sexta-feira, maio 16, 2014

Ineficiências.

Há dias critiquei, mais uma vez, o mito de que o sector privado é mais eficiente do que o público apontando que também há muita ineficiência no sector privado. O leitor LL comentou que «Desculpar o "mau" do sector publico com o facto de o privado não ser perfeito parece-me ser uma grande falácia, dado que são coisas demasiado diferentes.»(1) Realmente, argumentar que uma coisa não é má por outra também o ser seria falacioso. Mas não é esse o meu argumento. O meu argumento é que o sector privado não é mais eficiente do que o público porque ambos são ineficientes e, para certas medidas razoáveis de eficiência, o privado é até menos eficiente do que o público. Não estou a desculpar a ineficiência do sector público mas apenas a discordar de que seja essa a maior.

O mercado livre é muito eficiente a informar os agentes acerca dos melhores negócios. Seja bolachas, armas, casas, massagens ou medicamentos, a forma mais eficiente de cada um descobrir com quem deve trocar o quê de forma a maximizar o seu ganho é todos serem livres de decidir por si. Se o sector privado for bem regulado, o mercado livre resultante é melhor do que qualquer planeamento central para optimizar as escolhas individuais. No entanto, além do defeito de só servir quem tenha riquezas para trocar, a optimização é local, resultando de cada agente escolher o melhor para si dentro daquilo que individualmente pode fazer. Isto não é necessariamente bom para todos. Por exemplo, se o dono da fábrica de torradeiras consegue um euro extra por torradeira usando um método poluente de fabrico, vai poluir e os outros que se lixem. Além dos problemas éticos, isto até será economicamente ineficiente, no cômputo geral, quando os custos impostos a terceiros ultrapassarem a poupança na produção das torradeiras.

Este problema não se restringe a externalidades negativas. O sector privado também não consegue aproveitar externalidades positivas, muito comuns e valiosas. Quem anda de carro, ou simplesmente quem respira, também beneficia do metro, comboio e autocarro pelas centenas de milhares de carros que esses transportes retiram das estradas. Quem está saudável ou vai a clínicas privadas também beneficia de um sistema de saúde que trate doenças contagiosas aos pobres, dado o notório desrespeito dos germes pela classe económica do hospedeiro. Mesmo quando estas externalidades têm grande valor económico o sector privado não consegue aproveitá-las porque estes benefícios não são escassos. Uma empresa privada de transportes não consegue cobrar aos automobilistas o serviço de retirar automóveis das estradas nem uma clínica privada consegue cobrar aos clientes ricos as doenças que lhes previne tratando quem não pode pagar. Só pelos impostos é que se consegue estes benefícios e, se atribuirmos um valor monetário a tudo o que contribui para a nossa qualidade de vida, estou confiante que a maior parte do valor que calha a cada um vem deste tipo de externalidades e só uma pequena parte vem das transacções em que participa directamente.

Outra fonte de ineficiência no sector privado é o mecanismo que torna alguns agentes economicamente eficientes. Cada café, restaurante, fábrica ou agência de viagens em actividade tende a ser economicamente eficiente porque um grande número de concorrentes que não era acabou na falência. Quando olhamos para os casos de sucesso vemos grande eficiência. Mas se incluirmos nos cálculos o desperdício dos milhares de falências anuais o resultado final é mais modesto.

Mas o mais importante nesta discussão acerca da eficiência relativa do sector público e privado é perceber que mesmo a eficiência económica estreita e localizada do mercado livre só é possível quando o sector privado está sob o controlo de um sector público forte. Podem dizer que é ineficiente mas é absolutamente necessário. É preciso imensa infraestrutura e regulação para garantir que cada agente no mercado pode tomar decisões livres e informadas. É preciso impedir coação e burlas, é preciso punir de forma justa quem violar contratos, seja pobre ou rico, é preciso garantir simetria de informação nas transacções e uma data de outras coisas sem as quais o sector privado passa de mercado livre a assalto à mão armada. É principalmente aqui que se nota o erro desta narrativa do Estado inchado, ineficiente e com gorduras que se tem de cortar para melhorar a economia. Nós temos Estado a menos, não a mais, como é evidente pela facilidade crescente com que os ricos privados se apoderam do bem público.

