domingo, dezembro 29, 2013

Treta da semana (passada): Cacique Cobra Coral.

Um leitor brasileiro enviou-me notícias de uma interessante parceria público-privada no Rio de Janeiro, cujo prefeito acabou de «renovar o contrato com a Fundação Cacique Cobra Coral. Esta fundação tem poderes mentais que desviam a chuva»(1). Segundo o site da fundação, «A Fundação Cacique Cobra Coral foi criada para intervir nos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza. Fundada por Ângelo Scritori e tendo a frente sua filha Adelaide Scritori», uma médium que “incorpora” o espírito do Cacique Cobra Coral, alegadamente o mesmo espírito que já fora «Galileu Galilei e Abraham Lincoln» antes de se tornar cacique. A Adelaide nasceu «acompanhada de uma profecia» do espírito do Padre Cícero que, manifestando-se por intermédio do pai dela, anunciou que a Adelaide teria «poderes para se comunicar com [...] um ente poderoso o suficiente para alterar fenômenos naturais»(2).

Além do ridículo de pagar ao espírito do cacique para levar a chuva para outras bandas, há também um aspecto trágico nesta parvoíce. As chuvas torrenciais no Estado do Rio de Janeiro são um perigo real para muita gente que vive em zonas sensíveis a inundações e derrocadas. Em Janeiro de 2011, por exemplo, morreram mais de novecentas pessoas num só dia de chuva (1). Investir em espiritismos quando há necessidades tão prementes devia ser crime.

Independentemente da gravidade das consequências, não se deve gastar o erário neste tipo de coisas. Nem é por serem fantasia. É legítimo haver investimento público em arte e cultura; não é obrigatório que o Estado invista apenas no que é factual ou útil no sentido prático. E, ao que parece, estas coisas do espiritismo têm muitos adeptos no Brasil, provavelmente ainda mais do que por cá. Mas não se deve gastar dinheiro público nisto porque o investimento presume que há mesmo espíritos com esses poderes, e pessoas especiais que os contactam, sem que haja quaisquer evidências objectivas de que tal premissa seja verdadeira. Não se pode provar que seja falsa, mas nada indica que seja verdade e, por isso, é um mau investimento.

Por cá temos um problema análogo. Não parece tão ridículo, talvez por ser mais discreto ou talvez pelo hábito, mas é fundamentalmente o mesmo. É o dinheiro que o Estado gasta com algumas organizações religiosas, especialmente a Igreja Católica. Desde isenções fiscais ao financiamento da propaganda religiosa nas escolas públicas, passando pelas capelanias dos hospitais e forças armadas, há muito dinheiro que vai dos impostos para estas organizações por uma premissa tão infundada como a da Adelaide falar com o espírito do cacique e este intervir na meteorologia. É a premissa de que os sacerdotes de algumas religiões falam com um Deus que lhes comunica doutrina e, ocasionalmente, faz um milagre ou outro.

Isto não tem nada que ver com a liberdade de crença, que não nego a espíritas ou religiosos, nem com a tradição e cultura de cada povo. Não me choca que o Estado invista na recuperação de mosteiros ou igrejas nem me oporia a uma disciplina sobre religiões na escola pública. Já várias vezes tive de relatar aos meus filhos trechos da Bíblia para poderem perceber referências que surgem em filmes ou livros, por exemplo. As religiões são uma parte significativa da nossa história e cultura e penso que o Estado deve contribuir para preservar essa memória. Mas isso não é o mesmo que pagar professores escolhidos por organizações religiosas, padres em hospitais e quartéis ou espíritas para fazer a chuva parar. Esses investimentos pressupõem mais do que um significado cultural ou valor histórico. Pressupõem que essas pessoas têm mesmo uma ligação especial ao sobrenatural e essa premissa é treta.

1- Jornal do Brasil, Garotinho condena convênio entre Paes e Fundação Cacique Cobra Coral. Obrigado pelo email com o link.
2- Fundação Cacique Cobra Coral, A Fundação

domingo, dezembro 22, 2013

Treta da semana (passada): isso é meu.

