sábado, agosto 02, 2014

Controlite crónica.

O Álvaro Fonseca rescindiu o seu contrato de professor universitário após quase 28 anos no ensino. Com a ressalva de que me sinto demasiado próximo do Álvaro e da situação que ele descreve para ser imparcial, tenho de dizer que concordo com as principais razões que ele apresenta. Também me desanima a crescente burocratização do ensino e a gestão cada vez mais centralizada. Parece-me que se está a degradar o ensino universitário em favor de indicadores que ficam bem na folha de cálculo mas que pouco contribuem para o que devíamos fazer. Por exemplo, avaliar os cursos pela empregabilidade dá uns gráficos porreiros mas ignora o fundamental, que é a educação de cada pessoa ser um direito seu e não um direito de um eventual empregador. Mas remeto os detalhes acerca da FCT para o post do Álvaro (1). Aqui vou abordar o tema de forma mais genérica, não só porque não tenciono rescindir o meu contrato mas também porque o problema me parece muito mais vasto.

Centralizar os detalhes é bom para maximizar o lucro do abate de frangos, se o quisermos fazer com trabalhadores mal pagos e pouco motivados (2). Põe-se a máquina a trabalhar, cada um pendura, corta ou ajeita conforme o posto em que está e quem refilar vai para a rua. Num hospital isto não funciona. Cada médico e enfermeiro tem de tomar decisões rápidas em situações complexas, não há uma medida simples de desempenho se queremos saúde em vez de lucros e, mesmo que a administração queira fazer da ética laboral o que os outros fazem aos frangos, os cuidados de saúde são muito mais sensíveis à motivação e empenho dos profissionais do que a tarefa de pendurar frangos na máquina de depenar.

A centralização paga-se cara nas tarefas mais complexas. Para a informação chegar ao decisor é preciso relatórios, inquéritos e papelada. Como a decisão também é complexa depois é preciso despachos, regulamentos e esclarecimentos antes de ser implementada. Quanto mais longo o percurso mais trabalho dá, mais tempo demora e mais provável é haver erros. O decisor também precisa de simplificar para poder decidir. Se os docentes fossem avaliados nos grupos de disciplina, escolas, secções e departamentos, podia-se considerar a qualidade das aulas que dão. Mas para centralizar o processo é preciso converter tudo numa tabela de números para ordenar centenas ou milhares de docentes de uma vez, o que exige avaliá-los por indicadores grosseiros como a nota num exame escrito ou as horas de aulas que deram e quantos alunos tiveram. Pior ainda, quando as pessoas começam a degradar o seu desempenho para maximizar estes indicadores – por exemplo, estudando para o tal exame em vez de preparar as aulas que têm de dar – os inventores destes sistemas vão se congratular pela sua gestão genial porque, apesar de estar tudo a ficar pior, as linhas no gráfico vão a subir.

Outro efeito perverso da centralização é o conflito entre objectivos. Quando os procedimentos e melhorias são decididos por quem desempenha as tarefas é fácil alinhar os objectivos dos indivíduos com os objectivos da organização. Por exemplo, se cada professor tenta melhorar a forma como lecciona tenta também melhorar o ensino na escola. Mas quando alguém é encarregue de centralizar as melhorias os objectivos começam a divergir. Por um lado, porque estará sobre pressão para justificar o seu posto e “tomar medidas” mesmo que sejam desnecessárias. O exemplo mais extremo disto é a profusão de ministros e secretários de Estado cujo desempenho é pior do que se não fizessem nada. Por outro lado, porque o desempenho da sua tarefa de gestão depende de medidas que degradam o desempenho dos outros que ele está a gerir. Uniformizar processos facilita a gestão mas trata por igual coisas que são diferentes. Recolher informação de forma estandardizada é essencial para gerir muitos dados mas descura detalhes importantes. Em geral, muito do que simplifica a vida ao gestor dificulta o trabalho a quem faz o mais importante.

Finalmente, há o impacto que estas medidas têm na motivação das pessoas. Quanto mais qualificado for quem desempenha uma tarefa mais frustrado ficará com a interferência de quem, desprezando os detalhes, pinta tudo a rolo e o obriga a fazer as coisas pior do que poderia fazer. Quanto mais empenhado estiver no seu trabalho mais desmotivado vai ficar com burocracias inúteis e avaliações inadequadas. A centralização das decisões só funciona quando o decisor é tão mais competente e motivado do que os seus subordinados que a diferença compensa o custo de centralizar as decisões. Para depenar frangos, por exemplo. Mas na função pública isto raramente acontece, não só porque o Estado emprega uma percentagem muito grande das pessoas mais qualificadas do país como também porque quem chefia é um funcionário público como os outros. Não é dono de nada nem tem mais interesse no sucesso da organização do que têm os demais. Entre pares a centralização não resulta.

