sexta-feira, outubro 11, 2013

Treta da semana (passada): o Kit Amor Eterno.

No site da Maria Helena, famosa astróloga da SIC e arredores, está à venda um «Kit Amor Eterno». Alegadamente, é «o kit ideal para quem anseia que a sua relação navegue em águas calmas e apaixonadas»(1). A solução para um dos maiores e mais antigos problemas da humanidade é espantosamente simples. Ferve-se um terço do conteúdo (mistério) do pacote, mistura-se num litro de água, entorna-se «do pescoço para baixo» no final do duche e permite-se «que as boas vibrações percorram todo o [...] corpo, emoções e espírito». Depois de queimar umas velas e rezar umas rezas consegue-se a almejada relação calma e apaixonada. Seja lá o que isso for. E só por 65€. Também há um kit da riqueza que, compreensivelmente, custa mais 10€, «uma ajuda indispensável para quem necessita de ganhar dinheiro e de organizar as suas finanças»(2). Faz sentido. A primeira coisa a fazer quando precisamos de dinheiro e de organizar as finanças é gastar €75 num pacote de ervas e umas pedrinhas. À parte de substituir rezas por cristais – é de mau gosto pedir dinheiro a Deus, se bem que em sentido contrário seja aparentemente aceitável – de resto funciona da mesma maneira. Cházinho, pescoço para baixo, vibrações e já está.

A julgar por uma deprimente amostra do programa da Maria Helena, os poucos minutos que consegui ver, deve haver muita gente a acreditar nestas coisas. Telefonam para a SIC com problemas de relações amorosas, incertezas acerca dos seus negócios e outras questões complexas. Após uns segundos de conversa, a Maria Helena debita confiante a primeira solução que lhe ocorre, justificada pela carta do otário, do pingarelho ou a sena de paus. O mais preocupante é que a vítima o espectador agradece em vez de mandar aquilo tudo a uma barda qualquer.

Em parte, isto deve-se à ilusão de autoridade. Tanto o programa como o site são desenhados para parecer que a Maria Helena tem um conhecimento profundo destas matérias e que as suas recomendações são o fruto maduro e ponderado dessa sabedoria em vez da excreção automática de preconceitos mal digeridos. Mas isto não explica tudo. Mesmo alguém enganado pela falsa autoridade da Maria Helena devia ficar encravado no “como”. Como é que o Kit do Amor Eterno funciona? Vibrações e tal, muito bem, mas se uma relação tem problemas porque discutem muito e as coisas já não são como eram, importa saber o que o tal Kit vai fazer. Vai modificar quem o usa de forma a concordar com tudo o que o outro diz? Vai influenciar o outro de forma a conformar-se com os desejos do utilizador do Kit? Seja qual for o mecanismo de acção, é de desconfiar que o resultado não será um amor real. Se o Kit do Amor Eterno viesse em comprimidos para pôr, sorrateiramente, na bebida da pessoa amada, qualquer pessoa com escrúpulos se preocuparia em saber que efeitos os comprimidos teriam. Mas sendo espiritual, com rezas e ervinhas, já ninguém pensa no “como”.

Penso que um factor ainda mais importante do que a falácia da falsa autoridade é o hábito cultural de fingir que há duas realidades separadas e com regras diferentes. Uma designam por material e é composta por aquilo que podemos constatar ser real, no sentido de resistir ás nossas crenças. O carro que não anda, a chuva, o guarda-chuva e o vento que lhe torce as varetas. Nesse conjunto é consensual a importância de questionar e perceber como as coisas funcionam. É por isso tão difícil haver mecânica automóvel homeopática ou canalização astrológica; se bem que mecânicos e canalizadores também aldrabem nas facturas, têm de ficar aquém de vender kits de vibrações positivas. A “outra realidade”, a do espiritual, do sagrado, dos milagres e da magia, é totalmente diferente. Cede por todos os lados, sem oferecer resistência a qualquer crença, e nem se lhe vislumbra um “como” porque é tudo faz de conta.

