segunda-feira, maio 28, 2012

Crime em Informática, parte 2.

No dia 23 estive no colóquio “Crime em Informática”, organizado pelos núcleos de estudantes do IEEE e da Ordem dos Engenheiros, e moderado pelo João Paulo Pimentão, professor no Departamento de Engenharia Electrotécnica da FCT e que, há uns anos, foi meu professor de programação. Antes de mim falaram Baltazar Rodrigues, inspector da Polícia Judiciária e responsável pela unidade de combate ao crime informático, e Tiago Henriques, perito em segurança e fundador da PTCoreSec. Aprendi que as maiores preocupações da PJ, no que toca ao crime informático, são a fraude bancária (phishing e semelhantes) e a pedofilia, que me parece ser as prioridades certas. Aprendi também como é fácil comprometer um computador alheio e como é importante colar um papel na webcam dos portáteis, à cautela. Foi uma conversa interessante e agradável, graças a todos, organizadores, palestrantes e assistência.

Aqui fica a minha apresentação. Os últimos cinco minutos foram mais acelerados porque já estava a abusar do tempo. Aproveito também para deixar uma correcção, que recebi por email e que agradeço. No dia da apresentação a estimativa de vendas do Diablo III que eu referi já estava desactualizada, e o número de cópias já tinha ultrapassado os seis milhões.



Os vídeos podem ser descarregados do BlipTV: alta resolução (29MB); baixa resolução (10MB). O pdf dos slides está aqui.

domingo, maio 27, 2012

Treta da semana: correlação é causalidade.

Na quinta-feira foi apresentado um estudo sobre “pirataria informática”, coordenado por Ricardo Ferreira Reis, economista e investigador na Universidade Católica. O procedimento normal, em ciência, é submeter os estudos a revisão pelos pares antes de os publicar e, depois, publicá-los sempre de forma que outros peritos na área os possam avaliar e criticar. Desta vez foi diferente. O que fizeram foi organizar uma apresentação pública no hotel Marriot, substituindo o peer review por uma “reflexão” conduzida pela Associação Portuguesa de Software (ASSOFT) e os detalhes por bonecos bonitos e espectáculo mediático (1). O que, de certa forma, se adequa à qualidade científica do estudo.

A brochura de publicidade ao relatório começa por referir um estudo da Business Software Alliance (BSA) segundo o qual «em 2011, mais de 50 mil milhões de euros desapareceram da economia mundial devido à utilização ilegal de software»(2). O teledisco do relatório começa com a mesma alegação (3). Isto é absurdo. Primeiro, a BSA estima o índice de pirataria comparando o número médio de unidades de software vendidas por computador com o número médio de programas instalados em cada computador. Tudo o que está instalado sem ter sido comprado é “pirataria”, mesmo que seja software gratuito (4). Depois, a estimativa dos 50 mil milhões assume que todo o software gratuito seria pago ao preço de mercado, e que ninguém que usa um programa gratuitamente deixaria de o usar se tivesse de pagar cem ou duzentos euros (5). Finalmente, o dinheiro que as pessoas não gastam por usar software sem pagar não desaparece. Não se desfaz em cinzas nem fica debaixo do colchão mas acaba por ser gasto noutras coisas ou investido por intermédio dos bancos. A conclusão da BSA, repetida pela ASSOFT e por este estudo, não faz sentido.

A abordagem do Ricardo Ferreira Reis é diferente, mas igualmente incorrecta. Segundo a descrição do estudo, calcularam a correlação entre o índice de pirataria* e o PIB de vários países, entre outros factores. Depois, «com base nos resultados da regressão linear, e aplicando os valores correspondentes para Portugal, estimámos o seguinte resultado[:] um impacto que poderá chegar aos 1150 milhões de euros, ou aproximadamente, 0.6% do PIB atual». Ou seja, a partir da correlação assumiram haver uma relação causal na qual a pirataria é a causa e o PIB é o efeito. Isto é um erro grave, mas explica bem porque é que este estudo foi apresentado em panfletos e telediscos em vez de sujeito a revisão por peritos na matéria. Ou sequer por alguém com um mínimo de bom senso.

A correlação entre os factores A e B pode dever-se a A causar B, a B causar A ou a ambos serem efeito de outros factores causais comuns. Por exemplo, a pirataria também está correlacionada com a idade, sendo mais frequente entre os mais jovens do que entre os mais velhos. No entanto, seria incorrecto assumir que esta correlação se deve à pirataria afectar a idade das pessoas, concluindo daí que aumentar a pirataria iria inverter a tendência para o envelhecimento da população e trazer grandes benefícios para a segurança social.

