sábado, setembro 07, 2013

Fanatismo.

De vez em quando acusam-me de ser um ateu fanático. Normalmente, defendo-me apontando que escrever opiniões num blog é diferente da violência dos terroristas, da inquisição ou das claques de futebol. Mas agora o Helder Sanches fez-me perceber um aspecto mais fundamental do fanatismo. Se bem que seja preciso ser-se fanático para chegar a tais extremos de violência, também se pode ser fanático sem se ser violento. O Helder escreveu que está farto de «discussões sobre ateísmo por causa de ateus» que ele considera «fanáticos e irracionais»(1). Como discordámos recentemente acerca das afirmações do Dawkins (2), que indignaram o Helder, talvez a crítica também me seja dirigida. Ou talvez não. Seja como for, este “fanáticos e irracionais” ajuda a compreender porque é que o fanatismo é um problema também entre os ateus.

Quando fundamentamos uma opinião em razões, a opinião fica separada do que somos. Mesmo se as razões forem subjectivas. Se alguém se declara benfiquista porque gosta do Benfica, subentende-se que pode mudar de opinião se deixar de gostar do Benfica. O gosto e o afecto pelo Benfica são externos ao seu “eu” e podem mudar sem qualquer crise de identidade. Mas o benfiquista para sempre, até morrer, aconteça o que acontecer, encara o seu “benfiquismo” como parte intrínseca da sua pessoa, independente de quaisquer razões. É o tal fanatismo irracional a que o Helder alude. Ou seja, a diferença fundamental é que o fanático considera que a sua opinião é uma parte imutável e inalienável de si enquanto que quem não é fanático reconhece que a opinião não é a pessoa mas sim algo que a pessoa pode mudar.

Antes de continuar a exegese do texto do Helder, queria fazer um desvio por dois pontos que, apesar de tangenciais, me parecem merecer alguma consideração. O primeiro é que o fanatismo não depende do entusiasmo com que se defende uma posição. Ambos os benfiquistas se podem levantar e gritar com o mesmo júbilo quando o Benfica marca golo, mesmo que um seja fanático e o outro não. O fanatismo está apenas naquela confusão entre pessoa e opinião que surge por se descurar as razões. Ninguém é fanático só por gostar muito de alguma coisa. O segundo ponto é que, apesar do fanático considerar que o seu “ismo” faz parte do seu ser, na verdade nunca faz. O fanático também é capaz de mudar de ideias e só será fanático enquanto não perceber que tem essa capacidade. Um disparate recente do Gonçalo Portocarrero de Almada ilustra este ponto. O Gonçalo exige que o casamento civil seja indissolúvel para que os ateus tenham os mesmos direitos que os católicos. A justificação é que o casamento católico mantém os católicos casados mesmo que já não queiram, um “direito” que o ateu não tem (3). O erro do Gonçalo é assumir que o católico não pode deixar de ser católico. É a tal confusão entre opinião e pessoa que caracteriza o fanatismo. Na verdade, o casamento do católico é tão rescindível como o do ateu. Ambos duram até que as pessoas envolvidas mudem de ideias.

Voltando ao post do Helder, aceito a ideia de que o fanatismo é um problema tanto entre ateus como entre crentes. No caso dos ateus, e dos crentes de cá, não é um problema tão grave como as chacinas e barbaridades que os fanáticos violentos fazem em nome das suas religiões, tradições e ideologias políticas noutros países. Ainda assim, a dificuldade em distinguir entre pessoas e opiniões dificulta muito o diálogo. Por exemplo, o Helder critica os “novos-ateus” porque «consideram-se hoje superiores aos crentes, em inteligência, em moral, em cidadania», afirmando que é «uma atitude desinteressante com a qual não quero ser sequer confundido». Eu considero que assumir que os deuses são fictícios e que somos responsáveis pelo que fazemos é eticamente preferível e objectivamente mais correcto do que acreditar que vivemos sob o jugo de seres sobrenaturais e que temos de nos portar bem para evitar um castigo na outra vida. Não sendo fanático, não considero que ter uma opinião diferente da minha seja intolerância ou um ataque pessoal nem considero que a minha opinião ser mais correcta do que as alternativas implique que eu seja melhor do que os outros. As opiniões são uma coisa, as pessoas são outra. Mas o Helder parece ter sucumbido ao fanatismo. Teme ser confundido com uma atitude, sente-se indignado com as opiniões das quais discorda e assume que quem acha que tem razão necessariamente se considera superior aos outros.

