quarta-feira, junho 27, 2012

Evolução: o ancestral comum.

O Orlando Braga voltou à carga com a coisa das probabilidades, desta vez confundindo os odds (em Português “quota”) com probabilidade (1). Em jogos de azar é comum usar esta medida porque corresponde à proporção entre o valor apostado e o valor a ganhar pela aposta. Se o jogo fosse perfeitamente justo – não é, em geral, senão os organizadores não ganhavam dinheiro – os odds corresponderiam à proporção entre as probabilidades de ganhar e de perder e não à probabilidade em si. O texto do Orlando é confuso, mas dá ideia de que ele entende que, por exemplo, odds de 3 para 1 contra o cavalo ganhar quer dizer que o cavalo tem um terço de probabilidade de ganhar. Não é. A probabilidade é de um quarto. Isto porque a soma das probabilidades é 1 e odds de 3 para 1 contra ganhar significa que não ganhar é três vezes mais provável do que ganhar. Fazendo as contas, dá ¼ de probabilidade de ganhar e ¾ probabilidade de não ganhar. Recomendo ao Orlando que se informe melhor antes de apostar nos cavalos.

Tal como com as probabilidades, também com a teoria da evolução o Orlando tem relutância em poluir os seus preconceitos com informação. Nem sequer gosta de ler o material que refere. Afirmando que «o genoma de uma vaca leiteira e o genoma da baleia azul são tão semelhantes entre si, como são semelhantes entre si os genomas do chimpanzé e o genoma do homo sapiens sapiens» (2), refere um artigo que explica como a análise de inserções de DNA viral nos genomas de várias espécies permite inferir a sua filogenia (3) mas que não diz nada daquilo que o Orlando alega. O que, aliás, é disparate. O chimpanzé, o bonobo, o gorila, o orangutango e o humano estão todos na mesma família, Hominidae. O ramo que junta vacas e baleias inclui cerca de duas dezenas de famílias, com veados, hipopótamos, golfinhos, girafas, antílopes e outros (4).

Deixando as críticas negativas, vou pegar numa pergunta do Orlando e fingir que lhe interessa a resposta. Sempre é uma desculpa para falar do tema. Escreve o Orlando que «a simples comparação entre genomas não permite deduzir que duas espécies diferentes terão tido um ancestral comum», perguntando «Em que base científica se pode deduzir tal coisa?». Tem razão que não se pode inferir um ancestral comum se só conhecermos duas espécies e mais nada. Felizmente, sabemos muito mais do que isso. Conhecemos os mecanismos moleculares de hereditariedade e mutação. Conhecemos o registo fóssil, o decaimento radioactivo, os mecanismos de erosão e movimentos tectónicos, e assim por diante. Da mecânica quântica à geologia, passando pela bioquímica e genética de populações, há um vasto corpo de conhecimento a apontar todo para o mesmo resultado. Evolução pela acumulação de variações herdadas. Sabendo isto, temos uma explicação bem fundamentada para as semelhanças e diferenças entre dois genomas. Além disso, conhecemos muito mais do que dois genomas. E com mais do que dois já se pode inferir um ancestral comum mesmo sem considerar o resto.

Consideremos 23 proteínas, cada uma variando em 12 espécies diferentes. Podemos organizar as espécies de acordo com as diferenças em qualquer uma das 23 proteínas e, se não assumirmos nada acerca do mecanismo que originou estas diferenças, há muitas formas possíveis de o fazer. Só em árvores de família há cerca de treze mil milhões de possibilidades, para cada proteína. À partida, seria uma grande coincidência darem todas a mesma árvore. Por outro lado, se as diferenças surgiram pela acumulação de mutações herdadas de um antepassado comum, a árvore será a mesma para todas as proteínas. Em 2012 Douglas Theobald fez estes cálculos, considerando 23 proteínas presentes nos três domínios (Archaea, Eubacteria e Eukaria) e quatro espécies de cada domínio, avaliando os modelos possíveis para relacionar estas espécies sem assumir, à partida, que descendiam de um antepassado comum. Os parâmetros dos modelos eram variáveis, e ajustados de forma a maximizar a plausibilidade. O resultado foi que os modelos que indicavam um antepassado comum eram claramente mais plausíveis. Sob uma interpretação baesiana dos valores finais, a hipótese de haver um antepassado comum para todos os seres vivos «é pelo menos 102860 vezes mais provável do que a hipótese alternativa mais próxima»(5). Mesmo ignorando tudo o que sabemos acerca de biologia, geologia, física e paleontologia, quando precisamos de 2860 zeros para escrever quantas vezes um modelo é mais provável do que as alternativas é evidente que temos uma boa “base científica” para o aceitar. Assumindo, é claro, que não ficamos baralhados com a tal coisa das probabilidades.

1- Orlando Braga, Tira-teimas. Ver também Odds e Quota
2- Orlando Braga, Um novo blogue politicamente incorrecto
3- Different Species With The Same "Junk DNA"
4- Jerry Coyne, A new phylogeny of the mammals
5- Douglas Theobald, A formal test of the theory of universal common ancestry, Nature, 465, 219–222 (May 2010). Pdf disponível aqui. Ver também Converging Evidence for Evolution

terça-feira, junho 26, 2012

Projecto de Lei 228/XII.

O Projecto de Lei 228/XII, proposto pelo PCP, visa semi-legalizar a partilha de ficheiros sem fins comerciais em troca de uma taxa mensal de 0,75€ sobre o acesso à Internet. “Semi” porque «Excluem-se do âmbito da presente lei os programas informáticos e as publicações periódicas» e porque só se aplica a obras «cuja partilha não tenha sido [...] expressamente proibida [pelos detentores dos direitos].»(1) Dois problemas práticos óbvios são o da cobrança e o da distribuição. O PCP pretende que a taxa incida apenas sobre os lucros das empresas que fornecem o serviço de acesso à Internet mas será inevitável que essa despesa passe para consumidor. E o dinheiro reverterá para associações de cobrança de onde dificilmente sairá para as pessoas certas. Mas o que eu quero focar aqui são dois problemas mais fundamentais, do conceito e não da implementação.

O primeiro é o argumento de que, havendo um «benefício material de facto para os fornecedores de serviços de acesso à internet» devido à partilha de ficheiros para fins pessoais, então pode-se concluir que «existe de facto a apropriação ilegítima de uma mais-valia sobre os conteúdos que circulam por via telemática» por parte destes fornecedores. Esta inferência não é válida. Em primeiro lugar, para ser uma apropriação é necessário que, no cômputo geral, o benefício para o fornecedor de serviços de acesso (ISP) implique um prejuízo para o sector cultural pela perda de um valor correspondente. Não é esse o caso porque a Internet, ao facilitar a criação e divulgação de obras, traz mais-valias ao criador também. Que não devemos considerar como sendo apenas o criador de obras comerciais. Por exemplo, este post, mesmo que de valor cultural modesto, sempre tem mais valor com a Internet do que teria se o escrevesse à mão e o afixasse na parede do meu quarto. Se considerarmos todos os criadores, todas as formas de criação e todas as formas comercializar a criatividade, desde concertos musicais à venda do serviço de criar a obra em vez da licença de acesso (2), é evidente que o benefício é mútuo, tanto para a cultura como para os ISP. E se ambos beneficiam não é apropriação.

A apropriação restringe-se apenas ao transporte das obras. Agora, em vez de circularem em rodelas de plástico e resmas de papel para lucro das empresas de cópia e distribuição, são transmitidas em bits, de pessoa para pessoa, por mero gozo ou boa vontade. Se bem que isto seja apropriação, porque o benefício de uns vem à custa de um prejuízo para os outros, além de afectar apenas uma parte pequena, e cada vez menos relevante, do sector cultural, não se pode assumir que seja uma apropriação ilegítima. Por exemplo, durante o século XX ocorreu um problema análogo com os transportes rodoviários e aéreos, que cresceram muito por se apropriarem, aos transportes fluviais e ferroviários, de grande parte do negócio de transportar pessoas e mercadorias. No entanto, a apropriação foi legítima e não justifica qualquer compensação. A tecnologia melhorou, mudou-se o meio de transporte. É isso que se passa com a Internet. Tal como a CP não tem legitimidade para exigir monopólios e compensações pelas pessoas andarem de carro, também as editoras não têm direito a monopólios e compensações pela partilha de ficheiros. A única diferença é que as editoras já têm esses monopólios, concedidos pela lei, o que cria a ilusão de que estão a sofrer uma injustiça. Mas é ilusão. A injustiça está nos monopólios e não na partilha.

