sábado, julho 27, 2013

Testes e explicações.

O Miguel Panão, entre outros, tem defendido que «O conhecimento científico e saber teológico [são] métodos distintos e que respondem a questões de natureza diferente sobre a realidade»(1). Eu tenho discordado desta posição porque a ciência responde a qualquer questão factual que admita respostas testáveis. O que sobra, no contexto das afirmações de facto, são apenas proposições que não podem ser testadas e que, por isso, também não se pode saber se são verdadeiras ou falsas. Se o domínio da teologia é esse conjunto de proposições então a teologia não pode gerar conhecimento. No máximo, produz crenças ou especulações. Contrapondo isto, o Miguel Panão tem insistido que as afirmações da teologia são testáveis, mas não cientificamente, o que não se percebe porque ou é possível testar ou não é. A ciência não exige nenhuma forma particular de testar. Mas agora o Miguel tentou uma nova abordagem.

Começa por apresentar uma versão da minha posição que não corresponde à minha posição: «hipóteses impossíveis de testar no âmbito de um método, como o teológico, são razão necessária e suficiente para descartar o método»(2). Pelo contrário, já defendi várias vezes que a ciência consegue lidar com hipóteses impossíveis de testar. O que faz é despejá-las no caixote das especulações infundadas porque, se são impossíveis de testar, então é impossível distingui-las da infinidade de alternativas na mesma situação. O Miguel Panão diz que a teologia resolve isto decidindo com base nas «evidências providenciadas pela revelação e pela doutrina» (1), mas avaliar o dogma considerando o dogma como prova de si mesmo é raciocinar aos círculos.

A novidade no argumento do Miguel é alegar, agora, que a ciência também acha «worth trying»(2) considerar hipóteses não testáveis. Não parece que isto o ajude a justificar a ideia da ciência e a teologia como abordagens complementares para problemas independentes. Mas, seja como for, o exemplo que o Miguel Panão escolheu não serve para demonstrar o que o Miguel pretende.

O artigo "A Universe without expansion"(3), que ainda nem foi publicado nem sujeito a revisão pelos pares, oferece uma explicação alternativa para a observação de que a luz que nos chega de galáxias distantes está tão mais desviada para comprimentos de onda maiores (para o “vermelho”) quanto maior for a distância entre nós e cada galáxia. Em vez de explicar este desvio pela expansão do universo, com galáxias mais distantes afastando-se de nós a velocidades maiores, explica o desvio pelo aumento da massa. Segundo este modelo, as galáxias mais distantes emitiram a luz que agora vemos há mais tempo, quando todas as partículas tinham menos massa e, por isso, a luz era menos energética. Guiando-se pela notícia, o Miguel Panão afirma que «A ideia é plausível, mas não pode ser testada» porque só podemos medir massas em relação umas às outras, e se todas mudam não notamos a diferença. Directamente. Mas isto não quer dizer que não se possa testar a hipótese de forma indirecta.

Este modelo do aumento da massa não difere do modelo do universo em expansão apenas na massa. Difere também na expansão. Qualquer medição que nos dê uma estimativa independente da expansão do universo pode servir para distinguir entre os dois modelos. Se bem que na prática isso não seja fácil, em teoria pode-se testar. Mas, mais importante do que isto, o modelo proposto por Christof Wetterich é uma explicação para o desvio da luz de galáxias distantes para maiores comprimentos de onda. Não é a única explicação; hoje em dia a explicação consensualmente aceite é a de que a luz sofre este desvio devido à expansão do universo. Mas é uma explicação porque esse modelo segundo o qual a massa de todas as partículas vai aumentando implica necessariamente que se observe esse desvio para comprimentos de onda maiores. Se a observação fosse outra, o modelo teria de ser falso. O que demonstra cabalmente que é testável.

