sexta-feira, janeiro 04, 2013

Uma nota sobre a nota, parte 2.

Voltando à «nota sobre a ciência»(1), o Desidério aponta, correctamente, que algo não é ciência só por incluir «experiência e […] observação. Pois nesse caso a agricultura empírica seria científica e isso é precisamente o que não é.» Claramente, ser empírico não basta para ser ciência. É preciso também ter teorias, esquemas simbólicos para gerar modelos. Os egípcios e os romanos tinham bons conhecimentos empíricos de construção mas os seus métodos de isto faz-se assim e aquilo faz-se assado não eram científicos. A engenharia civil de hoje é científica porque organiza o conhecimento empírico em esquemas simbólicos, como equações de forças, que permitem gerar descrições detalhadas de cada edifício. Com isto já não estamos limitados a experimentar pirâmides com vários declives até descobrir uma que não desmorone. Podemos prever o comportamento dos edifícios antes até de os construir. Infelizmente, de um parágrafo para o outro, o Desidério deixa de afirmar apenas que a observação e a experiência não são condições suficientes, o que está correcto, e passa a afirmar que a observação e a experiência «não são condições necessárias da cientificidade». Isso já está errado.

Segundo o Desidério, «a observação e a experiência [são] condições necessárias [...] apenas das ciências... empíricas [mas] a matemática tem tanta ou mais cientificidade do que a física ou a química, e no entanto não usa a observação nem a experimentação.» É falso que a matemática não use experimentação ou observação. Sem experiência empírica o matemático seria como um computador, incapaz de escolher axiomas e limitado a manipular símbolos sem perceber o que eles representam. Mas o problema do Desidério não é só este. A matemática permite criar teorias e modelos simbólicos, uma parte indispensável da ciência, mas a ciência, enquanto processo, não se fica pela mera geração de teorias e modelos. Exige que sejam testados. Sem observação e experiência fica-se a meio do processo. O Desidério diz que há duas culinárias, uma que mistura a farinha com os ovos e o açúcar e outra que põe a massa no forno. Não é assim. Ambas as fases do processo são necessárias, na culinária e na ciência.

Por exemplo, Aristóteles propôs que toda a matéria terrena era composta por quatro elementos, fogo, terra, ar e água. Isto é um esquema explicativo que pode ser usado para gerar modelos descrevendo cada substância química como uma certa proporção destes quatro elementos, cumprindo assim um dos requisitos da ciência. No entanto, falta o resto. Por si só, esta proposta não é científica. Para ser aceite como uma explicação científica era preciso considerar as alternativas e recolher dados que indicassem ser esta a melhor explicação. Como isso não aconteceu, classificamos a física aristotélica de filosfia e não ciência.

Criticando o que diz ser «histórias da carochinha», o Desidério depois afirma que «Sempre houve ciência empírica desde que se começou a fazer ciência, na Grécia da antiguidade. O que não havia -- surpresa, surpresa -- era algo como a ideia de que a matemática era aplicável à natureza empírica.» Outro erro. A matemática sempre foi aplicada à “natureza empírica”. Quando Pitágoras demonstrou o seu famoso teorema sabia que os construtores egípcios usavam a relação entre catetos e hipotenusa num triângulo rectângulo para formar ângulos rectos. As operações algébricas de adição, diferença, multiplicação e divisão vêm da necessidade prática de fazer contas acerca da “natureza empírica”. O próprio termo axioma significa algo que é auto-evidente, que vem da experiência e não se deduz. O que faltava à matemática antiga era precisamente o contrário do que o Desidério alega. Faltava a capacidade de se distanciar do evidente e considerar absurdos como curvaturas no espaço-tempo ou números imaginários. E mesmo isso foi ganho pela experiência, que foi revelando um universo muito mais estranho do que inicialmente supunham.