Mas o maior problema desta lei, e do copyright que temos agora, é presumir que o direito de partilhar informação só deve ser exercido se não prejudicar o comércio de cópias. Isto é uma inversão absurda de valores. O direito de enviar sequências de bits uns aos outros faz parte da nossa liberdade de expressão, do nosso direito de acesso à cultura e informação e até do nosso direito à privacidade, que implica ser ilegítimo bisbilhotarem as nossas comunicações. Estes direitos estão a um nível muito superior ao do alegado direito a um monopólio que facilite o lucro de um certo modelo de negócio. Se bem que os legisladores portugueses estejam limitados por tratados internacionais, e se bem que esta proposta pareça ser um passo na direcção certa de despenalizar a partilha, o facto é que este passo, na prática, entala-nos ainda mais na premissa de que deve haver um compromisso entre os nossos direitos fundamentais e os lucros de certas empresas. Nisto não deve haver compromisso nenhum.

A solução correcta é restringir os monopólios sobre a cópia apenas à exploração comercial. Assim já faz sentido discutir soluções de compromisso entre os vários benefícios e compensações porque já se está a lidar com valores ao mesmo nível. É tudo acerca do direito de ganhar dinheiro com um negócio. Mas é preciso que a lei subordine o negócio aos nossos direitos fundamentais em vez de fazer o contrário. Admito que não será fácil mudar tão radicalmente o rumo que a legislação tomou nestas últimas décadas, à força de muito lobbying. Mas é necessário fazê-lo e estas medidas de compromisso apenas vão adiando a resolução do problema principal.

1- Assembleia da República, Regime Jurídico da Partilha de Dados Informáticos
2- A ideia de serviços como o Kickstarter é do público pagar pelo trabalho de criar a obra em vez de pagar uma autorização para aceder aos bits que a codificam depois do trabalho feito. Faz muito mais sentido.

domingo, junho 24, 2012

Treta da semana: mais poupança.

No ano passado o site Poupar Melhor publicou um artigo criticando o Moletech (1), um dispositivo de cerâmica que se põe no depósito de combustível do automóvel e, alegadamente, permite grandes poupanças porque «absorve a energia térmica a partir do seu ambiente circundante, em seguida, liberta-o em comprimento, quebrando a força intermolecular de “van der Waals” (a força que une as moléculas)» (2). Entretanto, o Luís Capucho, consultor que presta serviços como «REDUÇÃO DE COMBUSTIVEL DE 7 A 20% ( CONTRATUALMENTE GARANTIDO),COM RETORNO DE INVESTIMENTO na ordem dos 10.000KM percorridos E GARANTIA DE 10 ANOS!» (3) (maiúsculas no original) e que já comentou o tratamento neste blog de um tema semelhante (4), veio pedir ao Poupar Melhor que retirasse «a Difamação no post Inicial», apontando que «Marcas que sabem o que fazem podem-nos colocar um processo em Tribunal por Difamação, o que não há qualquer interesse nisso.» (1, nos comentários). Perante este dois-em-um de ameaças legais e quebras da força de van der Waals com energia térmica libertada em comprimento, gostava de separar o post em duas partes.

Primeiro, a lei. O artigo 217º do Código Penal estipula que «Quem, com intenção de obter [...] enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem [...] prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.» É portanto possível que alguém que venda coisas inúteis alegando grandes vantagens acabe por ser punido. Possível, mas improvável, porque o artigo 180º estipula que «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração [...] é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.» Ou seja, se nos depararmos com uma burla temos de ter cuidado em não ofender o burlão, não vá o advogado dele ter mais sorte que o nosso. Por isso, e à cautela, quero esclarecer que apenas discuto esta legislação sobre a burla em abstracto, sem qualquer relação com este caso concreto e sem dirigir a terceiros qualquer imputação ou formulação de juízos acerca da Moletronic, do Moletech ou do Luís Capucho. Felizmente, talvez por dificuldades práticas, os legisladores decidiram só punir juízos ofensivos quando dirigidos a terceiros. Em privado, ainda somos livres de pensarmos o que quisermos desta gente, por muito ofensivo que seja. Dessa liberdade tenciono usufruir em pleno.

Esclarecido o contexto legal, passo então aos factos que ou simplesmente o são sem que seja preciso imputá-los, ou que as entidades referidas imputam a si próprias. Espero que nada disto justifique que me processem. Segundo o site da Moletech em Inglês, «os nossos produtos conseguem libertar uma energia térmica num comprimento de onda específico, i.e. de poucos mícron a 20 mícron [...] Esta energia específica, em conjugação com a força de van der Waals, modifica a agregação de moléculas de agrupamentos para moléculas separadas»(5). A primeira parte parece-me aceitável. A gama de comprimentos de onda referida corresponde aos infravermelhos, e é natural que a cerâmica deles liberte energia térmica nesta gama. A cerâmica, o arroz de pato, a minha testa e tudo o que mais esteja à temperatura ambiente ou perto disso. Incluindo a gasolina no depósito, mesmo antes de atirar para lá a cerâmica. Daí que seja difícil aceitar a segunda parte da alegação.

Segundo o site português, os «resultados são validados» por algo que é designado como «Departamento de Engenharia Ambiental da Califórnia (CEE) - Centro de Pesquisas Ambientais»(6) ou «CEE (laboratório de testes EPA ambiental dos Estados Unidos acreditado EPA ambiental)»(7), um laboratório privado de medição de emissões automóveis (8) que costuma dizer bem de muitas coisas destas. Por motivos legais, não ponho em causa a idoneidade do laboratório. Mas não posso deixar de apontar, por ser curiosamente grande, o número de métodos extraordinários de poupança que esta empresa encontra entre as empresas que lhe pagam para isso (9). A julgar pelos relatórios, se juntarmos estes dispositivos na mesma viatura até devemos conseguir pôr o motor a produzir gasolina a partir do CO2 atmosférico.

Infelizmente, a realidade ou, segundo alguns, a conspiração mundial promovida pelas empresas petrolíferas, não justifica tanto optimismo. Por exemplo, o Departamento de Comércio do estado da Austrália Ocidental concluiu que estes dispositivos não funcionam e, por isso, mandou retirá-los do mercado e recomendou aos compradores que exigissem o reembolso (10). Mas não desesperem. Estas invenções geniais são tão fáceis de criar como põr uma página na net e inventar um nome. Cá em Portugal ainda vendem a versão antiga, mas agora o que está a dar é o Greentech. Este não só melhora o combustível mexericando nas forças de van der Waals como tem também um dispositivo para aumentar o oxigénio no ar «neutralizando o poluente flutuando no ar como poeira, emissão, germes, pólen, fumo de tabaco, fungos e todas as outras espécies que possuem iões positivos» (11). Este sistema garante assim o dobro da poupança real do anterior. Que continua a ser zero, mas isso fica aqui entre nós não vá o Luís zangar-se.

1- António Sousa, Poupar Melhor, Equipamentos que não poupam combustível. Obrigado pelo email com a dica.
2- Citado da página do representante em Portugal, Moletronic
3- LMConsultadoria, na página “Serviços”.
4- Treta da Semana: Poupança Magnética.
5- Moletech, Research.
6- Moletronic, Como Funciona, Quanto se Poupa?
7- Moletronic, Desenvolvimento
8- California Environmental Engineering 9- Por exemplo, o Microlon, a Nanotech Fuel Corporation, o Ethos Fuel Reformulator, Biofriendly Green Plus. Mais sobre isto no How to spot a psycopath.
10- DOCEP, Questionable Fuel Saving Device - Mtech Fuel Saver
11- Greentech fuel saver, About Greentech fuel saving device, via How to spot a psycopath.

sábado, junho 23, 2012

Head crash.