Isto faz parte de ser explicação. Uma explicação só o é se implicar necessariamente as observações que pretende explicar. Caso contrário, não explica. Mas se implica necessariamente algo que se observa, então é testável. O exemplo que o Miguel Panão escolheu não é um exemplo da ciência levar a sério hipóteses impossíveis de testar. Pelo contrário, ilustra bem a futilidade de perder tempo com hipóteses dessas. Os cientistas formulam hipóteses para explicar algo que os intriga. Christof Wetterich propôs a hipótese da massa das partículas aumentar porque, se isso for verdade, então é inevitável que a luz das galáxias mais distantes esteja deslocada para comprimentos de onda maiores. É uma explicação possível, mesmo que ainda não se justifique preferí-la à hipótese da expansão. Christof Wetterich não propôs explicar o aumento do comprimento de onda invocando um deus, milagres, bruxaria ou seres invisíveis de outras dimensões porque isso não serve de nada. Postular um deus omnipotente, ao contrário de postular um aumento de massa de todas as partículas, não permite inferir um aumento no comprimento de onda. Com um deus omnipotente o comprimento de onda podia aumentar, diminuir, ficar na mesma, desaparecer ou até transformar-se num duende com calças azuis e barrete encarnado. É por isso que a hipótese de haver um deus omnipotente por trás de cada mistério não pode ser testada, é por isso que não serve para explicar coisa nenhuma e é por isso que hipóteses assim não podem ser conhecimento.

1- Comentários em Treta da semana: iNdulgência.
2- Miguel Panão, Hipóteses impossíveis de testar ... worth trying ...
3- Christof Wetterich, A universe without expansion.

segunda-feira, julho 22, 2013

Projecto de Lei 228/XII

Este foi o meu contributo para a consulta pública acerca do Projecto de Lei 228/XII do PCP. Obrigado à Paula Simões pelo aviso.

O Projecto de Lei 228 do PCP expressa o objectivo meritório de procurar um equilíbrio justo entre os direitos exclusivos de distribuição e direitos humanos fundamentais como os da privacidade, expressão, educação e acesso à cultura. Infelizmente, taxar serviços de acesso à Internet para criar um incentivo económico à autorização voluntária da partilha de ficheiros é uma medida contrária ao objectivo expresso porque reforça a ideia de que o monopólio legal sobre a distribuição subordina incondicionalmente qualquer outro direito que em seu nome tenha de ser sacrificado. Se bem que seja urgente descriminalizar a partilha de informação digital publicada, importa esclarecer e corrigir alguns pressupostos deste Projecto.

O preâmbulo defende que «a política cultural não deve assentar na proteção dos direitos de propriedade, sacrificando a fruição». Se bem que o princípio esteja correcto, o termo é enganador. A “propriedade intelectual” é um conjunto heterogéneo de disposições legais com justificações e propósitos diferentes, desde a protecção de segredos industriais e marca registada até às patentes e aos direitos exclusivos de distribuição de certas obras. Apesar de todos estes direitos legais serem propriedade no sentido em que podem ser transaccionados, não são em si direitos de propriedade. A lei concede monopólios de distribuição apenas sobre algumas obras da criatividade humana. A lei cobre poemas mas não receitas, músicas mas não teorias científicas nem doutrinas políticas. Esta distinção nada tem que ver com poetas ou músicos serem mais proprietários do seu intelecto do que cientistas, cozinheiros ou filósofos. Esta distinção prende-se apenas com os mecanismos tradicionais de distribuição e exploração comercial, em grande parte já ultrapassados pela inovação tecnológica.

Outro problema é o pressuposto de que se deve taxar os «fornecedores de serviços de acesso à internet» por existir, da parte destes, uma «apropriação ilegítima de uma mais-valia sobre os conteúdos que circulam por via telemática». Não é claro o que fundamenta esta conclusão. Se, por um lado, a venda de acessos por banda larga beneficia o prestador deste serviço e facilita a partilha gratuita de conteúdos, por outro lado, o mesmo acesso dá aos detentores dos direitos de distribuição a possibilidade de explorar economicamente as suas obras por via electrónica, seja em serviços de streaming pagos ou suportados por publicidade, seja em lojas virtuais, seja até pela contribuição directa dos seus admiradores (crowdfunding). Trata-se de uma sinergia entre os vários agentes económicos e não de uma apropriação indevida.

Por estas considerações, proponho, em primeiro lugar, que o Projecto reconheça a partilha de ficheiros para fins pessoais como parte de um conjunto de direitos humanos fundamentais que não é legítimo subordinar a interesses económicos. Como tal, a liberdade de partilha sem fins comerciais não deve estar sujeita a autorização prévia dos detentores dos monopólios sobre a distribuição.

Em segundo lugar, proponho que o Projecto deixe claro que não estão em causa direitos de propriedade dos autores. Além dos direitos exclusivos de distribuição não serem direitos de propriedade, é a extensão destes monopólios à esfera pessoal que viola direitos de propriedade de todos os cidadãos a quem se limita a utilização do equipamento informático que lhes pertence. Copiarem este texto não viola os meus direitos de propriedade. Proibir alguém de usar o seu computador para copiar este texto é que violaria o seu direito de usar o que lhe pertence.

