sexta-feira, novembro 29, 2013

O crime.

No dia 27 de Outubro, o João Galamba perguntou no Twitter «Há link para o Porto-Sporting?»(1). Várias pessoas prontamente responderam com ligações para sites que disponibilizavam streams de canais como o da Sport TV. Mais recentemente, a ACAPOR decidiu solicitar a «renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba»(2) por pedir «à comunidade que lhe facultasse um link com a transmissão não autorizada do jogo entre o FC Porto e o Sporting CP»(2). A ACAPOR alega que o deputado teria violado o disposto na alínea e) do artigo 14º do Estatuto dos Deputados, o dever de «Respeitar a dignidade da Assembleia da República e dos Deputados» e que este pedido seria uma «incitação à prática de crime à comunidade». Segundo algumas notícias, a FEVIP acusou o deputado de «solicitar links ilegais para o visionamento do jogo»(3).

Quem ler o tweet do João Galamba com alguma atenção – não é um texto extenso – notará que ele não pediu um link ilegal. Perguntou se havia um link, apenas isso, não exigindo que fosse ilegal. Outro detalhe pertinente é que não parece existir na legislação portuguesa o conceito de “link ilegal”. O Uniform Resource Locator, aquela coisa que começa com “http://” e forma o link, é um endereço na World Wide Web. A nossa legislação não parece prever que um endereço em si possa ser ilegal por muito grave que seja o crime lá cometido.

Além do João Galamba não ter pedido links ilegais e não parecer existir tal coisa na nossa legislação, também não se percebe como é que ver o jogo seria ilegal. A carta da ACAPOR alega que a ilegalidade advém de ser «uma transmissão desportiva com exclusividade de visionamento por subscrição paga»(1) mas esta afirmação está certamente incorrecta porque a Sport TV só pode ter negociado o direito exclusivo de transmissão e não o direito exclusivo de visionamento. Ou seja, pode haver um contrato que regula quem está autorizado a transmitir o jogo, onde o contrato tiver valor legal, mas nunca um contrato que regule quem pode legalmente olhar para a televisão ou para o ecrã do computador durante o jogo. É certo que seria muito vantajoso para os clubes de vídeo poder cobrar o aluguer por cabeça, em função do número de pessoas que fosse ver o filme mas, por enquanto, a lei não parece permitir essa modalidade. Não se pode culpar o João Galamba por um crime de “visionamento não autorizado” quando não existe tal coisa na lei. A transmissão do jogo pode carecer de autorização. O visionamento não.

Nem sequer o streaming do jogo pelo site que o João Galamba alegadamente teria visitado é necessariamente ilegal. Por exemplo, um dos endereços fornecidos em resposta ao pedido do João é «http://www.sporttvhdmi.com/Sporttv1.html»(1). Segundo a WHOIS, este URL remete para um servidor localizado em Kirkland, no estado de Washington, EUA. Ao abrigo do Digital Millenium Copyright Act, para que o provedor deste serviço não cometa qualquer ilegalidade basta que bloqueie o acesso a conteúdo cuja transmissão viole a lei vigente nos EUA após a denúncia de quem tenha o direito legal para impedir essa transmissão. Se o stream está disponível é porque, provavelmente, nenhuma lei vigente nos EUA está a ser violada. Ou porque ninguém ainda denunciou essa transmissão como ilegal ou porque o contrato de exclusividade celebrado entre a SportTV e clubes portugueses não tem valor legal nos EUA. Se alguém pode ter cometido uma ilegalidade foi quem enviou esse stream para o servidor nos EUA. No entanto, não se pode averiguar se esse acto foi mesmo ilegal sem saber quem o praticou, onde o praticou e que legislação vigora no país onde o acto foi praticado, pois nem todos os países pertencem à OMPI. Seja como for, esta questão não parece ser da responsabilidade do João Galamba, porque se fosse ele quem estava a fazer o upload do stream provavelmente não teria pedido o link pelo Twitter.

Estas considerações são importantes porque, segundo o artigo 180º do Código Penal, «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias», com pena agravada se o lesado for membro de um órgão de soberania. Se bem que discorde, em geral, de se legislar a ofensa da “honra ou consideração” por ser demasiado subjectiva, concordo que se puna a imputação infundada da prática de um crime por lesar objectivamente a reputação do visado e a presunção da sua inocência. Por isso, parece-me grave que a ACAPOR impute publicamente ao João Galamba a prática de instigação pública a um crime – punível com até 3 anos de prisão pelo artigo 297º do código penal – sem qualquer indício de que o João Galamba tenha praticado ou incitado à prática de actos ilegais.

Pondo de parte as palhaçadas destas associações inúteis, há uma mensagem importante neste episódio ridículo. É revelador como abandonaram qualquer tentativa de legitimar as suas reivindicações com apelos aos direitos de autor, à protecção da cultura, ao incentivo à criatividade e essas desculpas que normalmente invocam para justificar os monopólios sobre a distribuição. A carta consiste apenas de um choradinho pela perda de lucros e a acusação, infundada, de que perguntar onde se pode ver o jogo de futebol que uma empresa apropriou como exclusivo seu é uma incitação ao crime. A reivindicação da ACAPOR ilustra bem dois problema do sistema que esta associação defende. Por um lado, o absurdo, a injustiça e o custo para a sociedade de conceder direitos exclusivos sobre informação que se torna pública e, por outro, os extremos a que a lei teria de chegar para proteger esses monopólios, ao ponto de ter de ser crime “visionar sem autorização”, divulgar um URL ou perguntar «Há link para o Porto-Sporting?»

1- Twitter, 27-10-2013, 20:24
2- ACAPOR, ACAPOR solicita renúncia de mandato ao Sr. Deputado João Galamba
3- Exame Informática, João Galamba e o link pirata para ver derby
4- WHOIS, sporttvhdmi.com

quinta-feira, novembro 28, 2013

Fine-tuning e verosimilhança, parte 1.

«... imagine uma poça a despertar de manhã e a pensar “Este é um mundo interessante em que me encontro – e um buraco interessante em que me encontro – acomoda-me perfeitamente, não é? De facto, espantosamente bem, deve ter sido feito de propósito para me conter aqui dentro!” Esta é uma ideia tão poderosa que, conforme o Sol se ergue no céu, o ar aquece e a poça vai ficando mais pequena, mantém-se freneticamente agarrada à noção de que vai tudo correr bem porque o mundo foi feito de propósito para si; por isso, o momento em que se evapora apanha-a de surpresa. Penso que é algo que todos temos de ter em conta.»
Douglas Adams, The Salmon of Doubt

No passado dia 21 o Bernardo Motta e o Ricardo Silvestre debateram a (in)existência de Deus na Universidade Católica. Enquanto espero pela gravação do debate queria dar já uma achega ao argumento do fine-tuning que o Bernardo apresentou nos slides e resumiu no blog (1). Este argumento diz que Deus deve existir porque os modelos da física moderna contém parâmetros cujos valores não são determinados pela teoria e, se fossem diferentes, o universo não comportaria vida como a conhecemos. Por exemplo, se a energia libertada na fusão de hidrogénio em hélio fosse maior as estrelas não durariam o suficiente para que vida como a nossa evoluísse e se fosse menor as estrelas não dariam energia suficiente (2). Assim, defende o Bernardo, tem de haver um deus que assegure os valores certos para estes parâmetros de modo a que nós possamos existir. Ou seja, que faça o buraco à medida da água da poça.

