plágio a ser apresentado como um exemplo de violação dos direitos de autor. Grancho parece partilhar esta opinião, declarando-se inocente de plágio por se tratar de «um mero documento de trabalho, não académico nem de autor»(3). Ou seja, não sendo uma questão de autoria, não pode ser plágio, subentendendo-se que o plágio só o é se violar algum preceito do tal direito de autor. Penso que a maioria dos leitores facilmente concordará que a desculpa de Grancho é uma treta. Mais difícil será convencê-los de que é uma treta porque o mal do plágio não nada que ver com autoria ou direitos de autor. Deve-se simplesmente ao atentado contra a verdade, a honestidade e a reputação de terceiros. Mas argumentar só vale a pena quando não é trivial, por isso aqui vai.

Eu defendo que nenhum autor tem o direito de restringir a cópia ou o uso de obras que voluntariamente decidiu publicar. Antes de publicar, claro que sim. Todos temos direito à privacidade e, como os direitos de uns acabam onde começam os dos outros, ninguém tem o direito de devassar a privacidade de terceiros reproduzindo ou divulgando o que é privado. Mas, quando decidimos tornar pública uma obra, ultrapassamos a fronteira além da qual os nossos direitos dão lugar aos dos outros. Aí já não temos legitimidade para proibir ou restringir o que quer que seja só por termos sido autores. O meu direito de decidir quem pode ou não pode ler, copiar, usar ou distribuir este texto extingue-se no momento em que carrego no “Publish”.

Por isso, se alguém copiar isto para o seu blog insinuando que é o autor, não está a violar qualquer direito que eu tenha sobre este texto. Não é uma situação análoga a uma invasão de propriedade ou a um furto, em que se apropriam de algo que é meu. É, antes, análoga à situação do miúdo que parte um vidro com uma bolada e culpa o companheiro de jogo, inocente, quando a vizinha vem à janela saber o que se passou. É uma mentira que nega o direito à verdade e imputa demérito a quem tem mais mérito e mérito a quem não o merece. É isso que faz o plagiador. É indiferente se é um documento “de trabalho” ou se “não é de autoria”, seja lá o que isso for. O que importa é que, ao cometer plágio, arroga-se de méritos que não tem, acusa implicitamente o autor de mentir e nega à audiência o direito de saber a verdade.

1- Jornal de Negócios, Secretário de Estado plagiou textos sobre a "dimensão moral" do professor
2- Público, Os originais e as cópias de João Grancho
3- Público, Secretário de Estado demite-se por “imperativos de consciência” após notícia do PÚBLICO sobre plágio

sexta-feira, outubro 24, 2014

O pulmão natural.

Os dirigentes da Igreja Católica têm estado a decidir se a Idade Média já acabou. O assunto pode parecer simples para quem está de fora mas, como o Espírito Santo diz umas coisas ao Papa e outras aos bispos, a decisão está complicada. Entretanto, alguns comentadores católicos por cá já chegaram à sua verdade revelada. Admito que aquilo que João César das Neves pensa acerca do casamento e do divórcio é entre ele a a sua esposa, e o que Gonçalo Portocarrero de Almada pensa é só com ele. Mas achei piada aos argumentos que apresentam para fazer de conta que não defendem um disparate.

Neves argumenta que o divórcio é inadmissível com uma analogia entre o cônjuge e o pulmão. «Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles.» Foi «pelas mesmas razões» que não lhe ocorreu divorciar-se (1). É uma analogia estranha mas reveladora da noção que Neves tem do casamento. Eu não trocaria os meus pulmões porque, com a medicina que temos hoje, isso teria consequências desagradáveis. Mas se, quando eu tiver sessenta anos, a medicina permitir trocar de pulmões com a mesma facilidade com que se tira um apêndice, não verei problema ético nenhum em trocar os meus pulmões de sessenta anos por uns de vinte. Trocar assim de cônjuge já não seria um acto moralmente neutro. Mas, ao contrário do que Neves defende, isto não tem nada que ver com preservarmos «aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos». Não se trata de um dever de permanecer juntos só porque calhou estar juntos. Tem que ver com o cônjuge ser uma pessoa e não um apêndice.

À primeira vista, isto pode parecer dar ainda mais razão à tese de Neves por ser pior trocar de cônjuge do que de pulmões. Mas o dever de ter consideração pelo cônjuge pode tornar o divórcio numa obrigação moral se a relação não for aquela que ambos merecem. A tese de Neves revela um problema comum a muitas religiões: descurar o facto de que, mesmo quando fazem parte de famílias, comunidades ou cultos, as pessoas continuam a ser indivíduos. Não passam a ser órgãos.