É neste erro ridículo que assenta o estudo do Ricardo Ferreira Reis. Da mera correlação entre a pirataria e o PIB não se pode prever que a pirataria afecta o PIB. O contrário até faz mais sentido, pois quanto maior for o rendimento das pessoas menor o incentivo para obter software ilegal. O próprio estudo admite isto ao apontar que «a crise financeira representa um risco de contração do rendimento que pode levar a um aumento da taxa de pirataria». Mas não parece haver um mecanismo plausível pelo qual reduzir a pirataria de software aumente o PIB de Portugal.

Há até razões para crer o contrário. Forçar uma redução na pirataria por medidas judiciais implicaria mais despesa pública em fiscalização e castigos e iria reduzir o uso de software. Como muito software é ferramenta de trabalho, reduzir o seu uso, mesmo que ilícito, teria um impacto negativo na produtividade. Além disso, a maior parte do software comercial à venda em Portugal é importado. Por isso, aumentar os gastos com software desequilibraria ainda mais a balança de pagamentos, diminuindo o PIB em vez de o aumentar.

Infelizmente, parece que esta propaganda manhosa funciona porque, na comunicação social, a maioria não questiona as premissas nem pergunta como é que usar menos software estrangeiro de graça aumentaria o PIB nacional. Em vez disso, só vejo estas publicações papaguearem as alegações do “estudo” sem qualquer análise crítica (6).

* Como medido pela BSA

1- Notícias Grande Lisboa, Estudo do impacto económico da pirataria informática apresentado em Lisboa. Obrigado a todos que me enviaram emails e comentários sobre isto.
2- CSLBE, O impacto económico da pirataria informática em Portugal
3- No YouTube, Impacto Económico da Pirataria Informatica em Portugal.
4- BSA.org, Methodology
5- «The commercial value of pirated software is the value of unlicensed software installed in a given year, as if it had been sold in the market.». Há uma boa análise destas e outras asneiras no Techdirt
6- Por exemplo, Público, Diário de Notícias, Computerworld, Exame Informática, Tek, Económico e Agência Financeira.

terça-feira, maio 22, 2012

Crime em Informática.

Esta quarta-feira, às 14:00, vou participar no colóquio “Crime em Informática”, organizado pelos núcleos de estudantes do IEEE e da Ordem dos Engenheiros, da FCT. Vou falar sobre o copyright, sobre a lei que temos, como chegámos a este ponto e o que a lei devia ser.

Mais informações aqui e aqui.

segunda-feira, maio 21, 2012

Treta da semana (passada): constelações familiares.

Recebi há dias um email da Akademia do Ser anunciando o «Grupo de Constelações com Maria de Fátima da Luz», entre outras coisas. Serve este post para agradecer o spam.

O método das «Constelações Familiares e Organizacionais […] revela onde está a dor causada por acontecimento trágico[...] Identificando e consciencializando o acontecimento é possível aceitar, respeitar e honrar para que o amor volte a fluir.»(1) Para conseguir isto, «O cliente coloca o tema que deve ser claro, importante ou urgente. O cliente escolhe figuras (na sessão individual) ou participantes (na sessão em grupo) para cada um dos primeiros representantes sugeridos pelo facilitador colocando-os segundo a imagem interna que tem. Ambos observam respeitosamente. […] A imagem final – Constelação – é a imagem que o consulente deve guardar – a solução».

À primeira vista, pode parecer estranho que escolher umas figuras e observar respeitosamente dê a solução para problemas como «Conflitos entre familiares; Doenças físicas; Doenças psíquicas; Insucessos escolares; Insucessos profissionais; Problemas financeiros; Outros». Especialmente a última categoria, que me parece demasiado abrangente. Mas isto tem a sua lógica. Com ênfase no “sua”. O método das constelações foi criado por Bert Hellinger, ex-monge missionário entre os Zulu, formado em filosofia. teologia e psicanálise (2). Como explica na “dimensão espiritual” da sua ciência, a “Hellinger sciencia®”, «Todo o movimento, especialmente de um ser vivo, é um movimento compreendido, consciente, propositado. Este conceito pressupõe uma consciência nessa força que move tudo. Por outras palavras: Todo o movimento é um movimento pensado. O movimento começa porque é pensado por esta força, e torna-se movimento da maneira que é pensado.»(3) Como é norma entre as tretologias, inventa-se um conceito, esse conceito pressupõe uma alegação qualquer e, daqui, conclui-se que a alegação é verdadeira. É falacioso até ao tutano mas, há que reconhecer, este não se envergonha da falácia. Muitos esforçam-se mais por disfarçar.

