terça-feira, fevereiro 07, 2012

«A Internet deve ser limitada?»

O “Sociedade Civil” de ontem foi sobre «como se pode proteger os direitos de autoria num espaço livre de informação»(1). Uma questão central foi como conjugar, de forma justa e equilibrada, os direitos dos autores com os direitos dos utilizadores. O António Serra, da SPA, chegou até a dizer que se justificava violar direitos de privacidade e afins porque também se pode fazer o mesmo no caso do terrorismo. Foi um exemplo extremo, e disparatado, mas que ilustra um erro fundamental nesta discussão. Um erro que penso que todos os intervenientes cometeram. Foi esquecer que os direitos dos autores não estão todos ao mesmo nível.

Enquanto autor deste texto, eu tenho o direito de não me atribuírem versões deturpadas daquilo que eu escrevi. Se alguém me citar ou parafrasear o que eu escrevo deve fazê-lo preservando o sentido original. Este direito é tão fundamental como a minha liberdade de expressão porque, no fundo, está-lhe directamente relacionado. Deturpar as minhas palavras é privar-me do direito de me exprimir com elas.

Enquanto autor deste texto, tenho também o direito legal de proibir que o declamem em público sem pagar uma licença de actuação. Podem ler em casa, para a família, mas não num local público. Este “direito” não tem nada que ver com o outro. É uma mera concessão de um monopólio com valor comercial para ajudar os autores a fazer negócio com o que escrevem. Não há qualquer fundamento ético para distinguir entre ler em voz alta em casa ou na rua. Quando se discute direitos de autor é preciso distinguir entre direitos de verdade e estes “direitos” que são meros privilégios legais com fins comerciais.

Um exemplo histórico de um debate análogo, se bem que mais extremo, foi o da escravatura e abolicionismo nos EUA. Os defensores da escravatura «argumentaram que o fim abrupto da economia de escravos iria ter um impacto profundo e devastador no Sul, onde a mão de obra escrava estava na base da economia. A economia do algodão iria colapsar. O tabaco secaria nos campos. O arroz deixaria de ser rentável.»(2) Se tivessem feito um “Sociedade Civil” nessa altura, haveria provavelmente no painel um esforço de balançar os direitos dos escravos e os direitos dos seus donos, que, afinal, tinham investido muito dinheiro na compra dos escravos e estavam economicamente dependentes daquele sistema. O que é óbvio para nós, que o direito à liberdade está tão acima do direito ao negócio que nem faz sentido procurar um equilíbrio, não era nada evidente para aquelas pessoas, naquela altura. Especialmente para quem tinha escravos.

Hoje temos o mesmo problema com a Internet. Economicamente, a liberdade de partilha de informação na Internet tem um impacto negativo no negócio de alguns intermediários mas, ao que tudo indica, os autores com talento podem aproveitar esta infraestrutura para ganhar ainda mais dinheiro do que quando estavam dependentes dos fabricantes de cópias. Mas isso é uma questão factual secundária. O ponto fundamental é que mesmo que o negócio dos autores fosse por água abaixo, mesmo que a liberdade de comunicação os forçasse a arranjar outros empregos ou negócios, e mesmo que a criação profissional desaparecesse e todas as obras passassem a ser feitas por gosto em vez de por dinheiro, mesmo assim não se justificaria limitar a liberdade de expressão, direitos de privacidade e afins só para proteger este negócio.

Isto já é consensual nos meios de comunicação pessoal mais antigos. Pode-se violar “direitos de autor” por telefone ou por carta, mas dificilmente uma democracia legalizaria a violação de correspondência ou escutas telefónicas só para os detentores de monopólios garantirem que ninguém envia fotocópias de poemas ou ouve música por telefone. Por muito prejuízo que isso causasse, todos sabemos que há valores mais importantes do que o valor do negócio.