Gonçalo Portocarrero de Almada tenta chegar ao mesmo sítio por outra via. Invoca que «O matrimónio cristão [é] o casamento natural elevado à condição de sacramento» e que, por ser natural, «essa união só pode ser estabelecida entre uma mulher e um varão e deve durar enquanto os dois cônjuges forem vivos.»(2). Concordo que o casamento é algo natural na nossa espécie. A nossa espécie é, apesar do que por vezes parece, especialmente inteligente, e temos muito a ganhar por viver em grupos mistos de adultos e crianças. No entanto, as nossas crias precisam da atenção de ambos os progenitores, o que exige que os machos saibam quais são as suas crias. A dificuldade de combinar a vida em grupo com o investimento paternal e evitar que os machos matem as crias dos outros obrigou a nossa espécie a criar rituais e normas de comportamento que permitissem este tipo de colaboração. O casamento é um dos mecanismos resultantes desta pressão.

Mas se há algo natural na nossa espécie é a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. É por isso falso que o casamento tenha de ser entre “uma mulher e um varão” e durar a vida toda. Todas as culturas têm formas de divórcio e quantos casam com quem e com quantos depende das condições em que vivem. Culturas nas quais os homens arriscam frequentemente a vida em confrontos para capturar recursos tendem a favorecer a poliginia. Habitar em regiões mais pobres pode favorecer a poliandria, com uma mulher tipicamente casando com dois irmãos, o que lhe permite reunir os recursos necessários para criar os filhos. Com a formalização legal das uniões e a separação entre o Estado e a vida privada, é perfeitamente natural que o casamento possa ser a união entre duas pessoas, qualquer que seja o sexo. Não será um matrimónio no sentido original do termo mas, como as evidências claramente demonstram, não sai do intervalo de adaptabilidade destas normas sociais.

É perfeitamente legítimo que os católicos concebam o seu casamento como bem entenderem. Mas a sua condenação do divórcio é uma idiossincrasia religiosa que não reflecte qualquer realidade profunda acerca da natureza humana ou dos transplantes de órgãos.

1- DN, Amputação
2- Voz da Verdade, Divórcio, casamento natural e matrimónio cristão

sábado, outubro 18, 2014

Treta da semana (passada): striptease.

Marinho e Pinto decidiu revelar publicamente quanto recebe do Parlamento Europeu (1). Poupou assim aos portugueses o trabalho de ler isto no site do Parlamento (2). Infelizmente, esqueceu-se de que esse subsídio não devia ser só para ele meter ao bolso (3) e também não aproveitou para divulgar quanto recebeu quando era Bastonário da Ordem dos Advogados, que sempre teria mais interesse por não ser já informação pública (4). Mas a ideia subjacente, que muitos partilham, é a de que pagamos demais aos políticos e que oito mil euros de subsídio mensal para um deputado do Parlamento Europeu é demais. Proponho que isso é treta. Primeiro, organizemos as peças do puzzle.

O Orçamento do Estado para 2015 prevê uma carga fiscal de 37% do PIB. É um «máximo histórico» (5) que, ainda assim, fica aquém dos 49% da Dinamarca, 45% da Suécia, ou dos 40% da Alemanha (6). Mais relevante é a diferença entre a carga fiscal e o IVA. Em Portugal é de 14%, de 37% para 23%. Na Dinamarca é de 24% (49%-25%). Na Alemanha é de 21% (40%-19%), e na Suécia é de 20% (7). Isto é importante porque o IVA, além de ser a categoria fiscal mais importante (8), é regressivo. Quem ganha pouco tem de gastar tudo e acaba por pagar mais IVA, em proporção ao que ganha, do que pessoas que ganham mais e que usam apenas parte do rendimento no consumo. Assim, com uma diferença pequena entre os impostos regressivos e a carga fiscal média, aliada ao grande peso dos impostos regressivos, o Estado agrava as desigualdades económicas. Junta-se os cortes nas prestações sociais e o resultado é que enquanto aumenta em dez mil o número de milionários (9) aumenta também a pobreza e o poder de compra de quem ganha o ordenado mínimo cai abaixo dos níveis de 1974 (10).