Na Akademia do Ser, a terapeuta das constelações é Maria de Fátima da Luz (4), que tem uma longa experiência a lidar com distúrbios mentais («foi professora do ensino público durante 38 anos») e uma capacidade extraordinária para conciliar crenças contraditórias: «A partir de 1997 fez formação em: Feng Shui, Reiki, Terapia Floral, Cura Quântica, Cristais, Biologia da Saúde, Prismologia, Cura Multidimensional, Constelações Familiares, Constelações Organizacionais, Numerologia, Hipnose Clínica, Terapia Regressiva, AMARA “Vida e Morte a Mesma Preparação, Eneagrama.» O que parece enquadrar-se bem na psicoterapia.

Os termos “psicologia”, “psiquiatria” e “psicoterapia” podem suscitar confusão, mas denotam coisas bem diferentes. Em Portugal, a prática da psicologia é regulada pela Ordem dos Psicólogos (5) e a psiquiatria é uma especialidade de medicina (6). A psicoterapia, em contraste, parece ser o que cada um quiser. Uma googladela rápida levou-me à Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica, Sociedade Portuguesa de Psicoterapia Existencial, Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Construtivistas, Sociedade Portuguesa de Psicoterapia Interpessoal e Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves.

Com isto, fiquei tentado a guardar os poucos escrúpulos que a crise me deixou e fundar a Sociedade Portuguesa da Psicoterapia da Credulidade. Mesmo que não consiga tratar ninguém, com um método holístico de consciencialização existencial ou coisa que o valha não deve ser difícil convencer os clientes de que os curo. É o que basta para o negócio correr bem.

1- Academia do Ser, Constelações Familiares e Organizacionais
2- Wikipedia, Bert Hellinger 3- Hellinger.com, Hellinger sciencia®
4- Akademia do Ser, Maria de Fátima da Luz
5- Ordem dos Psicólogos, FAQ
6- Ordem dos Médicos, Colégio da Especialidade de Psiquiatria

sábado, maio 19, 2012

Adopção, parte 2 (legislação).

Na União Europeia, a Bélgica, Holanda, Portugal, Espanha e Suécia reconhecem o casamento homossexual como legalmente equivalente ao casamento heterossexual. Destes cinco países, só Portugal impede a adopção por casais homossexuais(1), contra jurisprudência europeia (2). Por causa de uma lei pouco clara, no nosso país os homossexuais só podem adoptar se forem solteiros. O DL 195º de 1993 estipula, no artigo 1979º, que podem «adoptar plenamente duas pessoas casadas há mais de quatro anos […] se ambas tiverem mais de 25 anos» e que «Pode ainda adoptar plenamente quem tiver mais de 30 anos»(3). A Lei nº 9 de 2010, que permite o casamento homossexual, aponta que «As alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adopção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo» (4), o que é interpretado como impedindo a adopção por casais homossexuais mas não o afirma explicitamente. Uma pessoa solteira com mais de 30 anos pode adoptar sem que a lei se importe com as suas preferências sexuais. No entanto, se estiver casada com cônjuge do mesmo sexo, não é claro que efeito tem o seu estado civil “não implicar a admissibilidade legal da adopção” visto que, tendo mais 30 anos, já cumpre o requisito para poder adoptar qualquer que seja o seu estado civil. Aparentemente, os homossexuais podem casar e podem adoptar, só não podem é adoptar como casal, o que é difícil de justificar.

A proposta de lei 7/XI (5) explica que o casamento homossexual não deve permitir a adopção para «garantir o respeito pelos superiores interesses do adoptando. [O Código Civil estabelece] taxativamente que a adopção «apenas será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando». É esse critério, que tem em conta o interesse superior de um terceiro - a criança - que deve nortear o legislador na determinação de quem «pode adoptar». Nessa medida, [...] justifica-se estabelecer que a adopção não esteja disponível por parte das pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo.» Mas isto não justifica nada. Deve-se proteger os interesses da criança mas, para justificar a exclusão categórica de «pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo» era preciso que a adopção por estas pessoas fosse sempre lesiva dos interesses da criança. Sempre. Porque, se houver excepções, então será preciso avaliar cada caso individualmente em vez de proibir tudo à partida. E é fácil pensar em exemplos contrários. Vamos supor que uma criança ficou órfã e a tia, que sempre ajudou a cuidar da criança, está disposta a adoptá-la. À partida, é claramente no interesse da criança ser adoptada pela tia em vez de ir para o orfanato e, se a tia for solteira e tiver mais de 30 anos de idade, a lei nem quer saber se é lésbica. O que o legislador precisava de justificar é que, se esta tia fosse legalmente casada com uma mulher, então já passava a ser melhor para a criança ficar no orfanato independentemente das condições socio-económicas da tia, dos laços afectivos que tivesse com a criança ou da sua capacidade para continuar a criá-la. É de notar que a lei também não proíbe categoricamente a adopção por quem tenha sido condenado por crimes violentos, odeie crianças ou não tenha onde morar, por exemplo, problemas mais graves do que o sexo do cônjuge e que, no entanto, são avaliados caso a caso.