A primeira confusão deste argumento é logo a definição do problema. O problema do fine tuning é um problema do modelo. O modelo tem demasiados parâmetros soltos que têm de ser ajustados para prever correctamente o que observamos. Isto não é desejável. É sempre melhor minimizar as pontas soltas. Mas este problema do modelo só é um problema do universo se o modelo estiver completo. O problema de fine-tuning que o Bernardo invoca não é o problema real do modelo ser muito sensível a parâmetros soltos mas sim o problema meramente hipotético do modelo estar correcto nesse aspecto e o universo sofrer do mesmo excesso de parâmetros. Tanto os dados que temos como a experiência contradizem esta premissa.

O modelo standard das partículas subatómicas tem 25 parâmetros que não são determinados pela teoria subjacente. Além disso, o modelo do universo a grande escala tem mais um parâmetro solto, a constante cosmológica (4). Mas uma razão forte para não concluir logo que o universo tem estes parâmetros soltos é estes modelos serem incompatíveis. Como a descrição relativística da gravidade não encaixa nos modelos da mecânica quântica para as restantes forças não se justifica assumir que estes modelos estão completos e que o que falta neles falta no universo.

Além disso, o problema do fine-tuning é frequente na história da ciência. Antes da teoria atómica dos elementos a química era um pantanal de parâmetros aparentemente arbitrários e leis que não se sabia de onde vinham. Quando se percebeu que todas as moléculas eram compostas por átomos de umas dezenas* de elementos diferentes o número de parâmetros soltos diminuiu drasticamente. Quando se descobriu que as propriedades químicas e físicas de cada elemento são determinadas pela combinação de apenas três partículas diferentes – protões, neutrões e electrões – o número de parâmetros soltos caiu novamente. Este ciclo ocorre em todas as áreas da ciência pela forma como a ciência progride. Inovações teóricas e tecnológicas permitem novas experiências, estas revelam dados novos que os modelos precisam de explicar o que, por sua vez, obriga a formular novas relações e parâmetros conforme os dados vão surgindo. Só quando alguém finalmente percebe como as coisas encaixam é que há tal “mudança de paradigma” que leva a novas teorias que atam as pontas soltas. É disso que estamos à espera agora.

Há também explicações propostas para o eventual problema do universo ter parâmetros soltos. Uma bastante intuitiva é a desta bolha de espaço-tempo ser apenas uma de infinitas, cobrindo, no conjunto, todas as combinações de valores para esses parâmetros. Naturalmente, aquela onde nós existimos tem de ser uma das que permitem a nossa existência, pela mesma razão que o planeta em que nascemos foi o único do sistema solar, aparentemente, que comporta vida. O Bernardo alega que isto não resolve o problema da afinação mas está enganado porque se há infinitos universos não é preciso afinar nada. Por muito improvável que seja a combinação de valores que permite a vida, entre infinitas bolhas de espaço-tempo será inevitável haver universos que comportem vida sem qualquer afinação prévia. Tem mais razão ao apontar que esta explicação «é ainda especulação sem suporte experimental» (1) mas isso não é uma objecção relevante. A hipótese deste universo ser único é igualmente especulativa e até menos plausível porque se é possível haver uma bolha de espaço-tempo então também deve ser possível haver outras. Não se justifica assumir que esta é a única. Além disso, a proposta do Bernardo, de que um deus criou este universo com os parâmetros certos, é igualmente especulativa. Finalmente, o próprio problema do universo exigir fine-tuning é especulativo. Apenas sabemos que os modelos que temos agora precisam de afinamento. Não se justifica para já concluir que todo o universo sofre do mesmo.

Resumindo, este argumento do Bernardo é um apelo à ignorância. Invoca Deus apenas porque não sabemos o que determina os parâmetros que deixamos soltos nos modelos. Com isto o Bernardo tenta demonstrar que “Deus existe” é a hipótese que maximiza a verosimilhança porque assim é mais provável o universo ser como é. Mas desmontar essa confusão exige explicar um pouco desse método de selecção de modelos e tem de ficar para a segunda parte.

*São mais de cem mas, na altura, só conheciam uns 60.

1- Bernardo Motta, Debate "Deus (não) existe?"
2- Para outros exemplos: Wikipedia, Martin Rees's Six Numbers
3- Wikipedia, Fine-tuned universe

sábado, novembro 23, 2013

Treta da semana: o rato.

Esta semana fez 85 anos que foi publicada pela primeira vez uma representação do Rato Mickey, no filme Steamboat Willie. Pela legislação em vigor na altura, isto conferia à Disney um monopólio de 28 anos sobre esta obra, renovável por mais 28 anos, se a obra fosse publicada com um aviso de copyright em conformidade com a lei. O que aparentemente não foi o caso (1). Fosse como fosse, quando Walt Disney criou este personagem, a lei conferia um monopólio sobre a obra por um período máximo de 56 anos. Foi esse o contrato. Em troca da Disney publicar e registar esta obra recebeu o direito exclusivo de a reproduzir e transformar até 1984. Mas, ao aproximar-se a data em que o Rato Mickey passaria ao domínio público, foi aprovado o Copyright Act of 1976(2) que estendeu retroactivamente o período de monopólio sobre estas obras de 56 anos para 75 anos. Assim, a sociedade prescindiu das obras por mais 19 anos sem receber qualquer contrapartida. Não se tratava apenas de um incentivo para a criação de obras novas mas também de uma recompensa a autores já falecidos, como Walt Disney. Ficou assim adiada para 2003 a entrada do Mickey no domínio público. Até 1998.

Em 1997 e 1998, a Disney contribuiu cerca de 800 mil dólares para campanhas políticas de senadores em comissões relevantes para o copyright, fossem democratas ou republicanos (3). Em 1998 o Copyright Term Extension Act aumentou o período do monopólio legal para 95 anos após a publicação da obra, novamente com efeitos retroactivos. O Mickey ficou assim “protegido” até 2023. Pelo menos. E isto não se passa apenas nos EUA. O lobbying destas empresas é internacional, por via de tratados internacionais e da OMPI. Ainda recentemente, cá em Portugal foi aprovada a Proposta de Lei 169/XII (4) que estende de 50 para 70 anos os “direitos conexos” dos intérpretes e executantes de fonogramas. Nem sequer são direitos de autor. É um monopólio concedido a artistas contratados para gravar a música.

Mas a culpa não é só do rato e dos seus amigos, como o Donald, o Pateta e companhia, que iriam cair no domínio público logo a seguir. O que se passa é ainda mais maquiavélico do que aumentar a duração do monopólio para proteger algumas obras mais lucrativas. O problema é a razão para essas obras serem tão lucrativas e é bem visível neste gráfico (6).