A ideia de que isto é uma austeridade inevitável não encaixa no puzzle. Quando o Conselho Superior do GES viu que era preciso tapar um buraco de 750 milhões de euros, a família Espírito Santo “pôs o Moedas a funcionar”, telefonando ao secretário de Estado e comissário europeu para que este os ajudasse a convencer a Caixa Geral de Depósitos a emprestar o nosso dinheiro ao GES. Desta vez falhou, e é por isso que sabemos que aconteceu mas, pela conversa, não parece ser raro que estas pessoas resolvam os seus problemas desta maneira (11).

Segundo as estatísticas do Ministério das Finanças para 2012, o sector financeiro pagou um total de 716 milhões de euros em IRC (12). O imposto anual sobre os lucros de toda a banca e seguradoras nem chega ao que o Ricardo Salgado queria que “o Moedas” lhe desenrascasse. É quase vinte vezes menor que o imposto sobre os rendimentos dos trabalhadores, equivalendo ao IRS colectado às pessoas com menos de €1350 de rendimento mensal bruto (13). É também metade do imposto sobre o tabaco. Isto merece ser repetido: o imposto sobre o lucro de todo o sector financeiro e de seguros em Portugal é metade do que se cobra pelo tabaco.

Isto já começa a dar uma ideia do que se passa. A facilidade com que os salgados põem os moedas a funcionar leva a políticas do Estado que favorecem quem tem dinheiro em detrimento de quem não pode telefonar ao Secretário de Estado do Primeiro Ministro para pedir 750 milhões de euros à CGD. Uma das razões para o défice que sistematicamente temos é que, ao contrário de quem vive da mão para a boca, quem tem muito dinheiro pode pressionar, negociar e fugir dos impostos. A esses, o Estado acaba por pedir dinheiro emprestado em vez de os obrigar a contribuir com o que devem. E ainda falta outra peça.

O BES custou 4.4 mil milhões de euros ao Estado. Dizem que se vai recuperar o dinheiro, mas o BPN também começou por ser “apenas” 1.8 mil milhões e já vai em 3.4 mil milhões, só contando com o que já está mesmo oficialmente perdido, valor que só tende a crescer (14). Outra sangria do Estado é a privatização de empresas públicas que, formalmente ou na prática, são monopólios. Uma vez sob controlo privado, este património é depois desfeito em dividendos até restar apenas uma fracção do inicial (15). Enquanto o Estado controlou a PT, entre 2000 e 2011, o valor de cada acção rondou os €10. Em 3 anos de saque a gestão privada fez o valor da empresa cair para 1.2€ por acção. Só cerca de 1€ desta queda se deveu ao buraco no GES (16). O resto foi, essencialmente, repartido em dividendos.

Oito mil euros por mês para pagar o trabalho que um deputado faz pode parecer muito. Mas não estamos a pagar só para fazerem. Estamos a licitar para que não nos prejudiquem fazendo favores a terceiros que pagam mais. Poupar nisso pode sair muito caro. A intuição que nos diz que oito mil euros é muito falha nos milhares de milhões, um número totalmente fora da nossa experiência. Mas só o que o Estado já gastou oficialmente com o BPN dava para pagar o salário do Marinho e Pinto durante trinta mil anos ou pagar cinquenta anos de despesas da Assembleia da República. Se somarmos a isso a PT, os CTT, a EDP, o BES, submarinos e Pandur, mais PPP, cortes no IRC, cortes no Estado e a forma como os impostos dos ricos são calculados, é evidente que o striptease de que precisamos não é para ver os salários dos deputados ou as cuecas do Marinho e Pinto. É para tirarmos o barrete.

1- Partido Democrático Republicano, Parlamento Europeu
2- Parlamento Europeu, Deputados (ver em Subsídios e Abonos).
3- iol, «Se o Dr. Marinho Pinto fica com o dinheiro é com ele»
4- Económico, O striptease de Marinho e Pinto.
5- Publico, Carga fiscal atingirá novo máximo histórico em 2015
6- Wikipedia, List of countries by tax revenue as percentage of GDP
7- EC, VAT Rates
8- Segundo prevê o OE de 2015, 14.5 mil milhões de IVA, seguido de 13.2 mil milhões de IRS, com todas as outras categorias muito abaixo disto: DGO, Política Orçamental
9- Jornal de Notícias, País tem mais 10 mil milionários
10- Pagina 1, Mais pobres e a ganhar menos do que em 1974.
11- Observador, José Manuel Espírito Santo: “Eu punha já o Moedas a funcionar”
12- Portal das Finanças, Estatísticas - Imposto sobre o Rendimento, IRC, declarações mod.22, quadro 30.
13- Até ao escalão de €19000 por ano de rendimento bruto, assumindo pago em 14 vezes: Total da Modelo 3 - IRS - valores liquidados
14- Jornal de Negócios, Cinco anos após a nacionalização do BPN os custos ainda estão por apurar
15- Por exemplo: EDP distribui 676 milhões em dividendos pelos accionistas, ou o clássico PT vai pagar o maior dividendo de sempre a accionistas.
16- PT, Histórico de Cotações.

