domingo, dezembro 01, 2013

Fine-tuning e verosimilhança, parte 2.

Os modelos da física moderna são muito sensíveis aos valores de certos parâmetros. Este é um problema de fine-tuning porque é necessário afinar cuidadosamente os parâmetros para obter previsões correctas. Tradicionalmente, estes problemas têm se sempre resolvido descobrindo princípios mais fundamentais que unificam ou restringem os parâmetros livres. Mas como há pouco a dizer acerca de princípios que ninguém ainda descobriu, é mais interessante especular sobre o que seria se estes parâmetros pudessem mesmo variar na realidade e não apenas nos modelos. Multiversos, megaversos, universos exóticos com leis estranhas e assim por diante. Infelizmente, isto baralha algumas pessoas que depois julgam que este problema de fine-tuning está na realidade e não no modelo. É como julgar que a Terra é plana porque o mapa também é. Esse foi o tema da primeira parte (1). Esta é sobre uma aplicação incorrecta do princípio da máxima verosimilhança (PMV) para resolver esse problema meramente hipotético.

O argumento apresentado pelo Bernardo Motta, mas originalmente do Robin Collins, alega que, por um lado, a probabilidade de observarmos um universo como este assumindo os modelos da física é muito baixa por causa desses parâmetros soltos que é preciso ajustar mas, por outro lado, a probabilidade de haver um universo como este é muito alta se assumirmos que existe um deus que quer criar um universo assim. Assim, alegadamente, o PMV leva-nos a crer num deus criador. Isto é persuasivo para quem souber o suficiente sobre o PMV para reconhecer a sua importância mas não o suficiente para perceber o embuste desta aplicação. Como só consigo explicar isto num post chato, peço desde já desculpa pelo que se segue.

Vamos imaginar que lançámos uma moeda dez vezes e queremos saber se a moeda é equilibrada. O resultado foi:

Cara, coroa, coroa, coroa, cara, coroa, coroa, coroa, coroa, coroa.

Se assumirmos que a moeda é equilibrada, com 50% de probabilidade de calhar cara ou coroa em cada lançamento, a probabilidade de ter só duas caras em dez lançamentos é de 4%*. Isto pode justificar rejeitarmos como inverosímil que a moeda seja equilibrada. É mais plausível que esteja torta.

Podemos também usar o PMV para determinar os melhores parâmetros para uma família de modelos. Vamos chamar p à probabilidade de calhar cara, sendo 1-p a probabilidade de coroa. Isto define uma família de modelos onde cada modelo tem o seu valor de p entre 0 e 1. O melhor modelo, pelo PMV, é aquele em que p=0,2 porque assim maximizamos a probabilidade de obtermos os nossos resultados, duas caras e oito coroas.

Para comparar famílias de modelos a coisa complica-se um pouco. Vamos imaginar uma família alternativa de modelos com os parâmetros p1 a p10 definindo a probabilidade da moeda calhar cara em cada lançamento. Se fizermos p1 e p5 ser 1 e os restantes 0, a probabilidade de obter aquela sequência acima será 100%, enquanto a outra família de modelos, mesmo com p=0,2, tem uma verosimilhança de apenas 0,5% para esta sequência de lançamentos. No entanto, é obviamente errado estar a usar os dados para maximizar a verosimilhança atribuindo, a posteriori, uma probabilidade específica a cada lançamento**.

Para compensar este efeito, quando se compara famílias de modelos integra-se as probabilidades por todos os valores dos parâmetros. Neste caso, temos de variar p entre 0 e 1 para a primeira família e todos os p1 … 10 independentemente para a segunda. Apesar daquele pico alto quando os parâmetros da segunda estão exactamente certos, o espaço onde falha é muito maior e a primeira será a mais verosímil. É isto que acontece se compararmos a hipótese dos grãos de areia do estuário do Tejo estarem naquela configuração por acaso ou porque um duende invisível de Caxias usou poderes mágicos para pôr a areia exactamente assim. Havendo tantas possibilidades diferentes, seria improvável calharem naquela posição por acaso. Mas a hipótese do duende tem muitos parâmetros indeterminados. Podia querer pôr a areia exactamente como está mas também podia ter preferido pôr os grãos de outra maneira, mandar a areia toda para Marte, transformar tudo em gelatina de morango ou qualquer outra coisa. Quando consideramos todas estas variantes a verosimilhança da hipótese do duende torna-se ainda mais baixa do que a da hipótese da areia estar assim por acaso. E ainda bem.