Finalmente, proponho que a taxa seja uma medida transitória justificada apenas pela necessidade de respeitar legislação Comunitária que obriga a compensar os detentores de direitos. Importa salientar que esta legislação é imposta por tratados negociados com os agentes económicos que dela beneficiam, sem legitimidade democrática. Durante cerca de um século esta legislação só afectou agentes comerciais, pelo que nunca houve necessidade de ouvir os cidadãos acerca desta matéria. Mesmo quem hoje defende com afinco a “propriedade intelectual”, em jovem gravou cassetes de música e estudou por fotocópias sem problemas com a Lei. Agora que estes monopólios extravasam o âmbito comercial e restringem liberdades a centenas de milhões de cidadãos europeus, urge repensar esta legislação. Enquanto esse processo decorre, pode ser necessário encontrar situações de compromisso como esta taxa que compensa os detentores de direitos pelo enfraquecimento dos seus monopólios. Mas é fundamental que se dê a justificação correcta para estas medidas. A ideia de que os fornecedores de acesso se apropriam do valor das obras erra não só por ignorar os benefícios que esta tecnologia traz aos autores como também por assumir que estes são prejudicados pela partilha gratuita. Os maiores queixosos são sempre os distribuidores e não os autores.

Em suma, é urgente descriminalizar a partilha de ficheiros e este Projecto reconhece que, na conjuntura legal presente, é necessário compensar os detentores de direitos exclusivos de distribuição. Enquanto a Europa não perceber quão injusta é a legislação corrente, medidas como a taxa proposta neste Projecto de Lei serão provavelmente um mal necessário. Mas é importante não contribuir para a deturpação do problema. A terminologia criada pelas partes interessadas em maximizar o poder destes monopólios visa criar a ilusão de que é mais legítimo proibir a partilha do que ser livre de partilhar. É preciso evitar a armadilha de ver o problema como um equilíbrio entre direitos equivalentes. Os interesses comerciais da indústria da distribuição não estão ao mesmo nível dos nossos direitos de comunicar, aprender e partilhar.

domingo, julho 21, 2013

Treta da semana: iNdulgência.

Durante a próxima semana vai decorrer no Rio de Janeiro a Jornada Mundial da Juventude católica. Como é costume nestas coisas, a Igreja Católica concede indulgências aos fiéis presentes. Mas uma novidade este ano suscitou alguns comentários. A Igreja Católica declarou conceder indulgência plenária aos fiéis que, impedidos de estar presentes, «sigam estes ritos e exercícios piedosos enquanto se desenrolam, através da televisão e da rádio ou, sempre que com a devida devoção, através dos novos meios de comunicação social»(1). O Guardian anunciou que os católicos poderiam receber indulgências seguindo o Papa no Twitter (2), e as críticas levaram o Vaticano a esclarecer as condições para a adequada concessão deste dom: «"não se pode obter indulgências como se consegue um café da máquina" [...] "o que realmente conta" para receber a indulgência "é que os tweets que o Papa vai postar do Brasil ou as fotos da Jornada Mundial da Juventude que subam ao Pinterest produzam um fruto espiritual autêntico nos corações de todos"»(3)

No que toca ao uso das “redes sociais” para conceder indulgências, devo admitir que não concordo com os críticos. A indulgência é concedida porque a Igreja tem um “tesouro espiritual” de onde os bispos podem retirar magicamente o “pagamento” que a “justiça divina” exige para compensar os pecados confessados e perdoados. Criticar o uso do Twitter como veículo para estas emanações milagrosas é como criticar a Maya por dar consultas por telefone. O problema não está propriamente no meio de comunicação pelo qual o prestador de serviço convence o cliente de ter cumprido as expectativas contratuais.

Os técnicos certificados da Igreja Católica podem perdoar quase todos os pecados. Basta o pecador manifestar sincero arrependimento e o sacerdote entoar os encantamentos de salvação. Não dá para todos os pecados. Por exemplo, eu afirmar que o Espírito Santo é uma fantasia pateta condena-me ao inferno irrevogavelmente, e nem sequer no sentido político. Mas coisas menores como homicídio e roubo, ou irrelevâncias daquelas que nem vêm nos mandamentos, como violar crianças, tudo isso pode ser perdoado pela infinita misericórdia do deus católico sob a mediação e administração da Igreja. No entanto, mesmo depois de perdoado, o pecado carece ainda de uma taxa de sofrimento para “justiça divina”, a pagar no purgatório. O purgatório é «o estado dos que morrem na amizade de Deus, com a certeza de sua salvação eterna, mas que ainda têm necessidade de purificação para entrar na felicidade do céu». É aí que entram as indulgências. «As indulgências são a remissão diante de Deus da pena temporal devida aos pecados, já perdoados quanto à culpa, que, em determinadas condições, o fiel adquire para si ou para os defuntos mediante o ministério da Igreja, a qual, como dispensadora da redenção, distribui o tesouro dos méritos de Cristo e dos Santos.» (4)