quarta-feira, outubro 15, 2014

Disto e daquilo, 6.

Jessica
A Jessica Athayde desfilou em biquíni na Moda Lisboa e foi «alvo de críticas, comentários desagradáveis [...] feitos na maioria por mulheres»(1). Não vejo que defeitos se possa apontar ao corpo dela (2) mas vejo alguns no que ela escreveu. Athayde quer combater a «tendência redutora de nos verem» apenas pelo corpo porque «Cada mulher é um mundo muito para além do corpo que a recebe.» É verdade que somos muito mais do que o aspecto físico mas raramente avaliamos a pessoa como um todo. Depende das circunstâncias. Tal como não seria apropriado considerar o corpo sensual de Athayde para avaliar um artigo ou dissertação que ela escrevesse, também não seria de esperar que, se fosse eu a desfilar de biquíni, avaliassem a minha prestação como modelo pela minha formação académica ou experiência de ensino. Isto não é reduzir as pessoas. É simplesmente considerar o que é relevante em cada situação. Mas o pior é como aproveitou a campanha HeForShe, cuja ideia fundamental é a de que a discriminação sexual afecta ambos os sexos e é um problema de todos. Athayde propõe «que abracemos também o #SheForShe. Ela por ela. Cada uma de nós pela mulher ao nosso lado.» Além de trivializar a discriminação sexual confundindo-a com o “problema” de haver quem exprime opiniões disparatadas, defende um retrocesso à ideia da igualdade de direitos como uma luta entre a quadrilha dos ovários e o gang dos testículos. Toda a gente, homem ou mulher, tem o direito de formar a opinião que quiser acerca de quem entender pelos critérios que lhe apetecer. E ninguém, nem homem nem mulher, tem a obrigação de ser mais solidário seja com quem for só por ter o mesmo tipo de órgãos sexuais. Se bem que Athayde tenha razão em apontar que as críticas ao aspecto físico podem ser prejudiciais, a solução não é reprimir a crítica mas sim ensinar cada pessoa a lidar com os críticos de forma racional. Seja como for, a discriminação (sexual ou qualquer outra) é um problema muito mais sério e objectivo do que haver quem aponte defeitos ao corpo de quem desfila de biquíni.

Islão
Pessoas como Reza Aslan e Ben Affleck têm-se insurgido contra quem considera o Islão a pior religião do mundo. Alegam que isso é ser intolerante (3), ou mesmo racista (4), e que os muçulmanos não são todos iguais. Como diz Cenk Uygur, muitos muçulmanos são simplesmente «tios e tias», pessoas que querem viver a vida em sossego e sem extremismos (5). Isto está certo mas omite um ponto importante. Aslan alega que é um erro fundamental julgar que «as pessoas obtêm os seus valores» dos seus textos religiosos porque, na realidade, as pessoas usam os seus valores morais para interpretar os textos das suas religiões. Mas isto só é verdade quando a religião é vista como um direito individual. Por exemplo, pela Europa, há milhões de pessoas que se identificam como católicos mas que usam essa liberdade individual para seleccionar o que lhes interessa e descartar preceitos como a condenação dos contraceptivos ou da homossexualidade. Mas isto é muito mais raro nas comunidades muçulmanas. Na Arábia Saudita ou no Irão, por exemplo, um muçulmano não pode interpretar a sua religião de acordo com valores que se desviem do que é oficialmente permitido. Sob pena de morte. Mesmo em países mais livres, os muçulmanos tendem a organizar-se em comunidades que inibem a divergência de interpretações. Há excepções mas, em média, o cristianismo é mais uma religião de pessoas, cada uma livre de divergir dos restantes na sua interpretação do que é ser cristão, enquanto o islão tende a ser uma religião de comunidades onde cada individuo é pressionado, nuns casos mais do que noutros, para se conformar a uma interpretação colectiva. O resultado é que, no islão, é muito mais fácil que prevaleçam ideias extremistas do que a voz dos moderados e tolerantes.