O Amazon Instant Video é um serviço da Amazon que permite ao utilizador ver os vídeos que comprou sem precisar de os guardar no seu computador. Geralmente. A semana passada, a pedido da Disney, a Amazon retirou deste serviço o filme “Prep & Landing”, que a Disney quer transmitir em exclusivo no seu canal durante a época natalícia. O filme não só deixou de estar disponível para compra como também deixou de estar acessível a quem já o tinha comprado. A Amazon alega ter sido um erro (1), apesar de ter dito a alguns clientes que era uma prerrogativa da Disney retirar o acesso ao filme mesmo depois de comprado (2) e apesar deste tipo de medidas já ter precedentes. Ironicamente, com o livro “1984” (3). Seja como for, o facto é que o vendedor pode facilmente “desvender” o produto sem consentimento do comprador.

Este problema não se limita aos ficheiros que o cliente confie aos servidores da empresa. Qualquer ficheiro com DRM, mesmo guardado num aparelho do comprador, pode ter a sua utilização condicionada pelo vendedor. A cópia, a instalação em novo hardware ou até o simples acesso podem carecer de uma ligação aos servidores da empresa para obter autorização, pelo que o vendedor pode inutilizar o produto comprado a qualquer momento (4). Nem sequer é um problema apenas de ficheiros e programas. Os próprios aparelhos, maioritariamente consolas de jogos e telemóveis mas cada vez mais tipos de equipamento, podem vir com limitações impostas pelo vendedor. Alegadamente, isto é para defender direitos de propriedade, mas só defende a “propriedade intelectual” de quem vende à custa dos direitos de quem compra.

A minha posição é a de que a noção de propriedade intelectual é absurda. É a ideia de que se pode vender peças de xadrez mas ficar dono das jogadas ou vender calculadoras e reter direitos de propriedade sobre contas e números. Os direitos de propriedade regulam o uso de objectos materiais em concreto e não de informação, categorias ou conceitos abstractos. Mas mesmo quem discorda desta rejeição cabal do conceito geralmente concorda ser ilegítimo que os direitos de “propriedade intelectual” do vendedor violem os direitos de propriedade do comprador. Devo esclarecer que esta violação não vem do DRM em si. Um fabricante podia tentar vender torradeiras que só funcionassem a certas horas do dia na esperança de convencer cada cliente a levar uma para o pequeno-almoço e outra para a ceia. Isso não violaria quaisquer direitos de propriedade. Mas parece-me consensual que uma lei proibindo o cliente de modificar a torradeira que comprou para contornar essa restrição violaria os direitos de propriedade do comprador. O problema fundamental é essa proibição, que retira direitos ao dono da coisa para favorecer os interesses económicos de quem já a vendeu. Como acontece com as consolas, por exemplo. É ilegal modificar uma consola de jogos para permitir usar DVD copiados, mesmo sendo a cópia privada um direito consagrado na lei, pelo qual pagamos taxa em nos DVD graváveis, e mesmo sendo legítimo fazer cópias de segurança do software que compramos.

Até aqui, penso que mesmo os leitores que normalmente discordam de mim nestas coisas do copyright estarão de acordo. Se compro algo, seja filme, livro, torradeira ou consola de jogos, não são os direitos de “propriedade intelectual” de quem mo vendeu que legitimam tirarem-me o acesso ao que é meu ou impedirem-me de desaparafusar, cortar, colar ou soldar como entender. Mesmo que isto não pareça evidente em todos os casos, neste exemplo da Amazon deve ser. Seria (ou foi?) abusivo negar a alguém o acesso ao filme que comprou só porque a Disney quer mais gente a ver os anúncios no seu canal de TV. O lucro do vendedor não justifica violar os direitos de propriedade do comprador. Dito assim, é quase uma verdade de La Palice.