Num disco rígido, os pratos rodam a cerca de cem voltas por segundo e as cabeças de leitura têm de ficar muito próximas da superfície dos pratos, que passa a uns cem quilómetros por hora. A essa velocidade, é importante que não se toquem. Normalmente, as cabeças são mantidas no sítio pelo fluxo do ar arrastado pelos pratos. No entanto, se alguma impureza ou choque perturba a posição da cabeça, está tudo estragado. A designação head crash é sugestiva não só do que se passa no disco mas também da vontade do utilizador em dar cabeçadas se porventura descurou as cópias de segurança.

Felizmente, no meu caso, o head crash só afectou o disco. Costumo ter cuidado com os backups e tudo o que seja importante guardar copio para vários discos. Por isso, apesar do disco estar cheio de tralha (todos os discos ficam cheios de tralha em pouco tempo, independentemente da capacidade), só precisava de recuperar umas filmagens do aniversário dos miúdos, que tinha tirado da máquina pouco tempo antes do crash. Graças ao TestDisk consegui recuperar a partição e aqueles ficheiros que me interessavam. Mesmo a tempo. O contacto entre a cabeça e o prato não só danifica o prato naquela pista. Também liberta pequenos fragmentos de metal que acabam por afectar as outras cabeças, propagando os problemas. Ao fim de pouco tempo o disco ficou inutilizável.

Como comprei o disco em Abril de 2010, já está fora dos 2 anos de garantia. Seja como for, não me parece boa ideia entregar um disco rígido a desconhecidos, se tem informação pessoal. Mesmo que pareça estragado. Portanto, decidi desmontá-lo para a fotografia e sempre posso usar os pratos para assustar os pássaros da horta. O da direita está menos danificado, com o aspecto de um prato saudável. No da esquerda nota-se uma linha bem marcada devido à cabeçada que levou.

pratos

Se bem que, nesta fase, seja muito improvável que alguém se dê ao trabalho de levar os pratos do disco, limpá-los, montá-los no hardware adequado, alinhá-los e tentar recuperar os ficheiros só para ver os meus extractos bancários e fotos da família, também não custa esfregar umas vezes com os ímanes que ancoram as cabeças de leitura (mas cuidado com os dedos; estes ímanes não são como os do frigorífico). Julgo que isso baste para destruir a informação na superfície magnética do disco.

terça-feira, junho 19, 2012

Economismo, parte 2.

O Rui Albuquerque criticou o meu post anterior, que caracterizou de «cheio de afirmações e desprovido de quaisquer demonstrações». Apelando ao rigor científico, pediu-me para fundamentar a alegação de que os impostos elevados «“não destroem a economia”» com detalhes acerca da política fiscal dos EUA no período que eu referi (1). Mas eu apenas rejeitei a alegação dele, que impostos elevados são «a fórmula necessária e suficiente para a destruição de qualquer economia»(2). Para isso basta dar um exemplo de uma economia que tivesse aguentado impostos elevados sem ruir. Se o Rui quiser mais detalhes, que consulte a explicação da Priscila Rêgo (3). Entretanto, fico à espera do fundamento empírico dele para a regra que enunciou.

A seguir, o Rui questionou algumas afirmações minhas, classificando-as «de simples conteúdo ideológico [sem] sombra de demonstração»(1). Primeiro, que “Quanto mais dinheiro se tem mais fácil é obter o dinheiro dos outros” (4). Isto é fácil de demonstrar. Quem tem muito dinheiro pode fazer tudo o que poderia fazer sem dinheiro, mais tudo o que só pode fazer com dinheiro. Logo, tem mais opções. Além disso, um dos fundamentos do capitalismo é que o dinheiro pode servir para ganhar mais dinheiro. Que “a melhor forma de enriquecer no sector privado é apropriando-se da riqueza criada por outros” também é fácil de demonstrar. Por muito enérgico e talentoso que um indivíduo seja, só tem 24 horas por dia para trabalhar. Mas se contratar mil empregados e ficar com 10% da riqueza que cada um gerar pode ganhar muito mais. É por isso que quem monta um negócio contrata empregados. Não é para fazer favores, caridade ou combater o desemprego. É porque lucrar com a riqueza que os outros produzem é a melhor maneira de enriquecer. Por muito bem que chute a bola, o Cristiano Ronaldo não consegue ganhar mais do que o Belmiro de Azevedo, com quase quarenta mil a trabalhar por ele.

O Rui pede-me também que demonstre que a riqueza “é simplesmente um somatório de preços”. O conceito é complicado e varia muito com o contexto mas, em economia, a riqueza acaba por ter de ser quantificada em unidades monetárias. Ou seja, em preço. Se o Rui, quando fala de riqueza, não está a falar de euros então que explique o que quer dizer. Também é fácil perceber porque é que a economia privada sem redistribuição é insustentável. No mercado livre, a riqueza de cada um vai variando, seja por mérito, demérito, sorte ou falta dela. No entanto, enquanto que no extremo inferior se torna cada vez mais difícil obter os meios para enriquecer – o esforço, por si só, não basta, especialmente de barriga vazia – no extremo oposto acontece o contrário. Os ricos têm sempre mais opções e mais poder para as concretizar. Como há um limite para a desigualdade que uma sociedade pode comportar até que a AK-47 se torne mais relevante do que a conta bancária, sem mecanismos de redistribuição é só questão de tempo até que a economia colapse. Mas esta é das tais regras universais que se pode facilmente refutar com um contra exemplo. Basta ao Rui indicar um país onde haja estabilidade e prosperidade sem redistribuição.

É óbvio que, ideologicamente, eu e Rui divergimos muito. Seria interessante identificar os pontos chave dessa divergência mas, antes disso, temos de resolver a confusão entre valores e factos. O Rui pergunta se eu estou «satisfeito com a evolução da justiça, da segurança, da saúde e da educação de Portugal». Não estou. Subjectivamente, gostaria que fossem melhores. Mas, objectivamente, na última década a esperança média de vida subiu quase 3 anos (5) e o número de licenciados duplicou (6). Uma coisa é discutirmos se isto é bom ou se poderia ser melhor. Outra, bem diferente, é saber se há uma forma prática de obter o mesmo resultado com menos dinheiro. Podemos discutir qualquer um destes aspectos, mas é crucial distingui-los. Da minha satisfação, ou falta dela, não se pode inferir que os impostos destroem a economia ou deterioram a saúde e a educação.

Este problema é ainda mais claro com a justiça e a segurança. Num post posterior, notando que o número de seguranças privados já ultrapassou o dos agentes policiais, o Rui pergunta «se a iniciativa privada já cumpre melhor aquela que é a primeira justificação da existência do estado – a segurança dos cidadãos – por que não o poderá fazer com todas as outras?»(7). Objectivamente, o papel da segurança privada é diferente do da polícia e, para garantir que todos são livres de transaccionar os seus bens e trabalho é preciso uma polícia que proteja todos por igual. Se a substituímos por guardas a soldo temos um sistema como o feudal, no qual os pobres não tinham propriedade. Eram propriedade. Se o Rui defende, subjectivamente, que esse sistema é melhor, então que seja explícito nos seus critérios para podermos decidir se aceitamos o seu juízo de valor. Se, por outro lado, defende como facto que a segurança privada garante a todos os mesmos direitos que a polícia, então afirme-o claramente e justifique a afirmação. Esta misturada de que «a iniciativa privada já cumpre melhor» esta função do Estado deixa-nos sem saber nem qual é, objectivamente, a função que refere nem, subjectivamente, que critérios invoca para a considerar melhor cumprida.