1- Jessy James, Para mulheres reais
2-DN, Jessica Athayde responde a críticas ao seu físico
3- Salon, EXCLUSIVE: Reza Aslan on Bill Maher’s anti-Islam crusade: “Frank bigotry”
4- Huffington Post, Ben Affleck vs. Bill Maher: A Totally Biased Viewer's Account
5- The Young Turks, Ben Affleck Angrily Defends Islam Against Bill Maher/Sam Harris

domingo, outubro 12, 2014

De onde vem a ética?

O Jónatas Machado comenta regularmente neste blog, como “Perspectiva” ou “Criacionismo Bíblico”. Infelizmente, os seus comentários são tão repetitivos e desligados dos posts que comenta que deixei de olhar para eles. Mas chamaram-me a atenção para uma excepção, no post sobre a igualdade de direitos, que é um bom ponto de partida para algo que me interessa. Escreve o Jónatas que «ficamos sem saber porque é que o facto as pessoas sentirem, desejarem, planearem, sonharem e pensarem lhes confere dignidade e direitos iguais. Especialmente quando se acredita que as pessoas são um acidente cósmico», pondo em seguida as seguintes questões: «Como é que um acidente cósmico pode reclamar dignidade intrínseca? […] E reclama dignidade diante de quem? Que norma obriga um acidente cósmico a reconhecer a igual dignidade de outra acidente cósmico?». Finalmente, alega que «O princípio da igualdade não faz sentido à luz de uma visão ateísta» e que «O princípio da igualdade é, na realidade, uma doutrina cristã, cuja origem está em Génesis. Ele baseia-se no facto de homens e mulheres terem sido criados à imagem e semelhança de Deus.» (1) Penso que quem não for fundamentalista religioso percebe que estas alegações são falsas. Mas, como de costume, o que me interessa mais é detalhar o porquê.

Comecemos pelo mais fácil. Se alguém me pisa eu digo “Au! Está a pisar-me!” É fácil perceber que a minha capacidade de sentir, pensar e falar bastou para que reclamasse dessa violação da minha integridade. É também natural que eu dirija a minha reclamação a quem me pisou. Este mecanismo é comum nos animais. Se o Jónatas pisar a cauda de um cão grande, o animal irá reagir sem dificuldade em saber contra quem e facilmente lhe ocorrerá como persuadir o Jónatas a não repetir a brincadeira. É verdade que isto não tem nada de ético, mas já lá vamos. O importante primeiro é perceber que o mecanismo para identificar estes conflitos, reclamar deles e coagir para que não se repitam é consequência natural de capacidades sensoriais, motoras e cognitivas comuns em várias espécies.

Quando animais destes vivem em grupos, a pressão para reduzir conflitos e maximizar benefícios condiciona padrões colectivos de comportamento. Assim, em galinheiros, matilhas de lobos e grupos sociais de golfinhos, por exemplo, surgem normas implícitas, aprendidas por cada nova geração pela socialização com os mais velhos, e que regulam comportamentos que vão desde quem pode dar bicadas em quem até estratégias complexas de caça e reprodução. Na nossa espécie, a capacidade de codificar estes padrões em linguagens e ritos cria a moral, um conjunto de normas e de regras explícitas que condicionam o comportamento de indivíduos em cada cultura. É comum invocar-se deuses para ameaçar infractores ou justificar as regras mas, em rigor, isso seria dispensável. Talvez dizer “se roubas cortamos-te as mãos” não seja tão eficaz como dizer “roubar é pecado aos olhos de Xumbundu, por isso se roubas cortamos-te as mãos e Xumbundu condenará a tua alma ao inferno das mil diarreias”. Mas a diferença, se houver, será meramente quantitativa. A ideia é a mesma: as normas surgem pela interacção dos elementos do grupo, esses elementos encarregam-se de coagir o respeito pelas normas e a moral que daí advém é apenas a representação simbólica de padrões que cristalizaram sem plano nem propósito. Com isto já se faz leis, religiões, costumes, castas, tradições e regras sociais complexas. Mas, como há muitos pontos de equilíbrio nestes sistemas complexos, a moral de uma sociedade pode ser muito diferente daquela que surge noutra e pode incluir racismo, escravatura, tortura, despotismo e outras injustiças terríveis, conforme calhe. Quanto a isto, a religião de nada adianta.