Outro problema neste impedimento é que a Constituição proíbe que qualquer um seja «privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão»(6) do seu sexo ou orientação sexual. Argumenta-se contra isto que não existe um direito de adoptar que esteja a ser violado mas, mesmo sem haver tal direito, é óbvio que esta lei prejudica algumas pessoas conforme o sexo ou orientação sexual. Pior ainda, ao excluir «pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo», a lei prejudica uns com base no sexo de outros, dos cônjuges, o que além de injusto é absurdo. Talvez seja por isso que o texto da lei é tão pouco explícito.

Tudo isto tresanda a preconceito. Começa pela justificação da proposta de lei, que diz defender os interesses da criança mas não explica que males lhe viriam por ser criada por duas pessoas do mesmo sexo. Passa pelo texto da lei, um obscuro «não implicam a admissibilidade legal da adopção» que depois é interpretado, muito além do seu sentido literal, como excluindo a adopção por casais homossexuais. E revelou-se novamente nas justificações dos partidos que chumbaram os projectos de lei que visavam corrigir esta situação (7). Telmo Correia chegou a dizer que era sensível ao argumento de que alargar a adopção aos casais homossexuais poderia, em alguns casos, permitir que «crianças que não têm outra solução pudessem ter melhores condições de vida» mas «não pensamos que seja esse o factor decisivo». Isto apesar de reafirmar o supremo interesse da criança(8). Julgo que até um político experiente devia perceber a contradição. Segundo o PCP, o problema de permitir a adopção por casais homossexuais é ser «preciso pensar nas condições de aplicabilidade da lei» e que «neste momento, continuamos a não ter esta questão suficientemente debatida e sedimentada na sociedade»(9). Quando se legisla a proibir algo é realmente preciso pensar se a sociedade aceita essa proibição e se é possível aplicar a lei. Não queremos uma lei que todos ignorem. Mas tratando-se de eliminar uma proibição não faz sentido duvidar das “condições de aplicabilidade” nem exigir sedimentação. Basta permitir.

Há cada vez menos famílias dispostas a adoptar (10), há imensos riscos para as crianças em instituições – até a Igreja Católica «reconhece a dimensão do problema»(11) – e não há evidências de que ter dois pais ou duas mães seja prejudicial. Sobra apenas o preconceito e a cobardia dos políticos que, certamente cientes da falta de fundamento para esta lei, a mantém com desculpas transparentes e sem sentido. E depois os maricas são os outros...

1- Wikipedia, LGBT rights in the European Union
2- DN, Paulo Albuquerque, (2010), Casamento homossexual
3- Decreto-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio.
4- DRE, Lei nº 9 de 2010
5- Parlamento,Proposta de Lei 7/XI.
6- Parlamento, Constituição da República Portuguesa, artº 13º.
7- O 126/XII e o 178/XII.
8- Intervenção de Telmo Correia sobre adoção por casais do mesmo sexo.
9- PCP, Sobre a Procriação Medicamente Assistida, a adoção e o apadrinhamento civil por casais do mesmo sexo
10- Expresso, Há menos famílias a querer adotar crianças.
11- PTJornal, Fátima: Igreja anuncia diretrizes de combate a abusos sexuais contra menores nas suas instituições.

domingo, maio 13, 2012

Treta da semana: Einstein dixit.