O que talvez seja de propósito. Suspeito que os valores deste liberalismo do Rui sejam tão repugnantes, e os factos que presume tão inverosímeis, que a única forma de o defender seja misturando tudo na esperança que a confusão disfarce o disparate.

1- Rui Albuquerque, que tretas!
2- Rui Albuquerque, economia capitalista e “economia” parasitária
3- Priscila Rêgo, O que sabemos (mesmo) acerca dos impostos
4- Treta da semana: economismo.
5- Index Mundi.
6- Jornal de Notícias, Licenciados duplicam em dez anos
7- Rui Albuquerque, mais uma das coisas que «só o estado pode garantir»

domingo, junho 17, 2012

Treta da semana: economismo.

A ciência exige que as opiniões sejam formuladas com rigor e avaliadas de acordo com evidências e não por critérios ideológicos. É este o segredo do progresso científico e tecnológico. Infelizmente, na economia isto parece difícil de fazer. Talvez pela complexidade dos processos que modela e pela sua importância para várias ideologias, muitas vezes mais parece algo como a teologia, o criacionismo ou uma medicina alternativa. O Rui Albuquerque dá um bom exemplo disto num post recente, que começa alegando que «Impostos elevados sobre o rendimento das pessoas e das empresas são a fórmula necessária e suficiente para a destruição de qualquer economia»(1).

Tal como a lei dos semelhantes na homeopatia (2), isto é demonstradamente falso. Nos EUA, o imposto máximo sobre rendimentos variou entre 28% e 92% nos últimos 60 anos. A média do crescimento anual do PIB quando o escalão máximo não ultrapassava os 35% foi pouco mais de metade do que quando o escalão máximo estava acima dos 75% (3). Esta correlação não permite concluir que impostos elevados promovem o crescimento mas permite rejeitar a hipótese de que impostos elevados destroem a economia. Até é fácil perceber porque é que a regra do Rui é falsa. Nos rendimentos mais elevados, o dinheiro não incentiva tanto como nos rendimentos mais baixos. Se um operário tiver de pagar 90% do seu salário em impostos o mais provável é preferir o fundo de desemprego. Mas é pouco plausível que o Mourinho desistisse da carreira por pagar 90% de impostos sobre os 22 milhões que recebe por ano, na premissa de que 200.000€ limpos por mês não chegam para persuadir alguém a treinar futebolisas.

Enquanto os criacionistas descrevem a teoria da evolução como “as coisas surgiram por acaso”, o Rui Albuquerque descreve «O pressuposto da utilidade tributária» como «o estado e o governo podem criar riqueza e prosperidade com o dinheiro retirado aos seus legítimos proprietários». Ambos falham o alvo. O que acontece é que um Estado exige recursos para ser mantido e um Estado é necessário para se poder gerar riqueza e prosperidade. Não se presume que é o Estado quem vai criar riqueza mas sim que sem um Estado – sem leis, defesa, educação, infraestruturas, governo, etc – não se consegue criar tanta riqueza e prosperidade. Além disso, a tributação tem também a função de redistribuir a riqueza para compensar a instabilidade do mercado. Quanto mais dinheiro se tem mais fácil é obter o dinheiro dos outros. A longo prazo, isto dá chatice se não se compensar com um fluxo contrário. E tem também a função de distribuir equitativamente o esforço de manter o Estado, cobrando mais a quem menos custa pagar.

Depois vem a abordagem teológica, definindo a economia capitalista como «aquela em que as pessoas sabem que do resultado do seu trabalho e do seu esforço poderão acumular capital». É como definir que uma coisa só pode ser perfeita se existir e Deus é perfeito, concluindo daí que tem de existir. Isto finge que a realidade se verga à definição do termo. Numa economia capitalista as pessoas podem acumular capital, mas poucos viverão convictos de que é o seu esforço pessoal que os levará à riqueza. O Rui diz que a diferença é que, sem redistribuição estatal, as pessoas investem «meios e recursos […] na criação de riqueza» mas que, com o Estado, «preferirão viver à conta da riqueza gerada por outros». Na realidade, a melhor forma de enriquecer no sector privado é apropriando-se da riqueza criada por outros. O Belmiro de Azevedo não ganha fortunas vendendo mercadorias. Ganha é parte da riqueza gerada pelos seus empregados. Ao contrário do que o Rui tenta tornar real por definição, quem pode aproveita-se sempre da riqueza que outros geram. A diferença é que quando o Estado redistribui não são apenas os ricos a ter essa possibilidade.

Finalmente, o problema da “riqueza”, um termo com conotações para além do que significa em economia. O seu significado económico é simplesmente o valor monetário total dos activos menos o dos passivos. “Gerar riqueza” quer dizer aumentar esse valor monetário. Mas, tal como a medicina alternativa usa “positivo” e “negativo” para sugerir algo de bom ou mau, sejam iões, vibrações ou energias, os economismos aproveitam a conotação subjectiva de “riqueza” para passar a ideia de que isto é o mais importante. Assim, se o Estado gasta dinheiro a educar as pessoas ou a garantir-lhes tratamentos médicos faz uma maldade porque aumenta a despesa e destrói riqueza. Buu. Mas se alguém cria uma empresa de dar banho a cães e ganha dinheiro com isso então faz uma coisa muito boa porque está a gerar riqueza. Viva. Excelente.

Como os agentes económicos visam obter riqueza, é verdade que a economia privada gera riqueza. No entanto, há três pontos que importa não esquecer. Primeiro, esta “riqueza” é simplesmente um somatório de preços. Não é necessariamente o mais importante. Não implica saúde, nem cultura, nem justiça nem liberdade, por exemplo. Em segundo lugar, para que os agentes económicos possam gerar riqueza num mercado livre é preciso uma data de coisas que só o Estado pode garantir. Finalmente, a economia privada só é sustentável se houver redistribuição que compense a sua tendência para agravar desigualdades. Para descrever correctamente a realidade é preciso não descurar estes factores. Nem mesmo quando causam desconforto ideológico. Por isto, entre outras coisas, é que é preferível aumentar os impostos dos mais ricos em vez de diminuir os apoios aos mais pobres (4).

1- Rui Albuquerque, economia capitalista e “economia” parasitária
2- Wikipedia, Homeopatia
3- Michael Linden: The Myth of the Lower Marginal Tax Rates
4- Paul Krugman, Taxing Job Creators

sexta-feira, junho 15, 2012

Evolução: mutações aleatórias (adenda).

O Orlando Braga respondeu ao meu último post. Felicito-o por isso. Há tempos, gabava-se de não ler aquilo que criticava (1) e isto revela que o seu método melhorou, mesmo que ainda sem benefícios para os resultados. Antes de passar aos problemas mais substanciais, queria recomendar ao Orlando que evitasse referir probabilidades assim, «se eu digo que a probabilidade de algo ocorrer é de 3, isso significa implicitamente que é de 1 em 3»(2). As convenções são importantes para a comunicação e as da matemática não o são menos que as do Português. Ler “a probabilidade de algo ocorrer é de 3” dá um tropeção mental tão grande como ler a forma reflexa do verbo quando, “implicitamente”, se quer o modo conjuntivo. “Se eu janta-se em tua casa”, por exemplo. Até arrepia. Mas adiante, ao que interessa.

