domingo, agosto 03, 2014

Treta da semana (passada): dualismo e materialismo.

A propósito do post sobre o espiritismo, de há umas semanas, o leitor Cláudio Filipe comentou recentemente que eu revelo «uma total ignorância da relação entre a mente e o cérebro.» Passou então a elucidar-me para que eu só fique parcialmente ignorante, esforço que agradeço desde já:

«O problema da relação entre a mente e o cérebro é um problema muito antigo e há séculos que é abordado por filósofos e cientistas. Para simplificar, há duas posições: a posição que diz que a mente é um simples produto do cérebro que é a posição materialista também chamada de produtiva (porque é o cérebro que produz os pensamentos) e a posição que diz que a mente, embora estreitamente relacionada com o cérebro durante a vida do indivíduo, é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio. Diz-se que é a hipótese transmissiva, na medida em que o cérebro não produz os pensamentos, apenas os transmite.»

Depois de enunciar vários nomes de pessoas que favorecem a segunda hipótese, alega que esta explica perfeitamente o efeito de drogas, Alzheimer e lesões cerebrais porque «Se nós tivermos um televisor danificado, as imagens que vamos ver vão sofrer de forma correspondente. […] Mas não é o nosso televisor que produz os programas, ele apenas os transmite. Da mesma forma, o nosso cérebro pode ser apenas um transmissor e não o produtor dos pensamentos.» Se bem que esta hipótese seja atraente pela possibilidade de haver uma mente independente do cérebro e potencialmente livre do triste destino da matéria orgânica, as evidências são-lhe contrárias. Se nós tivermos danos no nervo óptico ou na retina podemos ver pior ou deixar de ver. Isto é o que se espera de estruturas que transmitem a informação. Mas danos no lobo occipital não só eliminam a capacidade de ver cores como também podem fazer perder a capacidade de imaginar cores. Não se trata apenas de olhar para o tomate e vê-lo de cor cinzenta. Trata-se da situação aflitiva de se lembrar que tem cor mas já nem sequer conseguir visualizar mentalmente o vermelho do tomate (1). Outro exemplo de evidências contra a “hipótese transmissiva” é o que acontece depois de uma comisurotomia do corpo caloso, um tratamento drástico para casos extremos de epilepsia que consiste em cortar as fibras nervosas que unem os dois hemisférios do cérebro. Mostrando ao paciente a imagem de um objecto no lado esquerdo do seu campo visual, o paciente não consegue dizer o nome do objecto mas consegue explicar o que é gesticulando com a mão esquerda, desenhá-lo com a mão esquerda ou encontrá-lo pelo tacto com a mão esquerda. Mas só com a mão esquerda. Se a imagem do objecto for apresentada do lado direito do campo visual o paciente já consegue dizer o nome do objecto e encontrá-lo pelo tacto com a mão direita, mas agora não consegue fazê-lo com a mão esquerda. Não se trata de um mero problema de transmissão. Todo o raciocínio está separado nos dois hemisférios e, se bem que só um deles controla a fala, cada um consegue identificar o objecto, perceber o que se pede para fazer e, dentro das suas capacidades, fazê-lo. Exactamente como se cortar o cérebro ao meio dividisse a mente em duas também.

A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria. É por isso irónico que digam que esta é que é uma visão materialista e redutora da mente.

O dualismo de substância, a tal hipótese de que a mente «é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio», é uma hipótese inútil porque, no fundo, limita-se a dizer que além da “coisa material” há também uma “coisa pensante”. É um análogo do princípio dormitivo de Moliére mas com o defeito de nem ser a gozar. A hipótese de que a mente é um processo em vez de uma coisa, tal como são a digestão e a corrida, além de ser muito mais útil é menos materialista e menos redutora. É mais útil porque um processo é algo que podemos tentar compreender, e a neuropsicologia avançou mais nesta matéria em poucas décadas do que as teologias todas em vários milénios. É menos materialista porque a tal “substância mental” que Descartes postulou é, no fundo, apenas um tipo diferente de matéria. Não ocupa espaço e pensa mas, de resto, é “coisa” como a matéria, partilhando com esta os atributos principais de persistência e existência autónoma. A hipótese da mente como um processo admite que, além das “coisas”, importa também a sua organização e interacção dinâmica, aspectos que não são materiais em si. E é menos redutora porque permite modelar muito mais detalhes do que simplesmente dizer que temos pensamentos porque a nossa mente é uma substância que pensa, o que é tão redutor que acaba por ser ridículo.

1- Wikipedia, Cerebral achromatopsia, em particular o famoso caso do pintor.
2- Nature News, The split brain: A tale of two halves.

3 comentários:

  1. Fisica semântica
    Na verdade, não sei não ?... O que há de mais subversivo nesta espécie de simulacro que se auto-proclama de "ser humano", é a sua espantosa e despudorada habilidade para promulgar a sua própria existência. E a sua arrogância vai tão longe quanto o facto de inventar uma realidade que ele sente que o cerca e nela perceber padrões e regularidades que, afinal, são padrões e regularidades de coisa nenhuma. Enfim, de inventar uma memória cujo único fito é o de apenas autenticá-lo, de construir um eu para que o plano seja perfeito. Ou seja, esta máquina virtual, que julga produzir e instaurar sentido, ancorada, como se percebe, numa narrativa de devir imaginário, acaba depois por rematar todo este rocambolesco cambalacho ontológico com uma projecção final ,da ordem do sagrado e por isso transcendental, para sua eterna glória e salvação.

