domingo, junho 29, 2014

Treta da semana (passada): ciência criacionista.

A “Enciclopédia de Ciência da Criação” define que: «Um cientista criacionista contemporâneo é uma pessoa que está formalmente treinada em uma disciplina científica, mas que aborda um campo de estudo e/ou de pesquisa a partir da crença de que o universo foi criado por Deus.»(1). Ironicamente, a tentativa de dar ao criacionismo a aparência de ser científico acaba apenas por expor a treta. Mais importante ainda, porque o criacionismo por cá é ainda uma anomalia minoritária, isto ilustra também a inconsistência fundamental entre qualquer religião e a ciência.

O objectivo da ciência é moldar as nossas crenças à realidade. Não é um processo infalível nem acabado mas tende a melhorar gradualmente o encaixe entre aquilo que julgamos ser e aquilo que realmente é. Para esse fim, não se pode, por exemplo, abordar a geologia a partir da crença de que a Terra é plana ou a astronomia a partir da crença de que a Lua é feita de queijo. Seja qual for a crença ou problema, não é científico comprometer-se à partida com uma crença, de forma firme e persistente, porque o que se quer com a ciência é explorar as possibilidades e procurar as crenças que melhor correspondam aos dados que se vão acumulando. Para isso exige-se uma atitude céptica no sentido de adoptar ou rejeitar crenças sempre conforme o peso das evidências e nunca por vontade pessoal. O que é exactamente o contrário da crença religiosa, carente de fé e apregoada como resultando do exercício da vontade livre do crente.

Esta diferença é evidente em vários trechos da enciclopédia criacionista. O artigo sobre “Cosmologia criacionista” explica que «A idade do universo estimada atualmente está muito além do que um cientista criacionista típico aceitaria. Em resposta, muitas cosmologias criacionistas de universo jovem têm sido propostas para discutir a questão da idade»(2). É consensual na cosmologia que o universo tem quase catorze mil milhões de anos. Este valor já foi revisto várias vezes, porque valores anteriores revelaram-se incompatíveis com a informação que se ia obtendo, mas a ciência progride precisamente por encontrar alternativas que se ajustam melhor aos dados. O “cientista” criacionista faz o contrário. Primeiro decide em que hipóteses acredita «a partir da crença de que o universo foi criado por Deus» e depois limita-se a escolher as evidências que forem mais favoráveis a essas crenças.

Noutro exemplo, «Criação biológica é basicamente o estudo dos sistemas biológicos, enquanto acontecem sob a suposição de que Deus criou vida na Terra. A disciplina é estabelecida sob a idéia de que Deus criou um número finito de discretos espécies criadas»(3). Quando se usa a ciência para estudar algo não se pode estabelecer disciplinas “sob ideias” pré-concebidas nem fixar qualquer suposição. Afinal, o objectivo é perceber o que se passa e não cultivar preconceitos. Por isso, o tal “criacionismo científico” não é ciência mas apenas uma de muitas aldrabices que abusam da ciência para fazer parecer que a sua doutrina tem fundamento.

Se bem que muitos crentes concordem com este juízo acerca do criacionismo, porque rejeitam a interpretação literal dos escritos religiosos, normalmente recusam-se a reconhecer que este conflito entre religião e ciência não depende dessa interpretação literal nem é evitável enquanto a religião professar a fé em alegações acerca da realidade. Quer leiam a Bíblia à letra quer a leiam como metáfora, a fé firme na «crença de que o universo foi criado por Deus» torna-os todos criacionistas e põe-nos todos em contradição com a ciência. Nem é só pelos indícios, cada vez mais fortes, de que o universo não foi criado com inteligência nem há ninguém encarregue disto tudo que se rale minimamente com o que nos acontece ou com o que fazemos. É, principalmente, porque a ciência exige que se trate todas as crenças como equivalentes à partida e se faça distinção entre elas apenas pelo que objectivamente revelam corresponder à realidade. Isto é incompatível com qualquer fé, dogmatismo ou crença pré-concebida da qual não se queira abdicar.

1- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cientista criacionista
2- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cosmologia criacionista
3- Enciclopédia de Ciência da Criação, Criação

quinta-feira, junho 26, 2014

Abstencionismo, parte 2.

A minha carta aos abstencionistas suscitou algumas reacções negativas (1). O argumento pela abstenção assentou novamente nas justificações de que os candidatos não merecem o voto, de que não devemos legitimá-los com a nossa participação e que abster-se é protestar. Isto continua a não justificar a tese de que a abstenção é a melhor opção. Quero salientar que é principalmente esta ideia que eu critico. Houve certamente muita gente que não votou porque não lhe apeteceu mas que admite ser importante votar. Dessas pessoas apenas acho que deviam ter votado; no resto estamos de acordo. Mas quem tenta justificar a abstenção alegando ser a opção mais correcta está a defender que a minha opção de votar foi menos correcta do que a sua e isso já merece ser discutido.