O fanatismo é um problema também entre os ateus. As afirmações recentes do Dawkins sobre os muçulmanos e os prémios Nobel deram um exemplo disso. Não é que o Dawkins seja fanático. Ninguém é fanático só porque diz o que pensa, por muito provocatório que seja. O problema é que, tal como entre os crentes, também entre os ateus há muita gente que, por fanatismo, não consegue discutir certas coisas sem ficar com as cuecas entaladas no rego.

1- Helder Sanches, Humanista.
2- Treta da semana: isso não se diz...
3- Casamento civil indissolúvel, já!

10 comentários:

  1. Em última análise, discordar de alguém é sempre arrogante porque assumimos nas nossas afirmações uma forma de superioridade sobre o interlocutor e os seus argumentos. Por isso qualquer pessoa bem educada sabe que fundamentar uma afirmação só pode ser um insulto.

    Eu sigo rigorosamente uma de duas alternativas, sobretudo às refeições. Ou concordo com tudo o que me dizem (quando por exemplo me apontam que sou moralmente desajustado por não incluir a nulidade religiosa nos meus pensamentos), ou não concordo com o que me dizem e sigo concentrado na mastigação por uma questão de respeito.

    Outra convenção estruturante da civilidade é largar os talheres e gritar GOOOLOOO CARAALHOOOO!!! sempre que se coloque o problema de defraudar os anfitriões com uma possível divergência ao nível das paixões da alma.

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  2. Sempre disse que não há ateísmo nem religião. Há muitos ateísmos e muitas vivências religiosas. Esta conversa confirma. E que muitas vivências religiosas e ateístas podem estar mais próximas entre si do que muitas outras que recebem o mesmo apelido. Sem dúvida.

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  3. Ludwig,

    «Eu considero que assumir que os deuses são fictícios e que somos responsáveis pelo que fazemos é eticamente preferível e objectivamente mais correcto do que acreditar que vivemos sob o jugo de seres sobrenaturais e que temos de nos portar bem para evitar um castigo na outra vida.»

    Se assim fosse, não veria mal nenhum. Mas, infelizmente, o Ludwig nem se dá conta de que o problema é mesmo invocar todo o tipo de argumentos e alegar correlações, não para demonstrar o seu arrazoado, mas para fazer crer que quem pensa diferente, por exemplo, tem QI mais baixo. De razões e de fundamentação das opiniões, muita carência e pouca ciência. Se, quanto a esta, o Ludwig não pode ser censurado, embora possa e deva ser criticado, já quanto às pretensas correlações, é óbvio que passa da mera opinião sobre deuses e crenças para juízos discriminativos sobre pessoas. Como neste post o próprio reconhece.

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  4. Sobre as afirmações recentes de Dawkins:

    http://www.youtube.com/watch?v=NQ8C6oN81d0&feature=youtu.be

    Não quererás escrever um post a desmontar este vídeo, Ludwig?

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    1. Vi o vídeo e parece-me que foi um erro.

      O autor tenta refutar aquilo que ele acha que Dawkins quis dizer, em vez de refutar aquilo que Dawkins efectivamente disse. A ideia de que a variância afecta as caudas das distribuições está longe de ser uma novidade, mas como ninguém disse que um grupo tinha um Q.I. superior ou mais concretamente x vezes superior, essa observação não invalida o facto que Dawkins referiu.

      As pessoas que não gostam da intenção, pertinência e oportunidade do comentário de Dawkins bem podiam argumentar de forma mais persuasiva. Alegar que no passado já aconteceu serem os povos islâmicos pioneiros no conhecimento, e que portanto as causas do atraso actual seriam mais geo-políticos ou socio-económicos que propriamente devidos à influência da religião islâmica na cultura.
      Mas tentar negar a evidência que Dawkins aponta - o atraso científico actual do mundo islâmico face ao ocidente - parece-me um tiro no pé. Fazem a sua posição parecer autista.

      Eu percebo a aversão à frase de Dawkins: no UK, EUA (e não só) existe algum ódio anti-islâmico alimentado em grande medida pela ignorância, e esta observação poderia ser potencialmente usada para alimentar esse ódio.
      Mas essa é uma forma errada de encarar as coisas: o problema do ódio que nasce da ignorância é precisamente esse - a ignorância. Ninguém tem problemas com os islâmicos porque recebem poucos prémios Nobel! Têm problemas porque têm uma noção desproporcionada da ameaça terrorista, da quantidade de islâmicos no mundo, da associação entre crime e imigração, etc... Esclareçam-se estes factos, em vez de negar as evidências.
      Faz-se mais pelo fim do ódio, e já agora não será mau reflectir também nas implicações da observação de Dawkins. A cultura é construída pelas pessoas, e pode mudar: para pior e para melhor.

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    2. "o atraso científico actual do mundo islâmico face ao ocidente"

      E porque não falar do atraso científico e civilizacional actual da Coreia do Norte face ao Ocidente? Porque é um regime oficialmente ateísta onde são fuziladas pessoas a quem encontram uma Bíblia nas mãos?

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    3. Pois, e porque não falar nas guerras no Sudão, ou na decadência do Império Romano?
      Porque Dawkins escolheu outro assunto, e quem prefere discutir outros, pode discutir outros livremente.
      Claro que se quer criticar essa frase e não se encontra melhor forma de o fazer, dizer que ele podia ter falado sobre X ou Y é o último recurso.

      De resto, quanto à Coreia do Norte, o regime acredita na «Vida após a Morte» (Kim Il-sung ainda é o presidente) e numa série de outros mitos que envolvem o sobrenatural.

      Mas sim, fale-se nesse atraso científico, pois.
      Hitchens não parava de falar nesse regime:

      https://www.youtube.com/watch?v=P8-Vr_r36Fg

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    4. Ó João Vasco, não te faças sonso.
      Dawkins fala do atraso científico actual do mundo islâmico deixando subentendido que esse atraso se deve à religião. Isso é absoluta e redondamente falso, quer porque povos com maior desenvolvimento científico e tecnológico têm vivência religiosa intensa, como os judeus, ou mesmo os cristãos, nos EUA, quer porque regimes oficialmente ateístas como a Coreia do Norte ou outrora a Albânia apresentam índices de desenvolvimento científico, cultural e mesmo civilizacional medíocres.
      O Hitchens falou de tanta coisa que algumas até se aproveitam.

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  5. Os criacionistas concordam que há muitos deuses fictícios. Na verdade, a bíblia diz isso. Deus diz: "Não terás outros deuses diante de mim".

    O problema é que o Ludwig dá como demonstrado que a existência de um Criador é uma ficção, mas nunca prova isso nem diz como é que processos naturais e não inteligentes criam códigos e informação codificada, por sinal extremamente complexa e miniaturizada, juntamente com os mecanismos de transcrição, tradução, leitura e execução dessa informação...

    Quanto aos prémios Nobel, seria interessante, para o Ludwig, contar quantos eram judeus...

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  6. Com o fanatismo ateu do Ludwig os criacionistas podem muito bem...

    É absolutamente inócuo e só o enche de ridículo, nomeadamente quando o leva a autoproclamar-se "macaco tagarela"...

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