Segundo José Reis Chaves, espiritista brasileiro, «Os materialistas do passado incomodavam-se com a Igreja. Os de hoje se preocupam mais é com o espiritismo, por ser ele uma religião científica. [...] Não é, pois, por acaso, que têm surgido muitos ateus fanáticos contra a doutrina codificada por Kardec, "o bom senso encarnado".»(1) Pessoalmente, não me preocupo muito com o espiritismo, o Kardec ou a cor do seu bom senso. Preocupam-me mais coisas como o Estado português ter de pedir autorização ao Vaticano para mudar feriados, o negócio da religião não pagar impostos ou a forma como se ensina religiões nas escolas públicas. Se a «médium psicógrafa dra. Marlene Saes, de São Paulo (SP)» publica o «seu novo livro "Nas Águas do Mar da Vida", pelo espírito Luizinho» e alguém o compra, pois que lhe faça bom proveito. Quanto à alegação de que o espiritismo é uma “religião científica”, concordo parcialmente. Dizer que «Para a física quântica, as coisas invisíveis são mais importantes do que as visíveis. E o espírito é invisível» ou «o espírito do médium tem que vibrar na sintonia da do espírito comunicante» não tem nada de científico, mas para religião basta.

O que me interessa mais no texto do José Reis não é a comunicação «de períspirito para períspirito», a aura, a quinta-essência ou o corpo bioplasmático. É esta frase de Einstein, tantas vezes mal compreendida quantas é usada em defesa da tretologia: «A religião sem ciência é cega, e a ciência sem religião é aleijada». Esta frase é frequentemente invocada como querendo dizer que a ciência complementa, e é complementada por, uma crença esperançosa no sobrenatural, uma devoção a um suposto criador e essas superstições envolvendo deuses, espíritos e vida depois da morte que associamos ao termo “religião”. No entanto, não era nada disto que Einstein queria dizer. No artigo de onde citam apenas aquela frase e, normalmente, sem referir a origem, Einstein explica bem que sentido estava a dar ao termo.

«em vez de perguntar o que é religião eu preferiria perguntar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dê a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser alguém que, de acordo com as suas capacidades, se tenha libertado dos grilhões dos seus desejos egoístas e se preocupe com pensamentos, sentimentos e aspirações aos quais se prende pelo seu valor sobrepessoal. Parece-me que o que é importante é a força deste conteúdo sobrepessoal e a profundidade da convicção acerca do seu significado avassalador, independentemente de haver alguma tentativa de unir este conteúdo a um Ser Divino, pois de outro modo não seria possível contar Buda e Espinosa como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de que não tem dúvidas acerca do significado e elevação desses objectos e propósitos que vão além da sua pessoa e não requerem nem admitem um fundamento racional. Existem com a mesma necessidade e factualidade da própria pessoa. Neste sentido, a religião é o esforço milenar da humanidade em se tornar claramente e completamente consciente dos seus valores e propósitos, e de constantemente os fortalecer e estender os seus efeitos.»(2)

Ou seja, neste sentido, “religião” refere um esforço de se guiar por algum ideal que transcenda interesses pessoais, mas sem implicar nada acerca de deuses, espíritos ou crenças no sobrenatural. Um ateu pode perfeitamente ser religioso no sentido que Einstein dá ao termo, e o exemplo que Einsten dá é que a «ciência só pode ser criada por aqueles que estejam completamente imbuídos de aspiração para a verdade e a compreensão». É isto que Einstein quer dizer com essa frase tão célebre e tão deturpada. A devoção sem conhecimento objectivo é cega e a investigação sem devoção à verdade é paralítica.

Isto não tem nada que ver com as crenças que normalmente chamamos religiosas nem com o espiritismo do José Reis Chaves, superstições acerca das quais Einstein também foi bastante claro. Por exemplo, nesta carta ao filósofo Erik Gutkind:

«A palavra Deus não é para mim mais do que a expressão e o produto da fraqueza humana, a Bíblia uma colecção de lendas honráveis mas puramente primitivas, lendas que, no entanto, são bastante infantis. Nenhuma interpretação, por mais subtil que seja pode (para mim) alterar isto... Para mim, a religião judaica é, como todas as outras religiões, uma encarnação da superstição mais infantil.»(3)

Os argumentos de autoridade são muitas vezes falaciosos e quase sempre fracos. Mas penso que há boas razões para concordar com Einstein para além do simples facto de se tratar de Einstein. E, seja como for, invocar Einstein como autoridade para apoiar doutrinas espíritas e tretas afins é um tiro no pé, seja no da aura, no bioplasmático ou no do períspirito.

1- Blog de Espiritismo, José Reis Chaves - 'Abalado está o ateísmo'
2- Sacred-Texts, Science and Religion II, Science, Philosophy and Religion, A Symposium, 1941.
3- Letters of Note, The word God is the product of human weakness

Editado a 14 para corrigir uma gralha. Obrigado ao Zarolho pelo olho aguçado.