Depois de divagar sobre Fred Hoyle e as minhas alegadas intenções, o Orlando expõe a sua confusão. «O que o escriba quer dizer, segundo percebi, com o seu (dele) argumento segundo o qual “não é preciso a proteína ter aquela sequência”, é que, segundo ele, não existe um processo-padrão de síntese da proteína. E depois vem dizer que o burro sou eu.» Longe de mim igualar o Orlando ao burro. Tenho muito respeito por todos os seres vivos. Mas não é nada disso que eu quis dizer, e lamento que a minha explicação tenha sido tão inadequada. Quando escrevi que uma proteína não precisa de ter aquela sequência queria dizer, e devia tê-lo escrito, que uma proteína não precisa de ter aquela sequência. Não estava a referir-me ao processo de síntese. Talvez uma analogia ajude. A probabilidade de o meu genoma surgir da combinação aleatória de genes humanos é ridiculamente pequena, de um em dez elevado a uma batelada. Nem preciso do Sir Fred Hoyle para estimar isto. No entanto, o que se deduz daqui é limitado pelo facto, evidente, de que para ser humano não é preciso ter exactamente os meus genes. Há muitas outras combinações, tão boas ou melhores (3). Com as proteínas passa-se algo de semelhante. Por exemplo, para uma proteína ser isocitrato desidrogenase não precisa de ter exactamente aquela sequência. Pode ter qualquer uma de muitas diferentes (4). Este é um dos problemas com as contas que o Orlando referiu.

O outro, que também confundiu o Orlando, é que a evolução não junta os aminoácidos de uma vez. Aqui a confusão talvez seja mais fundamental. Escreve o Orlando que «Uma proteína típica contém entre cinquenta a três mil resíduos de aminoácidos, mas a estrutura primária da proteína — repito: estrutura primária! — é composta pelos 20 aminoácidos a que me referi no meu verbete supracitado e em referência a Sir Fred Hoyle.» Não sei que distinção o Orlando quer fazer aqui, mas a estrutura primária é a sequência dos tais “entre cinquenta a três mil resíduos”. Estes resíduos – chamam-se resíduos porque cada aminoácido perde alguns átomos na ligação peptídica – normalmente correspondem a vinte tipos diferentes de aminoácidos, mas a estrutura primária não é os vinte tipos. É a sequência de todos os resíduos da proteína, centenas ou milhares deles, com repetições e tudo. Essa sequência foi gerada pela acumulação gradual de mutações, sempre sob pressões selectivas. Isto faz muita diferença. Se tivermos de adivinhar uma combinação de quatro algarismos precisamos, em média, de testar umas cinco mil combinações até acertar. Mas se pudermos adivinhar cada algarismo e nos forem dizendo se está certo ou errado, então basta 40 tentativas, na pior das hipóteses. Não é preciso explorar todas as combinações. A evolução não decorre exactamente desta forma mas há uma redução análoga no espaço de pesquisa. Cada mutação só vinga se o organismo em que ocorre replicar esses genes de forma competitiva. Assim, muitas possibilidades ficam fora do alcance do processo e a probabilidade de encontrar uma das soluções permitidas é muito maior do que a estimada considerando todas as combinações.

Neste post, o Orlando não menciona a evidência empírica que demonstra serem aleatórias as mutações como as do exemplo que ele deu, da resistência a antibióticos. Em vez disso, escreve que «o princípio darwinista das mutações aleatórias e de pequenos passos, está errado» apenas «no surgimento da vida!»(2), e não depois da vida já ter surgido. Isto é confuso, visto que a alternativa proposta pelo Orlando era a mutação ser «conduzida pela própria célula, como organismo vivo»(6), o que parece ser difícil «no surgimento da vida!», mesmo com ponto de exclamação. Mas, seja como for, é uma boa notícia, porque implica que o Orlando aceita a teoria da evolução como descrição correcta da vida depois desta ter surgido. É um passo importante.

Falta-lhe apenas perceber que a teoria da evolução se aplica a quaisquer populações de replicadores que herdem características mutáveis. Nada nesta teoria, no caso geral, exige que os replicadores sejam classificados de “seres vivos”. Os vírus, por exemplo, evoluem bastante facilmente, para infortúnio nosso, mas não são seres vivos. Por isso, este processo de mutações aleatórias e selecção natural pode servir também para descrever sistemas químicos mais simples que tenham dado origem aos primeiros seres vivos.

Numa coisa o Orlando tem razão. A evolução como concebida por Darwin não pode explicar «o surgimento e o funcionamento, por exemplo, de uma célula eucariótica típica». No entanto, isto não se deve a qualquer intervenção divina ou sobrenatural. O problema é que a célula eucariótica resulta da fusão de células procarióticas, um processo que a teoria darwiniana não consegue modelar. Felizmente, a biologia moderna está muito além das ideias iniciais de Darwin e continua a avançar, graças à abordagem, mais laboriosa mas mais produtiva, de testar hipóteses concretas e claras em vez de teimar em afirmações vagas e confusas.

1- Humpty & Dumpty, e do Orlando Braga, Caros ateístas: a negação de uma metafísica é sempre uma metafísica!
2- Orlando Braga, O missal darwinista consegue ser pior do que o Alcorão
3- Por exemplo
4- Só entre as que já conhecemos, e limitando o agrupamento a 50% de identidade no mínimo, temos 2287 neste momento.
5- Wikipedia, Luria–Delbrück experiment
6- Orlando Braga, A confusão darwinista: micro-mutações = macro-mutações = vida

quarta-feira, junho 13, 2012

Evolução: mutações aleatórias.

A teoria da evolução é, da ciência moderna, a teoria que mais claramente refuta a crença de termos sido criados à imagem de um deus. Talvez por isso seja a mais criticada por quem não percebe nada de biologia. Ou de ciência. O Orlando Braga é um exemplo disto. «Segundo Sir Fred Hoyle, a probabilidade de 20 amino-ácidos se juntarem aleatoriamente na sequência correcta para formarem uma proteína, é de 1040 [1 seguido de 40 zeros]»(1). Além de se enganar, repetidamente, nos valores de probabilidade (é de 1 em 1040; não faz sentido dizer que uma probabilidade é de 1040) e de alegar absurdos como «o número 1050 já é considerado uma impossibilidade matemática; 4) o número total de átomos em todo o universo é estimado em 1080», aparentemente sem sequer perceber a contradição no que escreve, esta invocação falaciosa da autoridade de um astrónomo para um cálculo trivial – há 20 tipos de aminoácidos, pelo que a probabilidade de uma sequência de N aminoácidos surgir aleatoriamente é simplesmente de um em 20N – é irrelevante por duas razões. Primeiro, porque não é preciso a proteína ter exactamente aquela sequência. Nas proteínas presentes entre seres vivos, basta que um quarto da sequência seja idêntica para que a estrutura seja praticamente igual (2), pelo que o alvo a atingir para obter uma dada estrutura é muito maior do que uma só sequência. E, em segundo lugar, porque a evolução não faz uma amostragem aleatória completa, juntando todos os aminoácidos aleatoriamente, mas sim acumulando mutações ao longo de muitas gerações e sempre sujeitas a pressão selectiva para eliminar as menos favoráveis, pelo que o espaço de possibilidades é muito menor.

Mas o exemplo mais interessante na crítica do Orlando é o que ele dá acerca da resistência aos antibióticos em bactérias. Numa cultura de bactérias sensíveis a um antibiótico pode haver uma pequena percentagem de mutantes que, devido a essa mutação, resistem ao antibiótico. «O problema é saber se essa micro-mutação [...] é aleatória ou se é conduzida pela própria célula, como organismo vivo, que se auto-impõe uma determinada adaptação em função e em resposta ao meio-ambiente». É verdade, essa questão tem de ser respondida, se a mutação é aleatória e precede a exposição ao antibiótico ou se ocorre como resposta à exposição ao antibiótico e não por acaso. Para o Orlando, basta ficar por aqui e pronunciar, da cadeira, que essa «dedução [teoria] segundo a qual a evolução [...] resultou de uma selecção natural mediante mutações aleatórias[...] é uma metafísica que se aproxima de uma certa religiosidade.»