O gráfico mostra o número de edições novas à venda na Amazon em função da década em que a obra foi escrita. Os livros escritos antes de 1923* estão em domínio público e qualquer editora pode vendê-los. Os livros mais recentes estão sob copyright e só os detentores dos monopólios respectivos os podem editar. O mais saliente deste gráfico é a queda abrupta no número de edições novas quando se passa de obras no domínio público para obras sob copyright, na década de 1920. Ao contrário do propósito desta legislação, quando as editoras detêm direitos exclusivos sobre uma obra têm muito mais relutância em editá-la. O que acontece é que uma editora que detenha o monopólio sobre um conjunto de obras pode maximizar os lucros editando apenas algumas para reduzir a concorrência. O monopólio sobre a maioria das obras não serve para incentivar a venda mas apenas para evitar que outros distribuam ou transformem essas obras. Isto vale para livros, músicas e para os filmes da Disney. O período estabelecido em 1790 para estes monopólios foi de 28 anos. Se ainda fosse essa a duração do copyright, todos os filmes da Disney anteriores a 1985 estariam no domínio público, bem como os seus personagens e, se bem que a Disney já não ganhe muito a vender cópias do Herbie, da Branca de Neve ou do Tron original, a liberdade de distribuir esses clássicos e de os usar em obras novas traria muita concorrência que a Disney prefere não ter de enfrentar.

Ao contrário do que muitos defendem, o problema não está só na duração do copyright. É óbvio que quanto menos durar menor será este efeito nefasto. Mas o problema principal é que o sistema de incentivos pela concessão de monopólios sobre a cópia é mais prejudicial do que benéfico. Não só pela rapidez com que agora se rentabiliza o investimento – quando se estabeleceu um período de 28 anos de monopólio seria impensável uma obra render mil milhões de dólares no primeiro dia de vendas (7) – mas, principalmente, pela forma como os autores podem interagir com a audiência. Antes da industrialização da cópia, um músico ou escritor era como um cabeleireiro ou um escultor. Se queria ganhar mais dinheiro tinha de encontrar clientes ricos que comprassem o seu trabalho. Não pela venda do produto do seu trabalho mas pelo trabalho de criar esse produto. A indústria de distribuição mudou isto. Quem criava obras que pudessem ser reproduzidas ficou dependente dos industriais da cópia e o trabalho de criar algumas obras – livros e músicas, mas não de cozinhados ou penteados – passou a ser pago em função da cópia do produto final. Toda a legislação de copyright reflecte este conflito entre os distribuidores e certos tipos de autor, com clara vantagem para os primeiros porque a distribuição era o factor dominante.

A Internet mudou novamente esta relação. Agora, o autor pode vender o seu trabalho directamente a milhões de potenciais interessados sem depender de quem faz as cópias. Por isso, o que importa agora é a criatividade e não a reprodução mecânica da obra feita. A concessão de monopólios sobre a cópia financia o distribuidor à custa do autor e da sociedade, um mal que já não é necessário. Eliminar este sistema anacrónico iria exigir uma transição do modelo de negócio assente na cópia para a venda directa do trabalho do autor mas traria várias vantagens imediatas. Facilitaria muito o acesso à cultura; incentivaria a criação de novas obras por permitir a transformação de muito material que, neste momento, está legalmente inacessível; e corrigiria os efeitos nefastos das pressões que esta indústria tem exercido sobre os legisladores.

*À data em que o gráfico foi feito, em 2012.

1- Douglas A. Hedenkamp, Free mickey mouse: copyright notice, derivative works, and the copyright act of 1909
2- Wikipedia, Copyright Act of 1976
3- CNN All Politics, Disney In Washington: The Mouse That Roars
4- Wikipedia, Copyright Term Extension Act
5- Parlamento, Proposta de Lei 169/XII
6- Techdirt, Copyright Extension: A Way To Protect Hollywood From Having To Compete With The Past.
7- Pocket Lint, Call of Duty: Ghosts sales at over $1 billion on first day, beats GTA V - sort of

sexta-feira, novembro 22, 2013

O caso Pepsi.

A Pepsi sueca fez um anúncio com um boneco do Ronaldo amarrado à linha do comboio, o que gerou uma onda de protestos nas internets portuguesas. Em resposta, surgiu também um número considerável de críticas a esses protestos por darem demasiada atenção a insignificâncias na Suécia em detrimento do que se passa por cá. O diagnóstico consensual foi de que os portugueses não prestam atenção ao que importa porque, como escreveu o Raúl Santos, andam com «a cabeça [...] dentro do cú»(1). A página contra a Pepsi consegue 140 mil “likes” nos primeiros dias (2) quando «uma petição [da DECO para] acabar com as taxas injustas e imorais que os bancos cobram» teve apenas 81 mil assinaturas. «Hoje soube-se que o governo vai arcar com uma dívida de 17 milhões de Euros, que era do Luís Filipe Vieira ao BPN» e não há protestos. O diagnóstico do Raúl, como vários outros que tenho lido, é que as pessoas estão alheadas da realidade, que «não damos valor absolutamente NENHUM ao que é nosso» e que «queremos é futebol, imperial e tremoços.»(3)

Concordo que há aqui um problema e, quando comecei a ver várias pessoas a defender que a causa deste problema é a indiferença, insensatez ou mesmo cegueira generalizada do nosso povo até me pareceu que poderia ser essa a explicação certa. Afinal, entre os que votaram enganados e os que nem votaram, foi a maioria que contribuiu para termos este governo. Mas alguma experiência a lidar com pessoas iludidas fez-me estranhar a ausência de contraditório. Não vi ninguém a tentar justificar preocupar-se mais com o Ronaldo do que com a corrupção ou o estado em que o país está. Talvez porque não é essa a causa.

Há outra diferença entre a Pepsi e os 17 milhões de dívida do Luís Filipe Vieira, as comissões dos bancos ou o estado da nação. Castigar a Pepsi é fácil. Basta não beber mais desse refrigerante, um sacrifício modesto, e os accionistas recebem menos dividendos. Os outros problemas são mais graves mas é mais difícil cada um de nós agir contra os responsáveis. Podemos protestar, mas muita gente já começou a ver que ir para a rua fazer barulho preenche tempo no noticiário mas não tem grandes efeitos. Os 140 mil “likes” na página contra a Pepsi não são um protesto vazio como seriam 140 mil “likes” contra as comissões bancárias ou o Luís Filipe Vieira. No caso da Pepsi, a página é apenas um sinal visível de 140 mil pessoas a deixar de beber Pepsi. É esse protesto que é eficaz.