Falta apenas aceitar as implicações deste princípio para rejeitar, como eu, qualquer restrição legal à cópia e distribuição não comercial de obras publicadas. Por um lado, porque a única justificação para estas restrições é proteger os lucros de quem vende essas obras. E, por outro lado, porque proibir alguém de copiar um ficheiro, de o descarregar ou de o partilhar com outras pessoas restringe o que essa pessoa pode fazer com o seu computador, violando os seus direitos de propriedade sobre aquilo que comprou. Neste aspecto, não há diferença fundamental entre limitar os dias em que uma pessoa pode ver o filme que comprou e limitar os ficheiros que uma pessoa pode copiar com o computador que comprou.

1- The Guardian, Amazon accidentally removes Disney Christmas special from owners' accounts
2 - BoingBoing, Amazon takes away access to purchased Christmas movie during Christmas
3 - The Guardian, Amazon Kindle users surprised by 'Big Brother' move
4- Na página da Wikipedia sobre DRM há uma lista com vários exemplos dos problemas que isto traz aos compradores: DRM, Obsolescence

domingo, dezembro 15, 2013

Treta da semana (passada): numerologia.

Em 1948, o psicólogo Bertram Forer pediu aos seus alunos que preenchessem um questionário para receberem uma análise individualizada da sua personalidade. Depois, quando entregou os resultados, pediu a cada aluno que classificasse a sua, de 0 a 5, para avaliar quanto correspondia à sua personalidade. A maioria dos alunos achou que a análise era muito acertada e a pontuação média foi de 4.26. Só depois é que Forer lhes disse que todos tinham recebido o mesmo texto, um agregado de banalidades que ele tinha recolhido das secções de astrologia de revistas: «Sentes necessidade de ter pessoas que te admirem e gostem de ti. Tens tendência para auto-crítica. Tens muitas capacidades que ainda não usaste em tua vantagem. Se bem que tenhas algumas fraquezas na tua personalidade, em geral consegues compensá-las» e assim por diante(1).

O segredo deste “efeito de Forer” é a combinação de uma descrição que aponte alguns aspectos positivos e negativos suficientemente genéricos com algum mecanismo que convença o visado de que a descrição lhe é específica. Na experiência de Forer isto foi conseguido com o questionário e a confiança no professor mas também se pode usar a data de nascimento, a palma da mão, o nome da pessoa ou qualquer outra coisa que disfarce o carácter genérico e banal da descrição. Desde que a vítima se convença de que o prognosticador sabe do que fala, o engodo funciona. É este também o fundamento da numerologia.

Um programa recente na TVI ilustra este truque psicológico (2). A convidada, Marta Pica Rodrigues, é formada em psicologia mas dedica-se também «a terapias holísticas utilizando a Astrologia, a Numerologia e o Tarot.»(3). Pelo que ouvi do programa, não consegui perceber se a Marta estudou o efeito de Forer, se o domina ou se é mais uma vítima deste enviesamento cognitivo. Mas é fácil perceber como a sua simpatia, o seu ar confiante e a alusão a coisas como “as energias dos números” ou “a energia dos pináculos ou dos ciclos de vida” conseguem convencer alguém como a Cristina Ferreira* de que as análises da Marta são quase tão boas como as do Bertram Forer.

A numerologia é um bom exemplo das dificuldades cognitivas que a ciência moderna enfrenta. A ideia fundamental da numerologia é a de associar a cada número de 1 a 9 algumas características antropomórficas. Individualidade, união, experiência de vida, família e assim por diante (4). Com estes elementos, depois pode-se criar narrativas, mais ou menos complexas, que parecem muito mais importantes do que os números em si. Isto porque o nosso cérebro está mais vocacionado para lidar com histórias, personagens e propósitos do que com quantidades, hipóteses rigorosas e a forma de as testar. Por exemplo, para um aficionado da numerologia é muito mais fascinante associar ao 3 a capacidade de comunicação, ao 4 a capacidade de criação e inventar histórias a partir daí do que pensar como raio se descobriu essa associação, como se pode testar se o 3.5 tem características intermédias ou quantificar o peso relativo destes atributos para cada valor real. O problema disto é que, ao contrário do que se julgou durante milénios, a realidade não é governada por personagens, intenções e características humanas. Para a compreender é preciso lidar com quantidades e testar hipóteses com critérios objectivos e não apenas pela confiança que quem as enuncia nos inspira. O que é tramado, porque isto exige usar o cérebro de formas para as quais este não está bem adaptado.