Disto e daquilo.

Alfaces
Segundo o João Miranda, no Blasfémias, os hipermercados têm uma margem de lucro tão grande porque «produzir uma alface é mais fácil do que colocar uma alface onde eu a quero comprar, com o aspecto que eu quero, no dia e na hora a que eu quero»(1). Por isso, diz o João, «numa economia moderna o valor acrescentado da distribuição é muitas vezes superior ao da produção». Para uma alface, até pode ter razão. Mas, de resto, está enganado.

Realmente, produzir uma alface custa menos do que transportar uma alface de carro até onde o João a quer comprar. No entanto, quando aumentamos a escala a relação vai mudando. Isto porque produzir dez mil alfaces custa pouco menos do que dez mil vezes o que custa produzir uma alface. Há alguma economia de escala, mas lavrar mais terra exige mais energia, regar mais alfaces exige mais água, colher mais alfaces exige mais mão de obra, e assim por diante. Mas transportar dez mil alfaces exige só substituir o carro por um camião. Gasta-se mais combustível, mas não dez mil vezes mais.

E esse é que é o factor principal. Os hipermercados não ganham mais dinheiro por custar muito mais fazer o que fazem. Ganham mais dinheiro porque a distribuição tem custos menores, por peça, quanto maior for o volume. Isto favorece os oligopólios e dá a uns poucos muito mais poder de negociação. Ou seja, poder para distorcer os preços a seu favor. O mercado livre é muito bom, mas só quando todos podem negociar de igual para igual. Quando um tem uma pistola, não faz sentido dizer que a carteira do outro é o preço justo pelo "valor acrescentado" de não levar um tiro. Nessa altura é preciso admitir que o mercado não está a funcionar.

Ultimamente só tenho comido alfaces que eu produzi. Sabem-me melhor do que as do hipermercado e, para quem passa os dias ao computador, umas horas de enxada ao fim de semana é relaxante. Mas não invejo nada quem tenha de viver da agricultura. Além do trabalho, há também o risco de investir o pouco que se tem a semear um campo de alfaces e depois ficar arruinado por não chover ou vir geada, pulgões ou promoções do Pingo Doce.

Sensatez
O Ricardo Alves, no Esquerda Republicana, propõe que os «militantes anti-tourada» defendam uma “regulação sensata” do espectáculo em vez de querer proibir a tourada. Segundo o Ricardo, o que é sensato é continuar a espetar ferros nos touros mas não deixar que as crianças vejam (2).

O argumento do Ricardo parte da premissa de que «os animais não humanos [não são] sujeitos de Direito». Infelizmente, não explica de onde isto vem. Eticamente, a distinção taxonómica entre “humanos” e “não humanos” é irrelevante e, legalmente, os animais já são protegidos por lei. Por exemplo, organizar um espectáculo igual ao da tourada mas com cães em vez de touros viola a lei (3).

Não é sensato permitir a tourada e apenas proibir que as crianças assistam porque a razão principal para proibir que as crianças vejam tourada é tratar-se de um espectáculo cruel e eticamente condenável. A sensatez exigiria, no mínimo, que parassem de espetar ferros no bicho, acto cuja imoralidade deriva apenas do espetado sentir e do espetador* saber bem o sofrimento que causa ao animal.

Fantasmas
Segundo o Mats, no blog Darwinismo, «Os colégios, as universidades e os média estão sempre prontos a atacar a ciência de criação e qualificá-la de “não científica”» mas «a “ciência” secular não só acredita no sobrenatural, como depende [deste]. Por exemplo, os evolucionistas acreditam em “fantasmas“.»(4) Nem por isso.

Os “fantasmas” que o Mats aqui refere não têm nada que ver com o fantasma sagrado dos criacionistas, o tal que bafejou vida no barro e criou cada minhoca e carrapato. Nem têm nada que ver com o sobrenatural. São as linhagens fantasma, designação para as linhagens cuja existência se pode inferir mas para as quais ainda não se encontrou fósseis. Por exemplo, até recentemente a linhagem que une os chimpanzés aos seus antepassados em comum connosco era uma linhagem fantasma. Temos muitos fósseis de hominídeos, do nosso lado da família, mas só em 2005 se encontrou os primeiros fósseis equivalentes do lado dos chimpanzés (5). No entanto, mesmo antes disso era razoável assumir que os chimpanzés não tinham surgido por obra e graça do espírito santo. Isso sim é que seria uma hipótese sobrenatural. Além de ser um disparate.