Ou seja, quem peca e não é perdoado vai para o Inferno. «As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, “o fogo eterno”»(5). Mas mesmo perdoados os pecados, «Os que morrem na graça e na amizade de Deus [...] sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do céu. A Igreja chama Purgatório a esta purificação final dos eleitos [...] A Tradição da Igreja, referindo-se a certos textos da Escritura fala dum fogo purificador: “Pelo que diz respeito a certas faltas leves, deve crer-se que existe, antes do julgamento, um fogo purificador, conforme afirma Aquele que é a verdade, quando diz que, se alguém proferir uma blasfémia contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado nem neste século nem no século futuro (Mt 12, 32). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser perdoadas neste mundo e outras no mundo que há-de vir”».(5)

Quem conhece do catolicismo apenas os slogans publicitários do deus do amor, infinitamente bom, misericordioso e afins, estranhará a exigência de que o arrependido perdoado ainda seja torturado com o “fogo purificador” antes de entrar no paraíso. Quem sabe algo da história do cristianismo poderá ver aqui restos dos costumes e superstições de uma tribo de nómadas que ainda tentava perceber qual era a parte da frente do camelo quando os Egípcios já construíam pirâmides. Mas não é nada disso. É um Mistério da Fé. Tal como o mistério das indulgências.

Por decreto episcopal, o crente pode receber descontos no tempo que terá de sofrer o fogo purificador ou, em casos como o das Jornadas da Juventude, ficar completamente isento de qualquer sofrimento devido a pecados passados. Deus, por assim dizer, pode aceitar um haircut ou mesmo o perdão completo do sofrimento em dívida. O grande mistério aqui não é que isto funcione igualmente bem em pessoa, por carta ou por Twitter. O grande mistério é como é que os católicos determinaram sequer se isto funciona.

1- Rádio Vaticano, Papa concede indulgência para participantes da JMJ Rio2013
2- The Guardian, Vatican offers 'time off purgatory' to followers of Pope Francis tweets
3- Acidigital, Autoridade vaticana esclarece confusão midiática sobre indulgências pela Jornada Mundial da Juventude
4- Vaticano, Catecismo da Igreja Católica (compêndio)
5- Vaticano, Catecismo da Igreja Católica

domingo, julho 14, 2013

Treta da semana: a decisão.

Após tanto tempo para decidir, dias a auscultar e ponderar, o Presidente decidiu não decidir. Foi um feito notável que apanhou todos de surpresa. Os comentadores na televisão não sabiam o que dizer, os partidos do governo adiaram as declarações para rescrever o que tinham planeado e o coitado do Paulo, que até já estava à procura de um gabinete novo (1), agora nem sabe bem o que é*. A expectativa era de que o Presidente apenas teria duas opões, mutuamente exclusivas. Ou considerava o governo legítimo e, por isso, aprovava a remodelação e deixava concluir o mandato; ou considerava que a coligação tinha violado o seu compromisso com os eleitores e, já não tendo legitimidade democrática, era preciso dissolver a Assembleia e convocar eleições o mais rapidamente possível. O que escapou a muita gente, mas não ao Presidente, foi a terceira opção. A do “ah, e tal...”.

Convocou eleições antecipadas, mas adiando-as logo à partida para que o acto eleitoral não se antecipasse às avaliações da troika, e delegou nos partidos a decisão de quando ir a votos. Lá mais para o Verão. De 2014. Apesar disto implicar que considera que o governo não tem legitimidade para cumprir o seu mandato, insiste que o governo continua em plenas funções. Entretanto, ignorou por completo a proposta do Pedro e do Paulo, tornando “o governo” numa entidade indefinida. Um “coiso”, como agora se costuma dizer. Com tanta gana de evitar incertezas acabou por tornar até incerto quem é ministro do quê.