A ética é um bicho diferente porque não é feita de comportamentos, nem de normas, nem de regras, direitos ou obrigações. A ética é feita de perguntas. Quando Sócrates perguntou o que é a virtude, todos os seus contemporâneos julgavam que a resposta era óbvia. Mas não era. Nem é. Porque não devemos roubar? Quando é legítimo matar? Viver é um direito, um privilégio ou uma obrigação? Estas perguntas são importantes porque impedem uma adesão cega ao sistema moral que nos tenha calhado e permitem uma abordagem consciente e racional dos problemas. Eu considero que homens e mulheres têm direitos iguais porque considero que são equivalentes naquilo que importa para ter direitos, como sentir, pensar e dar valor à sua existência. O Jónatas acha que é por «terem sido criados à imagem e semelhança de Deus» mas essa premissa não tem fundamento factual, não passa de uma interpretação possível para a rábula da costela e nem sequer é consensual no cristianismo. Também não permite estender a noção de direitos a animais de outras espécies que, apesar de não serem semelhantes ao deus do Jónatas, partilham connosco muito daquilo que justifica ter direitos.

A ética serve para substituir os mecanismos cegos de estabilização de comportamentos pelo debate consciente e as racionalizações do status quo por justificações racionais. Os princípios que daí advêm depois podem ser transpostos para normas, como leis, formas de governo e afins, corrigindo gradualmente os erros do passado. Ao contrário do que o Jónatas defende, a religião não traz benefícios nisto porque é apenas mais um legado desses mecanismos primitivos que dominaram as sociedades até há poucos séculos. Os mesmos mecanismos que governam galinheiros e matilhas. E a ética não pode vir de Deus porque a ética não é algo que nos dão. É algo que temos de fazer por nós, pois exige questionar, reflectir e perceber os problemas de outras perspectivas. O único deus que poderia participar nesta actividade seria um deus filósofo, disposto a dialogar e a justificar as suas posições. Mas como um deus filósofo não é útil aos sacerdotes, as religiões só inventam deuses déspotas, prepotentes e preconceituosos, que nada podem contribuir para esta empreitada.

1- Igualdade e diferenças, segundo comentário.

sábado, outubro 11, 2014

Treta da semana (passada): a matéria prima.

No debate do passado dia 28, a Paula Simões, da AEL, focou os problemas essenciais da taxa sobre a cópia privada em suportes digitais (1). Em primeiro lugar, a taxa cobra um direito que não temos porque a distribuição é dominada pelo DRM e por licenças de acesso sem cópia persistente. A Paula Simões refutou também a tese da taxa ser paga pelos vendedores do equipamento digital. Além de economicamente inviável, é ilegal taxar pelo direito à cópia privada empresas que não têm esse direito. O Pedro Wallenstein, da GDA, contrapôs que «Há interesses em conflito e é preciso encontrar um equilíbrio». Segundo este, «Deslocaram o adversário [...] para os criadores e para aqueles que fornecem a matéria prima em vez de deslocar para uma indústria multinacional que factura milhões» e só se «essa indústria fizer reflectir nos consumidores essa componente, que é a componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» é que «a comunidade de consumidores, a comunidade de internautas e os cidadãos» se devem revoltar. Há muita coisa errada aqui. Chama «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» à taxa que teremos de pagar em benefício de organizações como a GDA. Concordo que a cultura é património de todos, e é assim que declaro ser tudo o que eu publico, seja aulas, código ou artigos. Mas, se é assim, não se pode taxar a cópia privada.

Wallenstein também descartou o problema da lei incidir sobre um direito privado alegando que só importa o equilíbrio entre interesses e que não devemos ligar aos detalhes formais da lei. Isto é insensato porque a letra da lei é a orientação principal dos tribunais. E é especialmente mau neste caso porque o copyright funciona ao contrário da maioria das leis que regulam conflitos entre agentes comerciais e cidadãos privados. Nas relações laborais, poluição, segurança ou direitos do consumidor, a lei tenta proteger o cidadão privado da disparidade de poder entre o indivíduo comum e empresas com advogados contratados a tempo inteiro. A legislação de copyright, imposta por tratados internacionais, faz o contrário, dando a empresas como a Disney e a Sony ainda mais poder para interferir na vida das pessoas. Isto justifica que se preste especial atenção aos detalhes.