Mas nem tudo é mau neste enviesamento. Como memorizar histórias é muito mais fácil do que memorizar sequências de números, um truque para memorizar o PIN do telemóvel, números de telefone ou a página em que ficámos no livro é adaptar os princípios da numerologia e associar a cada algarismo um personagem e ao número uma história com esses personagens. Por exemplo, eu uso o Buda para o zero, uma garça para o um, um boi para o dois, um caranguejo para o três e assim por diante. Se fiquei na página 130 posso pensar na garça a dar bicadas no caranguejo e o Buda a dizer-lhe para não fazer isso. Não só é mais fácil recordar essa cena como fico com várias vias diferentes que posso usar para chegar ao número – o número em si, os nomes dos personagens, as imagens dos personagens e a história – o que me permite tirar umas pelas outras se me falhar algo. Não dá tanto dinheiro como usar o efeito de Forer na televisão, mas é útil no quotidiano e variantes mais sofisticadas desta técnica até servem para coisas como truques de mentalismo ou contar cartas no casino.

O Goucha talvez tenha só ido na conversa porque é o trabalho dele.

1- Wikipedia, Forer effect
2- Vídeo disponível aqui. Obrigado pela dica no Facebook.
3- Terapias do Equilíbrio, Sobre Mim
4- Wikipedia, Numerology

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Austeridade, parte 3: a irresponsabilidade da dívida.

A narrativa deste governo, e de muitos comentadores, é a de que o despesismo irresponsável dos governos anteriores levou “os mercados” a cortar-nos o crédito e daí veio esta crise e o imperativo da austeridade. A tese é facilmente refutada pelo facto da dívida pública portuguesa ter rondado os 60-70% do PIB entre 1991 e 2008, sendo semelhante à da Alemanha até ao início da crise (1). Em Portugal, o excesso de dívida pública veio depois da crise. Mas, mesmo quando os defensores da austeridade admitem que não foi a dívida que causou a crise, ainda apontam que se Portugal não tivesse dívida pública não precisaria de resgate e que contrair dívidas é irresponsável. É protelar os custos para gerações futuras, hipotecar a nação, gastar mais do que se produz e outros vícios que tal. Além de isto não resolver o problema da dívida – quase metade da presente dívida pública de Portugal, e quase toda no caso da Irlanda, surgiu depois do inicio da crise na banca internacional – é um disparate pensar que o endividamento é sempre imoral e irresponsável. Há muitas situações em que se justifica contrair dívidas. Se vou demorar vinte anos a juntar dinheiro para comprar uma casa mais vale comprá-la com dinheiro emprestado do que viver vinte anos ao relento. Se uma fábrica pode lucrar com maquinaria nova pode ser mais proveitoso comprar a crédito do que perder oportunidades de negócio enquanto juntam dinheiro para comprar a pronto. Com um país o princípio é o mesmo, com algumas diferenças importantes.