Pior do que o corte nos salários, o que tem degradado mais o desempenho da função pública é um modelo de gestão que assume que os funcionários públicos que fazem o trabalho são menos competentes do que os outros funcionários públicos que dizem como o fazer. A consequente proliferação de papelada, regras absurdas e indicadores inúteis dificulta o trabalho a todos, desmotiva e disfarça os podres porque na folha de cálculo parece que está tudo bem. É por isso que queria salientar esta decisão do Álvaro. Só quando alguém tem a coragem de dizer que já chega e bater com a porta é que de fora se pode ter uma ideia do preço que estamos todos a pagar por se tentar gerir a função pública como se fosse a fábrica de embalar frangos.

1- Álvaro Fonseca, Escolher outro caminho
2- É bom para os accionistas, mas só se não comerem o frango: Guardian, Revealed: the dirty secret of the UK’s poultry industry

3 comentários:

  1. São posts como este que me dão a tentação de me tornar num feroz neoliberal ou anarcolibertário. Felizmente, tenho resistido mas não sei o dia de amanhã.

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  2. Ocorre-me fazer aqui algumas reflexões, motivadas pelo desejo de racionalidade e de inteligência.
    Tem-se passado pelos conceitos de "público" e "privado", "nacional " e "internacional", como se fossem realidades há muito adquiridas e "resolvidas" pelos sábios. Penso que nem sequer foram pensadas como, actualmente, devem ser. Até que ponto o público é privado e o privado é público? E até ponto, ou em que medida o nacional é internacional e este é nacional? E as gerações presentes, relativamente às presentes e às futuras? Que responsabilidades?
    Os serviços públicos não têm muitas semelhanças com os privados e se fossem prestados por privados, notava-se imediatamente a diferença. Os privados, por exemplo, só aceitam o trabalham se quiserem e se virem vantagem e estabelecem condições que não estão previstas...
    Se fosse possível, mas não é, uma solução seria pôr o público a concorrer com o privado. Ou pensar-se numa solução de acabar com todo o tipo de serviço público, incluindo o militar e legislativo. Pensar não ofende e todas as hipóteses devem ser colocadas.
    O público padece de imensos defeitos, é certo. Há que pensar, ou em superar essas limitações, ou em superar o "público". O que o público não pode ser é o que tem sido ultimamente, uma tentativa de "privatização" do público. Parece-me que tem sido essa uma das causas dos "desastres/crises" que temos vindo a padecer.
    Quanto ao nacional e internacional, então, as coisas estão ainda mais ensarilhadas. Parece-me grotesco que ainda se continue a pensar que os recursos naturais (que estão disponíveis sem qualquer tipo de intervenção, por ex. petróleo, ouro, diamantes, florestas, fundos marinhos, minérios, etc...) sejam pertença do país sob cujo território se situam.
    Que sentido faz, por exemplo, que o petróleo existente no subsolo dos USA não "pertença" a toda a humanidade? Como falo do petróleo podia falar de muitas outras coisas.
    Mas o que verdadeiramente me preocupa é que não haja "visão" por parte dos partidos políticos e dos Estados para o gravíssimo problema da destruição do planeta.
    A "cegueira" só consente uma economia baseada no princípio do lucro "a qualquer custo"? Terá a natureza capacidade para se defender? E quem vai responder pelas consequências?
    Aliás, em matéria de direitos do Homem, sendo o direito a um ambiente saudável um dos direitos do Homem (e de todas as espécies), não era tempo de construir um modelo científico que enquadrasse as realidades com vista a uma coexistência racional e inteligente.

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  3. ...ao ler este post (como trabalhador há várias décadas do sector privado em empresas de escala e c/milhares de trabalhadores) vejo retratada a mesma desgraçada ideia: desde que «as linhas no gráfico vão a subir» nada mais importa...atrás disso escondem-se os pequenos poderes, os «centros de melhoria de objectivos», cuja natureza em primeiro e em último lugar é auto justificarem-se...este processo «indicadores que ficam bem na folha de cálculo mas que pouco contribuem para o que devíamos fazer» que agora parece ser também, o desígnio de ensino nacional é, já há muito, no sector privado, um fiasco colossal…estamos a pagar tal cegueira...

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