O Paulo disse que ia embora, o Pedro agarrou-o para não deixar cair o tacho e, quando finalmente se entenderam, o Aníbal tocou as campainhas todas e desatou a correr. Foram repreensivelmente desleais para quem os elegeu. No entanto, quem os elegeu já lhes devia conhecer a pinta. Mais grave é o Aníbal extravasar as suas competências e tentar ditar políticas para o governo do país. Não é ao Presidente que compete decidir sobre a renegociação das dívidas ou que termos é que Portugal deve aceitar da troika. Mas o pior de tudo é a marosca que o Aníbal propõe fazer com as eleições. Quer adiá-las para depois do fim do programa da troika para impedir que, cruzes credo, os eleitores chumbem o programa como ele agora está e optem por alguma alternativa. Para maior segurança, pede aos três partidos que alternam no governo que se comprometam a continuar este rumo para que mesmo em 2014 os eleitores tenham a sua escolha condicionada. E diz isto descaradamente, declarando ser este o propósito da sua indecisão. O Aníbal quer ir aguentando as coisas para que só daqui a um ano possamos eleger para o Parlamento quem represente a nossa vontade e, mesmo nessa altura, quer que os candidatos se compromentam a ignorar a nossa vontade e fazer o que a troika manda.

Isto é o pior porque o Aníbal, quando tomou posse, jurou «cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa»(2, artigo 127º). Não é mera garotice. Não é sequer abuso de poder, o que já seria muito grave. É faltar ao que nos jurou. É certo que jurou pela sua honra mas, dando-lhe o benefício da dúvida, até do Aníbal seria de esperar que cumprisse. E a Constituição é clara acerca dos deveres do Estado e de quem tem competência para decidir estas coisas:

«A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.» (2, artigo 3º)
«A organização económico-social assenta nos seguintes princípios: a) Subordinação do poder económico ao poder político democrático;» (2, artigo 80º)
«1. Todos têm direito ao trabalho. 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego»; (2, artigo 58º)

O Presidente da República é o principal responsável por garantir que o governo serve adequadamente a vontade soberana do povo e que o Estado cumpre estes objectivos. Se bem que o Aníbal tenha direito às suas opiniões, e a assobiar para o lado sempre que for do seu interesse, não é legítimo que o Presidente se possa manter nesse cargo quando viola com tal gravidade os compromissos que assumiu quando o elegeram.

Ressalva para efeitos legais: a imagem que se segue é meramente decorativa e não tem nada que ver nem com o tema do post nem com as pessoas nele mencionado. Nada mesmo. A sério.



* Se bem que ele possa resolver esse problema facilmente perguntando a qualquer pessoa na rua. Certamente lhe dirão. Em pormenor.

1- Jornal de Negócios, Portas já procurava "sede digna" de um vice-primeiro-ministro
2- Constituição da República Portuguesa

quarta-feira, julho 10, 2013

Treta da semana (passada): taxas de juro.

Enquanto aguardo que o nosso Presidente acabe de fingir que está a tomar uma decisão, confirme a fantochada* das últimas semanas e me dê o tema da treta desta, vou pondo o blog em dia com uma (das muitas) da semana passada. Com as zangas entre Passos Coelho e o seu patrão Paulo Portas, a bolsa de valores teve uma queda e as chamadas “taxas de juro” da dívida pública subiram no mercado secundário. Segundo o Correio da Manhã «A demissão de Portas mergulhou o país numa profunda crise política e não só. O dia de ontem custou ao País 813 milhões de euros»(1). As contas foram que «o aumento da taxa de juro da dívida pública a 10 anos no mercado secundário provocará um aumento potencial dos encargos com juros de 244 milhões de euros. Já ontem, as empresas cotadas no PSI 20 da Euronext sofreram uma desvalorização de 569 milhões de euros. No conjunto, estas perdas ascendem a 813 milhões de euros.» E no texto em rodapé na CM-TV, «Crise no governo: dívida pública disparou nesta sessão»(2). Isto é um chorrilho de disparates.

A queda no PSI 20 deve-se às acções nesse dia terem sido transaccionadas a um preço, em média, mais baixo do que a média dos dias anteriores. E do que a média dos dias seguintes. Foi uma baixa temporária, e muito curta, tão irrevogável quanto a palavra do Portas. O cálculo do CM consiste em multiplicar essa variação de preço pelo total das acções em bolsa mas, obviamente, o que se transacciona num dia é muito menos que o total das acções. Uma maneira mais correcta de ver o que se passou foi que alguns investidores entraram em pânico, venderam as suas acções com urgência e, por isso, aceitando um preço abaixo do normal, enquanto outros aproveitaram para as comprar em saldos. No dia seguinte estava tudo igual a menos de alguns arrependimentos pela venda precipitada, essa sim irrevogável.