Há poucas décadas, Portugal estava muito atrás da Europa ocidental em educação e saúde. Por exemplo, em 1970 a esperança média de vida à nascença em Portugal era quatro anos menor do que na Alemanha. Em 1990 ainda era quase três anos e meio menor. Mas em 2012 a diferença já era inferior a meio ano (2). É verdade que muito dinheiro do Estado português foi mal aplicado, enriquecendo alguns em negócios duvidosos que agora são investigados até à prescrição sem que nada se resolva. Era bom ter-se poupado esse dinheiro ou, pelo menos, punir os culpados. Mas isso não eliminaria a dívida pública nem o problema que agora enfrentamos porque grande parte da dívida contraída até 2008 foi mesmo necessária para resolver problemas como, por exemplo, a mortalidade infantil. O Estado tem a obrigação de zelar por direitos fundamentais e seria muito mais imoral e irresponsável deixar crianças morrer só para não pedir empréstimos a taxas de juro que, na altura, eram baixas.

Mesmo ignorando o desenvolvimento social e humano do país e focando apenas o desenvolvimento económico, justifica-se contrair dívidas para estimular a economia, construir infraestruturas e melhorar a qualidade da força laboral investindo em saúde e educação. Não só porque, eventualmente, o crescimento da economia compensa a despesa mas também porque o investimento público é necessário num país democrático que queira reduzir as desvantagens que tenha em relação aos seus vizinhos. A China pode desenvolver-se pelo trabalho escravo da sua população mas, desde 1974, essa opção deixou de ser viável em Portugal. E ainda bem.

Finalmente, a dívida pública é muito diferente da dívida de um cidadão privado. Quando um de nós pede dinheiro emprestado tem de o pagar ao longo de uns anos. Não se pode ir refinanciando com novos empréstimos porque os prazos que consegue aos setenta anos não serão os mesmos que conseguia aos trinta. O Estado faz investimentos com retorno a várias gerações e endivida-se a prazos muito mais longos, mais longos até do que os que qualquer credor aceitaria. Mas como o Estado não tem uma esperança de vida curta, pode “rolar” a dívida indefinidamente, contraindo novos empréstimos para pagar os anteriores. E nem precisa de saldar as dívidas. O Sócrates foi muito criticado por dizer isto, mas tinha razão. Por exemplo, em 1946 a dívida pública dos EUA era de 242 mil milhões de dólares, correspondendo a 113% do PIB. Em 1974 atingiu o mínimo de 24% do PIB. Mas a dívida em 1974 era de 344 mil milhões de dólares (3). A dívida pública dos EUA não passou de 113% para 24% do PIB por ter sido paga mas simplesmente por crescer abaixo da inflação e do crescimento económico do país. Este é um exemplo extremo, mas ilustra o mecanismo mais conveniente de redução da dívida pública: inflação e crescimento. A regra para um indivíduo é pagar o que deve mas para os Estados modernos basta que o crescimento económico somado à inflação acompanhem o crescimento nominal da dívida. A situação de Portugal não mudou pelo despesismo público mas pelo buraco do sector bancário privado que, por um lado, cortou a possibilidade de refinanciamento e, por outro, trouxe ao Estado encargos acrescidos com o impacto económico desse desastre.

O endividamento do Estado português não foi imoral nem irresponsável. Apesar de parte desse dinheiro ter sido mal usada, muito foi necessário para pagar o desenvolvimento social e económico do país. Imoral e irresponsável é a arquitectura do Euro e a falta de regulação da banca. Um banco central que não pode emprestar dinheiro aos Estados e cujo mandato é controlar a inflação dificulta a redução da dívida pelos mecanismos normais de crescimento e inflação e põe os Estados à mercê dos “mercados”. Por outro lado, o sector bancário privado, que sempre cobrou juros pelo risco de incumprimento dos empréstimos que ia refinanciando, por se expor demasiado a negócios especulativos agora não só corta o refinanciamento como é incapaz de assumir esses riscos de incumprimento pelos quais cobrou. É verdade que o governo que agora temos, por muito mau que seja, não é responsável pelas verdadeiras causas desta crise nem pode resolver sozinho esses problemas. Mas este governo é culpado de propagar uma mentira e de a aproveitar para faltar às suas promessas eleitorais, vender ao desbarato o que é de todos e impor uma política de direita que só beneficia alguns em detrimento da maioria, algo que dificilmente conseguiria sem este engodo.