Felizmente, os cientistas são menos preguiçosos. Em 1943, Salvador Luria e Max Delbrück fizeram uma experiência para responder a esta pergunta, usando como caso de estudo a resistência de bactérias a um vírus. Quando uma cultura de bactérias é infectada com um bacteriófago, um vírus que ataca bactérias, a maioria das células é destruída mas algumas resistem à infecção e todas as suas descendentes serão resistentes também. Alguma mutação torna essa linhagem resistente ao vírus. O que Luria e Delbrück fizeram foi obter culturas, em meio líquido, a partir de bactérias isoladas. Uma bactéria divide-se em duas, depois quatro, oito e assim por diante, em crescimento exponencial enquanto houver nutrientes. Depois, inocularam cada cultura com bacteriófago, retiraram uma amostra do líquido e espalharam numa placa com meio sólido de cultura. As bactérias que sobreviveram formaram colónias, visíveis a olho nu, e que permitiram determinar a quantidade de bactérias resistentes em cada cultura.

Se a mutação ocorresse em resposta à infecção pelo vírus, ou como o Orlando pomposamente escreve «conduzida pela própria célula, como organismo vivo, que se auto-impõe uma determinada adaptação em função e em resposta ao meio-ambiente», seria de esperar que se formasse um número semelhante de colónias em todas as placas porque todas as bactérias resistentes seriam sobreviventes de populações semelhantes aquando da infecção pelo vírus, com probabilidades semelhantes de adquirir resistência. Em contraste, se a mutação ocorresse aleatoriamente, já estaria presente na população antes do vírus ser introduzido na cultura, e a fracção de bactérias resistentes dependeria da geração na qual a mutação teria surgido. Como o crescimento é exponencial, a cada geração mais cedo que surja a mutação duplica o número de resistentes. Assim, o número de colónias nas placas iria variar muito, conforme a geração em que a mutação teria surgido. E foi esse o resultado (3).

A origem aleatória das mutações não é especulação dogmática, nem metafísica, nem fé. É uma hipótese bem testada, com quase setenta anos de suporte experimental. Aquilo que leva o Orlando Braga a concluir que «O princípio darwinista das mutações aleatórias presentes no surgimento da vida, está errado» não são as evidências nem qualquer problema com a teoria que ele critica. É apenas não ter dedicado uns minutos a pesquisar o assunto na Wikipedia.

1- Orlando Braga, A confusão darwinista: micro-mutações = macro-mutações = vida
2- Wikipedia, Homology modeling.
3- Na Wikipedia há uma explicação simples da experiência, Luria–Delbrück experiment, e aqui está o artigo original: Mutations of Bacteria from Virus Sensitivity to Virus Resistance

domingo, junho 10, 2012

Treta da semana: as cobaias.

Há dias que oiço falar das crianças da Casa Pia que foram cobaias numa experiência sobre a toxicidade do mercúrio, arriscando problemas mentais e outras coisas terríveis. Hoje decidi ver a reportagem da RTP que ressuscitou esta história, que pouca atenção teve quando saiu no Público em 2003 (1). Fiquei na dúvida se o problema é os jornalistas não perceberam os temas que abordam, se é não terem incentivos para relatar os factos quando teorias da conspiração vendem melhor, ou se é uma mistura das duas. O que ficou claro é que a reportagem é uma treta.

O “chumbo” dos dentes contém mercúrio e o mercúrio é muito tóxico. Mas isto é como dizer que o sal de mesa contém cloro e o cloro é mortífero e foi usado como arma química. A toxicidade não depende do elemento em si mas da forma em que se encontra e como se liberta. A amálgama de mercúrio é usada por dentistas há mais de 150 anos, já foi sujeita a vários estudos clínicos e não há evidências de que liberte mercúrio em quantidades suficientes para ser perigosa. Por isso, até recentemente foi o material mais usado para preencher cavidades nos dentes. Hoje é menos usada porque há alternativas, como resinas sintéticas e porcelanas, porque há quem seja alérgico ao mercúrio, porque é um risco para os dentistas que lidam todos os dias com a amálgama e pelo impacto ambiental da cremação de cadáveres com amálgama (2). Mas, em 1997, a amálgama era o material mais comum para tratar cavidades nos dentes.

Por isso, os tratamentos dentários aplicados às crianças no tal estudo da Casa Pia foram os mesmos que seriam aplicados a quaisquer crianças que fossem ao dentista. A única coisa especial no estudo era que umas crianças só seriam tratadas com amálgama e as outras só com resina composta para se medir as diferenças entre estes grupos. O objectivo era comparar a exposição ao mercúrio, medindo o mercúrio na urina, e determinar se havia algum efeito no desenvolvimento neurológico testando regularmente a memória, a coordenação, a concentração e a velocidade dos impulsos nervosos das crianças ao longo de sete anos. A nenhuma criança foi aplicado qualquer tratamento experimental e o resultado foi que, apesar das crianças tratadas com amálgama terem mais mercúrio na urina, as concentrações eram baixas (3) e não havia diferenças detectáveis a nível neurológico (4).

A reportagem da RTP transmite o oposto, assentando em duas ideias assustadoras: que a experiência era expor as crianças ao mercúrio e que o mercúrio da amálgama é muito perigoso e tóxico. Começa com música de conspiração, letras a vermelho a dizer “venenoso” e uma pessoa desfocada com voz disfarçada, mas aparentemente de bata, a dizer que a maioria dos dentistas que conhece ficaram chocados com este estudo. Depois, a jornalista diz que “descobriram” na ficha oficial americana que o estudo foi feito em crianças por serem «a população mais susceptível de revelar qualquer efeito na saúde». Se tivessem lido o artigo até tinham a explicação para isto: «A hipótese foi que crianças expostas a baixos níveis de mercúrio da amálgama poderiam ter resultados de saúde e desenvolvimento menos favoráveis do que crianças que recebessem tratamento dentário semelhante sem exposição à amálgama.» Mas dizendo que descobriram parece mais conspiresco do que referir o artigo. Uma entrevista a um paciente incógnito que diz que lhe recomendaram chumbar os dentes porque tinha cáries remata, de forma ironicamente ridícula, a teoria da conspiração. Chumbar os dentes por ter cáries. Claramente, estavam a tramar alguma.

E assim continua até ao fim. O desfocado de bata aparece várias vezes. Diz que é «incompreensível testar mercúrio em crianças», quando ninguém estava a testar isso, e que é um metal que «toda a gente sabe que é tóxico». Toda a gente que, provavelmente, tem dentes chumbados. Dedicam também muito tempo a duas activistas americanas que andam em cruzada contra a amálgama. Uma tinha tido um linfoma e, como não tinha seguro de saúde, tentou tratar-se com medicinas alternativas. Eventualmente tirou a amálgama dos dentes e declarou-se absolutamente convencida de que a amálgama era a culpada. É este o nível de evidências científicas apresentado na reportagem. Isto, as alegações de um dentista brasileiro que sempre foi contra a amálgama e um pediatra que explica os perigos genéricos de expor crianças ao mercúrio mas sem apresentar quaisquer evidências de que isso tenha que ver com a amálgama.

Toda a reportagem é sensacionalista e enganadora. Admitem que a amálgama está a ser menos usada pelos problemas ambientais «mas não pelo mal que faz», dando a impressão de que há evidências desse tal mal. Apontam que os médicos recomendam a grávidas e crianças que não comam peixes com mercúrio, tal é o perigo, mas sem referir que 100g de peixe espada tem dezenas de vezes mais mercúrio do que a amálgama liberta por dia (5). E nunca referem que o peso das evidências é de que a amálgama, usada há mais de 150 anos, não tem riscos relevantes para a generalidade das pessoas. Em vez disso focam incógnitos, activistas e casos pontuais não documentados, e alegam que testaram mercúrio nas crianças.

Esta reportagem é um nojo. Já me custa que façam disto nas televisões privadas, onde o objectivo é declaradamente vender os anúncios no intervalo seja porque meios for. Mas na televisão pública deviam ter um pouco mais de respeito pela realidade. Talvez estejam já a preparar a privatização...



1- Público, Reportagem da RTP reacende polémica sobre estudo com crianças da Casa Pia
2- Wikipedia, Dental amalgam controversy
3- Três micrograma por litro, o que é um décimo do limite aceitável, segundo recomendações da UE (ver SCOEL/SUM/84).
4- DeRouen et al, 2006, Neurobehavioral Effects of Dental Amalgam in Children, JAMA. 2006;295(15):1784-1792
5- Wikipedia, Mercury in fish

sexta-feira, junho 08, 2012

Ódio é outra coisa.