O texto do João da Nóbrega (2) é um exemplo extremo das críticas que recebi. Em geral não foram tão extensas, detalhadas ou vigorosas. Não vou responder da mesma forma, frase a frase, mas não quero desperdiçar uma crítica assim. Por isso, tentarei focar o que me parece mais importante. Principalmente, justificar ter escrito aos que defendem a abstenção que «não vou invocar deveres abstractos de civismo e democracia para censurar a vossa preguiça». Aparentemente, foi sobretudo isto que ofendeu o João, que não gosta que o «acusem de ser preguiçoso injustamente.»

Dizer que alguém age por preguiça num caso particular não é dizer que age por preguiça na generalidade dos casos e, por isso, dizer que se abstém por preguiça não é dizer que é preguiçoso. No resto até pode ser muito trabalhador. Não faço ideia nem alego nada quanto a isso. Mas, mesmo assim, devo explicar porque afirmo que a abstenção foi por preguiça. Tenho duas razões fortes. A primeira é a de que esta abstenção, das eleições que conheci, tem sido exactamente igual à abstenção de quem vai passear ou fica a dormir a sesta. De uma abstenção revoltada seria de esperar mais barulho, mais gente nas ruas e mais protestos. Em vez disso, foi só a pacatez sonolenta de uma tarde de Domingo. Se não foi preguiça foi muito bem disfarçada. A outra razão é a de que não é preciso ter um favorito para ter razão para votar. Basta saber de algum candidato cuja eleição se queira mesmo evitar. Basta algum, ou alguns, que se deteste mais do que os restantes. Por exemplo, mesmo que não haja ninguém de jeito nas listas, a mim basta o PNR se candidatar para já não me abster. Porque o voto não é só a favor de um escolhido. É também contra os outros. Parecendo-me difícil ser-se ideologicamente tão amorfo que não se tenha por algum partido ainda menos apreço do que pelos restantes, só posso concluir que, em geral, quem se abstém sem ser por preguiça de votar ou por preguiça de escolher abstém-se por preguiça de se informar.

Contradizendo a indignação que manifestou pela acusação de preguiça, o João escreve que «a autoridade é que tem o ónus de conseguir convencer as pessoas a legitimá-la, e não o contrário. Se eu não a quero legitimar, estou no meu direito, ponto final. Se ficar em casa a coça-los, estou no meu direito.» Pedindo desculpa se ofendo, parece-me também preguiça exigir que sejam os outros a convencer-nos. Além de ser perigoso. E, se bem que o João tenha o direito de ficar a coçá-los em vez de votar, este é um direito apenas no sentido restrito de que seria pior ainda haver uma lei que o impedisse. É como ter o direito de mentir aos pais ou de fechar a porta do elevador antes que a senhora com o bebé ao colo tenha tempo de entrar. Não deve haver leis contra isto e, portanto, todos acabam por ter o direito legal de o fazer. Mas não são propriamente direitos no sentido pleno do termo. A abstenção está também nessa zona cinzenta entre a opção legítima e a que deve ser proibida.

O João também se indignou por eu ter escrito que, quando é preciso votar, muitos «ficam encostados sem fazer nada». Explica o João que «ir trabalhar todos os dias, cuidar de uma família sem ter tempo, pagar uma porrada de impostos para que se consiga ter todas as coisas que temos como os senhores querem» já é fazer muito. É verdade. E se o João não pode votar porque estava a cuidar dos filhos, a trabalhar ou na fila para pagar os impostos, ressalvo já que não o critico por isso. Votar é importante mas há coisas mais importantes. A minha crítica é para aqueles que, não só tendo ficado “em casa a coçá-los” quando podiam facilmente ter votado, ainda defendem que fizeram uma grande coisa, talvez até melhor do que os outros que votaram. É este disparate que merece oposição.