Também seria possível protestar contra a corrupção, o governo ou as comissões dos bancos de forma tão eficaz como este protesto contra a Pepsi. Só que, nesses casos, um protesto que os visados não pudessem ignorar exigiria medidas muito mais drásticas do que deixar de comprar refrigerantes de certa marca. Por exemplo, se cada pessoa pegasse num tijolo e partisse os vidros à agência bancária mais próxima os bancos certamente prestariam mais atenção do que a uma página com não sei quantos “likes”. Mas, naturalmente e ainda bem, há uma grande relutância da parte de qualquer pessoa normal em tomar este tipo de medidas. Esta parece-me ser a explicação mais plausível. O que leva mais pessoas a protestar em defesa do Ronaldo do que em defesa da justiça ou da decência nas contas públicas não é burrice nem apatia. É a natureza do protesto. No primeiro caso o protesto eficaz é fácil e, por isso, facilmente um grande número de pessoas alinha. Nos outros casos ou se protesta de forma socialmente aceitável e de nada serve ou, para ser um protesto eficaz, é preciso tomar medidas demasiado drásticas que não se justificam a não ser em situações extremas.

O que é preocupante é que, em Portugal e pela Europa, os políticos, a mando dos banqueiros, têm esticado cada vez mais a corda. Talvez muitos julguem que o povo anda iludido, desinteressado ou apático. Mas casos como este da Pepsi sugerem uma possibilidade diferente. As pessoas percebem o que se passa e estão dispostas a agir mas percebem também que, em muitos casos, as medidas eficazes terão de ser violentamente drásticas. Por isso, nesses casos, não agem. Não querem protestar em vão mas também não querem desatar a partir tudo. Por enquanto. Essa é a parte mais preocupante. Se a situação continuar a degradar-se e a pressão sobre as pessoas não deixar de aumentar, eventualmente o desespero será mais forte do que a relutância. Se quem está no poder assumir que a passividade se deve a falta de inteligência ou de percepção estará à espera de um lento acordar que talvez possa ser manipulado pela propaganda do costume. Por isso, não andará muito preocupado com os efeitos sociais da austeridade e de outras roubalheiras. Mas se esse modelo estiver errado a resposta não será gradual. Será súbita e explosiva. E, quando ocorrer, como aconteceu à Pepsi, será tarde demais para resolver o problema pedindo desculpas e prometendo mudar de rumo.

1- Raúl Santos, Pepsi, Cristiano Ronaldo e os Portugueses
2- Facebook, Nunca mais vou beber Pepsi
2- Raúl Santos, (Facebook)

segunda-feira, novembro 18, 2013

Omnitretas.

O Bernardo Motta, por alguma razão convencido de que o meu ateísmo se deve ao Richard Dawkins, recomendou-me que lesse autores filosoficamente mais sofisticados como o Edward Feser que, segundo o Bernardo, “limpa o chão” com o Dawkins. Em concreto, indicou-me um post do Feser criticando a alegada ignorância do Dawkins acerca da omnipotência e omnisciência do protagonista da ficção cristã. O problema que Dawkins aponta é que um ser omnisciente não tem o poder de mudar de ideias. Sendo um poder que nós temos, então um ser omnisciente não pode ser omnipotente. Eu diria até que será impotente, incapaz de mudar o curso de acções que já sabe inevitável, como se estivesse a ver um filme.

O Feser pretende “esclarecer” Dawkins começando por apontar que «para quase todos os teístas, “omnipotência” não implica o poder de gerar contradições (e.g. criar um quadrado redondo ou uma pedra tão pesada que nem um ser omnipotente a pode erguer)» (1). Isto é irrelevante porque o poder de mudar de ideias não é uma contradição da omnipotência. É apenas incompatível com a omnisciência. Mas é interessante porque põe em causa a omnipotência em si. Em primeiro lugar, parece-me muito pouco sofisticado, filosoficamente, apresentar como estabelecido que um ser omnipotente não pode gerar contradições só porque “quase todos os teístas” acreditam que é assim. Não me parece o tipo de coisa que seja legítimo decidir só pelo voto da maioria. Mas vamos assumir que mesmo um deus omnipotente é escravo deste axioma dos sistemas formais e, como Tomás de Aquino propôs, não pode fazer nada cuja descrição seja logicamente inconsistente. Ainda assim, há o problema dos restantes axiomas.

Será que um ser omnipotente pode calcular a raiz quadrada de -1 ou criar um triângulo cujos ângulos internos não somem 180º? Até ao século XVIII provavelmente diriam que não a ambas por ser contraditório que algo seja número e multiplicado por si próprio dê -1 ou que algo seja triângulo e os seus ângulos internos não somem 180º. Depois de Euler ter popularizado os números imaginários, a resposta à primeira já seria sim porque i é um número e é a raiz quadrada de -1 por definição. E com as geometrias não-euclideanas, a partir do século XIX, passou a ser possível haver triângulos cujos ângulos internos não somam 180º. Isto porque estas contradições só o são se usarmos certos axiomas. Com outros axiomas deixam de o ser e, na verdade, se abdicarmos do axioma da identidade nem sequer haverá contradições.

Outro problema é que podemos resolver cada contradição de várias formas diferentes. Por exemplo, se Deus tem o poder de erguer qualquer pedra, então não pode ter o poder de criar uma pedra impossível de erguer porque isto seria logicamente contraditório. Mas podemos resolver o problema ao contrário: se Deus tem o poder de criar qualquer tipo de pedra, inclusivamente uma pedra impossível de erguer, então não pode ter o poder de erguer qualquer pedra porque isso seria logicamente contraditório. Em ambos os casos Deus seria omnipotente, pela definição de Tomás de Aquino, porque em ambos os casos o seu poder só ficava limitado por contradições lógicas. Mas seriam duas omnipotências diferentes, a omnipotência de erguer qualquer pedra e a de criar qualquer pedra. Há infinitos casos destes. Por exemplo, a capacidade de criar varas tão compridas que sejam impossíveis de medir contra a capacidade de medir qualquer vara por muito comprida que seja. Ou a capacidade de criar cheiros tão pestilentos que não possa suportar contra a capacidade de suportar qualquer cheiro por muito pestilento que seja. Como consequência, há infinitas omnipotências diferentes e incomensuráveis. Nem se poder saber qual delas Deus terá nem porquê essa e não outra.

Mas a parte mais importante do post que o Bernardo recomendou é como resolve o conflito entre omnisciência e omnipotência, o problema de não poder mudar de ideias. «Deus é imutável e eterno. Ele não “muda de ideias” porque ele não muda sequer. […] Deus está completamente fora do tempo. […] Para Ele, toda a criação – incluindo todos os acontecimentos em todos os pontos do tempo – segue de um único acto criativo Seu». Isto é importante porque implica que o tempo não existe. Se a passagem do tempo presente vai tornando o futuro em passado então as verdades mudam e um ser omnisciente tem de ir mudando também para actualizar o que sabe. Dantes era verdade que eu tinha cinco anos mas agora já não é. Um ser imutável não podia saber, nessa altura, que eu tinha cinco anos e agora saber que já não tenho. Se existe um ser omnisciente e imutável então todas as verdades têm de ser imutáveis. Todo o universo tem de existir como uma forma fixa e imutável espalhada no espaço-tempo em vez de algo espacial que vai mudando com o tempo porque, se assim fosse, também o que é verdade mudaria e Deus teria de mudar. Mas se o universo é imutável e o tempo é uma ilusão então nada que dependa de mudança pode ser real. Acção, vontade, causalidade, intenção, culpa, mérito, nada disso pode existir se houver um ser omnisciente e imutável.