Quando o Robin Collins estima a verosimilhança dos modelos da física moderna não usa apenas os valores ajustados dos parâmetros, o que daria uma verosimilhança de 1 porque foram escolhidos para prever este universo. Correctamente, considera toda a variação hipotética desses parâmetros e estima uma verosimilhança muito baixa. Mas depois faz batota com a alternativa. É que isso de Deus ter criado o universo também é uma família de modelos e também tem parâmetros livres. Deus podia querer um universo como este, ou um universo onde aparecesse inteligência logo ao fim de mil milhões de anos ou só ao fim de cem mil milhões de anos. Podia querer um universo completamente diferente e inimaginável com seres de energia, almas desencarnadas ou animais com 15 dimensões. A verosimilhança dos modelos físicos é baixa porque integramos as probabilidades por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros livres. Mas um deus omnipotente tem infinitos graus de liberdade. Sem fazer batota na aplicação do PMV a verosimilhança dessa família de modelos é nula, sempre menor do que qualquer alternativa.

* Assumindo que não me enganei nas contas. Mas se me enganei não faz mal porque o que importa aqui é perceber a ideia.
** Se alguém estiver interessado em pesquisar mais sobre este problema, chama-se overfitting.

1- Fine-tuning e verosimilhança, parte 1. Ver também o post do Bernardo

8 comentários:

  1. A CIÊNCIA DOS CORVOS E A DOUTRINA BÍBLICA DA CRIAÇÃO

    A Bíblia ensina que todos os seres vivos têm um Criador comum super-inteligente.

    E a verdade é que, no núcleo das células de todos eles, encontramos códigos (genético e epigenético) e informação codificada com as instruções necessárias para especificar todos os seus órgãos com grande complexidade e precisão.

    Códigos e informação codificada são a marca, por excelência, de racionalidade e inteligência. É assim em todo o lado.

    Os evolucionistas afirmam (sem poderem demonstrar no terreno ou em laboratório) que a vida surgiu por acaso, que as espécies evoluem para outras diferentes e mais complexas e que os chimpanzés e os seres humanos evoluíram de um hipotético (e não identificado) antepassado comum.

    Para defender essa tese alegam as semelhanças anatómicas entre chimpanzés e seres humanos, desvalorizando as diferenças quando sempre que elas não interessam à teoria da evolução.

    Mas os corvos, altamente inteligentes e sem qualquer proximidade evolutiva ao ser humano, ajudam a demonstrar a implausibilidade das propostas evolucionistas.

    Os corvos reagem, nalguns aspectos, de forma idêntica aos seres humanos.

    Eles mostram que a inteligência inerente aos seres vivos nada tem que ver com o seu estágio de evolução, corroborando, ao invés, a sua criação inteligente.

    Apesar de nada terem de macacos ou homens, e à semelhança do que sucede com outras aves, os corvos são exímios na manipulação de ferramentas, conseguindo utilizar várias ao mesmo tempo e, se necessário, modifica-las e adaptá-las.

    Nalguns casos, essas ferramentas são usadas para a caça.

    Como se vê, a elevada capacidade dos corvos nada tem que ver com a sua proximidade ao homem, negando a relevância explicativa de um hipotético antepassado comum.

    Diferentemente, ela corrobora a inteiramente a ideia de um Criador comum, tal como a Bíblia ensina.

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  2. Ludwig
    Bem sei que este texto já é velho, mas mesmo assim vou perguntar:
    Um multiverso onde todos os universos possíveis existissem estaria em vantagem em termos de verosimilhança?

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  3. «Um multiverso onde todos os universos possíveis existissem estaria em vantagem em termos de verosimilhança?»

    Um modelo descrevendo um multiverso assim não teria mais verosimilhança só por isso. Até podia ter menos se previsse probabilidades muito baixas do nosso universo ser assim como é. Mas incluindo restrições como as do princípio antrópico já fica mais verosimilhante.

    O problema fundamental é quão bem o modelo explica as observações. O de “olha calhou” não é bom, mas o de “Deus quis” também não serve. O de “há infinitos universos”, por si só, também não adianta grande coisa, mas ao menos dá para melhorar explicando porque é que o universo em que nós calhámos é um onde podemos existir.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Obrigada. É que eu escrevi um texto sobre isso (e sobre o argumento cosmológico), mas mencionei também o princípio antrópico. E deixei um link para este texto que achei que estava bastante bom.

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  4. Ludwig, se de facto existir mesmo uma espécie de "espuma" quântica, onde partículas subatómicas vão aparecendo e desaparecendo de onde podem surgir universos, é mesmo possível que existam infinitos universos?

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. O Bernardo Motta escreveu o seguinte: «(...) um eventual multiverso no qual são gerados os inúmeros universos teria que ser muito especial e afinado para produzir universos afinados para a existência de vida». Mas se um número infinito de universos são produzidos a partir da tal "espuma" quântica, então nada tem que estar afinado para o aparecimento de vida, exactamente porque há universos infinitos e é normal (e até inevitável) que apareçam universos capazes de suportar vida (e é claro que temos que estar num desses).

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