No mercado da dívida pública foi também isto que aconteceu só que, nese caso, o disparate é ainda maior. A tal “taxa de juro” da dívida pública é aqui uma interpretação errada do termo “yield”, que é a rentabilidade, ou o rendimento, desse investimento. Se o Estado vende um título de dívida a um ano no valor de 110€ isto quer dizer que se compromete a pagar 110€ ao detentor do título findo esse prazo. Se eu paguei 100€ pelo título terei um rendimento de 10% quando receber os 110€. Se a coisa ficar só entre mim e o Estado, o que eu ganho é igual aos juros que o Estado paga por receber 100€ agora e pagar 110€ daqui a um ano. Mas a variação que o CM reporta ocorreu no mercado secundário. Se, por alguma necessidade ou temor, eu vender o meu título do tesouro por 55€, o comprador irá pagar 55€ agora e receber 110€ do Estado quando o prazo terminar. O seu ganho será de 100% mas o Estado, que já recebeu os meus 100€ quando comprei o título e que terá de pagar 110€ à mesma ao fim de um ano, fica na mesma. Seria um disparate dizer que a minha venda precipitada tinha custado ao Estado 90€ em juros agravados.

A notícia no CM faz algum contorcionismo em reconhecimento deste problema e em contradição com os cabeçalhos bombásticos. Mas o resultado não é menos disparatado. «Como o stock da dívida pública a amortizar a partir de outubro de 2014 [é de] 87 298 milhões de euros [...] os encargos adicionais com essa dívida ascenderão a 244 milhões de euros caso aquele agravamento da taxa de juro se mantenha no futuro.» Ou seja, se em Outubro de 2014 não estivermos já no terceiro ou quarto resgate, e nos anos que se seguirem o Estado for vendendo partes daqueles 87 298 milhões sempre ao preço que a dívida tinha no mercado secundário no dia em que Paulo Portas fez que saía, então o Estado perderá 244 milhões em relação ao que perderia se o preço tivesse ficado preso para sempre no da segunda-feira anterior. Além de ser uma suposição rebuscada nem sequer condicionalmente é verdadeira porque, com o nosso crescimento económico, uma taxa de juros de 6,33% é tão proibitiva quanto a de 6,62%.

Seja como for, se esta novela continuar até Outubro de 2014 a taxa de juros será um problema menor.

* Chamar-lhe palhaçada é arriscado.

1- CM, Crise custa 813 milhões
2- CM-TV, Crise custa 813 milhões

domingo, julho 07, 2013

Treta da semana (passada): pérolas de argumentação.

Descobri a Isilda Pegado há pouco tempo e fiquei fã (1). O primeiro contacto foi com a tragédia da adopção. A mãe da Teresinha morreu, a menina foi viver com os avós e primos de quem gostava muito mas depois o pai biológico casou e ela foi coadoptada e obrigada pela lei a sair da casa dos avós. O foco deste conto em 11 pontos numerados (2) parece ser a depravação da coadopção em casais homossexuais. Mas, por muita pena que tenha da Teresinha, não consigo perceber o que é que o sexo do cônjuge do pai tem que ver com a tragédia.

O texto sobre “A família e a sociedade” é um pouco como a montanha russa que havia em Entrecampos, na feira popular. Primeiro sobe devagar e aos solavancos, depois desce abruptamente, dá duas curvas e acaba. Começando por citar grandes nomes da filosofia como Confúcio, Aristóteles, Platão e “Jacques Maritain (filósofo cristão)”, a partir do ponto 5 a Isilda expõe o seu raciocínio. A Lei do Divórcio tinha como objectivo facilitar o divórcio mas, tanto quanto a Isilda saiba, só atrasa os processos de divórcio e há cada vez mais casos de violência no seio da família. Por isso, «a grande consequência de tal lei, foi tornar socialmente o casamento um acto descartável. Em especial para os jovens, para quem – casar não vale a pena – não tem efeitos.» Uoaaaaa. Ainda bem que me tinha agarrado à barra do carrinho durante os pontos 1 a 4. Conclui então a Isilda: «A Família como elemento estruturante da Sociedade é um bem para o Estado, o País e para o Homem.» Pois mas, apesar dos homens e mulheres que vivem em cada família não usarem tantas maiúsculas, ainda assim deve competir-lhes decidir se a sua família vale a pena como está ou se é melhor partir para outra.