As medidas que têm tomado para aproximar o sector público do sector privado, em nome da eficiência, têm essencialmente dois efeitos. Por um lado, a degradação do sector público elimina preciosas externalidades positivas, resultando imediatamente num fraco retorno pelo esforço – a poupança efectiva é apenas um terço da austeridade imposta (2) – e em prejuízos que se sentirão durante muitos anos na saúde, na educação e qualidade da força laboral, no aumento da criminalidade e do crédito mal parado, entre outros. Por outro lado, as alterações na administração pública, as privatizações, as PPP e a desregulação de actividades privadas tornam o mercado livre cada vez menos livre e mais controlado pelos ricos.

Há ineficiências tanto no sector público como no privado. Mas enquanto o sector privado é muito ineficiente nas tarefas importantes de garantir uma sociedade justa, permitir a participação de todos num mercado livre e optimizar as externalidades, a maioria das ineficiências que apontam ao sector público são necessárias para proteger a sociedade da corrupção e possibilitar um sector privado saudável. A burocracia ineficiente do Estado é a única coisa que impede que o dinheiro tome conta de tudo. Sem um sector público forte a mão invisível deixa de beneficiar a maioria e passa a servir só para os ricos coçarem as costas aos amigos. Como, aliás, se vê cada vez mais, das prescrições às nacionalizações e até à defesa dos direitos adquiridos de quem tem casas na praia enquanto se sacrifica os direitos dos pensionistas (3).

1- Austeridade, parte 4: pagar o sector público. 2- Notícias ao Minuto, Por cada 3 euros de austeridade apenas 1 euro foi abatido ao défice
3- Notícias aos Minuto, Freitas do Amaral "Nova lei pode levar à privatização das praias",

3 comentários:

  1. Oi Ludwig,

    Acho que o texto confunde regularização com posse e funcionamento de empresas. São independentes. Podias não ter regularização nenhuma e o estado despejar cianeto para a ribeira ao lado da empresa privada que faz o mesmo. Ou ter montes de regularização, e nenhuma empresa privada. Pelo menos daqui é o que parece.

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  2. Muito interessante. Mas vivemos tempos de enorme desconforto quanto a saídas para certos bloqueios e sequestros e imposições, para não dizer fatalidades. A eficiência dos serviços do Estado é sempre bem-vinda na perspetiva de quem "superintende" o Estado, ou se quisermos, numa perspetiva meramente económica. O que todos devíamos saber é que, tratando-se de mecanismos, ou de fatores económicos, o que é bom para o Estado, muitas vezes não o é para o privado e isto não quer dizer que é mau que assim seja, mas há quem se esgadanhe todo por achar que só o que é bom para o privado pode ser bom para o Estado. Diria, aliás, que o desafio é conceber e racionalizar uma economia, pelo menos tri-fronte: privada, pública e internacional.
    O problema da globalização também não está ausente.
    A ineficiência da máquina do Estado é um problema que será sempre atual, do mesmo modo que o da ineficiência das empresas privadas. Faz parte do próprio sistema racional (de rácios) de controlo e de auditoria e de avaliação. Mas isso, em suma, não é um problema, é a realidade das coisas.
    O que é e será um problema é o investimento público.
    Para o privado o investimento é ou não é um problema de quem investe mas, subordinado a rácios de rendibilidade, é um problema sério se for à custa da vida de milhões de pessoas, ou do próprio planeta. Isto é odioso e perigoso e ameaçador, há muito tempo, com muita, muita mesmo, demasiada colaboração e subserviência dos meios científicos e tecnológicos, que se revelam mais insensíveis e despreocupados, do que seria de esperar, quanto às consequências da multiplicação das "máquinas de fazer dinheiro".
    O que é não é problema para o privado, e pode até ser o grande objetivo lucrativo, é ou pode ser um grande problema para o Estado. Falar em investimento público tem esta desvantagem do apagamento em que fica porque o privado lhe rouba o palco. É que investimento público é um conceito de investimento que tem poucas afinidades com o de investimento privado. O retorno do investimento esperado/pretendido pelo Estado não é da mesma ordem, sócio-espácio-temporal-económica... do do investimento apostado pelo privado. A maior parte das vezes o investimento do Estado é um esforço titânico para "remediar" os efeitos nocivos do investimento privado. E quando isto é mais assumido e declarado por razões especialmente críticas, vem ao de cima uma incompatibildade feroz, que não devia existir, entre público e privado.
    Para tornar as coisas mais desconfortáveis, o público, normalmente, é instrumento nas mãos de poderes privados, mais ou menos organizados, mais ou menos influentes, mais ou menos dominantes. Estes poderes sabem muito bem o que lhes interessa que o Estado seja e o que não lhes interessa. Interessa-lhes que o Estado trate de umas coisas e que não se ocupe de outras. O que é importante é que se averigue e se perceba porquê e se isso interessa ao Estado, enquanto estrutura representativa de realidades territoriais e demográficas e histórico-culturais que não se compadecem com os balanços e contabilidades de A, B ou C. O Estado não tem maneira de dizer que não é nosso.