Mesmo indeciso entre alguns candidatos, é melhor votar ao acaso num desses do que se abster, porque distribuir os votos sempre contribui para fortalecer a oposição, ganhe quem ganhar. Não votar é a pior opção. Abster-se por protesto é ridículo porque não se protesta imitando a indiferença. Abster-se porque os políticos “não merecem” o voto é ingénuo porque o voto não é um prémio. É apenas a indicação anónima do candidato que se considera menos mau. E não votar para não legitimar os eleitos é treta porque o que conta é a distribuição dos votos válidos. A abstenção não tira legitimidade às escolhas de quem votou. Mas quanto mais gente se abstém maior é o risco dos votos se concentrarem demasiado num ou em poucos partidos. Pior ainda, quanto maior a abstenção mais fraca é a democracia. O problema mais grave que resolvemos com a democracia é serem uns a decidir pelos outros, como em qualquer sistema autoritário, e quanto maior for a abstenção menos são os que decidem. O João acha que os “sistemas justos” se defendem dando «um tiro nos cornos» a quem incomodar em vez de «com cruzes de merda» no papel. Eu discordo. Pelo que sei dos sistemas políticos baseados no tiroteio, preferia que houvesse mais empenho na democracia. Por muito fracos que sejam os candidatos, a alternativa do João parece-me bem pior.

1- Caros abstencionistas
2- João da Nóbrega, Resposta um.

domingo, junho 22, 2014

Treta da semana (passada): o inaceitável machismo do aluguer.

A Helena Matos escreveu um artigo de opinião sobre a possibilidade de uma mulher engravidar em substituição de outra. É pena que isto seja quase sempre discutido com tanta confusão, porque há alguns problemas éticos importantes no negócio de alugar úteros. Quando há dinheiro envolvido há sempre um incentivo para abusos e é questionável a legitimidade de um contrato obrigar alguém à decisão de dar uma criança para adopção meses antes da criança nascer. Infelizmente, a Helena Matos optou por inventar problemas fictícios e embrulhar um assunto interessante numa confusão de ideologias.

A Helena Matos opõe-se às “barrigas de aluguer” porque, «tal como a sociedade não pode obrigar uma mulher a ter filhos, também as mulheres não podem obrigar a sociedade a aceitar o inaceitável», porque os «filhos não são um direito» e porque não se pode chegar «ao ponto de achar que a gravidez doutra mulher não conta nada quer para essa mulher, quer para a criança.» Estas objecções são mera demagogia. O que se passa é que, mais coisa menos coisa, adultos A, B, e C combinam que B contribui para C engravidar e quando C der à luz dá o filho será adoptado por A e B. Pode ser por processos mais clínicos e menos prazenteiros do que é normal, mas ninguém é obrigado a aceitar inaceitáveis nenhuns. O argumento do bem da criança também é fácil de rejeitar. Basta perceber que proibir isto é impedir que a criança chegue sequer a existir, o que dificilmente a beneficiará.

Mas a maior treta no artigo da Helena Matos é a tentativa de pintar esta solução como machismo. «Seja na modalidade capitalista do aluguer ou na versão socialisto-solidária da substituição esta conversa nunca existiu. Com pénis, claro. Ou com testículos. Já com as barrigas das mulheres esta conversa acontece todos os dias. Como se sabe o corpo dos homens é uma unidade. Já o das mulheres é uma espécie de estrutura biónica». É realmente raro um homem poder cobrar pelo aluguer do seu pénis ou testículos. Mas isso não tem nada que ver com a “unidade do corpo dos homens”. Tem que ver simplesmente com o mercado. Como, em matéria de reprodução, oferecer o pénis exige muito menos investimento do que oferecer o útero, o equivalente masculino da barriga de aluguer é a doação de esperma que, por razões óbvias, paga bastante menos.

Neste caso, só é letígimo que a legislação incida sobre a natureza e força legal dos contratos que é permitido celebrar. Não há qualquer mecanismo admissível pelo qual a sociedade possa proibir uma mulher de substituir outra na gravidez. Nem qualquer razão para o fazer. A conversa de «obrigar a sociedade a aceitar o inaceitável», de «achar que a gravidez doutra mulher não conta nada» ou do alegado machismo por ninguém ter interesse em alugar testículos é simplesmente treta.

1- Observador, Os pénis de aluguer e os testículos de substituição

Editado para corrigir uma gralha no título. Obrigado pelo aviso.

domingo, junho 15, 2014

Treta da semana (passada): espiritismo, três em um.

A Associação de Divulgadores de Espiritismo de Portugal (ADEP) descreve esta doutrina como «uma ciência filosófica de consequências morais. Como ciência, investiga os factos espíritas. Como filosofia explica-os. Como ética dá-nos um roteiro moral para as nossas vidas.» Com um alvo tão grande seria de esperar que acertasse em qualquer coisa. Azar. Falha tudo.