Por causa deste hábito de não questionar como as coisas funcionam quando se trata de rezas, deuses, mezinhas com vibrações positivas ou kits do amor eterno, deixa de haver defesas contra a falsa autoridade. E são precisamente aqueles cuja actividade profissional depende de uma falsa autoridade que propagam esta ideia das duas realidades: aquela a que chamam material, na qual as coisas são o que são e onde a perícia pode ser testada de forma objectiva; e a outra a que chamam espiritual, onde tudo é como se quiser crer e onde para ser perito basta dar impressão disso. Alguns leitores alegam que eu não devia juntar, na mesma categoria, superstições como a astrologia e o cristianismo. É por isto que as junto. As religiões dominantes não só são as principais beneficiárias desta aldrabice de fingir que há uma “outra realidade” acerca da qual nada se pode verificar mas acerca da qual os sacerdotes são peritos. As religiões dominantes são também as principais propagadoras deste hábito de não pensar nos mecanismos quando se lida com essa alegada realidade. A maioria das vítimas de negócios como o do "kit amor eterno" são pessoas treinadas desde infância a suspender o bom senso quando se lhes fala de espírito, orações, bênçãos e afins. Treinadas na igreja, na catequese e na cumunhão, em princípio para proveito dos profissionais da religião mas, na prática, também para benefício de qualquer um que se aproveite da sua credulidade para lhes vender tretas.

1- Maria Helena, loja, Kit Amor Eterno
2- Maria Helena, loja, Kit da Riqueza

19 comentários:

  1. "se bem que mecânicos e canalizadores também aldrabem nas facturas":

    falácia da generalização

    "Por causa deste hábito de não questionar como as coisas funcionam quando se trata de rezas"

    ou quando não se questiona o nada absoluto quântico (faltou este exemplo) suspendendo o bom senso e o pensamento crítico

    Este post é um exemplo feliz de como um não especialista em amor eterno opina sobre amor eterno (para os ateus a quem a natureza não dotou duma inteligência superior apesar deles estarem convencidos do contrário: usei um recurso estilistico denominado "ironia")

    Abraço e bom fim-de-semana

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  2. Ludwig,
    Os dois posts anteriores são para encadernar. Este vai directo ao caixote de lixo. Não tem ponta por onde se lhe pegue.
    E já não está entre nós quem tinha paciência para dar troco a coisas destas.

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  3. Nuno Gaspar,

    «Os dois posts anteriores são para encadernar. Este vai directo ao caixote de lixo. Não tem ponta por onde se lhe pegue.»

    Pois, para mim, o que importa é sempre o mérito da justificação e não a mera asserção de que é lixo. Isso vale tanto como simplesmente afirmar que o feto não é pessoa.

    António Parente,

    Este post não foi sobre o amor eterno. Foi sobre as dúvidas que tenho acerca da eficácia do Kit que a senhora vende. Se achas que estas dúvidas são injustificadas, terei todo o interesse em saber porquê. Infelizmente, parece que vocês desse lado gostam mais de afirmar do que de justificar. Será mais um efeito das rezas? ;)

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    1. Claro que não, Ludwig! Como não rezas, não sabes os efeitos das rezas, apenas podes especular,,, ;-)

      O post que escreveste é do tipo "Ludwig ensina o povo", uma série leve, estilo "correio da manhã". Penso que deverias escrevê-lo com mais atenção dado que como professor de pensamento crítico não deves cometer erros básicos que condenarias nos teus alunos... :-)

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  4. "Foi sobre as dúvidas que tenho acerca da eficácia do Kit que a senhora vende."

    Sobre isso ninguém tem dúvidas, Ludwig.
    Pegas em qualquer espantalho que te aparece à frente e tratas de baldear água ao teu moinho. Tens a mania de tratar pelo mesmo nome e meter no mesmo saco coisas que não têm nada a ver umas com as outras. Fazia-te bem largar o básico e ir este fim-de-semana a Valadares http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3472395&seccao=Anselmo%20Borges&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=1

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  5. E Maria Helenas há muitas
    http://www.youtube.com/watch?v=BoncJBrrdQ8

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  6. Nuno Gaspar,

    O que defendo aqui é, resumidamente:

    1- que as teologias alegam ter como domínio uma realidade acerca da qual não pode haver considerações sobre mecanismos. Os milagres, o espiritual, o divino, simplesmente são sem que se possa sequer perguntar como funcionam.

    2- as astrologias, macumbas, tarots e afins fazem exactamente o mesmo.

    3- isto torna impossível distinguir objectivamente os falsos peritos de algum que fosse um perito legítimo, mesmo que tal coisa existisse.

    O que está aqui errado?

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  7. Ludwig,

    Começo por não entender o queres dizer com o ponto 1. Tal como os ateísmos, teologias há muitas. Podem até nem ter nada para alegar, podem até ser uma expressão da incapacidade de alegar o que quer que seja em relação a certos domínios. E milagres, espiritual e divino podem ter significados muito diferentes entre elas. E outras até se podem caracterizar mesmo por não ter qualquer espécie de peritos. Não encontro sentido no que escreveste.