Infelizmente, a Internet ainda é uma coisa nova. Muitos não a compreendem; há uns tempos, a minha avó recomendou-me que não deixasse os miúdos ir à Internet à noite, por causa das coisas que lá dão a essas horas. Outros deturpam deliberadamente o que se passa. Chamam à partilha de informação “descarregar” ou “consumir”, que é como dizer que numa chamada telefónica descarregamos a conversa consumindo a voz de quem nos telefonou. E chamam “propriedade intelectual” a um conjunto de monopólios ad hoc e tão diferentes como marcas registadas, patentes ou o direito exclusivo de autorizar que se empreste livros*.

A Internet é uma infraestrutura de comunicação. Permite transmitir números que codificam mensagens e podem representar o que quisermos. Por isso, dá chatice a muitos negócios. Mas o que troca na Internet é informação, nada mais. O que está em causa são direitos como liberdade de expressão, privacidade, acesso à informação e o direito de transformar ideias e cultura, que são direitos do autor e são direitos de todos. E são muito mais importantes do que qualquer negócio. O choradinho pela perda dos monopólios merece tanta pena como o choradinho dos donos das plantações de algodão. Porque, no fundo, o problema é o mesmo: não há negócio que compense o sacrifício dos nossos direitos mais fundamentais.

* Aprendi recentemente que o comodato é um dos direitos exclusivos que a lei atribui ao autor. Ou seja, sem autorização do autor é ilegal emprestar um livro. No artº 68º do CDADC: «Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:[...] Qualquer forma de distribuição do original ou de cópias da obra, tal como venda, aluguer ou comodato;». Aproveito para agradecer a informação, que me surpreendeu porque estava convencido de que já não poderia ficar mais enojado com esta legislação, e para vos avisar que, para ser pirata, basta emprestar ou pedir emprestado alguma cópia de obra protegida. Antes de ter Internet eu já era um piratão de primeira...

1- Sociedade Civil, A Internet deve ser limitada?
2- US History, The Southern Argument for Slavery

13 comentários:

  1. O recurso o argumento abolicionista é interessante porque ele remete os direitos humanos para o debate entre diferentes visões do mundo.

    Quando em 1790, nos Estados Unidos, os Quakers propuseram, ao Primeiro Congresso norte-americano, a adopção de legislação anti-esclavagista e abolicionista, a primeira objecção a essa proposta suscitada pelos representantes dos estados do sul prendia-se, precisamente, com a alegada motivação religiosa dessa legislação.

    Para os sulistas, os “escrúpulos religiosos” dos Quakers não poderiam fundamentar a política legislativa do Congresso.

    Na sua opinião, se se fosse a atender às preocupações religiosas de uma “seita” ter-se-ia que atender às preocupações de todas elas.

    Na linguagem de hoje dir-se-ia que a proposta dos Quakers não satisfazia as exigências da razão pública secularizada.

    No entanto, a mesma torna clara a facilidade com que as preocupações religiosas extravasam para o modo como o ser humano deve viver em sociedade.

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    1. os quak's perspectivistas nã se assemelham às mormonices cientologistas mas tão perto

      deus deu-me umas 5 tábuas em ouro...mas era tudo ouro falso

      iste já nã se fazem deuses como dantes

      é a crise

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    2. É interessante referir os Quakers, pois vi a sua menção e relação com o movimento abolicionismo entre escritores ateus, como Carl Sagan, mas nunca entre cristãos conservadores.

      Se fizer uma pesquisa no Google por "abolitionist quaker atheism", eis alguns sites que aparecem logo : www.infidels.org , www.religioustolerance.org, www.nontheistfriends.org, atheism.about.com, www.daylightatheism.org, um livro chamado "Faith in Faithlessness: An Anthology of Atheism" ("Elias Hicks, the brave Abolitionist Quaker, was denounced as an atheist, and less than twenty years ago a Hicksite Quaker was expelled"), ...

      Um cristão conservador a mencionar os Quakers é como um muçulmano conservador a mencionar os Bahaistas. Não têm uma hierarquia eclesiastica, acreditam que cada um, têm influências de movimentos não-teístas e foram perseguidos por outros cristãos protestantes. E hoje em dia até existem movimentos quakers não-teístas como a Humanistic Society of Friends.