* Em teoria, o BCE não pode emprestar dinheiro aos Estados. Na prática, toda a gente sabe que se os grandes, como a França ou a Alemanha, estiverem aflitos muda-se as regras do BCE num instante. Por isso para esses as coisas funcionam de maneira diferente.

1- Ver episódios anteriores: Parte 1 e Parte 2.
2- Contryeconomy, Portugal; Alemanha
3- The Atlantic, The Long Story of U.S. Debt, From 1790 to 2011, in 1 Little Chart

domingo, dezembro 01, 2013

Treta da semana: a prova.

O Henrique Monteiro escreveu sobre o exame a que alguns professores do ensino secundário público serão sujeitos para determinar se podem continuar a ensinar. O Henrique presume ser contraditório que se indignem «com a ideia de exame em si e outros pelo facto de esse exame ser fácil de mais»(1), invoca uma ideia estranha de marxismo onde «Cada um dava conforme as capacidades e recebia consoante as capacidades» e defende este exame para acabar com «um mundo imutável, ou em que a mudança, a haver, era lenta, segura e sempre para melhor». Não explica porque quer acabar com um mundo onde a mudança fosse para melhor nem como isto advém da razão que aponta – «Quem tinha um curso, tinha-no porque era filho de quem já o tinha, ou porque os pais tinham feito um esforço incrível para que os filhos o tivessem» – e ainda menos o que o exame tem que ver com isto, pois continua a ser preciso curso para ser professor. O Henrique só se safa de ter um raciocínio falacioso pelo requisito formal de um raciocínio falacioso ter de ser, primeiro, um raciocínio.

Um exame escrito avalia conhecimentos pela via indirecta de determinar quanto o avaliado consegue, naquele momento, fazer corresponder as suas respostas àquilo que o avaliador considera merecer a cotação completa. À partida, é uma forma pouco adequada de avaliar conhecimentos. Excepto se estes defeitos forem colmatados por várias medidas complementares. Tipicamente, os alunos têm tempo para se preparar especificamente para o exame, meses de prática com aquele tipo de exercícios escritos e as respostas esperadas, mais do que uma oportunidade para fazer o exame e o exame é apenas um de vários elementos de avaliação. Sem estas medidas, a margem de erro de um exame escrito é considerável.

Isto torna-se especialmente relevante se o exame for muito fácil. Quando a taxa de reprovação ronda os 30%, como é típico nos exames do ensino superior, podemos ter alguma confiança de que a maioria dos reprovados não sabia o essencial. Há sempre uma percentagem de erros devidos a problemas pessoais, distracções ou outros factores independentes do conhecimento do avaliado mas, se estes influenciarem o resultado em um ou dois porcento, serão uma fracção pequena dos 30%. No entanto, se o exame é tão fácil que 99% dos avaliados é aprovado, aqueles 1% de reprovações podem ser mais ruído do que sinal. Se for para fazer um exame com 99% de aprovação o melhor é não fazer porque um exame escrito não se adequa a esses casos.

Se bem que para alguém como o Henrique Monteiro pareça contraditório protestar por não querer fazer o exame e por o exame ser demasiado fácil, qualquer pessoa com experiência nestas coisas percebe que ser demasiado fácil é uma das razões para essa inadequação. Por azar, ou por desígnio do governo, as pessoas que melhor percebem os defeitos desta prova são aqueles que a prova pretende avaliar.

Há também a ideia de que sem esta prova os professores não seriam avaliados. Como escreve o Henrique, «Hoje, todos estamos colocados em causa [...] há 'rankings', há hierarquias, há prevalências e... há provas e exames.» Mas além das várias formas de avaliação regular a que os professores estão sujeitos, todos os candidatos “estão colocados em causa” logo à partida. A todos é exigido, pelo menos, um curso superior adequado numa instituição acreditada pelo Estado. Ou seja, que tenham obtido aprovação a dezenas de exames de dezenas de disciplinas ao longo de vários anos. Essa foi sempre a primeira prova que quem queria ser professor teve de prestar. Dirá então o Henrique, e outros que tal, que nesse caso não faz diferença aos professores fazer mais um exame. Mas faz.