*"Espetador" no sentido de "aquele que espeta" e não de "aquele que assiste", ao contrário do que recomenda o novo acordo ortográfico.

1- João Miranda, Bem-vindos ao mundo moderno
2- Ricardo Alves, Por uma regulação sensata das touradas
3- Se bem que as sanções, que eu saiba, ainda não estejam determinadas. LPDA, Lei n.º 92/95
4- Mats, Os fantasmas evolutivos.
5- National Geographic News, First Chimp Fossils Found; Humans Were Neighbors

domingo, maio 06, 2012

Treta da semana: pelos atacadores.

Seria uma boa maneira de voar. Segurávamos os atacadores com ambas as mãos, puxávamos com força e lá íamos nós. Infelizmente, a física é uma chata. Mas, em tempo de crise, a física é só para os fracos, e uma empresa em Portugal está a distribuir o equivalente termodinâmico de um sistema para voar puxando os atacadores dos sapatos.

Por preços que vão dos €99,50 aos €220,00 (mais IVA), podem comprar à Livre Energia uns aparelhos para produzir “HHO”, que é hidrogénio e oxigénio gasosos obtidos por electrólise da água. Estes aparelhos são ligados à bateria do carro, usam a electricidade produzida pelo motor para decompor a água nestes gases e misturam-nos com o ar que alimenta a combustão. Segundo a empresa distribuidora, o resultado disto foi que «Em todos os testes se evidenciou, maior potência e economia de combustível, variando de 10-25%.»(1)

Como primeira objecção, gostava de apontar que nem todos os testes evidenciaram tal poupança. Por exemplo, os testes relatados pela revista Popular Mechanics, em colaboração com a NBC e recorrendo a laboratórios certificados pela EPA seguindo os mesmos protocolos usados para avaliar o desempenho de modelos novos, indicam que este sistema não reduz o consumo. Pelo contrário, aumenta-o, devido à energia usada para a electrólise, se bem que o aumento só seja detectável com medições muito precisas como as que fizeram nestes testes (2).

É fácil perceber porquê. É a combustão no motor que fornece energia eléctrica, pelo dínamo, para carregar a bateria, que depois alimenta os eléctrodos que decompõem a água em hidrogénio e oxigénio que, por fim, são injectados para ajudar a combustão. Tal como puxar os atacadores para tentar voar, isto só desperdiça energia.

No entanto, há outra alegação acerca destes aparelhos que é um pouco mais complexa, mas também infundada. Experiências feitas pela NASA em 1979 mostraram que a injecção de hidrogénio num motor de combustão Cadillac de 1969 reduziu o consumo por aumentar a velocidade da chama e reduzir as falhas de ignição quando o motor trabalhava com uma mistura pobre, ou seja, com muito ar e pouco combustível. Usando um sistema catalítico que aproveitava o calor do motor para produzir hidrogénio a partir de etanol, e não água, neste estudo optimizaram o consumo total de energia, entre gasolina e etanol, injectando 231g de hidrogénio por hora. O ganho no consumo foi de 3% (3).

Há vários problemas em extrapolar destes ganhos num motor de 1969 para as poupanças de 10-25% que alegam em motores modernos, com os geradores que vendem. Por um lado, porque os motores modernos têm um controlo muito mais preciso da combustão e sistemas, como o de injecção directa de combustível, que permitem optimizar o desempenho em misturas pobres injectando o combustível sob pressão durante a fase de compressão. A combustão mais rápida, devido à adição de hidrogénio, melhorou o desempenho do motor testado pela NASA por reduzir as falhas na ignição e completar a combustão durante a fase de expansão. Num motor moderno, é duvidoso que alterar a velocidade de combustão melhorasse o desempenho, e podia até piorá-lo por estar tudo optimizado para a forma como o combustível se comporta normalmente.

Além disso, há o problema da quantidade de hidrogénio gerado. A NASA usou um catalisador que gerava hidrogénio a partir do etanol e injectava 231g por hora no motor. Para motores com aquela cilindrada, a Livre Energia recomenda cerca de 2 litros de hidrogénio por minuto, o que dá 12 g de hidrogénio por hora. Vinte vezes menos do que a quantidade com a qual a NASA conseguiu uma melhoria de 3% no consumo energético de um motor de 1969.