O que faltava antigamente para que fizessem ciência é o que falta agora ao Desidério. A compreensão de que a ciência conjuga, por um lado, a concepção especulativa de modelos simbólicos e, por outro, o teste empírico da adequação desses modelos aos aspectos da realidade que pretendem descrever. É isso, em conjunto, que é ciência. Os engenheiros romanos sabiam amarrar madeiras para arremessar pedregulhos contra os inimigos mas não se preocupavam em modelar forças e trajectórias. Os filósofos gregos teciam elaboradas teorias acerca da origem e natureza das coisas mas não se ralavam com o teste prático das várias alternativas de forma a reunir evidências em favor de uma e em detrimento das restantes. A física de Aristóteles, por exemplo, dominou o pensamento europeu durante séculos mas nunca serviu para prever ou fazer algo que não se fizesse sem ela. Houve excepções pontuais, mas só nos últimos séculos é que se generalizou a ideia importante de submeter a especulação simbólica da filosofia ao crivo empírico da engenharia. É isso que é ciência.

No último parágrafo da sua nota o Desidério afirma que quando «se defende a uniformidade epistémica devidamente certificada e abalizada pelo estado, estamos precisamente a tomar o partido da velha guarda que procurava pôr travão às perigosas ideias novas.» Se isto é uma alusão à discussão sobre a homeopatia, uma das razões pelas quais sou contra que o Estado certifique os homeopatas é precisamente por não competir ao Estado determinar o que é epistemicamente aceitável. Isso é o que faz a ciência. Não a ciência aos pedacinhos, como o Desidério a concebe, partida em ciências de várias cores e sabores, mas a ciência como um todo, o processo contínuo de gerar explicações, considerar alternativas, confrontá-las com os dados, aperfeiçoar e voltar a gerar novas explicações. É isso que permite concluir que a homeopatia é treta, uma boa razão para o Estado não certificar homeopatas.

1- Desidério Murcho, Uma nota sobre a ciência. Ver também a primeira parte deste post.
2- A incompreensão profunda das diferenças cruciais, com seguimento aqui e aqui.

15 comentários:

  1. Bom, a validação empírica faz essencialmente parte das áreas da ciência que podem ser validadas empiricamente; nas restantes, a recolha sistemática de informação pode ser feita com recurso a metodologias que não sejam empíricas. Isto não significa que não exista uma «validação» da própria metodologia, inclusive pelos pares, mas o que não é forçoso é que essa validação seja empírica (ex. descrições antropológicas, estudos caso, etc.). Em geral, no entanto, as áreas da ciência que são susceptíveis de validação empírica são mais robustas; por exemplo, é pouco plausível que existam métodos que consigam validar o funcionamento da homeopatia, já que o que mais abunda é justamente o contrário: há catrefadas de testes empíricos que mostram que pura e simplesmente não funciona.

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  2. «Quando hoje (...) se defende a uniformidade epistémica devidamente certificada e abalizada pelo estado, estamos precisamente a tomar o partido da velha guarda que procurava pôr travão às perigosas ideias novas».

    Ora uma dessas “perigosas ideias novas” até parece validar o funcionamento da homeopatia, confirmando a famosa "memória da água" de Benveniste ou a surpresa das altas diluições aquosas.

    O Prémio Nobel da Medicina, Luc Montaigner, tem realizado uma série de experiências com radiações eletromagnéticas de baixa frequência, que provam a capacidade do ADN de vírus e bactérias se regenerar em soluções aquosas esterilizadas, após serem previamente infetadas por tais microrganismos.

    New evidence for a non-particle view of life

    DNA Waves and Water (2010)

    «In stating the principle, all life comes from life, a principle which has never been shown to be violated in any experiment to date, it is usual to envision some material process, such as egg and sperm, spore, or cell division, as the responsible agent. In the results reported here, however, the life principle appears to be transmitted, not by the immediate presence of a material substance, but mediately, in connection with a signal detectable by electromagnetic apparatus. (...)
    The attempt to reduce the principle of life to something derivable from the laws of chemistry and physics was never very satisfactory. The argument of the vitalists, that an animating principle must be superimposed upon the presumedly self-evident material substance of living matter, also had its limitations. With the results of Montagnier, we recognize that the principle, omne vivum ex vivo, still holds, but only on the condition that we adopt a non-particle conception of life.»

    Ou seja, o princípio da vida não está nas partículas físicas mas na radiação eletromagnética mensurável numa solução aquosa ultra-diluída e sem outras moléculas, tal como Benveniste há muito anunciou.