A aptidão da Isilda para a confusão não se limita à inferência. É também com perícia que baralha conceitos. Por exemplo, «Mulher e homem são iguais em direitos e dignidade. Mas não são iguais na sua condição e nos respectivos papéis. […] A capacidade para a maternidade [...] é um facto estruturante da condição feminina.» (4) É verdade. Mesmo com direitos iguais homens e mulheres têm, em média, preferências diferentes e a capacidade para a maternidade é um factor significativo. Mas depois:

«Hoje quando se fala em “direitos da mulher” (contracepção, aborto, etc.) fala-se acima de tudo em negar a maternidade. Ainda há dias um relatório da UNESCO concluía que a melhor forma para combater a fome no mundo era promover “os direitos da mulher” nos países em desenvolvimento. Isto é, traduzindo… as mulheres têm de ser limitadas na sua capacidade para a maternidade. Que mundo!»

Este direito da mulher é o direito, igual ao do homem, de decidir se vai ter filhos. Quando as mulheres podem decidir, a taxa de natalidade é menor do que quando a decisão cabe aos homens. Isto é apenas um facto. Mas, ao longo do argumento, a Isilda transforma o significado de “capacidade para a maternidade”. Quando está a falar na igualdade de direitos, esta expressão lê-se como a tal opção que é direito da mulher. A mulher é capaz de ser mãe no sentido em que pode ser se assim decidir. Mas quando critica as recomendações da UNESCO, “capacidade para a maternidade” já não significa poder decidir. Torna-se um sinónimo de taxa de natalidade. Desta forma cria a ilusão de que dar à mulher a possibilidade de escolher equivale a tirar-lhe a capacidade de ser mãe.

Noutro texto, defendendo que a fé religiosa é «um método de conhecimento» tão racional como o da ciência, a Isilda aponta como paralelo entre ambas que «a ciência só progride porque no conhecimento científico os homens fazem fé em milhares de factos que já foram experimentados por antepassados»(5). Na verdade, é mais o contrário. Os homens e as mulheres na ciência fazem fé nos relatos dos colegas apenas se os resultados relatados encaixarem com as observações mais recentes. Se alguma alegação antiga destoar, é seguro que será posta em causa e à prova. Mas esta troca da conclusão pela justificação é desculpável. O que é menos desculpável, e possivelmente menos inocente em alguém que escreve sobre a “Fé”, é a confusão entre a fé religiosa e o significado de “fazer fé”. Ter fé implica um empenho emocional forte na crença e defesa de certas ideias. Mas fazer fé não precisa ser mais do que dar o benefício da dúvida enquanto não houver indícios contrários. A atitude do cientista é a de confiar nos resultados publicados pelos colegas porque são concordantes com outros obtidos de forma independente; porque se harmonizam com modelos amplamente testados; e, especialmente, porque se não estivessem correctos isso saltava à vista. Esta atitude de dúvida metódica e fundamentada é muito diferente da fé em afirmações cuja verdade nem as testemunhas originais tinham capacidade para averiguar.

Recomendo os textos da Isilda Pegado pelo seu valor pedagógico. A Isilda recorre a vários truques retóricos para disfarçar disparates mas consegue manter aquela ingenuidade singela de quem se deixou mesmo levar pelos disparates que defende. Por exemplo, que apenas há mulheres a optar pela carreira em vez da maternidade porque «a liberdade de constituir família é paulatinamente afastada através de uma propaganda que sufoca o desejo que está dentro do coração de cada mulher.»(4)

1- Via Facebook. Por deformação profissional incomoda-me não dar a referência completa, mas como não sei qual é a expectativa de privacidade com que as pessoas usam o Facebook, fica só assim.
2- Isilda Pegado, A Teresinha foi coadoptada
3- Isilda Pegado, A família e a sociedade
4- Isilda Pegado, A condição feminina
5-Isilda Pegado, Fé, o grande método da razão

quarta-feira, julho 03, 2013

Austeridade, parte 1: a crise da dívida pública.

Enquanto aguardamos que as moscas mudem, é uma boa altura para pensar na merda em que nos meteram. A justificação consensual para a austeridade, para os cortes e sacrifícios, é que gastámos demais. Segundo este relato, o Estado foi engordando á custa do crédito fácil, que surgiu por entrarmos no Euro, até que os nossos credores disseram basta. Agora temos de cortar as gorduras que são os funcionários públicos e sacrificar o suposto luxo que o Estado nos tem dado. A austeridade é a única forma de redimir este pecado, assegurar os credores e acertar as contas. Mas, além do problema da austeridade sacrificar quem pouco viu do tal luxo, este relato tem também o defeito de ser fictício. Este gráfico mostra a dívida pública e a receita fiscal do Estado português de 1991 a 2012 (1).