O espiritismo «foi codificado por um professor francês de meados do século XIX: Allan Kardec» e o seu método de investigação, descrito no “Livro dos Espíritos”, consistiu em escrever o que alegou serem respostas dos espíritos às suas perguntas. Isto não é científico porque a ciência progride seleccionando as hipóteses que se destacam quando postas à prova. Podemos imaginar que é uma corrida, com as hipóteses que não tropeçam nos factos e que correm mais leves de premissas infundadas passando à frente das outras. A corrida é permanente – nenhuma hipótese ganha em definitivo – mas não se toma qualquer uma como verdadeira se nem sequer está à frente das outras. A hipótese de Kardec ter mesmo mesmo falado com espíritos que sabiam do assunto e diziam a verdade é apenas uma entre muitas outras. E, destas, a que se destaca como mais plausível, e menos dependente de premissas gratuitas, é a de que ele apenas escreveu o que lhe veio à cabeça.

Por exemplo, à pergunta «Donde vieram para a Terra os seres vivos?», os espíritos responderam que «A Terra lhes continha os germens, que aguardavam momento favorável para se desenvolverem [no] momento propício ao surto de cada espécie». Disseram também que ainda surgem seres vivos espontaneamente dos «tecidos do corpo humano e do dos animais [onde] só esperam, para desabrochar, a fermentação pútrida que lhes é necessária à existência» e que, entre “corpos orgânicos e inorgânicos”, «A matéria é sempre a mesma, porém nos corpos orgânicos está animalizada» (2). Suspeito não ser coincidência que os espíritos que falaram com o professor francês do século XIX tivessem as mesmas ideias erradas acerca da origem das espécies, do vitalismo e da geração espontânea que teria um professor francês do século XIX.

A afirmação de que o espiritismo é filosofia porque explica os factos é falsa duas vezes. Primeiro, porque a filosofia preocupa-se mais em explorar conceitos do que em explicar factos. Mas, principalmente, porque o espiritismo não explica factos nenhuns. Uma explicação é uma descrição consistente com o que observamos e da qual se pode inferir o que pretende explicar. O espiritismo não só é parco em inferências, limitando-se às alegações, como é inconsistente com a informação que temos. Por exemplo, a hipótese de termos uma alma eterna é refutada pelos efeitos cognitivos de drogas, acidentes vasculares cerebrais ou doenças como a de Alzheimer. Se houvesse algum aspecto do nosso intelecto, da nossa memória, da nossa consciência ou personalidade que se devesse à tal alma, esse seria imune a qualquer problema físico. As evidências indicam claramente que não há tal coisa.

Finalmente, dizem que o espiritismo é uma ética porque «dá-nos um roteiro moral para as nossas vidas.» No entanto, simplesmente dar um “roteiro moral” não constitui uma ética. Dizer “não roubarás” estipula uma regra moral mas ética é considerar porque é que não se deve roubar, quais os fundamentos dos direitos de propriedade, em que situações é permissível roubar e porquê, e assim por diante. Também nisto o espiritismo fica muito aquém do que a ADEP promete: «O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe é contrário»(3). Isto está para a ética como a fisga está para a exploração interplanetária.

Apesar de ser apelativa esta ideia de ter uma alma imortal e de ir eventualmente viver no mundo dos espíritos, é com alívio que concluo que a doutrina espírita é treta. Alívio porque, se fosse verdade, seria prova de que os espíritos imortais tinham o conhecimento, a mentalidade e a forma de se exprimir de um professor francês do século XIX. Antes acabar a minha existência com a morte do corpo do que gramar uma eternidade de disparates.

1- ADEP, O que é o Espiritismo?
2- O Livro dos Espíritos(pdf), páginas 65-66 e 74.
3- Ibid, página 310.

sexta-feira, junho 13, 2014

“Será que se ensina ciência nos cursos de ciência?"

Este foi o tema do Cépticos com Vox do Sábado passado, no Vox Café, motivado pela constatação de que um curso superior em ciência não é uma protecção eficaz contra superstições e outras tretas (1). Além do tema, valeu também pelo convívio e pela oportunidade de conhecer várias pessoas que se preocupam com estes problemas. Obrigado à COMCEPT pelo convite e organização, ao Hélder pelo acolhimento, e a todos os participantes pela conversa estimulante. Não encontrámos uma receita para acabar de vez com a irracionalidade mas o debate ajudou a identificar alguns problemas. Aqui vai o que eu fiquei a pensar disto.

Em primeiro lugar, a palavra “ensinar” dá ideia de que quem ensina controla a aprendizagem. É o que acontece quando ensinamos tarefas simples a uma criança por rotina e repetição. A criança aprende mesmo sem notar. Mas para aprender algo que exija compreensão, em vez de mera habituação, é preciso ser o próprio a tomar conta do processo. Quando se “ensina” ciência a adultos o máximo que se pode fazer é ajudar quem quiser aprender. O corolário disto é que o resultado de um curso superior depende principalmente do estudante.