    Resta saber se as experiências de Montaigner já foram replicadas por outros cientistas, mas este é seguramente um passo importante para o reconhecimento de que o princípio da vida reside na consciência primordial, segundo a fórmula: consciência −> energia −> matéria.

    Ah! e estas até são ideias muito velhas, agora recuperadas com outras roupagens mais modernas... but it's the same old truth after all! :)

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  3. «...é pouco plausível que existam métodos que consigam validar o funcionamento da homeopatia, já que o que mais abunda é justamente o contrário: há catrefadas de testes empíricos que mostram que pura e simplesmente não funciona.»

    A respeito das tais "catrefadas", convém recordar que existem mesmo cisnes negros, quem diria! So remember this final test of empirical truth:

    «Nenhum número de experiências, por muitas que sejam, poderão provar que tenho razão. Mas será suficiente uma só experiência para demonstrar que estou equivocado.» − Albert Einstein

    E Benveniste tem razão na memória da ultra diluição! :)

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  4. o Desidério é filósofo e o Desidério acha que cabe aos filósofos distinguirem o que é ciência do que é treta, mas esquece-se o Desidério os filósofos hoje não tem bases cientificas que lhe permita saber distinguir ciência do que é não ciência pois para quem cursa áreas das ditas ciências sociais e humanas e não possua o conhecimento mínimo de biologia, física e química de nada adianta estabelecer um diálogo sobre esta temática! As excepções só confirmam a regra, dai que para o Desidério seja tudo a mesma coisa, que o estado não deva intervir e que as pessoas possam escolher para elas o que é melhor, segundo o que acham e não o que comprovam, por isso o Desidério defende a homeopatia porque o Desidério como a maioria dos filósofos hoje não sabe o que é a ciência na actualidade, trata-se aqui simplesmente do desconhecimento do método cientifico, elementar na avaliação das pseudo ciências e tretas afins!

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  5. Suponho que o Armando conhece as opiniões da 'maioria dos filósofos'.

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  6. Eu diria que o Armando não se enxerga.

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  7. Desta feita, nada a obstar à posição do Ludwig.

    Parece que para o Desidério basta haver uma sistematização mais ou menos articulada por cima de uma enorme curiosidade para haver ciência, como se bastasse grama a crescer num baldio para se ter um jardim.

    A única forma de dar alguma razão ao Desidério é distinguir entre ciência primitiva e ciência moderna. Isso seria uma terrível escolha de palavras já que aquilo a que se chama (e deve chamar) ciência hoje (sistemática, teórica, empírica, experimental e fazendo uso da "dialética" da revisão por pares), e que seria então a "ciência moderna", difere tão fundamentalmente da que seria a primitiva (grega pré-socrática e similar) que só levaria a equívocos sobre o carácter do conhecimento humano. Um pouco como chamar a qualquer antepassado genealógico do homem um "humano primitivo", mesmo que tivesse 10 cm e rastejasse na lama. Não é propriamente esclarecedor...

    O que é fundamental é apreender o carácter do conhecimento científico moderno e identificar e reconhecer o que deve aos nossos antepassados. Esse legado é muito importante e penso que é para os mitos acerca da sua importância que o Desidério nos quer alertar.

    Há que lhes reconhecer o devido valor, mas isso não implica pôr tudo na mesma gaveta.

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  8. As equações matemáticas utilizadas pela ciência não precisam ser comprovadas pela experiência empírica. Quem quiser ler mais sobre esta questão poderá ir a site de Max Tegmark, do departamento de Física do MIT. Ou ler uma entrevista dada por ele, disponível na net. Dado que é um cientista, deve saber do que está a falar.

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  9. Desidério e Ludwig... a Bíblia já falava deles:

    "Deixai-os; são condutores cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova." Mateus 15:14

    Hoje sabe-se que o teorema de Pitágoras já existia pelo menos 1000 anos antes de Pitágoras...

    Também se sabe que os arquitectos e engenheiros da antiguidade deixaram obras colossais, tendo os engenheiros romanos ensinado muito do que sabemos actualmente

    Na verdade, os arquitectos e engenheiros do passado eram tão incrivelmente competentes, que muitos hoje ainda acreditam que só podiam ter sido ajudados por extraterrestres

    A Bíblia ensina que os seres humanos eram inteligentes desde o início. No entanto, também é verdade que a Bíblia não deixa de conter algumas referências misteriosas e enigmáticas aos "gigantes da antiguidade" prediluviana...