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  3. Olá,
    “Se o sector privado for bem regulado, o mercado livre resultante é melhor do que qualquer planeamento central para optimizar as escolhas individuais.” Isto é fundamental. É basicamente um teorema. Está para a economia como o quadrado da hipotenusa ser igual à soma do quadrado dos catetos está para a geometria. Mas óbvio tem pressupostos e definições associadas. Os pressupostos são o da livre concorrência and so on e definição a máquina de produzir riqueza sem que nos preocupemos com a distribuição. Ou seja, economia puramente de mercado dentro dos pressupostos durante 100 anos faz com que daqui a 100 anos tenha muito mais riqueza, mas os pobres podem estar apenas 10% mais ricos e os ricos 10x mais ricos. Podemos considerar isto um problema ou não, até dependendo do ponto inicial, e nem estou a dizer que acontece, mas é uma hipótese. Mas por isto o sector privado é mais eficiente que o público em geral. O planeamento central é ineficiente se puder ser deixado nas mãos do mercado. A ineficiência do planeamento central /sector público não quer dizer que as pessoas façam um mau trabalho e sejam menos competentes que as do sector privado. Quer apenas dizer que o planeador central não é um deus. Essas criaturas não existem como bem sabe.
    Assim o papel do estado para mim é evitar que eu não seja livre e tentar aproximar as condições económicas que garantem máxima concorrência. Além disso, dependendo das condições de vida dos 1% ou 10% mais pobres, um certo grau de redistribuição de riqueza coerciva. Isto pode exigir um estado mais ou menos pequeno…depende. Mas certamente diferente do atual. Onde se podem ajustar oferta e procura por exemplo às entradas nas universidades de medicina, ou onde não preciso de fazer uns exames nas ordens de advogados para poder exercer. Duas coisas que protegem quem já está na profissão em detrimento do consumidor. Onde há salário mínimo que sobe acima da produtividade protegendo as empresas instaladas da concorrência. Onde há privatizações que garantem monopólios para garantir boa fonte de receita e deixando assim para trás aquele que é o objectivo de uma privatização. Além disso o planeador central decide quanto recebe um seu funcionário (de actividades que também existem no sector privado) e não o consumidor. O que sabemos ser ineficiente. O planeador protege profissões não deixando que certas pessoas realizem certa atividade mesmo tendo capacidade para a realizar. Permite fusões em atividades já com pouca concorrência,…tudo ineficiências supostamente de mercado que só existem por planeamento central. Garantes de rendimento aos mais ricos como consequência do “estado musculado”.
    Quanto à poluição, numa economia liberal esse é sempre um problema a ser regulado porque se insere na proteção de qualquer individuo de agressões por parte do outro. Quanto a transportes, se há benefícios em não ter, por exemplo, estradas apinhadas, então há condições de mercado para existirem transportes coletivos. Estes não precisam de ser geridos centralmente. Também não é preciso ter um SNS para tratar doenças dos pobres. Os hospitais privados também o conseguem fazer. O pobre só precisa que outros lhe paguem a conta.
    Falências que garantem eficiência serem consideradas um desperdício é o mesmo que ser um desperdício espécies extintas por seleção natural. Não há recursos para todas, sobrevivem as que garantem maior utilidade ao consumidor.

    Abraço,
    Pedro

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