É claro que o resto também faz diferença e vários factores contribuem para que um curso superior promova a capacidade de aplicar técnicas específicas a certas situações mesmo sem uma compreensão dos fundamentos da ciência. Como um curso não serve apenas para aprender mas também para obter um comprovativo, a tendência é estudar para passar nas provas. Por seu lado, a necessidade de avaliar muitos alunos obriga a focar o que é fácil de avaliar, como a capacidade dar aquelas respostas, em vez da capacidade de generalizar e compreender a razão dos métodos, avaliação essa que exigiria um contacto muito mais prolongado entre cada aluno e o professor. É bom haver muitos alunos, porque o ensino superior é um direito de todos e não um privilégio para alguns, mas não se consegue dar a alunos de licenciatura as mesmas condições que se dá, por exemplo, a alunos de doutoramento.

Também é relevante considerar o objectivo do curso superior. Pode-se ponderar se o futebol transcende as regras ou se é definido por elas e se o que importa é o espectáculo ou o espírito do jogo. O futebol tem uma longa história, tendo evoluído para melhorar a competição e atrair mais público. Mas para o Cristiano Ronaldo não importa uma compreensão profunda da história ou filosofia do futebol. Importa correr depressa e dominar a bola. Eu penso que um curso superior devia educar pessoas em vez de formar técnicos mas admito que há méritos na posição contrária. O mais forte será o facto de que muitos alunos querem o curso para ter emprego. E a realidade é que, tal como o Cristiano Ronaldo podia ser igualmente eficaz mesmo acreditando que o futebol tinha sido inventado por marcianos, também se pode ser um excelente técnico da ciência e acreditar em disparates*.

Seria possível mitigar estes defeitos diversificando os currículos e oferecendo disciplinas especificamente sobre pensamento crítico e científico. Isto favoreceria a compreensão das ideias fundamentais e reduziria a especialização que leva muitos a compartimentalizar o que aprendem. Infelizmente, isto presume que o objectivo do ensino superior não é apenas formar trabalhadores qualificados e exigiria uma maior colaboração entre departamentos e escolas para oferecer a cada aluno mais disciplinas fora da sua área. Com a ideologia económica que hoje domina e a competição aguerrida por recursos cada vez mais escassos a tendência será no sentido inverso.

No entanto, qualquer aluno facilmente ultrapassa estas dificuldades, se quiser. Até porque, em abstracto, a ideia é simples: a ciência é a tentativa honesta de formar opiniões correctas acerca da realidade. É daí que vem a necessidade de considerar alternativas, confrontá-las com os dados e ir favorecendo as que se destacam das outras. Se bem que uma educação formal possa ajudar a perceber isto, se for aproveitada nesse sentido, hoje é tão fácil encontrar informação que não faz grande falta ter diploma para pensar de forma crítica. Os obstáculos principais são outros.

Primeiro, a vontade de avaliar objectivamente alegações factuais. Muita gente carrega crenças cuja refutação pode ser desconfortável, quer por motivos pessoais quer por razões familiares ou sociais, e sem a vontade de ultrapassar esse desconforto ficará sempre com um ângulo morto no raciocínio. Em segundo lugar, o tempo. É fácil aprender em poucos anos como testar se certo aparelho funciona bem, se os ensaios dão concordantes ou se certo resultado é estatisticamente significativo. O tipo de coisas que se aprende numa licenciatura. Mas o processo de generalizar essa abordagem e torná-la numa disposição permanente é mais lento e tem de vir do próprio. Não basta aulas e livros. Finalmente, resistir à pressão dos muitos que, por interesse ou mal entendido, tentam engavetar a ciência para isolar dela as opiniões que defendem. A ciência abrange qualquer afirmação acerca da realidade. Não adianta dizer que é a afirmação é metafísica, teológica, intuitiva, sobrenatural, infalsificável ou qualquer outra desculpa dessas. Se pretende descrever correctamente a realidade é pela ciência que se avalia a pretensão. É difícil transmitir este ponto fundamental em cursos que são conjuntos de unidades curriculares independentes, cada uma focando a sua matéria. Mas, felizmente, não é preciso aulas, trabalhos e exames para aprender isto. Pode-se aprender ciência por muitas outras vias.

* Ou até ser completamente doido como o Kary Mullis.

1- COMCEPT, Cépticos com vox: será que se ensina ciência nos cursos de ciência?