Com esta explicação, o Edward Feser não só confirmou que a omnisciência é incompatível com a omnipotência como também demonstrou que a omnisciência divina é incompatível com um universo dinâmico e tudo o que disso depende.

1- Edward Feser, Dawkins on omnipotence and omniscience

domingo, novembro 17, 2013

Treta da semana: Ordem de S. Miguel de Ala.

Fundada a 8 de Maio de 1171 por Afonso Henriques, também conhecido por “El-Rei”, consta que é a Ordem de Cavalaria mais antiga de Portugal. Foi fundada depois da vitória sobre os Sarracenos que cercaram Afonso Henriques em Santarém e é dedicada ao arcanjo Miguel « não só na devoção do Monarca pelo Arcanjo S. Miguel, como também por ter sido visto o braço de S. Miguel a combater pelos Cristãos no mais aceso da batalha, e quando estes estavam em alegada desvantagem…»(1) Infelizmente, o relato é omisso quanto ao método usado para identificar o braço do arcanjo.

Depois do regresso relutante de João VI a Portugal, o seu filho Pedro, deixado a cuidar das coisas no Brasil, decidiu que lá é que se estava bem e em 1822 declarou-se independente, a si e ao país, merecendo assim o cognome “o guterres”*. Em 1826, João VI adoeceu subitamente e, tendo nomeado a sua filha Isabel como regente, morreu de forma suspeita. Isabel depois abdicou a favor da sobrinha, Maria da Glória, filha do seu irmão Pedro, para que esta casasse com o outro irmão, Miguel, tio da noiva, deixando assim o país seguro nas mãos de um homem e garantindo um casamento incestuoso, com todos os benefícios genéticos que essa tradição trazia à realeza. Mas o plano não correu bem. O movimento absolutista em Portugal ganhou balanço, Miguel aproveitou para dar o dito por não dito e declarou-se rei, ponto. O Pedro chateou-se por a filha ficar sem reinado e já não casar com o tio (outros tempos, outros costumes), abdicou do trono do Brasil em favor do seu filho, contratou tropas Inglesas, invadiu os Açores e, daí, desatou à batatada ao irmão. Com a ajuda dos liberais derrotou Miguel, pôs a filha no trono e morreu de tuberculose. Um final anticlimático, é verdade, mas as coisas eram assim, naquele tempo, graças à chamada “medicina tradicional”. Mas o que nos interessa aqui é o Miguel. Exilado, sem sobrinha nem reino, decide criar «uma organização secreta(por oposição à Maçonaria) a qual denominou de “Ordem de São Miguel da Ala”. O Objectivo era “confundir” esta organização secreta com a Ordem de São Miguel da Ala, fundada por D. Afonso Henriques.» Criou assim um precedente para outra confusão mais recente.

«A 4 de Agosto de 1981, através de Escritura Pública foi restaurada a actividade social dos Cavaleiros da Ordem de São Miguel da Ala» por iniciativa de Nuno da Câmara Pereira. Durante dez anos, Duarte Pio de Bragança foi considerado “protector” desta ordem (2) mas depois as coisas azedaram. O Duarte reclama o trono por descender do tal Miguel do parágrafo anterior mas o Nuno defende que o verdadeiro rei de Portugal é um Pedro de Mendoça por descender da Ana, outra irmã do Miguel, do Pedro e da Isabel. Com aquela confusão toda, não me admira que quem dê a ponta de um chavelho por estas coisas ainda ande indeciso. Vai que não volta, o Duarte foi mesmo, declarou extinta a associação criada pelo Nuno e, em 2004, registou a sua própria «Real Ordem de São Miguel da Ala». Por muito que as moscas mudem há sempre tradições a manter.

O problema é que Duarte sobrestimou a força legal das suas pretensões a ser importante. Lá por ele declarar extinta uma associação não quer dizer que ela se extinga e como o Nuno tinha registado o nome e os símbolos da ordem no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, processou o Duarte por usurpação da sua propriedade intelectual. Agora o tribunal congelou ao Duarte «uma conta bancária com quase 96 mil euros e 17 imóveis e propriedades em seu nome.»(3)

O que me fascina nesta novela, além do ridículo intrínseco, é a forma tortuosa como tudo acaba por encaixar. O monarquismo assenta num ideal de nobreza e superioridade natural dos reis. Afonso Henriques, nobre pai de Portugal e assim por diante. Dizem defender esses valores de nobreza e justiça, que «Toda a Cavalaria é um serviço social e cívico em vista do bem comum da humanidade»(4). Mas o Afonso foi um guerreiro que matou e pilhou para obter terras e poder e toda aquela família era assim, a julgar pelo que fizeram uns aos outros. Pela história vê-se quase sempre a ganância e o apego ao poder como motivação principal para o que os reis faziam. Defender a justiça e o bem comum com base nisto seria uma contradição. Só que a contradição acaba por ser menor porque os seus actos, ao contrário das suas palavras, encaixam perfeitamente nesta tradição de sacanice, cobiça e ganância. O Nuno registou como sua propriedade um nome e simbologia que datam desde a origem de Portugal. O Duarte acha que não precisa respeitar a lei e que pode dissolver associações com um acenar do bigode. E temos um partido e movimento monárquico que nem sequer consegue decidir quem é o rei, se o que diz que é mas que descende do que foi deposto, se o outro que descende da irmã do deposto mas que, aparentemente, nem se quer meter no assunto. Se não votassem nesta gente até dava vontade de rir.



*Errata: aqui confundi o António Guterres com o Durão Barroso. Mas acho que faz pouca diferença (daí a confusão). Ambos ilustram a longa tradição governativa do meh, quero lá saber disto, vou antes por ali.

1- OSMA, Memorial
2- Wikipedia, Nuno da Câmara Pereira
3- Sol, Penhora de 100 mil euros a D. Duarte em julgamento
4- OMSA, Explicação da Cavalaria

quinta-feira, novembro 14, 2013

Sentir (aquele) deus.

«Smart: At the moment, seven Coast Guard cutters are converging on us. Would you believe it?
Mr Big: I find that hard to believe.
Smart: Hmmm . . . Would you believe six?
Mr Big: I don't think so.
Smart: How about two cops in a rowboat?»

(Get Smart)

As justificações para crer na existência de um deus abrangem uma vasta gama de categorias contraditórias. Num extremo, dizem que nada se pode observar desse deus e que só se pode provar formalmente a sua existência a partir de axiomas que o crente escolheu. Lá para o meio, o deus não pode ser observado mas dá indícios empíricos da sua existência por milagres progressivamente mais discretos, desde o dilúvio mundial a desviar, pouco, a bala que mataria o Papa ou tratar salpicos de fritura. No outro extremo, alegam que o deus é um dado empírico imediato, como a sede ou o amor, que se sente directamente e que, por isso, não se pode senão aceitar que existe. A contradição entre estas justificações não seria problema se cada crente escolhesse uma. Há tantos deuses diferentes que não é preciso atropelos. No entanto, é comum os apologistas religiosos tentarem todos estes tipos de justificação, em série, a ver se algum pega. O resultado conjunto acaba por ser ainda menos persuasivo do que cada uma das justificações individuais.