Há realmente uns anos de aumento na dívida pública entre 1999, ano da entrada no Euro, e 2005. Mas não foi um aumento dramático, de 51% a 68% do PIB, e estabilizou nos anos seguintes. Houve com certeza maus investimentos, aldrabices e gente a ganhar demasiado dinheiro à custa do Estado, mas não há evidência de uma enorme gula de despesa pública neste período e entre 2005 e 2008 o problema parecia controlado.

A partir de 2009 foi um descalabro, mas um aspecto saliente nesse ano foi a queda da receita fiscal, uma queda tão grande que nem os aumentos sucessivos de impostos desde então conseguiram colmatar. Não é preciso pensar muito para perceber o que aconteceu. O colapso do crédito nos EUA, o seu efeito na economia mundial e o risco de acontecer o mesmo no sistema bancário europeu tiveram um impacto grande na nossa economia. Naturalmente, uma contracção na economia reduz a receita do Estado. Além disso, obriga também a gastar mais em prestações sociais. Também no lado das despesas podemos ver como o relato não corresponde aos dados. O gráfico seguinte mostra a distribuição, em percentagem, da despesa pública com salários, prestações sociais e juros da dívida (2).



O que nos contam é que o Estado acumulou muitas gorduras que agora é preciso cortar, especialmente em funcionários públicos. Mas o que podemos ver é que a fracção dos salários até diminuiu um pouco nos anos a seguir à entrada no Euro, de 37% em 1999 para 32% em 2008. Com os cortes desde então, em 2012 o Estado gastou apenas 18.4% do orçamento em pessoal. Agora vêm novas regras para acabar com esta gordura, aparentemente ainda excessiva, que é ter pessoas a trabalhar para o Estado em vez de converter tudo em PPP. O grande aumento, além dos juros da dívida pública, foi nas prestações sociais. Precisamente aquilo que se espera de uma crise com origem no sector privado, com contracção da economia e despedimentos, e precisamente o contrário do que se esperaria num cenário de esbanjamento público.

Hoje, há realmente uma crise de dívida pública. No final de 2012 o Estado português já devia mais de 120% do PIB e não se vê forma de controlar o défice. Mas a dívida pública é a consequência, e não a causa, de uma crise provocada pelos bancos privados. O que tem acontecido de 2008 em diante, com a cumplicidade dos principais partidos, foi a transferência dos prejuízos causados pelos banqueiros para a grande maioria de pessoas que nem causou nem beneficiou da especulação financeira que nos trouxe até aqui. Nalguns casos, os nossos governantes fizeram-no descaradamente, como quando nacionalizaram as dívidas do BPN ou renegociaram contratos especulativos que nunca deviam ter sido feitos. Mas a maior parte desta redistribuição invertida foi dissimulada pela rábula da austeridade. É este conto do vigário que tem permitido cobrar dos que têm menos para pagar as asneiras dos que ficaram cada vez com mais.

Em 2010 o descalabro agravou-se quando o Estado português deixou de poder pedir dinheiro emprestado por causa do aumento das taxas de juros. Também aqui o relato comum é enganador. Dizem que que os credores nos estão a punir por sermos esbanjadores e que só com despedimentos, salários mais baixos e cortes nos serviços públicos é que podemos recuperar a sua confiança. Ou algo assim. Nunca percebi como a austeridade contribuiria para essa confiança. Com isto escondem o problema fundamental. Enquanto os bancos europeus não precisavam de liquidez, não torciam o nariz aos títulos de dívida de qualquer país no Euro. Pelo contrário. Mas com o colapso da bolha de crédito nos EUA os bancos europeus tiveram de converter alguns activos em dinheiro e, obviamente, despacharam primeiro os de menor qualidade. O resto foi uma combinação das pressões de oferta e procura com o enorme tamanho da banca privada. Mas isso fica para o próximo post.

(Editado no dia 4 para corrigir uma gralha: BPN em vez de BPI)
1- Os valores da dívida e do PIB vieram do Banco de Portugal, e os da receita fiscal doPordata, que converti em percentagem usando os valores do PIB do BdP.
2- Dados do Pordata