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  8. Além de que há muita gente a fazer alegações sobre realidades acercas das quais não pode haver considerações sobre mecanismos. Ateístas fundamentalistas não menos que astrólogos ou pastores evangélicos.

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  9. Nuno Gaspar,

    «Podem até nem ter nada para alegar, podem até ser uma expressão da incapacidade de alegar o que quer que seja em relação a certos domínios.»

    A fé, talvez. Mas as teologias não. Teologia vem das palavras "deus" e "palavra", e designa precisamente um logos acerca de um ou mais theos. Alguma coisa tem de dizer. Até porque se não dissesse nada não haveria justificação para ter sacerdotes profissionais.

    «Além de que há muita gente a fazer alegações sobre realidades acercas das quais não pode haver considerações sobre mecanismos.»

    Sim. Mas as minhas alegações são acerca da legitimidade epistémica de quem faz esse tipo de alegações.

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  10. Ludwig,

    "Alguma coisa tem de dizer."

    Sim. Dizer que não se pode dizer nada já é dizer alguma coisa. A teologia negativa é uma teologia como as outras.
    Tu insistes nessa ideia dos sacerdotes profissionais, carreira, ganhar dinheiro e tal mas tu é que devias sobreviver com aquilo que muitos que decidiram dedicar-se a tempo inteiro à consequência de uma visão do mundo em que acreditam têm para viver.

    "as minhas alegações são acerca da legitimidade epistémica de quem faz esse tipo de alegações"

    E qual é a epistemologia que te legitima a escarnecer de maneiras de olhar para o mundo, e suas linguagens, que não partilhas? Ou também és dono da objectividade?

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  11. NG:

    Básicamente não deves acreditar em coisas para as quais não tens razões. E sentimentos, palpites, fezadas e até opiniões não são razões.

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  12. E quem é a autoridade que determina que "não deves acreditar em coisas para as quais não tens razões"? O João C.?

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  13. António,

    «E quem é a autoridade que determina que "não deves acreditar em coisas para as quais não tens razões"?»

    Melhor que qualquer autoridade são os resultados em si. E mesmo uma análise estatística elementar mostra que as crenças infundadas têm uma taxa de erro muito maior do que as crenças com fundamento.

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    1. E onde está essa análise estatística elementar, Ludwig?

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  14. António,

    «E quem é a autoridade que determina que "não deves acreditar em coisas para as quais não tens razões"?»

    Melhor que qualquer autoridade são os resultados em si. E mesmo uma análise estatística elementar mostra que as crenças infundadas têm uma taxa de erro muito maior do que as crenças com fundamento.

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    1. E onde está essa análise estatística elementar, Ludwig?

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  15. João,

    "Basicamente não deves acreditar em coisas para as quais não tens razões"

    Esse é o erro da primeira aula de pensamento crítico do Ludwig. Acreditar não é nenhuma decisão. Ninguém consegue decidir acreditar no que apenas vê razões para acreditar o contrário. A crendice pseudo-científica neoateísta fundamentalista é que se auto-satisfaz à primeira sem vislumbrar a equipolência do cepticismo clássico.

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  16. Coitado do Ludwig Krippahl! Está metido num sarilho: tentar explicar a essência das coisas, com argumentos racionais e lógicos, a quem desconhece o uso da razão e os princípios da Lógica.
    Eu passei por aqui só para perguntar a Ludwig Krippahl se ele sabe se o Kit do Amor funciona para sempre ou se os seus efeitos são limitados no tempo e é preciso comprar outro pacote passadas uma semanas. E, nesta última hipótese, se a cessação dos efeitos é instantânea ou se o poder do kit vai decaindo lentamente. Por exemplo, na primeira semana, o marido ama loucamente a mulher que exala o perfume inebriante do kit do amor, aromatizado com os odores de santidade que se inculcaram no seu corpo com as rezas. Na segunda semana, os vapores do kit começam a misturar-se com o suor das axilas da senhora e, mesmo com o uso diário de «rexona», o seu poder começa a decair. na terceira, o marido começa a olhar para as pernas das outras gajas. Ao fim de um mês a coisa só lá vai com um Kit novo. Pelo menos, até aparecer o «Kit do Amor Plus», com nova fórmula melhorada.

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