Por seu lado, mesmo individualmente estas justificações têm problemas e já abordei aqui muitas vezes os defeitos dos dois primeiros tipos. Não se prova a existência de um ser real como quem demonstra um teorema, partindo de axiomas arbitrários, e o deus milagreiro acaba por ser um deus das lacunas porque só há milagres no que não se compreende. Mas tenho descurado este último tipo de justificação, o de crer num deus porque se sente esse deus. A última vez que me lembro de ter discutido isto foi há uns anos, com o Alfredo Dinis (1), para apontar o problema de uma mera sensação não servir para fundamentar os dogmas religiosos. Uma coisa é entrar numa igreja e sentir a presença de alguém que não se vê. Outra bem diferente é sentir que se trata de Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, gerado do Pai antes de todos os séculos, da mesma substância do Pai, que encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, foi crucificado, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia e assim por diante. Não é plausível que uma sensação seja tão específica e detalhada. Mas há outros problemas.

O primeiro é que umas pessoas dizem sentir que existe um deus enquanto outras não sentem nada disso. Mesmo entre as que sentem não há consenso acerca de que deuses sentem ou quantos são. Sentir um deus é como ver auras. Há quem diga que vê auras coloridas à volta dos outros, conforme a personalidade ou estado de espírito mas, além de muita gente não ver aura nenhuma, aqueles que as dizem ver divergem nos detalhes que relatam. Assim, o mais razoável é explicar essas alegações por factores psicológicos ou sociológicos em vez de concluir que existem mesmo as tais auras. Com os deuses é a mesma coisa.

Em segundo lugar, mesmo sensações consensuais podem ser enganadoras. Por exemplo, qualquer pessoa verá luzes se fechar os olhos e os esfregar com força. Isso não prova que haja luzes dentro dos olhos. É apenas a forma do cérebro interpretar os impulsos provenientes dos neurónios da retina. Também é comum ter sonhos como o de um cão a morder-nos o braço e acordar em cima do braço dormente. Não por culpa do cão mas por uma fantasia do cérebro adormecido a interpretar os sinais nervosos do braço. Se bem que seja sempre pelos sentidos que apreendemos a realidade que nos rodeia, não é prudente saltar para uma conclusão com base apenas num tipo de experiência, sem confirmação independente. Nem nos raptos por extraterrestres, nem nos demónios e fadas e nem em deuses. Devemos confiar na confluência consistente de indícios em vez de confiar de imediato em sensações isoladas. O chavão “ver para crer” assume, incorrectamente, que se eu vir um elefante cor de rosa a esvoaçar à minha volta devo concluir que existem elefantes voadores cor de rosa mas o mais sensato, numa situação dessas, será consultar um neurologista.

Finalmente, a nossa percepção é fortemente influenciada pelas nossas expectativas. A comunicação entre o sistema nervoso periférico e o sistema nervoso central é bidireccional, muitas vezes até com mais informação do cérebro para os sentidos do que destes para o cérebro, o que condiciona muito o que os nossos sentidos nos dizem. Por exemplo, nas semanas a seguir à morte do meu pai vi-o várias vezes na rua e nos transportes públicos. De vez em quando, ao cruzar-me com alguém mesmo levemente parecido com o meu pai, o cérebro pregava-me essa partida e, por momentos, era a ele que eu via. Não é nada estranho que haja histórias de fantasmas em todas as culturas humanas, ou que haja quem alegue ter visto o Sol a rodopiar quando, movido pela fé, foi à Cova da Iria determinado a ver milagres. Também não é estranho que quem queira muito acreditar que um deus existe acabe por conseguir sentir a presença desse deus.

Sentir que um deus existe pode ser justificação suficiente para o crente. Aderir ou não a uma religião é uma opção subjectiva e nisso conta o que cada um quiser. Mas, dado o contexto e a falta de indícios independentes que o confirmem, não é evidência para a existência de Deus.

1- Experiência religiosa.

domingo, novembro 10, 2013

Treta da semana: toda a gente.

A Margarida Rebelo Pinto, escritora «introspectiva e mais centrada nas relações e nos afectos e, sobretudo, nas relações amorosas»(1), foi recentemente criticada pelo que disse na RTP acerca da situação económica e das manifestações contra o governo. Parte da culpa pela má figura é de quem se lembrou de lhe fazer perguntas sobre estas coisas. A senhora ia lá fazer publicidade ao seu último livro, uma colectânea de textos intitulada “Há sempre uma primeira vez” com o que a Margarida julga ter aprendido sobre o amor: «O melhor do amor é sabermos muito pouco sobre ele». Pedir-lhe que se pronunciasse sobre assuntos sérios era obviamente arriscado.

A Margarida disse «eu fico profundamente triste em ver este tipo de manifestações, que demonstram falta de civismo das pessoas que vão interromper e tentar perturbar o trabalho daqueles que neste momento governam o país». Pelo contexto (1), percebe-se que se referia ás manifestações dentro da Assembleia da República, interrompendo o discurso do Paulo Portas. Não acho falta de civismo porque a perturbação é mínima e a mensagem é mais eficaz se os visados não podem fingir que não ouvem. Além disso, a Assembleia da República é de todos os cidadãos. Mas esta é uma divergência legítima entre quem dá mais valor cívico à lei e quem dá mais valor à justiça. Não posso condenar a Margarida só por ter uma opinião diferente da minha acerca disto.

Mais grave é a Margarida papaguear a ladainha de que a culpa é dos governos anteriores e alegar que temos de confiar no governo que elegemos. Aqui a divergência já é mais séria porque, objectivamente, esta crise não originou no sector público. É fruto de surtos desregulados de especulação bancária e foi agravada pelo sistema monetário europeu e os desequilíbrios comerciais que dele resultam. Também o governo que temos, além das alterações que já sofreu, só foi eleito graças à promessa de fazer o contrário do que está a fazer. Estas manifestações não surgem por «falta de memória e falta de inteligência». Pelo contrário, muitos manifestam-se precisamente porque têm boa memória e porque não são estúpidos.

Mas o mais grave entre os disparates da Margarida foi, curiosamente, o menos criticado: «como todos os cidadãos, eu também tive cortes. Toda a gente teve cortes.» É grave, não por ser mentira, porque na maior parte dos casos é bem verdade, mas por fingir que não percebe as implicações dramáticas de toda a gente ter cortes. Esta incompreensão exige ou uma extraordinária falta de inteligência ou uma desonestidade, infelizmente, bastante mais ordinária.