Logo à partida, porque nenhum exame é perfeito. Há gralhas no enunciado, problemas nas salas, erros na avaliação e outras complicações que, se bem que raras e facilmente corrigidas quando um professor prepara e dá um exame a uma centena de alunos, passam a um problema grave quando se põe trinta mil pessoas pelo país inteiro a fazer um exame que os colegas vão avaliar. Depois, não é mais um exame. É um exame que substitui todas as provas feitas durante anos de formação universitária, toda a formação complementar e até a experiência profissional. Esses anos de trabalho e provas valerão menos do que esta prova individual. E o exame têm custos significativos porque, sendo uma prova eliminatória, naturalmente vão andar bastante preocupados com o exame quando deviam estar a dedicar-se aos alunos. O custo para os alunos destes professores será ainda maior do que os €20 por prova ou o trabalho de as avaliar.

Além de obrigar os professores a prestar provas a meio do ano lectivo, julgar que um exame escrito é mais fiável do que anos de estudo e exames em universidades acreditadas e inventar um enunciado ridículo (2), esta medida finge atacar um falso problema à custa de agravar o problema mais sério do ensino público. Ao exigir no mínimo vários anos de formação à frente da matéria que vai leccionar, o Estado reduz muito a probabilidade de um professor não saber a matéria. Mas, por outro lado, ensinar não exige apenas saber a matéria. Exige a capacidade e a motivação para perceber as dúvidas de quem está a aprender e guiar essa aprendizagem. Medidas como esta prova, cortes salariais, aumento do número de alunos e a burocratização do ensino, servem acima de tudo para desmotivar quem saiba e queira ensinar e seleccionar para o ensino público quem melhor souber lidar com a papelada, que ganha cada vez mais importância em detrimento dos alunos.

1- Henrique Monteiro, As provas dos professores
2- IAVE, Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades

Fine-tuning e verosimilhança, parte 2.

Os modelos da física moderna são muito sensíveis aos valores de certos parâmetros. Este é um problema de fine-tuning porque é necessário afinar cuidadosamente os parâmetros para obter previsões correctas. Tradicionalmente, estes problemas têm se sempre resolvido descobrindo princípios mais fundamentais que unificam ou restringem os parâmetros livres. Mas como há pouco a dizer acerca de princípios que ninguém ainda descobriu, é mais interessante especular sobre o que seria se estes parâmetros pudessem mesmo variar na realidade e não apenas nos modelos. Multiversos, megaversos, universos exóticos com leis estranhas e assim por diante. Infelizmente, isto baralha algumas pessoas que depois julgam que este problema de fine-tuning está na realidade e não no modelo. É como julgar que a Terra é plana porque o mapa também é. Esse foi o tema da primeira parte (1). Esta é sobre uma aplicação incorrecta do princípio da máxima verosimilhança (PMV) para resolver esse problema meramente hipotético.

O argumento apresentado pelo Bernardo Motta, mas originalmente do Robin Collins, alega que, por um lado, a probabilidade de observarmos um universo como este assumindo os modelos da física é muito baixa por causa desses parâmetros soltos que é preciso ajustar mas, por outro lado, a probabilidade de haver um universo como este é muito alta se assumirmos que existe um deus que quer criar um universo assim. Assim, alegadamente, o PMV leva-nos a crer num deus criador. Isto é persuasivo para quem souber o suficiente sobre o PMV para reconhecer a sua importância mas não o suficiente para perceber o embuste desta aplicação. Como só consigo explicar isto num post chato, peço desde já desculpa pelo que se segue.

Vamos imaginar que lançámos uma moeda dez vezes e queremos saber se a moeda é equilibrada. O resultado foi:

Cara, coroa, coroa, coroa, cara, coroa, coroa, coroa, coroa, coroa.