    Não estou a perceber rigorosamente nada? É urgente situar a questão: existo ou não existo? E a realidade, o que é a realidade ? Também ela existe ou é apenas um simulacro, tal como eu ?
    Bom, com efeito, a realidade é afinal esta , e apenas esta, a que está bem aqui , mesmo à nossa frente, nua e crua, preto no branco. Bastará apenas abrir os olhos e acordar. Com a breca!, basta de simulações e manipulações . Será que não conseguimos enxergar que estamos a ser dominados e alienados por uma crença ridícula ? Diz quem sabe que a fé , essa venda magnífica e a mais inteligente criação do imaginário humano, um opiáceo muito forte que visa aplacar o horror que irrompe das nossas entranhas, não passa de pura abjecção mental. Por consequência, acreditar em fantasmagorias poderá não ser o melhor caminho para a salvação. Acreditar que a realidade não passa de um sonho e que a materialidade do mundo é uma insidiosa abstracção, é cometer uma deplorável imprevidência - atira tu a cabeça com força contra uma parede e verás quão delicada é a óbvia realidade. A dor será enorme e a tua singela cabeça não ficará, com certeza, em muito bom estado.
    Mas , atenção!, a dor só existe para que a ilusão se torne mais credível e melhor sucedida nos seus truques.
    Em que ficamos, então?

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  2. Ludwig,

    muito laconicamente, direi que, quanto mais investigamos mais sabemos do que a matéria não é e mais sabemos que a matéria não está lá, de cada vez que tentamos identificá-la, ou isolá-la, ou caracterizá-la. É como se estivéssemos rodeados de formas constituídas por densidades que adensam a nossa surpresa de cada vez que penetramos nos seus "mistérios". É como se houvesse uma realidade para os nossos olhos e outra para a inteligência, embora sejam a mesma. Como corpos, estamos condicionados às condições dos corpos, mas a inteligência permite-nos atravessar densidades e "ver" avenidas/campos até mesmo onde actuam forças nucleares. O que sobressai desta constatação do mundo e do universo é a espantosa e incrível "configuração" que a inteligência assume.
    Falar em matéria, em materialismo, não fará hoje mais sentido. É tão estranho como dizer que a Terra é plana.
    Quanto à mente, nada somos sem as funções mentais. Um cadáver, mesmo que esteja intacto, é um cadáver. Um cérebro morto não é comparável a um cérebro de alguém com vida. Talvez a mente seja uma complexa manifestação da vida. Talvez a mente seja tudo o que nos importa, porque sem ela nada somos. Talvez a mente seja uma das manifestações da alma. Talvez a diferença entre o corpo e a alma se manifeste na diferença entre um cadáver e quando era uma pessoa viva. Um ser vivo tem algo (muito, imenso) que um cadáver não tem. De qualquer modo, o "espírito", a "inteligência", a vida são o que domina e o que releva, em todos os níveis e contextos da experiência.

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  3. “A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria.”
    Esta é uma afirmação falsa. Simplesmente, não é verdade que a posição materialista esteja plenamente demonstrada, muito pelo contrário. Apesar de se gastarem todos os anos milhões de dólares em investigação, continua sem se ter a menor ideia de como é que os neurónios, que são matéria, produzem pensamentos. Trata-se do chamado problema difícil da consciência. Para contornar este problema, os autores materialistas, como por exemplo Daniel Dennett, recorrem a truques de retórica, ou simplesmente, como faz António Damásio, ignoram-no. Dizer, como faz, que os pensamentos são um tipo diferente de matéria nada resolve, não passa de um truque de retórica. Porque o problema mantém-se, ele não desaparece por causa disso. A questão é sempre a mesma: como é que os neurónios produzem os pensamentos?
    Em contrapartida, a teoria materialista não consegue explicar uma enorme quantidade de factos. Como exemplo, temos o efeito placebo, certos aspetos relacionados com o distúrbio dissociativo, as experiências de quase morte, o fenómeno conhecido como lucidez terminal, entre muitos outros. Vejamos o caso da lucidez terminal. A lucidez terminal é um fenómeno observado há já muitos anos em certos doentes como os doentes de Alzheimer, incluindo o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, e consiste no seguinte: pouco antes da morte, de dias a minutos, os doentes como que ficam mais lúcidos. Trata-se de algo muito difícil de estudar cientificamente mas que tem sido observado há muitos anos por muitos familiares desses doentes e que é rigorosamente inexplicável pelas teorias materialistas. Mas os fenómenos que as teorias materialistas não explicam são inúmeros. Aconselho a leitura do livro Irreducible Mind (vários autores) onde é apresentada uma extensa lista destes fenómenos. Estamos a falar de fenómenos investigados por numerosos cientistas. É claro que há investigações de qualidade desigual mas recuso-me a aceitar a ideia de que se trata apenas de fraudes e que todos os cientistas, incluindo Prémios Nobel, que as investigaram são desonestos, atrasados mentais, estúpidos ou mentirosos. Essa ideia é um insulto à inteligência humana e ao bom senso. Uma teoria para ser boa tem de explicar todos os fenómenos e não apenas alguns.
    Poder-se-á dizer que a maioria dos cientistas defende, pelo menos publicamente, a posição materialista. É verdade mas isso nada prova e temos, na história da ciência, bons exemplos disso. Eu até posso perceber os motivos pelos quais os neurocientistas tendem a favorecer a hipótese materialista mas isso nada tem a ver com as evidências. Aconselho a leitura dos livros de Chris Carter e Sam Parnia bem como a consulta do blog de Michael Prescott onde esses assuntos são exaustivamente abordados. Quando alguém se debruça sobre um problema, deve procurar informar-se sobre os diversos pontos de vista.

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