Por outro lado, quando a Paula Simões propôs que se legalize a partilha de ficheiros para fins não comerciais de forma a justificar a cobrança, Wallenstein disse que isso não pode ser porque todo o “edifício legislativo” depende da proibição da cópia, mesmo privada. Nisto já quer que os aspectos formais contem mais do que o tal equilíbrio. Mas até formalmente Wallenstein está enganado. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estabelece que a cópia é um direito exclusivo do autor e que a cópia privada é uma excepção cujo prejuízo, se houver, tem de ser compensado. Mas a protecção dos direitos conexos é diferente. Os direitos conexos são os “direitos” de uma data de gente que não é autor da obra, como artistas executantes e produtores. São estes que a GDA de Wallenstein representa. E, no título dos direitos conexos, está explícito que «A protecção concedida neste título não abrange [o] uso privado» (artigo 189º do CDADC). Ou seja, Wallenstein quer que os detentores dos direitos conexos beneficiem da taxa sobre uma alegada excepção a direitos que estes não têm.

No entanto, o problema mais fundamental é a ideia de que o artista produz uma “matéria prima virtual” que é consumida pelo público e aproveitada pelos negociantes de cartões de memória para lucrarem rios de dinheiro. Isto é um disparate. A diferença entre produção e arte sempre foi clara. Quando o homem pré-histórico caçava, usava o seu trabalho para obter matéria prima da qual criava utensílios e refeições que depois eram consumidos pelo uso ou ingestão. Mas quando desenhava um antílope na parede da caverna não estava a criar matéria, virtual ou qualquer outra. Estava a comunicar. Dança, literatura, cinema, música e afins são formas de comunicar e a tecnologia que acusam de expropriar a “matéria prima” do artista está apenas a facilitar a comunicação. E esse é que é o problema. Durante séculos, as limitações tecnológicas à comunicação criavam um monopólio natural que permitia lucrar pela distribuição de suportes materiais que só alguns tinham capacidade industrial para reproduzir. Nessa altura, a vida privada estava naturalmente fora de consideração. As pessoas tocavam, cantavam e dançavam sem pagar à PassMúsica e escreviam cartas com poemas sem ter de contratar advogados. Agora, todos conseguimos transmitir imagens, sons e textos instantaneamente para qualquer parte do mundo. Wallenstein alega que, por isso, é «necessária uma adaptação do edifício legislativo à realidade tecnológica». Mas é preciso pensar se queremos substituir as antigas restrições tecnológicas por restrições legais. O mero facto de agora podermos fazer mais coisas não implica que devam ser proibidas.

Se percebermos que arte é comunicação percebemos que o que está em causa não é gerir os conflitos entre produtores, transportadores e consumidores de matéria prima sujeita a direitos de propriedade. O problema que temos é o de gerir o conflito entre, por um lado, os interlocutores que comunicam entre si com os meios que a tecnologia permite e que, conforme as circunstâncias, podem ter um papel de profissionais ou amadores, de autores, executantes ou de público e, por outro lado, quem tenta impor restrições a esta comunicação para cobrar dinheiro. Wallenstein tem razão em dizer que os nossos adversários não são os criadores. Até porque, profissionais ou amadores, todos somos criadores e todos contribuímos para a tal «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum». Mas é falso que os adversários sejam os vendedores de equipamento. Os verdadeiros adversários são pessoas como Wallenstein, que querem restringir a liberdade de comunicar para poderem cobrar pela distribuição daquilo que nós podemos distribuir.

1- Resumo no site Esquerda.net: Cópia privada: "Esta lei veio colocar cidadãos contra autores"

domingo, outubro 05, 2014

Igualdade e diferenças.

O discurso de Emma Watson nas Nações Unidas, a propósito da campanha “HeForShe”, foi elogiado por frisar que o feminismo não implica odiar os homens (1). Realmente, a discriminação é um problema de todos e lutar por direitos iguais não exige odiar ninguém. Infelizmente, é provável que qualquer pessoa a quem seja necessário dizer isto será uma pessoa a quem não adianta dizê-lo. No entanto, por muito difícil que seja mudar mentalidades, é inevitável que as pessoas sejam substituídas, com o passar do tempo, e quanto mais se discutir estes problemas mais fácil será às próximas gerações corrigir os erros das anteriores. É neste espírito que vou criticar a definição que Watson propôs para o feminismo:

«A crença de que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É a teoria da igualdade política, económica e social dos sexos.»