Num post intitulado “Ódio Ateísta”, o Ricardo Pinho escreve que «O Diário Ateísta é poluição intelectual; um desperdício de energia eléctrica; uma tasca de asco e cuspo.»(1) E assim por diante. Apesar de me parecer uma generalização precipitada, concordo parcialmente com esta avaliação. Há coisas no Diário que também me desagradam, que não publicaria em meu nome ou que não me interessa ler. No entanto, parece-me que o Ricardo erra, muito, na extrapolação que faz a partir deste juízo subjectivo.

Escreve o Ricardo que quando fundou o site ateismo.net, «O objectivo principal era [...] «a despreconceitualização do ateísmo» mas que «Passados estes anos todos, é ele próprio um antro de preconceito.» Dá a ideia de que as coisas corriam bem quando o Diário Ateísta tinha uma política editorial rígida e agora, que cada um escreve como entende, ficou muito pior. Não é verdade. Eu também participei no DA há uns anos e o problema era, fundamentalmente, o mesmo. Também nessa altura havia muita coisa no DA que não me agradava. O que era de esperar. Afinal, a única coisa que os ateus têm garantidamente em comum é não acreditar que existam deuses. No resto, do sentido de humor à orientação política, discordam tanto quanto quaisquer outros. Além disso, o sistema antigo tinha a agravante de impor a todos os preconceitos de alguns. Por exemplo, havia uma regra que proibia posts em resposta a textos de outros blogs, o que sempre achei um disparate. E acabei por sair daquela encarnação do DA quando me rejeitaram um post sobre o aborto por o considerarem ofensivo, voltando só depois de decidirem deixar cada texto a cargo do seu autor. Agora, pelo menos, os preconceitos de cada um determinam apenas a sua escrita e não obrigam os outros.

O Ricardo pergunta «Qual é a estratégia, qual é o objectivo disto tudo?», referindo-se aos insultos aos crentes religiosos. A resposta está no próprio texto do Ricardo. Quando escreve que o DA é «uma tasca de asco e cuspo» e «voz histérica da parolice ateísta» também não parece ter estratégia ou objectivo além de dizer o que pensa. Mas isso, afinal, é o mais importante. O maior valor da liberdade de expressão não é instrumental. É intrínseco. Vale por si. Seja disparate ou revelação profunda, o mais importante é poder dizê-lo. Se quiséssemos garantir que todos os textos tivessem “estratégia e objectivo” teria de haver alguém a impor estratégia e objectivo aos outros, e esse seria um problema muito maior.

Mas o pior erro é esta coisa do “ódio”: «Ainda pensei que se poderia salvar esta página mudando-lhe o nome para Tasca Ateísta, mas até numa tasca há coisas boas. Mais acertado seria chamar-lhe Ódio Ateísta. [… houve] uma densificação da massa vil: e os odiosos acabaram por gravitar para onde há outros odiosos.» O ódio é um sentimento forte que implica querer mal ao outro. Pode-se inferir que sente algum ódio quem acredita que os ateus merecem uma eternidade no inferno ou que os terremotos são um castigo pela homossexualidade. Mas não se pode concluir que alguém odeia só porque goza ou escarnece de algo. Nem mesmo que diga dos outros que o que escrevem é «é poluição intelectual; um desperdício de energia eléctrica; uma tasca de asco e cuspo.» Quando leio o texto do Ricardo percebo que quer ser duro na crítica mas não concluo que odeia as pessoas de quem fala. Seria uma conclusão injusta e injustificada.

O Ricardo confunde duas coisas muito diferentes. A liberdade de expressão, que tem valor mesmo quando ofende, e o ódio de quem deseja mal aos outros pelo que pensam ou são. É uma confusão infeliz, especialmente neste contexto, porque aquilo que o Ricardo chama “ódio ateísta” são manifestações contra o ódio. O ódio religioso. Algumas podem expressar desprezo, outras podem ser de mau gosto, escárnio ou insulto, mas nenhuma defende que os crentes merecem o tormento eterno por acreditar no que acreditam. No ateísmo que o Ricardo rotula de odioso não há nada equivalente ao ódio que tantos religiosos manifestam contra os homossexuais, contra as mulheres, contra os apóstatas e ateus. Esta é uma diferença fundamental entre o ateísmo e as religiões. Os ateus não o são por obrigação, recompensa ou medo de castigo. Como tal, não consideram que os outros tenham obrigação de ser ateus ou que mereçam castigo se não forem. Mas a ideia da crença religiosa como uma virtude e obrigação moral trespassa praticamente todas as religiões. Isto leva as instituições religiosas a defender o ódio, no sentido muito específico de desejar o mal a quem não partilhar a crença certa. Segundo a doutrina cristã, por exemplo, eu mereço o inferno por achar que Jesus não tinha nada de divino e que o Espírito Santo é tão fictício como a Carochinha. É isto que sugere ódio.

Para concluir, queria apontar duas coisas ao Ricardo. Primeiro, a diferença entre as sociedades que toleram a «poluição intelectual», o «asco e cuspo» e a «parolice ateísta» e as outras sociedades onde as religiões têm mais poder. Dizer mal de Maomé é muito menos odioso do que apanhar dez anos de cadeia por isso (2). E, em segundo lugar, que temos de defender constantemente os nossos direitos para evitar perdê-los. Confundir a liberdade de expressão com o ódio é meio caminho andado para a censura religiosa, leis anti-blasfémia e outras expressões do ódio que motiva as religiões a condenar todos os que rejeitem a doutrina.

1- Ricardo Pinho, Ódio ateísta.
2- The Blaze, Man Gets 10 Years in Kuwaiti Prison for Allegedly Sending Anti-Prophet Mohammad Tweets

Em simultâneo no Diário Ateísta.

domingo, junho 03, 2012

Treta da semana: factos criacionistas.

O Mats apresentou no seu blog «Quatro factos científicos que refutam a teoria da evolução», alegando que «Quatro observações demonstram o porquê da evolução [...] não ser uma genuína teoria científica»(1). Vejamos então que coisas contam no criacionismo como factos e observações.

Ignorância: A primeira é que «Os fósseis não revelam qualquer tipo de evidência da evolução micróbios-para-microbiólogos». Segundo o Mats, os «fósseis deveriam evidenciar as transições entre criaturas não relacionadas umas com as outras», mas «são disputados pelos próprios evolucionistas». Não se percebe o que é que serem “disputados” tem de mal mas, seja lá o que for, os paleontólogos esperam encontrar evidências de evolução nos fósseis precisamente pela relação de parentesco entre todos os seres vivos. Se não houvesse tal relação então não se esperaria encontrar tais evidências. E as evidências não estão nos fósseis individuais, “disputados” ou não, mas sim no padrão formado pelo conjunto de fósseis. A ordenação cronológica de milhões de vestígios, de pólen e patas de insecto a esqueletos de dinossauro, só pode ser explicada pela teoria da evolução ou por um milagre, e este último não serve de nada como explicação.

Mentira: A segunda “observação” do Mats, supostamente refutadora da teoria da evolução, é que «Um estudo levado a cabo no ano de 2010 não observou qualquer tipo de evolução na mosca da fruta mesmo depois de 600 gerações». No entanto, segundo o resumo do artigo que o Mats refere, «Moscas nestas populações seleccionadas desenvolvem-se de ovo até adulto ~20% mais depressa do que moscas das populações ancestrais de controlo, e evoluíram um número de outros fenótipos correlacionados.»(2).

Disparate: O terceiro “facto”, ou “observação”, é que a «Entropia genética invalida a evolução.» A “entropia genética” não é observação, nem facto, nem sequer é um conceito da biologia. É uma invenção de um criacionista, John Sanford, que basicamente decidiu, porque acordou para esse lado, que não há mutações benéficas e, por isso, a evolução é impossível (3).