Editado no dia 14 para corrigir uma gralha no "definido". Obrigado pelo aviso.

domingo, junho 08, 2014

Treta da semana (passada): para todos os gostos.

A medicina convencional tem uma grande desvantagem. Atola-se nas minudências do nosso corpo físico, também conhecido como corpo real, em vez de abordar de forma holística o nosso ser espiritual, também designado por fictício. Pela necessidade de considerar detalhes de anatomia, fisiologia, bioquímica e afins, os praticantes da medicina convencional têm de focar a sua especialização. Se um médico disser ser cardiologista, pediatra, neurocirurgião, veterinário, farmacêutico, psiquiatra, fisioterapeuta, dentista e oftalmologista achamos estranho.

O praticante de terapias complementares não sofre desta limitação. Apresento, como exemplo, o Paulo Nogueira, especialista em leitura de aura, terapia multidimensional, regressão com reiki, cura reconectiva, cirurgia psíquica, tarot, limpeza espiritual, reiki tradicional, kundalini reiki e terapia vibracional com taças tibetanas (1). A sua missão é tão modesta quanto o seu currículo: «ajudar o ser humano a tomar consciência da sua dimensão espiritual [...] a reconhecer a divindade que habita em si, a ser verdadeiramente livre e a se experienciar como um ser completo.»

No caminho para esta tomada de consciência da divindade no ser humano há também outros serviços mais particulares que o Paulo Nogueira pode prestar. Por exemplo, pela cirurgia psíquica pode extrair «bloqueios energéticos do corpo físico […] Esta técnica bastante eficaz actua dissolvendo os coágulos energéticos decorrentes de eventos negativos fazendo com que a energia vital possa circular de forma totalmente livre pelo organismo, restituindo a saúde física, mental e emocional do paciente.»(2) Os coágulos de energia são um problema quase tão grave como os defeitos na coagulação energética, que podem originar hemorragias de energia vital.

A limpeza espiritual, por seu lado, serve para remover «fluidos de negatividade tais como tristeza, desânimo, desmotivação, raiva, apatia ou vontade de isolamento social sem motivo aparente.»(3) O Paulo Nogueira tem uma concepção física inovadora dos aspectos sobre os quais incidem as suas terapias. Enquanto a energia coagula, a raiva e a desmotivação são fluidos. Podemos assim perceber a importância crucial das terapias do Paulo Nogueira, porque se uma pessoa desmotivada sofre um coágulo energético o resultado pode ser como o de puxar o autoclismo com a sanita entupida. Mas não se preocupe o leitor porque o Paulo Nogueira é tão especializado nestas coisas todas que até limpa fluidos de negatividade à distância. Isso é possível, por Skype ou telefone, porque «Somos espíritos. Somos energia. Para acedermos a um dado espírito, seja em que dimensão estiver (4ª dimensão ou superior), basta focarmos a nossa intenção nele.»(4) Assim, qualquer pessoa que esteja na 4ª dimensão (ou superior) e tenha telefone lá (ou ligação à Internet) pode limpar o seu espírito de fluidos negativos e até remover algum coágulo que esteja a incomodar. Quanto ao pagamento, pode ser por Visa, MasterCard ou PayPal. Somos espírito e energia em muitas dimensões mas nestas três todos temos contas para pagar.

A terapia vibracional com taças tibetanas é uma excepção a esta forma conveniente de limpar fluidos e coágulos à distância. Isto porque «as taças tibetanas são pousadas sobre os chakras do paciente de forma a remover bloqueios. Por essa razão, dado que envolve material físico (as taças), só pode ser realizada presencialmente no espaço Paulo Nogueira Terapias.» Sugeria ao Paulo Nogueira que se especializasse numa variante: a terapia vibracional sem taças tibetanas, que até poderia ser feita remotamente em todas as dimensões do espaço e também do tempo. Bastava gravar um ficheiro mp3 com as vibrações espirituais e depois aplicar sobre os chackras sempre que se quisesse. Tenho a certeza de que teria um efeito tão real como o de qualquer forma alternativa de desbloquear chackras coagulados.

O site do Paulo Nogueira tem muita informação acerca de outras terapias também, como o resgate da criança interior e a Mini Leitura de Aura que, pelo que percebo, está para a Leitura de Aura como estavam para as radiografias aquelas micro-radiografias que tirávamos para rastreio da tuberculose. A maior lacuna é a ausência de qualquer descrição de como o Paulo Nogueira determinou a verdade do que afirma. Como se descobriu os coágulos da energia, como se sabe que a tristeza é um fluido de negatividade e que as taças tibetanas desbloqueiam os chackras, por exemplo. Mas talvez seja por eu não aceder à Internet acima das quatro dimensões. Talvez lendo o site do Paulo Nogueira a partir da quinta ou da sexta dimensão se veja lá isto tudo bem explicado.