Mas ainda bem que é assim. Por um lado, gerar 40 litros de hidrogénio por minuto, por electrólise, consumiria uns 20 cavalos de potência e exigiria um sistema de arrefecimento considerável, já para não falar de alterações significativas na geração e distribuição eléctrica do carro (4). Por outro lado, a redução de emissões por conversão catalítica exige uma mistura correcta à entrada do motor, e até inclui sensores para controlar a injecção de combustível em função dos gases de escape (5). Não é boa ideia alterar a mistura de combustão significativamente sem adaptar todo o sistema de controlo a jusante. Felizmente, os aparelhos vendidos pela Energia Livre apenas produzem quantidades homeopáticas de hidrogénio e, tal como a homeopatia, só têm efeitos negativos para a carteira do comprador.

1- Livre Energia, Perguntas frequentes e tecnologia. Via Facebook; obrigado pela referência.
2- Popular Mechanics, 2009, Why Water Won't Improve Your MPG: A PM and Dateline NBC Investigation
3- NASA technical note, Emissions and total energy consumption of a piston engine running on gasoline and a hidrogen-gasoline mixture.
4- Wikipedia, Electrolisis of Water, efficiency.
5- Wikipedia, Conversor catalítico

Dia anti-DRM.

Sexta-feira, dia 4, foi o dia internacional contra o DRM, sigla para Digital Rights Management e que refere a tecnologia que controla o uso de ficheiros para proteger os conteúdos de acordo com os direitos de quem os vendeu. Doublespeak no seu melhor. Por um lado porque não é preciso restrições de cópia, partilha ou leitura para proteger informação digital. Pelo contrário. A melhor forma de a proteger é fazendo cópias de segurança e distribuindo essas cópias. Por outro lado, os direitos do autor não incluem direitos de propriedade sobre o equipamento dos outros. Se copiarem este post, é justo que refiram o autor. O que não é justo é o autor deste post ditar como, quando e para que fins os leitores podem usar os seus computadores, mesmo que seja para copiar este post. Portanto, o DRM, apesar do nome e do que dizem, não tem nada que ver com protecção de conteúdos nem com direitos.

É também um conceito inconsistente. O conteúdo digital é uma representação numérica de algo como músicas, filmes, imagens ou texto e, para o cliente poder usufruir desse conteúdo, precisa de poder descodificar essa representação. Ou seja, além da mensagem codificada, é preciso dar também a chave para a descodificar para que o cliente tenha acesso à mensagem. O DRM é o exercício fútil, contraditório e criptograficamente ridículo de tentar ocultar a mensagem depois desta ser descodificada. É como tentar escrever um livro de forma a que se possa ler facilmente mas que não se consiga ler em voz alta ou descrever que letras tem.

A justificação mais comum do DRM, que é combater a pirataria, é outra treta. Qualquer sistema de DRM é fácil de contornar, coisa que os “piratas” rapidamente fazem, e o DRM acaba por ser um incentivo forte à pirataria porque a versão pirateada é melhor. Não exige contorcionismos de validação e licenciamento, funciona em vários suportes, permite fazer cópias de arquivo e o que mais se quiser. O verdadeiro propósito do DRM é maximizar o rendimento extraído àqueles clientes que, por falta de conhecimento, por fidelidade ou por uma noção enganada de honestidade decidem submeter-se aos caprichos da empresa a quem pagam pelo conteúdo. Várias vezes.

Por estas razões desagrada-me o DRM, o que contribui para não ter iTretas, não comprar DVD, preferir software livre e assim por diante. No entanto, não me considero anti-DRM. Isto porque, por muito estúpido que seja, reconheço a qualquer um o direito de disponibilizar os seus ficheiros como quiser. Se me desse na cabeça, podia distribuir este post num ficheiro encriptado e só dar a password a quem saltasse à corda com amendoins enfiados nas narinas. Seria uma parvoíce, mas teria todo o direito de o fazer. Porque só saltava quem quisesse.

O que sou contra é haver legislação para punir «a neutralização de qualquer medida eficaz de carácter tecnológico» (1). Porque o meu direito de distribuir esta informação como me der na gana não se pode sobrepor ao direito dos outros usarem o seu equipamento e partilharem a informação que têm como quiserem. Ou seja, o problema não é haver empresas que incluem medidas tecnológicas de restrição nos ficheiros que vendem. O problema é apenas haver uma lei que proíbe que se altere essa sequência de 0s e 1s para outra que seja mais conveniente.

É claro que, tecnologicamente, o DRM é algo tão ridículo que, sem a lei, rapidamente desaparecia. Mas isso seria apenas a cereja em cima do bolo.

International Day Against DRM

1- (Gedipe) LEI 50/2004, de 24 Agosto (pdf).