Excepto os milionários que têm beneficiado desta política de austeridade, todos tiveram cortes. Mas nem todos tiveram cortes como a Margarida teve, ou como teve a Isabel Jonet há tempos com a rábula dos bifes. Porque cortar no que é supérfluo é muito diferente de ter de cortar no que é necessário. Eu gasto menos do que gastava há uns anos mas pouca diferença me faz. Deixei de ir ao cinema, raramente como em restaurantes e vamos de férias para a terrinha. Grande coisa. Há menos folga no orçamento mas o dia-a-dia é praticamente igual. O problema de todos terem cortes é que inclui muitos que já não tinham onde cortar. Num artigo imbecil no Público, a Sofia Silva encena um diálogo cor de rosa entre um casal que organiza o seu orçamento cortando no ginásio (vão correr juntos, que romântico), usando só um carro e pedindo aos pais que tragam carne lá da terra, onde é mais barata (2). O diálogo seria bem diferente se tivessem de optar entre os medicamentos e a comida dos filhos.

A cegueira selectiva de dizer “toda a gente teve cortes” sem ver que muita gente já não tinha onde cortar permite também fechar os olhos ao efeito global desses cortes. A mim, pouca diferença fez deixar de ir ao cinema ou ao restaurante. Mas se centenas de milhares de pessoas como eu cortam nessas coisas, muita gente que trabalha nos cinemas, nos restaurantes e em todo o comércio que fornece esse sector perde a sua única fonte de rendimento. Há 838 mil desempregados (3), já descontando os que emigraram. Em geral, não é gente preguiçosa que tenha vivido acima das suas possibilidades, esbanjado tudo em bifes, e que esteja agora a pagar os seus excessos. Muitos são simplesmente vítimas dos cortes de toda a gente. Não exijo que a Margarida perceba muito de economia, mas parece-me exagero não perceber sequer que os gastos de uns são o salário dos outros e que milhões de pessoas a cortar na despesa faz muitos ficarem sem rendimento. Dizer “toda a gente corta” como se fosse uma mera inconveniência não pode ser apenas ignorância. Não deve sequer ser falta de inteligência porque tinha de ser uma falta muito grande. Parece-me que tem mesmo de ser egoísmo e maldade.

1- YouTube, MARGARIDA REBELO PINTO comenta atualidade e falta ao respeito a todos os Portugueses (02Nov2013)
2- Público, Planear o orçamento familiar e aumentar a resiliência das famílias
3- INE, Estatísticas do Emprego - 3.º Trimestre de 2013

sexta-feira, novembro 08, 2013

Complicado.



Segundo o Bernardo Motta, esta imagem publicada pela Richard Dawkins Foundation for Reason and Science apenas demonstra uma enorme ignorância. Tão grande, de facto, que quando pedi ao Bernardo que me explicasse o que está errado na imagem ele respondeu-me que não seria possível porque eu sou demasiado ignorante acerca do cristianismo para que ele me esclareça acerca do cristianismo. O cristianismo, explicou o Bernardo, é como a física, a química e a biologia. São disciplinas complexas, que exigem anos de estudo e o Bernardo não pode explicar o pecado original a quem não aceitar primeiro que existe um deus, que é o deus do Bernardo, que esse deus se sacrificou por nós e mais uma data de coisas. É uma forma conveniente de descartar objecções como mera ignorância ao mesmo tempo que se cria uma ilusão de erudição profunda. É especialmente útil pelo paralelo com a ciência, que toda a gente sabe ser uma coisa complicada, parecendo assim uma justificação mais legítima por analogia. No entanto, é uma grande treta. A complexidade da teologia é muito diferente da complexidade da ciência.

As teorias e os modelos científicos são complexos e é mesmo preciso anos de estudo para se perceber os detalhes. As narrativas dos teólogos também são complexas e nem uma vida chega para conhecer em pormenor as resmas de papel que já escreveram sobre estes assuntos. Mas o paralelo acaba aí. Enquanto a ciência tenta descrever a realidade, a teologia apenas explora as consequências das suas próprias premissas e isso faz toda a diferença. Por um lado, a ciência tem de manter sempre alguma relação, mesmo que indirecta, com a realidade que podemos observar, o que dá sempre pontos de referência que se pode partilhar com quem levante objecções aos modelos científicos. Para perceber em detalhe os modelos da termodinâmica ou da genética de populações é preciso alguns conhecimentos que a maioria dos leigos não tem, mas para explicar princípios gerais pode-se sempre recorrer a exemplos concretos como o motor do automóvel ou a resistência aos antibióticos. Por outro lado, a ciência não inclui apenas o conhecimento dos factos mas também o conhecimento de como se apurou esses factos. Por trás de cada teoria científica há um encadeamento histórico e cumulativo de descobertas que se pode usar para esclarecer mesmo quem ainda não esteja a par dos detalhes mais recentes. A epidemiologia moderna é muito complexa mas as experiências de Pasteur e Koch, por exemplo, são fáceis de compreender mesmo para leigos. A dificuldade do Bernardo em justificar a doutrina do pecado original, do nascimento imaculado de Maria e do sacrifício de Jesus não deriva da complexidade da teologia mas da ausência de ligação entre estas doutrinas e a realidade observável e a incompreensão de como essas coisas poderiam ter sido descobertas.

Este problema não é exclusivo da teologia. É inevitável em qualquer construção conceptual que esteja desligada de validação empírica e que, por isso, não faça sentido quando aplicada à realidade. Por exemplo, é irrealista que o Peter Parker tenha adquirido poderes especiais pela picada de uma aranha radioactiva. Um fanático da Marvel poderia argumentar o mesmo que o Bernardo, com a mesma legitimidade: é uma objecção ignorante porque as narrativas acerca do Homem-Aranha somam milhares de volumes e o universo Marvel é muito complexo. Por exemplo, na Contra-Terra o Peter Parker morreu por exposição excessiva à radioactividade, na série Ultimate adquiriu os poderes pela picada de uma aranha transgénica e não radioactiva e na série Marvel 1602, Peter Parquagh, nascido quatro séculos antes do seu quase-homónimo, não tem super poderes. Assim, o fanático da Marvel podia esquivar-se, como faz o Bernardo, descartando a crítica como mera ignorância e mandando o descrente ler uma carrada de livros até passar a acreditar. Só que isto em nada contribuiria para resolver o problema inicial de que, na realidade, uma picada de aranha radioactiva não dá poderes.