1-Paulo Nogueira Terapias
2- Palo Nogueira, Cirurgia Psíquica.
3- Paulo Nogueira, Limpeza Espiritual,
5- Paulo Nogueira, Consultas à distância (por Skype ou telefone)

quinta-feira, junho 05, 2014

Miscelânea Criacionista: os tipos.

No filme “Evolution Vs. God” (1), produzido por Ray Comfort (2), os criacionistas tentam mostrar os defensores da teoria da evolução como crentes incapazes de justificar as suas crenças. Comfort até diz que é preciso ter mais fé na teoria da evolução do que no criacionismo. Se bem que concorde que a fé não serve para responder a questões factuais, é curioso ver crentes religiosos a apontar a fé como um fundamento inadequado quando é o único que eles próprios têm. Para o seu propósito, além do truque de editar tendenciosamente as respostas (3), este filme recorre muito a um erro fundamental do criacionismo: a ideia de que uma posição factual se deve fundamentar numa só peça de evidência incontestável em vez de, como acontece na realidade, assentar numa rede coerente de indícios individualmente fracos mas que são persuasivos em conjunto.

Por exemplo, eu não sou capaz de dar qualquer prova isoladamente conclusiva de que a China existe. Não tenho um certificado infalível da existência da China e, mesmo que tivesse, não conseguiria provar tratar-se realmente de um certificado infalível. Podia ser uma falsificação. O que justifica acreditar que a China existe é um conjunto de evidências que favorece essa hipótese em detrimento das alternativas. É muito mais plausível que as lojas, notícias, fotografias, filmes e pessoas que dizem ser da China sejam mesmo da China do que se tratar de uma conspiração enorme só para me enganar. Com o criacionismo e a evolução passa-se o mesmo. Não é um dado isolado que resolve a questão em definitivo. É quando consideramos o conjunto de dados provenientes da geologia, paleontologia e biologia molecular e a diversidade de mitos da criação inventados por povos e religiões de todo o mundo que a teoria da evolução sobressai como uma explicação mais plausível do que o criacionismo evangélico cristão.

Como o criacionismo tem contra si todo o peso das evidências, os criacionistas têm de focar elementos isolados e, mesmo assim, aldrabar. Por isso o entrevistador pede várias vezes uma prova para mudanças no “tipo” (kind) de organismos, alegando que isso nunca se observa. Parafraseando um criacionista que nos visita regularmente, peixes dão peixes, gaivotas dão gaivotas e formigas dão formigas. Realmente, como o “tipo” de organismo é um conceito indefinido, o criacionista pode dizer, de qualquer alteração observada, que não saiu do mesmo “tipo”. No entanto, é fácil ver que é falsa a tese de que não pode haver processos naturais que alterem o “tipo” do organismo mesmo considerando diferentes definições possíveis do termo.

Vamos supor, como defendem os criacionistas, que um chimpanzé e um homem são de tipos diferentes. Se imaginarmos estes animais adultos é fácil perceber diferenças que justifiquem a distinção. Mas cada um destes organismos desenvolve-se a partir de uma célula inicial. Isto quer dizer que o “tipo homem” tem de incluir o zigoto, a mórula, o embrião, o feto e assim por diante até ao adulto porque são todas fases de desenvolvimento do mesmo organismo. O mesmo para o chimpanzé. O criacionista podia restringir o “tipo” para só admitir o feto a partir de certa fase do desenvolvimento mas então seria óbvio haver processos naturais que transformam um tipo de organismo noutro tipo de organismo. Seria desenvolvimento em vez de evolução mas seria um processo natural à mesma.

Porém, o mais provável é que o criacionista considere que o zigoto humano é do “tipo homem” e que o zigoto de chimpanzé é do “tipo chimpanzé”, incluindo no mesmo tipo todas as fases de desenvolvimento de cada organismo. Assim sendo, a distinção entre um “tipo” e outro não depende de diferenças na força, nem na inteligência, nem na postura, pêlos ou ossos. Depende apenas de diferenças nos genes dessa célula inicial. No caso do chimpanzé e do homem essa diferença é muito pequena e, mais importante ainda, nós sabemos como o património genético de cada população pode ser alterado pelos processos naturais de mutação e selecção.