Presunção: Finalmente, o último “facto” é de que, como os criacionistas não sabem como algo pode ter evoluído, então não pode ter evoluído. Um exemplo concreto do Mats é o sistema respiratório das aves. Nos pulmões dos répteis e dos mamíferos o ar passa em ambas as direcções, para um lado na inspiração e para o outro na expiração. No sistema respiratório das aves, o ar entra para os sacos aéreos do grupo caudal pelos parabrônquios neopolmunares, depois passa novamente por estes e para os parabrônquios paleopolmunares, entra nos sacos do grupo cranial e finalmente é expelido (4). Este sistema circular é mais eficiente, com o ar passando apenas numa direcção nos parabrônquios paleopolmunares, o que permite às aves obter mais oxigénio com menos esforço e também morrer intoxicadas mais facilmente do que os répteis ou mamíferos, garantindo aos canários o seu emprego nas minas. Segundo o Mats, «O pulmão dos répteis teria que parar de respirar enquanto esperava que a evolução construísse ou transferisse as funções para os novos ossos e sacos de ar necessários para o sistema de respiração das áves». Parece grave, mas este problema seria facilmente resolvido se o pulmão funcionasse de forma mista, com um fluxo bidireccional em partes do pulmão, como nos répteis, enquanto o fluxo unidireccional do sistema respiratório das aves ia evoluindo. Que é precisamente o que ainda acontece, porque a parte composta pelos parabrônquios neopolmunares e os sacos do grupo caudal funciona como o pulmão dos répteis e dos mamíferos. Além disso, parece que o sistema respiratório das aves já remonta aos dinossauros (5). Mais um caso em que os fósseis dão evidências da evolução e do parentesco entre espécies.

No cômputo geral, os “factos” e as “observações” que o Mats aponta não fazem muito para refutar a teoria da evolução. Mas ajudam bastante a perceber a treta que é o criacionismo.

1- Darwinismo, Quatro factos científicos que refutam a teoria da evolução
2- Burke et al., Genome-wide analysis of a long-term evolution experiment with Drosophila. Nature 467, 587–590 (30 September 2010)
3- Basicamente, pega nuns gráficos que Kimura usou para ilustrar a teoria da evolução neutra, “adapta-os” e toma isso como evidência da sua tese. Eu tenho o livro, mas não tive paciência para o ler todo. Para quem quiser mais detalhes, está aqui uma análise mais completa: Assessing Limits to Evolution and to Natural Selection: Reviews of Michael Behe’s “Edge of Evolution” and John Sanford’s “Genetic Entropy”
4- Mais detalhes aqui.
5- Evolution pages, Theropod dinosaurs and birds linked by 'breathing' design

Realidade.

Numa conversa com o João Vasco, que infelizmente não pude acompanhar, o Alfredo Dinis afirmou que «a realidade [...] é em grande parte uma reconstrução feita pelas nossas estruturas cognitivas […] Além disso,a ‘realidade’ parece que é algo que “está aí”, quando a realidade é um processo. Acresce ainda que o conhecimento humano através da observação directa vai mudando regularmente. A ideia de que nos estamos a aproximar [do] conhecimento da realidade com as sucessivas teorias, não está garantida.»(1) Acrescentou também que a minha concepção de verdade implica julgar que «o universo está 'aí', à espera que o descubramos completa, objectiva e definitivamente», o que «não é, nem de longe, a única opinião de filósofos e cientistas»(2). Ainda bem, porque também não é a minha.

Por “realidade” refiro-me, admito, ao que está “lá fora”, independente da minha vontade ou percepção. Mas não ignoro a subjectividade da minha percepção. A percepção é forçosamente subjectiva porque só um sujeito a pode ter. Se pisar uma peça de Lego quando ando descalço sinto muito de subjectivo, como a vontade de dizer palavrões e de dar um ralhete aos miúdos. Mas é também razoável concluir que algo “lá fora” condicionou esta experiência. Não foi a minha dor que construiu a peça de Lego. Dizer que a realidade é construída «pelas nossas estruturas cognitivas» é confundir a percepção subjectiva com aquilo que a condiciona. É a isso que condiciona as nossas experiências que chamo realidade.

Também concordo que não temos garantias de «aproximar [o] conhecimento da realidade com as sucessivas teorias». Somos falíveis e a realidade, ao que parece, é complexa. Mas isso não inviabiliza o processo que defendo, de obter conhecimento testando hipóteses, porque não é a garantia que o motiva. É a possibilidade. Basta ser possível aproximar as nossas ideias da realidade que já vale a pena procurar o conhecimento. E não precisamos de saber tudo «completa, objectiva e definitivamente». Ainda que provisória e incompleta, uma teoria que mostre as vantagens de lavar as mãos já ajuda a prevenir doenças, mesmo que não tenhamos a derradeira cura para todos os males que houve, há ou possa haver.

O que importa é maximizar a probabilidade de cada passo nos trazer mais perto da realidade. Porque, mesmo sem garantias, é evidente que há métodos melhores do que outros. E a informação que obtemos da realidade não vem dos aspectos subjectivos da nossa experiência, por si, mas sim das restrições que esse algo “lá fora” impõe às nossas sensações e opiniões. Subjectivamente, sentimos que a Terra não se move e que é o universo todo que gira à nossa volta. Mas, pelo teste progressivo de muitas hipóteses, fomos aprendendo que essa sensação subjectiva é condicionada pelo movimento relativo e não, ao contrário do que parece, por estarmos absolutamente imóveis. A Terra parece parada porque nos movemos com ela. Há uma realidade externa à nossa percepção que nos força a rejeitar a ideia da Terra ser o centro absoluto do universo em favor da noção de movimento relativo. Mas só descobrimos esses aspectos da realidade quando colocamos, e testamos, hipóteses susceptíveis de esbarrar contra a realidade.

O Alfredo aponta estas dificuldades como justificando a sua forma de obter conhecimento, pela fé, tradição, testemunho de crentes e revelação divina. No entanto, é precisamente por sermos falíveis e pela nossa subjectividade influenciar a nossa percepção da realidade que não podemos depender de umbigologias. Não podemos tirar conclusões fiáveis acerca da realidade olhando apenas para o que sentimos. Temos de ir além dessa subjectividade. Temos de pôr o pé, mesmo arriscando pisar uma peça de Lego. E isso consegue-se testando hipóteses concretas que possam ser falsificadas se violarem as restrições que a realidade impõe.

Não é que a subjectividade seja irrelevante. Pelo contrário. Subjectivamente, a subjectividade é o mais importante. Mas não serve para obter conhecimento nem para discutir aqui. Ultimamente, choros, biberões e fraldas têm estado entre as coisas mais importantes para mim. Muito mais importantes do que o deus do Alfredo, que, mesmo que existisse, pouca diferença me faria. No entanto, isto que é subjectivamente importante para mim não é necessariamente relevante para os outros e faria pouco sentido discuti-lo aqui. A fé do Alfredo, certamente muito importante para ele, também tem pouca relevância para a questão objectiva sobre sobre a tal realidade “lá fora” que se impõe a todos: será que o universo foi criado de propósito por um deus inteligente? A forma mais fiável de responder a isso é testando empiricamente hipóteses que possam ser falsificadas. Ou seja, pela ciência. Tudo o resto é descurar o facto de que somos falíveis e muito influenciados pelos nossos preconceitos, preferências e outros aspectos subjectivos.

Não há uma realidade do crente onde certo deus existe e, ao mesmo tempo, uma realidade do descrente onde esse deus não existe. O que se comporta assim é a fantasia, não é a realidade. E para conhecer a realidade é preciso testar hipóteses contra as restrições que a realidade impõe. Tretas impossíveis de falsificar apenas reflectem as nossas preferências subjectivas sem dizer nada acerca do que está “lá fora”.

1- Comentário em Equívocos 14
2- Comentário em Treta da semana: Einstein dixit.