Um dos dogmas fundamentais do cristianismo é este de todos os humanos nascerem com o pecado original. Excepto Maria, que Deus decidiu criar sem pecado para poder ser mãe do filho dele que era ele próprio, para depois morrer e assim perdoar o pecado com o qual ele cria cada humano. Em vez de fazer todos nascerem sem pecado, como Maria. É inegável que, ao longo de séculos, muita gente inteligente fez o possível por acreditar nisto. Como resultado desse esforço, há muitas narrativas extensas que tentam dar sentido a este absurdo. Mas todas sofrem dos mesmos defeitos das histórias do Homem-Aranha. Primeiro, não têm qualquer relação evidente com aspectos observáveis da realidade. E, em segundo lugar, simplesmente alegam que é assim sem explicarem como chegaram a tais conclusões. É por isso, e não pela complexidade das narrativas, que o Bernardo não consegue justificar estas coisas a quem não partilhe a fé dele. E é por isso que ler essas narrativas todas também não adianta de nada a quem não acreditar, à partida, nestes dogmas. Sem qualquer relação com o que se pode observar e sem se perceber como descobriram estas coisas, a teologia tem como único fundamento as próprias premissas que quer justificar. Tal como a história do Homem-Aranha, é assim porque faz de conta que é assim. As diferenças entre a Marvel e a teologia derivam apenas dos modelos de negócio. A Marvel vende os seus livros como obras de ficção e, por isso, pode admitir que é tudo fantasia. Como as religiões só vendem se fingirem ser verdade nem essa verdade podem ter.

domingo, novembro 03, 2013

Treta da semana: o guião.

O guião para “um Estado melhor” que o vice-presidente tem andado a preparar há uma data de tempo é, formalmente, uma bosta. A forma do documento, da sua estrutura e redacção às referências bibliográficas, faz parecer que foi depositado no papel com o mesmo cuidado com que um ruminante deposita na relva a obra da sua digestão. E, a julgar pelo conteúdo, a vaca vivia em Fukushima.

Segundo o Paulo Portas, a crise deveu-se ao excesso de despesa e «a totalidade da receita em IRS e IRC – os impostos pagos por trabalhadores e empresas, exceptuando, para efeitos comparativos, os que têm origem nos descontos dos funcionários públicos – não chegam senão para pagar 90% da folha salarial do Estado» (1). A conta abstrusa é pouco informativa. Em 2013, a Administração Pública gastará 16 mil milhões de euros em pessoal. A receita total será de 74 mil milhões de euros, dos quais 20 mil milhões serão em impostos directos. O défice previsto é de 11 mil milhões de euros e, para efeitos comparativos, 8 mil milhões serão só em “Juros e Outros Encargos” (2, quadro III.1.2, pg 91). A ideia que quer transmitir, com esta passagem do excesso de despesa à insinuação de que os impostos não chegam para os salários, serve obviamente para justificar que se continue a cortar nos salários. Mas é tudo aldrabice. O défice disparou devido aos problemas na economia privada, o que abateu a receita fiscal e aumentou as prestações sociais. Por exemplo, de 2008 para 2009 a receita fiscal caiu 5 mil milhões de euros enquanto o gasto em transferências subiu quase 5 mil milhões de euros. A despesa com salários, por seu lado, foi máxima em 2005, com 20,5 mil milhões de euros, e tem vindo a diminuir na maior parte dos anos. Em 2012 foi de 16,5 mil milhões de euros, menos do que no ano 2000 mesmo sem contar com a inflação (3).

Outro embuste é o de conter a despesa pública para«libertar recursos para o crescimento da economia real». A despesa pública é o rendimento directo de todos os agentes que vendem bens e serviços ao Estado e o rendimento indirecto de todos os que vendem bens e serviços a esses agentes. Se o Estado reduzir a despesa quando o sector privado está em crescimento, o impacto negativo pode não ser grande porque há outros rendimentos que compensam esses cortes. Mas quando o sector privado está endividado e cada agente tenta poupar, se o Estado também não gasta então ninguém poupa e ninguém consegue pagar dívidas. Como resultado a economia contrai e aumenta o peso relativo das dívidas. Isto não é ideologia. É álgebra. O dinheiro que uns ganham é o dinheiro que outros gastam e se ninguém gasta ninguém ganha.

O que nos traz à parte mais radioactiva. Uma das propostas deste guião é que se altere a Constituição para incluir a “regra de ouro” da disciplina orçamental acordada no Tratado de Estabilidade. Esta regra limita o défice estrutural para 0.5% do PIB, com eventuais excepções para emergências económicas. É uma regra vaga mas, se estiver inscrita na Constituição, esta ideologia orçamental ficará ao nível dos nossos direitos fundamentais. O que é especialmente preocupante porque o princípio é disparatado. O Estado gastar ou poupar só em sintonia com o sector privado é tão inteligente como inclinar a mota para o lado de fora da curva.

De resto, há muitas banalidades como «investimento nos meios de combate à corrupção, avaliação das questões de conflito e registo de interesses, no quadro das funções decisórias e consultivas nas Administrações» e frases estranhas como «Reformar o Estado, é racionalizar as suas entidades» que fazem pensar que o guião era inicialmente um discurso, com as vírgulas a marcar a pausa para ênfase, e nem sequer se deram ao trabalho de rever a gramática antes de o entregar. Mas, no meio dessa palha, escondem-se algumas propostas radioactivas que até contrariam a intenção inicialmente expressa de equilibrar as contas do Estado. Por exemplo, «um novo ciclo de contratos de associação [para haver] uma maior abertura da oferta e uma saudável concorrência de projetos de escola, mediante adequada contratualização» e «a aplicação do chamado “cheque-ensino”». Ou seja, privatizar e estratificar o ensino, sustentando do erário escolas boas para ricos nos sítios onde os ricos vivem e deixando menos dinheiro para pagar escolas onde só vivam pobres. Outra proposta nesta linha é a de «Uma reforma da segurança social que faça evoluir, parcialmente, o sistema para uma lógica de capitalização [para] garantir maior liberdade de escolha». Mais uma vez, é a liberdade dos ricos contribuírem com menos e dos pobres ficarem ainda mais pobres. Estas propostas são mera expressão da doutrina moral da direita, segundo a qual os ricos só são ricos porque se esforçam, os pobres só são pobres por preguiça e se toda a gente trabalhasse seriam todos mais ricos do que a média.

Em suma, o nosso vice primeiro ministro presenteou-nos com trinta páginas esticadas para cem pelo tamanho da letra e espaços em branco, preenchidas com banalidades, salpicadas com algumas medidas para agravar a desigualdade – o principal problema que enfrentamos – e que começam com uma introdução cheia de alegações falsas e acabam com as seguintes referências bibliográficas: «As fontes utilizadas neste documento são: EUROSTAT, INE, Banco de Portugal, Ministério das Finanças – OE 2014, DEO 2013/2017, Relatório PREMAC 2011, Ministério da economia – Estratégia para o Crescimento, Emprego e Fomento Industrial, Secretaria de Estado da Administração Local, OCDE, FMI, artigos de opinião, entre outras.» A única mensagem clara neste documento é que o vice primeiro ministro se está a cagar para todos nós. O que até se compreende, visto que foi eleito para o segundo cargo mais importante do governo com apenas 11.7% dos votos válidos (4).

1- Governo de Portugal, UM ESTADO MELHOR - GUIÃO PARA A REFORMA DO ESTADO
2- DGO, Proposta de Orçamento do Estado 2014
3- Pordata, Administrações Públicas: despesas por tipo, e Receitas do Estado: execução orçamental
4- DGAI, Legislativas 2011.