Se assumirmos que a moeda é equilibrada, com 50% de probabilidade de calhar cara ou coroa em cada lançamento, a probabilidade de ter só duas caras em dez lançamentos é de 4%*. Isto pode justificar rejeitarmos como inverosímil que a moeda seja equilibrada. É mais plausível que esteja torta.

Podemos também usar o PMV para determinar os melhores parâmetros para uma família de modelos. Vamos chamar p à probabilidade de calhar cara, sendo 1-p a probabilidade de coroa. Isto define uma família de modelos onde cada modelo tem o seu valor de p entre 0 e 1. O melhor modelo, pelo PMV, é aquele em que p=0,2 porque assim maximizamos a probabilidade de obtermos os nossos resultados, duas caras e oito coroas.

Para comparar famílias de modelos a coisa complica-se um pouco. Vamos imaginar uma família alternativa de modelos com os parâmetros p1 a p10 definindo a probabilidade da moeda calhar cara em cada lançamento. Se fizermos p1 e p5 ser 1 e os restantes 0, a probabilidade de obter aquela sequência acima será 100%, enquanto a outra família de modelos, mesmo com p=0,2, tem uma verosimilhança de apenas 0,5% para esta sequência de lançamentos. No entanto, é obviamente errado estar a usar os dados para maximizar a verosimilhança atribuindo, a posteriori, uma probabilidade específica a cada lançamento**.

Para compensar este efeito, quando se compara famílias de modelos integra-se as probabilidades por todos os valores dos parâmetros. Neste caso, temos de variar p entre 0 e 1 para a primeira família e todos os p1 … 10 independentemente para a segunda. Apesar daquele pico alto quando os parâmetros da segunda estão exactamente certos, o espaço onde falha é muito maior e a primeira será a mais verosímil. É isto que acontece se compararmos a hipótese dos grãos de areia do estuário do Tejo estarem naquela configuração por acaso ou porque um duende invisível de Caxias usou poderes mágicos para pôr a areia exactamente assim. Havendo tantas possibilidades diferentes, seria improvável calharem naquela posição por acaso. Mas a hipótese do duende tem muitos parâmetros indeterminados. Podia querer pôr a areia exactamente como está mas também podia ter preferido pôr os grãos de outra maneira, mandar a areia toda para Marte, transformar tudo em gelatina de morango ou qualquer outra coisa. Quando consideramos todas estas variantes a verosimilhança da hipótese do duende torna-se ainda mais baixa do que a da hipótese da areia estar assim por acaso. E ainda bem.

Quando o Robin Collins estima a verosimilhança dos modelos da física moderna não usa apenas os valores ajustados dos parâmetros, o que daria uma verosimilhança de 1 porque foram escolhidos para prever este universo. Correctamente, considera toda a variação hipotética desses parâmetros e estima uma verosimilhança muito baixa. Mas depois faz batota com a alternativa. É que isso de Deus ter criado o universo também é uma família de modelos e também tem parâmetros livres. Deus podia querer um universo como este, ou um universo onde aparecesse inteligência logo ao fim de mil milhões de anos ou só ao fim de cem mil milhões de anos. Podia querer um universo completamente diferente e inimaginável com seres de energia, almas desencarnadas ou animais com 15 dimensões. A verosimilhança dos modelos físicos é baixa porque integramos as probabilidades por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros livres. Mas um deus omnipotente tem infinitos graus de liberdade. Sem fazer batota na aplicação do PMV a verosimilhança dessa família de modelos é nula, sempre menor do que qualquer alternativa.

* Assumindo que não me enganei nas contas. Mas se me enganei não faz mal porque o que importa aqui é perceber a ideia.
** Se alguém estiver interessado em pesquisar mais sobre este problema, chama-se overfitting.

1- Fine-tuning e verosimilhança, parte 1. Ver também o post do Bernardo