      Mas porquê mencionar os Quakers, que são admirados por muitos ateus ao ponto de se auto-denominarem de "quakers", em vez da Bíblia? Porque a Bíblia aceita e promove a escravatura. Até clérigos usavam a Bíblia para convencer de que a escravatura era boa e necessária, especialmente quando associados aos Confederados dos Estados da América, que originou o Ku Klux Klan através do general George Gordon. Agora os cristãos acreditam que a escravatura é moralmente errada, por isso procuram versículos que vagamente implicariam a abolição da escravatura, ou afirmam que o que chamam de "escravatura secular" é que era má - a escravatura bíblica é amorosa.

      Mas os Quakers foram uma espécie de cristianismo à parte e até associavam-se com deístas e ateus, como Elizur Wright, que era ateu e o secretário de The American Anti-Slavery Society, que foi fundada por Garrison, William Lloyd que era crítico do cristianismo: "All Christendom professes to receive the Bible as the word of God, and what does it avail?". Os Quakers também propuseram um ateu sul africano para Nobel da Paz.

      Obrigado pela trollagem interessante. Permite-nos trollar o troll esclarecendo as tuas tontices.

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    3. Se a escravatura é um mal isso só pode ser porque existe um padrão moral universal acima do ser humano e da natureza decaída, sendo errado o sistema em que o mais forte triunfa sobre o mais fraco.

      Os Quakers eram cristãos que aceitavam o sacerdócio de todos os crentes, sem hierarquias. A Bíblia ensina isso explicitamente.

      Se eles lutavam contra a escravatura e pela liberdade religiosa de índios, escravos, católicos, judeus, muçulmanos e ateus faziam-no porque, baseados na Bíblia, acreditavam na máxima dignidade de todos os indivíduos, independentemente das suas convicções.

      No entanto, os Quakers, como outros cristãos, misturaram outras influências não cristãs no seu pensamento, com resultados negativos.

      Ainda hoje muitos cristãos caem no mesmo erro, misturando cristianismo com platonismo, maniqueísmo, spinosismo, hegelianismo, marxismo, darwinismo, freudianismo, etc.

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    4. A escravatura é um mal porque é um mal ser escravo, tal como é um mal estar doente.
      Não é preciso um padrão definido por alguém para que seja mal estar triste, magoado, doente, sem liberdade.

      A Bíblia, o Cristianismo e o Quakerismo não são o mesmo. A escravatura não é negativa na Bíblia. Pelo contrário. Sempre que há uma referência da escravatura na Bíblia, é como se fosse algo que deveria ser aceitado e usado nas parábolas de Jesus. E esse simples fato era recorrido por cristãos, como Jefferson Davis, o presidente dos Confederados dos Estados da América, o Senador James Henry Hammond, o Reverendo R. Furman, o Reverendo Alexander Campbell e Benjamin Palmer que pregou: "in this great struggle, we defend the cause of God and religion. The abolition spirit is undeniably atheistic." Se o perspectiva vivesse no século XIX, estaria a defender a escravatura citando a Bíblia e que o abolicionismo era uma ideia ateia.

      Antes de existir Cristianismo, no Nobre Caminho Óctuplo do Budismo é indicado que existem 5 formas de comércio incompatíveis com o Budismo, nomeadamente tráfico de humanos ( Meio de vida correto - negócios com seres humanos ):
      "Monks, a lay follower should not engage in five types of business. Which five? Business in weapons, business in human beings, business in meat, business in intoxicants, and business in poison." (Vanijja Sutta)
      E mesmo entre 50 e 117 a.C. o ateu romano Dio Chrysostom denunciava a escravatura.