    Em Génesis lê-se:

    "Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama." Gênesis 6:4

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  10. Alfredo,

    Claro que as equações não precisam de ser comprovadas, tal como os verbos, advérbios e preposições. São elementos da linguagem, podemos fazer deles o que quisermos. Assim, se eu escrever

    x=y^2

    ninguém tem sequer como testar isto.

    Mas isto assim ainda não é conhecimento acerca da realidade. É apenas um conjunto de símbolos. Para ser acerca da realidade temos de afirmar também alguma relação entre esses símbolos e aspectos da realidade. Trajectórias, crescimento de microorganismos, o que quisermos. A hipótese de que, com essa correspondência, a equação se torna um bom modelo desses aspectos da realidade tem de ser testada empiricamente e sem esse teste não se pode justificar que a hipótese é verdadeira nem se terá conhecimento acerca da realidade.

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  11. Uma mera sequência de símbolos sem significado preciso não é uma equação.

    Mas também não se pode dizer que testamos X = 10-3. Quando muito poderemos dizer que se tivermos 10 bolos e comermos 3 ficamos com 7 (e vontade de comer mais alguns) e que, por isso, X = 7.

    Mas que é que isso prova? Em que é que isso pode demonstrar que a vida surgiu por acaso ou que o Universo surgiu do nada sem causa?

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  12. A matemática é um instrumento precioso para medir/descrever/quantificar (pesar, contar, representar, organizar,dimensionar,calcular...)a natureza, porque, de algum modo, a natureza é constituída por extensão, no espaço/tempo, sendo que as medidas se revelam, não raro, relativas, ou até perfeitamente implausíveis para caraterizar a natureza fora de um certo paradigma.
    Agora, a questão que me ocorre é a seguinte: que conhecimento tem ou pode ter das mais diversas realidades uma pessoa que não saiba ou não faça qualquer uso da matemática, até da mais elementar?
    Pitágoras terá descoberto «que era possível estabelecer uma teoria musical em termos matemáticos: não meramente uma teoria acústica, que revelasse as diferenças de tons, mas uma teoria estética, que revelasse a diferença entre concordância e discordância. A "natureza" dos sons musicais, quer a sua natureza acústica, quer a sua natureza estética, foi estabelecida ao determinar-se as consequências do princípio de que a "natureza" de uma coisa - aquilo que nela a faz comportar-se de determinada maneira - não é aquilo de que é feita mas sim a sua estrutura, tal como esta estrutura pode ser descrita em termos matemáticos».
    No que estou a pensar é na relação que possa existir entre o conhecimento matemático das coisas e o significado, o sentido, a relevância/importância das coisas para mim, para a minha vida, tal como a sinto e a experimento, e para cada homem/humanidade. Parece haver uma relação de instrumentalidade do homem para com o mundo, considerando que do mundo também faz parte, de algum modo, o corpo do homem, não a "alma", que se distancia do conhecimento/matemática das coisas, do tempo/espaço, da própria vida e da própria memória. E este distanciamento ocorre (decorre?) mesmo depois (não antes?) de toda a experiência e de todo o conhecimento e de toda a poesia e de toda a matemática, mas não é matemático nem descritível em termos matemáticos (digo eu). E interrogo-me se Pitágoras terá composto alguma música e se o conhecimento da teoria matemática da música poderia ter ajudado Mozart a compor melhor.

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  13. Dado que a matemática em si mesma não é conhecimento acerca da realidade - há muitos elementos em matemática que não têm aplicação prática - pelo menos para já - isso significa que a matemática não é ciência?

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  14. Alfredo,

    A matemática é muito usada em ciência e faz parte da ciência. Mas a matemática não é ciência (os termos não são sinónimos) nem é uma ciência (a ciência é um conjunto de métodos e conhecimento que organizamos em várias disciplinas, mas é um corpo coerente e interligado e não um saco de coisas diferentes).

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  15. A matemática não é ciência? Quem pensa assim além de ti?

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