Concordo plenamente que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É corolário do princípio fundamental de que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Não é por serem todas iguais, até porque cada pessoa é diferente das outras e até vai sendo diferente de si própria ao longo da sua vida. Devemos ter os mesmos direitos e oportunidades porque, independentemente das diferenças, somos seres que sentem, desejam, planeiam, sonham, anseiam e pensam ao longo da vida. É isso que nos torna todos diferentes, únicos até, mas também é isso que nos faz a todos igualmente dignos de viver o que somos e como somos, cada um à sua maneira. Se pensarmos nestes atributos que nos tornam diferentes e fundamentam os nossos direitos enquanto indivíduos, é fácil perceber como é injusto discriminar alguém pelo grupo em que o colocamos, seja pela cor, pelo sexo ou pelo sítio onde nasceu. Devemos julgar e respeitar cada pessoa pelo que essa pessoa é e não por uma média do seu grupo ou um preconceito acerca do que “essa gente” deve ser.

Na nossa sociedade, a discriminação sexual não é a pior. Por exemplo, discriminar as pessoas pelo sítio onde nasceram é mais grave. Quem vive em regiões mais afluentes tem dificuldade em admitir que as pessoas nascidas do lado de lá de uma linha arbitrária no mapa são tão merecedoras de direitos e oportunidades quanto as que nasceram do lado de cá. A orientação sexual também parece ser motivo de maior discriminação do que o sexo em si e quem não se encaixa nos estereótipos de género tende a sofrer ainda mais discriminação do que quem se conforma com o esperado de um homem ou de uma mulher (2). Mas a discriminação sexual é muito grave noutros sítios e é algo que, por cá, se percebe estar inversamente correlacionado com o civismo. Por isso, a discriminação sexual é um bom campo de batalha nesta guerra contra a injustiça de avaliar indivíduos pelos grupos em que os colocamos, sem esquecer que a guerra tem mais batalhas do que esta.

É da segunda parte da definição que discordo, a da «teoria da igualdade política, económica e social dos sexos». Logo à partida, parece sugerir que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos porque são iguais, quando a igualdade de direitos não tem nada que ver com a igualdade no resto. Também é improvável que, ao darmos direitos e oportunidades iguais a toda a gente, passe a haver «igualdade política, económica e social» entre todos. Pessoas diferentes têm preferências e aptidões diferentes e não vão todas fazer o mesmo. É certo que Watson se refere à média dos homens e das mulheres e não ao que cada um faz individualmente mas, mesmo assim, não é razoável esperar que a igualdade de direitos resulte na mesma proporção de homens e mulheres em profissões como polícia de choque ou educador de infância. Também não deve ser só a discriminação que faz com que as top models femininas ganhem mais do que os seus congéneres masculinos, ou o contrário no futebol profissional. Se bem que estes exemplos sejam extremos, é provável que as diferenças físicas, hormonais e de desenvolvimento entre os sexos tenham efeitos médios perceptíveis na generalidade dos casos. É duvidosa a hipótese de que homens e mulheres individualmente livres de escolher o que fazem acabem por fazer, em média, exactamente a mesma coisa.

Mas é enquanto norma que esta “teoria” é mais prejudicial porque, se tentamos forçar uma igualdade social, económica e política entre os sexos, estamos a cometer precisamente a injustiça que devíamos combater. Estamos a subordinar os direitos de cada indivíduo a preconceitos acerca do grupo. Esta confusão entre a igualdade de direitos e a igualdade de escolhas, que leva à imposição de quotas e medidas afins, apenas muda o aspecto da discriminação sem resolver o problema. É como combater a escravatura exigindo paridade no número de escravos de diferentes raças. O problema que temos de resolver não é o de haver diferenças médias entre grupos. O problema é o de haver restrições às escolhas do indivíduo em função de medidas agregadas do grupo, o que acontece quer o objectivo da discriminação seja favorecer um dos sexos quer seja o de forçar a paridade. Para evitar lutar contra si próprio, o feminismo devia pugnar apenas pela igualdade de oportunidades e de direitos, o que inclui o direito à diferença sem discriminação.

1- UN Women, Emma Watson: Gender equality is your issue too.
2- Por exemplo, Não quer ser "ela". Não quer ser "ele". Só quer ser uma pessoa. Nota: se não conseguirem ler isto por o Público protestar que já não têm artigos de borla, abram o link uma janela privada ou limpem os cookies.

quarta-feira, outubro 01, 2014

Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.

A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).

Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.

A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.

O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.

A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.

O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.

Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da [...] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.

Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.

1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation