sexta-feira, agosto 23, 2013

Impostos: para que servem.

Nos últimos tempos tenho encontrado várias ideias sobre os impostos que me parecem fundamentalmente erradas. Assim de cabeça, o Mário Valente sobre os socialistas, «Quando vêem um pobrezinho na rua querem sempre dar-lhe a minha camisa» (1); um familiar que insistia comigo que a carga fiscal em Portugal era muito alta, obrigando-me a sacar da Wikipedia para lhe mostrar que a de Portugal (37% do PIB) é significativamente inferior à de países como a Alemanha (40,6%), Austria (43.4%), França (44,6%) ou Dinamarca (49%) (2); o espanto do Ronaldo pagar mais de impostos do que os 17 milhões de euros que vai receber, coitado(3); e a recomendação do Henrique Monteiro, «Cortem os impostos (e serão recompensados)» (4), sem que a recompensa se refira a cargos de administração nas empresas beneficiadas. Há aqui muita confusão, a começar logo pela camisa.

Os direitos de propriedade são direitos negativos. A camisa ser minha quer dizer simplesmente que outras pessoas não me podem privar de usufruir dela. Se eu fosse a única pessoa no mundo estariam garantidas todas as minhas liberdades de proprietário da camisa. Porque estas não incluem, por exemplo, o dever de terceiros de aceitar a minha camisa como pagamento por bens ou serviços. É fácil perceber que ter euros é diferente de ter camisas. Ao contrário da camisa, se eu for a única pessoa no mundo não terei dinheiro. Mesmo que tenha notas e moedas deixarão de ser dinheiro se não houver mais ninguém que as aceite como tal. Os euros só são úteis porque há um compromisso colectivo, com garantias legais, de que serão aceites como pagamento. Só posso pagar as compras no supermercado com a camisa se o dono do supermercado permitir, mas se pago em euros tem de aceitar. Não me pode exigir dólares, nem pesetas nem a camisa. Por isso, o dinheiro que “dou” no supermercado não era meu no mesmo sentido em que a camisa é minha. Faz parte de um sistema colectivo de transacções que me atribui certos pontos, os tais euros, e garante a esses euros um valor convencional sem o qual de nada serviria “ter” dinheiro. O Estado ficar com 23%, 50% ou até 100% dos euros transaccionados tem impacto na economia mas não viola direitos de propriedade porque o dinheiro, enquanto tal, é um compromisso colectivo e não propriedade privada.

Este sistema de contabilizar transacções com marcadores abstractos e de valor meramente convencional é muito melhor para trocar coisas e guardar riqueza do que sal, conchas, pedaços de ouro ou tudo o que foi experimentado antes. E precisamente por ser mais eficiente como meio de troca e de reserva, agrava o problema da acumulação de riqueza. Os ricos sempre tiveram poder, mas quando a riqueza era hectares de terra ou barras de ouro a sua influência era localizada e tinham de alocar muitos dos benefícios a quem lhes mantivesse e protegesse a riqueza. Hoje podem ter milhares de milhões no banco que a sociedade encarrega-se de garantir que ficam à sua disposição, e uma dúzia de magnatas em Wall Street podem condenar dezenas de milhões de pessoas à fome, pelo mundo todo, só com os negócios que fazem (5). Quanto mais rico se for, mais influência se tem sobre o próprio sistema monetário e mais facilmente se aumenta a riqueza. Como este sistema é intrinsecamente instável, o papel mais importante do Estado tem de ser contrariar esta tendência. Ou seja, redistribuir o dinheiro.

O Henrique Monteiro aponta que os impostos financiam «coisas indispensáveis: saúde, reformas, educação, investigação, segurança, estradas... mas outras totalmente dispensáveis - burocracias várias, obras inúteis, sinecuras, subsídios duvidosos.» Concordo que o Estado deve financiar as primeiras, mas a ineficiência não é problema desde que espalhe pela maioria remediada o dinheiro recolhido dos mais ricos e evite fazer o contrário com coisas como as PPP, os submarinos, o BPN e as privatizações. Quanto ao «Cortem os impostos e verão a economia a recompensar essa medida», essa ideia é um perigo.

Cortar os impostos é cobrar menos aos mais ricos e, forçosamente, dar menos aos mais pobres. Este corte na redistribuição acelera o desequilibro da economia e da sociedade. Quanto menos apoio do Estado a maioria tiver, mais barato será o seu tempo e trabalho, menos capacidade terá para usar o sistema monetário em seu proveito e maior será a parte do bolo que fica para os que já têm muito. O coeficiente de Gini do rendimento disponível em Portugal, dos maiores da Europa, desceu até 2010 mas já voltou a subir, padrão que se repete nos outros países da austeridade como Espanha, Grécia e Irlanda (6). A preocupação com a magnitude dos impostos, a eficiência da economia e o ordenado do Ronaldo é desavisada quando se descura o problema mais sério. Cortar a redistribuição corta as possibilidades de quem tem menos usufruir da riqueza gerada por este sistema monetário, legal e social. Se este grupo, maioritário e cada vez maior, concluir que não já não tem possibilidades dentro do sistema, o problema não serão as minudências do défice, do PIB ou dos impostos que o Ronaldo paga. O problema será a Europa desatar toda à batatada. Como já aconteceu várias vezes, e por razões parecidas.

Uma vizinha da minha mãe, tendo perdido a válvula da panela de pressão, decidiu substituí-la por um pedaço de rolha. Sem o “imposto” regular sobre a pressão interna a cozedura tornou-se muito mais eficiente. Durante um tempo. Foi sorte não estar ninguém na cozinha quando o sistema, abruptamente, se reequilibrou.

1- Mário Valente, O Estado “Social”.
2- Wikipedia, List of countries by tax revenue as percentage of GDP
3- Jornal de Negócios, Finanças espanholas vão ganhar mais que Ronaldo com o seu novo contrato
4- Henrique Monteiro, Cortem os impostos (e serão recompensados)
5- The Independent, The real hunger games: How banks gamble on food prices – and the poor lose out
6- Eurostat, Gini coefficient of equivalised disposable income

10 comentários:

  1. É um facto bem estudado de que as desigualdades são causa de violência. São também ao que parece apenas boas para uns poucos que tenderão a ser cada vez menos porque a tendência é a do monopólio. De facto existe cada vez mais evidencia de que algum grau de equalitarismo é necessário para uma competição e desenvolvimento económico saudável.

    Quanto à ideia de que cada um ganha o que merece é um disparate. Idem para a ideia de que cada um nada deve aos outros daquilo que ganha. Se ganha, é muito provavel que ganhe a partir do trabalho de outros também.

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  2. http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=2979226

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  3. Curiosamente, vejo pessoas de famílias que lutaram durante gerações para que a última vivesse desafogadamente defender a riqueza de multimilionários sob o ponto de vista de que quem trabalha merece sempre o fruto do seu trabalho. E defendem impostos horizontais, porque a progressão é invejosa.

    Acho que há muitas pessoas pobres que o dizem porque não fazem a menor ideia de como se ganha dinheiro na proporção desmesurada. E que desconhecem que em certa medida são o seu trabalho honesto e a sua despesa proporcional que sustentam o valor do dinheiro que uns poucos açambarcam.

    Mas quando a música pára e chega ao fim o jogo das cadeiras da especulação, quem acaba sempre de pé são os desempregados. Em fila, nos Centros de Emprego.

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  4. António Parente,

    Os impostos sobre o trabalho são altos em Portugal, se bem que há algo suspeito na notícia quando dizem que na Alemanha "a tributação efetiva é de 24,4%" para os 300 mil euros de rendimento. Não parece ser esse o caso:Income Tax Germany

    Mas quando consideramos o total arrecadado em impostos em proporção ao PIB, Portugal está atrás. Se está tão acima dos outros a taxar os trabalhadores é porque a distribuição do esforço está mesmo muito mal feita.

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  5. O Ludwig escolheu um tema que deveria merecer a atenção de todos os portugueses e de todos aqueles que têm ou devem ter preocupações de cidadania e de sã convivência social, porque a obrigação de pagar os impostos, ao contrário do direito de voto, dá (deveria dar) certos direitos.
    Quando se faz a pergunta “para que servem os impostos?”, as respostas podem ser dadas com base numa teoria do século III a.c., ou do século XXI e, em geral, as pessoas assumem que sabem para que servem os impostos. Mas a teoria, além de ser o que menos interessa aos contribuintes, também serve para dar como (desde sempre e ad eternum) respondida uma pergunta que nunca o é realmente e que importa saber a resposta todos os dias. Em termos de política económica, os contribuintes também dispensam a pergunta, numa primeira fase, porque, realmente, o que nos interessa saber é o que se faz com os impostos (ou o valor respectivo) e, não tanto, as estratégias (em teoria) e os objectivos (em teoria) das despesas públicas, sabendo nós que algumas(?) vezes do que se trata é de estratégias e objectivos particulares…
    É pernicioso tentar responder a certas perguntas com teorias, porque ou já sabemos a resposta ou a resposta tem de ser esta ou aquela… Para que servem os impostos, é uma pergunta a que os académicos responderão com ciência e os políticos com retórica e demagogia, aqui e em qualquer tempo ou lugar, sem grandes variações.
    O que é útil e necessário para os contribuintes saber é para onde vai o dinheiro que pagam ao Estado de impostos. Mas também é fundamental saber quem e quanto paga (ou não paga) impostos e porquê. Não bastaria que todos pagassem os impostos devidos de acordo com um sistema de tributação geralmente aceite. Mais importante é saber se esses impostos são ou não para manter um sistema de dominação social hierarquizada que garante que a maioria se sacrifique para manter esse sistema (político-eleitoral-pseudorepresentativo, policial, militar, judicial…), de tal modo que a base da hierarquia, teoricamente legitimadora do topo, democraticamente falando, não tem outro papel que não seja o de subordinação/sujeição. O contribuinte precisa de saber que os seus impostos, se não servirem para o Estado lhe dar nada, em caso algum sirvam para quem está no poder a instrumentalizar o Estado use esse poder contra o contribuinte. Não é legítimo, nem aceitável, que alguém pague impostos para manter um sistema iníquo, por exemplo, de espoliação.
    Nos tempos que correm há um zelo em cobrar impostos a quem trabalha tanto mais quanto menos vão sendo as funções sociais do Estado.
    É preciso que haja, e seja conhecido, algum grau de proporcionalidade entre aquilo com que se contribui e aquilo de que se beneficia e esse estudo parece-me que nunca foi sequer esboçado.

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    1. Sim, em Portugal faz falta criar a figura civil do "tax payer" que exige saber com rigor e precisão para onde vai o dinheiro dos seus impostos.

      Isso é algo que emergiu em muitos países altamente civilizados e muito contribui para assim se manterem.

      Mas para isso é preciso primeiro que as pessoas compreendam melhor o problema, para por as exigências nos problemas correctos. Assim misturam tudo, não sabem porque devem pagar e não exigem o mais importante. Que é que eles sirvam para o que se pagou.

      Na pratica isto é uma manifestação dos direitos das pessoas por terem pago esses impostos. Algo que torna possível a cada individuo, (não a grupos apenas), exigir algo de quem gere esse dinheiro.

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    2. Outro problema é a distribuição dos esforços. Creio que em Portugal não precisamos grandes estudos para perceber que está mal. O indice de Gini, não sendo sobre isso apenas, reflete o que por cá se passa a varios niveis.

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  6. Ludwig Krippahl

    O que pretendi mostrar com o estudo da KPMG é que o indicador "carga fiscal/PIB" não é o mais adequado para ler o peso dos impostos na economia. É utilizado porque é simples, dá bons títulos de jornais e comentários pró e contra o aumento de impostos. O Eurostat publica esse indicador mas fornece quadros complementares para "descodificá-lo".

    O artigo da TSF é um pouco confuso. Seria interessante conhecer o estudo citado e tirarmos as nossas próprias conclusões.

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  7. António Parente,

    O indicador carga fiscal/PIB é precisamente o peso dos impostos na economia. Os outros, mais detalhados, dão o peso dos impostos em sectores específicos da economia. Não me admirava nada que Portugal tivesse impostos a mais sobre os pensionistas e a menos sobre a banca e empresas, por exemplo. Mas o que dá o peso global dos impostos sobre a economia é o total dos impostos a dividir pelo tamanho da economia. Nem vejo como possa ser de outra forma...

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    1. Ludwig Krippahl,

      Nem eu vejo... Desculpa. Tinha-me esquecido que tens o dom da infabilidade. Seja Direito, Economia, Religião, Física, Filosofia, Tarôt, Astrologia, nunca falhas nas tuas observações... Mais uma vez peço desculpa pela minha impertinência...

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