      Mas os Quakers não tinham a mesma opinião sobre a escravatura no século XVII. Até havia Quakers com escravos.Só em 1780 é que houve um consenso através do Act for the Gradual Abolishment of Slavery (e mais tarde envolveram-se também no movimento feminista), que levou à fundação da Society for Effecting the Abolition of the Slave Trade, mas não era denominacional.
      O perspectiva se vivesse no século XIX estaria a ridicularizá-los e a defender que estavam a cair no erro de misturar cristianismo ideias budistas ou seculares liberais. E poderia acusar alguns Quakers de serem ateus, como fizeram a Elias Hicks.

      A escravatura foi abolida com a Revolução Francesa e não-teístas estiveram envolvidos no movimento abolicionista desde a Revolução Francesa Já dei dois exemplo: George Gordon e William Lloyd Garrison, mas poderia apresentar outros, como Charles Bradlaugh, Elizur Wright, Stephen Pearl Andrews, Lydia Francis Child, Charles James, Albert Gallatin, Parker Pillsbury, Sir Samuel Romilly, Stephen Pearl Andrews.

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  2. tal como o tabaco e o café é uma droga...

    afecta o nervo óptico e centros de percepção de imaginárias imagens

    afecta a pineal pelo excesso de lux...e logo dessaranjos no 3ºolho (o pineal nã u krippahl)

    aqtão o lugarzinho aí na nova a arrumar viaturas ós senhores dotôres ou a alimpar os escarradores mentais nã s'arranja nada

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  3. vantagens da interneta

    iste engorda tanto que se não morrer d'enfarte

    nã preciso de trabalhar até vir o escudo

    que em 18 meses de treta acumulei 25 ou 75 anos de reservas em pure fat...

    fatela

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  4. Gosto de ver que reconheces sem problema o direito (não comercial) à não-deturpação e (presumo) concomitantemente ao reconhecimento da autoria. Aliás, penso que mentir ao referir fontes duma obra derivada (ou meramente a autoria de uma obra reproduzida), ou omiti-las, lesa não só direitos que são do autor mas também do “consumidor” da obra derivada — nomeadamente o direito de não ser aldrabado.

    Se eu declamar que «Cai leve, levemente…» no comboio ou na praia, concordo que é uma violência absurda que me venham pedir a licensa de difusão pública só por que o Augusto Gil há 70 ainda vivia, mas se eu disser à minha audiência que isto é Gil Vicente, mereço que me chamem ignorante e aldrabão.

    Se me pagarem para fazer a capa de um livro e eu usar a Mona Lisa com o título na testa e o nome do autor no decote, referir no colofão que a capa é minha sem mencionar o Leonardo (falecido que está há mais de 70 anos) é principalmente um mau serviço à cultura e à sociedade.

    Penso que a maior parte das pessoas embarca na treta das SPAs e afins por pensar nestas coisas quando se fala em direitos de autor e, por isso, que é necessário distinguir bem entre direitos de autor fundamentais, como referiste, e tretas legalísticas com o rabo (cada vez mais) de fora.

    P.S.: No texto há um "msa" em vez de "mas".

    P.S.2: Eu tinha uma avó que dizia para desligarmos o televisor se ninguém estivesse a ver, para não «ficar aquilo para ali a gastar gás».

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  5. Zarolho,

    Obrigado por teres topado a gralha. Julgo que trabalhar com Multiple Sequence Alignments está a lixar-me o português :)

    E é essa a minha posição também. A atribuição e rigor na citação não são apenas direitos de autor mas, mais importante do que isso, são deveres de honestidade da parte de todos. É por isso que a licença CC que escolhi nem exige atribuição. Quem citar os meus textos tem o dever de atribuir a autoria mas isso não vem de exigência minha nem posso isentar ninguém desse direito por licença porque é um dever que têm, sobretudo, para quem for ler.

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  6. O Ludwig diz:

    "A atribuição e rigor na citação não são apenas direitos de autor mas, mais importante do que isso, são deveres de honestidade da parte de todos."

    Mas o Ludwig também diz:

    "a moral é uma criação subjectiva"

    O problema é se alguém cria uma norma moral que torne aceitável citar os textos do Ludwig sem os atribuir ao Ludwig...

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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