Não há nenhuma prova isolada e definitiva de que o ser humano evoluiu de um antepassado distante unicelular, ou de um antepassado primata comum ao chimpanzé. Mas, perante o conjunto das evidências, a hipótese é claramente plausível. A transição da célula para o ser humano adulto é corriqueira. Todos passámos por esse processo 100% natural de duplicação e diferenciação celular, organização de tecidos e crescimento. É uma transformação espantosa mas facilmente observável. E se basta ter uma célula com as moléculas certas no lugar certo para que, em poucos meses, nasça um bebé humano, não é de estranhar que uma população de primatas com gâmetas e zigotos contendo um certo ADN possa ter deixado, ao fim de milhões de anos, descendentes que agora concebem zigotos de chimpanzé ou zigotos de humanos Comparadas com as transformações que todos nós sofremos nos primeiros meses de vida as diferenças de ADN entre estes zigotos são irrisórias. Além disso, conhecemos e observamos os mecanismos pelos quais uma população de organismos com certas moléculas pode dar origem a populações de organismos com algumas moléculas ligeiramente diferentes.

Há muitos detalhes por esclarecer mas, no geral, não há grande mistério. Basta juntar as peças. Sabemos que há um processo natural que transforma zigotos unicelulares em animais adultos conforme os genes no zigoto e sabemos que há um processo natural que modifica os genes de populações com o passar das gerações. Juntando os dois deixa de haver problema em passar de um “tipo” para outro. Não é preciso fé nenhuma para isto. O que exige fé, além de outros problemas cognitivos, é achar mais plausível que tenhamos sido criados magicamente do barro só porque alguém escreveu isso num livro.

1- YouTube, Evolution Vs. God Movie
2- O da banana
3- PZ Meyrs, Ray Comfort confesses

quarta-feira, junho 04, 2014

Oito anos.

No dia 4 de Junho de 2006 publiquei os primeiros dois posts deste blog. Com este são agora 1810 posts e 71.600 comentários, dez mil dos quais meus. Cerca de mil e quinhentas pessoas comentaram aqui* e 325 comentaram pelo menos dez vezes, o que já dá uma conversa. Segundo o Blogger, este blog teve um milhão e duzentas e oitenta e seis mil pageviews. Este esforço colectivo de escrever, ler e criticar tem dado bons resultados. Pelo menos para mim.

Se bem que o blog ainda sirva para desabafar, a consciência de que outros lêem isto fez-me escrever com mais cuidado e tornou o blog num meio para discutir problemas que considero importantes. O embaraço que sinto ao reler o que escrevia há oito anos também sugere que algo melhorou entretanto. Penso que consigo organizar melhor as minhas ideias e a forma como as apresento. Em parte graças ao exercício de escrever centenas de posts mas, sobretudo, pelo trabalho de quem cá veio comentar, criticar, apontar defeitos ou simplesmente insultar. De uma forma ou de outra, todos me motivaram a pensar melhor, a procurar argumentos mais sólidos e a ser mais conciso. Muitos subestimam a importância de se ser breve e claro no que se escreve, mas é o que mais vezes determina se um texto estimula o diálogo ou se ninguém tem sequer paciência de o ler até ao fim.

Uma mudança grande durante estes anos foi a transição de muita gente dos blogs para as “redes sociais”. Eu preferi ficar por aqui. O Twitter, o Facebook, o Google+ e afins são bons para publicitar os posts mas só convidam a intervenções breves no momento. Não deixam pensar primeiro no que se quer dizer. Enquanto o blog permite matutar durante uns dias antes sequer de começar a escrever, qualquer coisa que apareça no Facebook fica rapidamente enterrada em dezenas de notícias, fotografias de refeições e piadas. Além disso, as “redes sociais” são menos favoráveis à socialização do que os blogs. Os blogs não têm listas de “amigos” ou “seguidores” nem uma avalanche constante de mensagens sempre das mesmas fontes**. Aqui vem quem tiver interesse num tema e quando quero ler o que outros escrevem vou à procura. Isto ajuda a ter uma visão mais abrangente e menos filtrada do que há por aí. A Treta da Semana também me ajuda nisto, obrigando-me a sair regularmente da vizinhança mais sã da Internet e a explorar o enorme manicómio que há à volta. É um exercício que recomendo. Ler, pensar e escrever sobre disparates leva-nos a apreciar melhor o valor da razão.

Mas pronto, já chega de olhar para o umbigo. Volto em breve à programação normal. Obrigado a todos por estes oito anos de aguerrida colaboração e que venham agora mais oito.

* Esta estimativa é mais tramada. Há 1652 nomes diferentes nos comentadores, mas alguns correspondem à mesma pessoa.
** Excepto o Jónatas Machado. É a excepção que confirma a regra.