domingo, julho 31, 2011

Treta da semana: lamentoso.

Em Janeiro escrevi sobre o Grande ©, um concurso que «tem uma missão institucional: enraizar o valor da criatividade e da diversidade da obra original, como fundamento para a protecção concedida pelo Direito de Autor e pelos Direitos Conexos»(1). No entanto, a AGECOP, que organiza o concurso, «reserva-se o direito de expor, publicar, utilizar ou por qualquer forma explorar os trabalhos recebidos»(2). É o costume. A criatividade isto, o autor aquilo, mas a malta da cópia e distribuição é que fica com os direitos. A leitora B_NM* discordou das minhas críticas e deixou «uma mensagem para todas as pessoas que não têm o talento nem a paciência para se dedicarem a projectos importantes que podem lançar carreiras: este projecto destina-se a conseguir lançar novos artistas de várias áreas e para promover a cultura e arte no nosso país.»(3)

Para ser professor é preciso ter paciência e, se bem que seja difícil quantificar o talento, julgo que organizar um concurso como o Grande © não exigirá muito mais talento do que ensinar. Quanto a lançar carreiras, parece-me que a educação é mais produtiva do que divulgar os trabalhos vencedores no site do concurso. Portanto, arrisco a imodéstia e proponho que a minha profissão não fica atrás dos organizadores do Grande © em paciência, talento, potencial para lançar carreiras e promoção da cultura. A grande diferença é que, enquanto os organizadores do Grande © acham que a cultura se promove impondo restrições, quem trabalha em escolas, museus, bibliotecas e universidades sabe que um país será tão mais culto quando mais fácil for o acesso à cultura e a sua partilha.

Continua a leitora dizendo haver, em «blogs lamentosos como estes», pessoas «burras, que não sabem do que falam. Não têm o direito de criticar o que não entendem». A acusação de burrice não tenho como refutar, objectivamente, por isso aponto apenas que a inteligência que calha a cada um é uma questão de sorte. O que é lamentável é, sendo mais inteligente, limitar-se a chamar burros aos outros em vez de os esclarecer. Mas o que tenho de opor, com veemência, é a ideia de que, por a leitora me julgar burro e ignorante, eu automaticamente perca o direito de criticar.

Esta mentalidade é quase um requisito para a defesa das restrições à cópia e acesso. O Autor e os Gestores de Direitos são os guardiões da cultura. Quem escreveu a letra de uma canção, ou é advogado de pessoas que vendem CDs, é que sabe como, quando e o quê se pode fazer com a cultura. Quem, em vez de canções ou contratos de licenciamento, tenha escrito dissertações, publicado artigos em revistas internacionais, preparado aulas e palestras, desenvolva software e escreva regularmente sem impor restrições de cópia é burro e não percebe nada de criatividade ou autoria. É preciso gerir a cópia com cuidado para que esta ralé não estrague a cultura.

A leitora também aponta que «A cultura é algo que deve ser apreciado e percebido por toda a gente, não para ser criticada desta forma.» Concordo com a primeira parte. Inteiramente. Por isso defendo que todos devem ter acesso à cultura e todos devem poder partilhá-la. A cultura não deve ser só para quem possa pagar licenças. Mas isso não quer dizer que não a possamos criticar. Pelo contrário. A crítica faz parte da apreciação, da compreensão da cultura, e também essa não deve ficar reservada aos auto-proclamados entendidos. Seja como for, o que eu critiquei no outro post não foi a cultura em si mas a hipocrisia de quem diz defender que a cultura é para todos ao mesmo tempo que exige castigos para quem a partilhar.

Finalmente, a leitora recomenda-me que «Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti». Em geral, é um mau conselho. Por exemplo, não gosto que me limpem o rabo nem que andem comigo ao colo para arrotar, mas tenho feito bastante disso nestas últimas semanas. Além disso, muito do que faço não é motivado por gosto mas pelo que me parece mais correcto. No entanto, neste caso, faço a si, cara leitora, o que gosto que me façam a mim: dizer as coisas como julgo que são, sem aldrabices ou rodeios. A leitora merece que retribua a frontalidade com que me chamou burro e ignorante. Mas a malta do Grande ©, que diz defender os autores convencendo miúdos a fazer propaganda aos monopólios da cópia para depois ficar com os direitos sobre o que as crianças criam, nem essa decência tem.

1- O Grande ©, O que é
2- O Grande ©, Regulamento
3- Treta da semana: o grande c...

sábado, julho 30, 2011

Subsídios.

A Priscila Rêgo escreveu alguns posts contra o subsídio dos transportes. Concordo com um ponto importante: «Se é para fazer redistribuição, mais vale dar o dinheiro a quem é pobre e deixá-lo gastar no que precisa - seja em transportes, seja em comida.»(1) Por mim, substituia-se subsídios, pensões e prestações várias por um salário de cidadão, igual para todos, reduzindo a burocracia da redistribuição apenas à colecta e tornando todo o processo mais transparente. Infelizmente, transparência e eficiência não convêm nem a políticos nem a burocratas, o que elimina esta opção logo à partida. Na prática, a escolha é entre redistribuir subsidiando os transportes ou não redistribuir esse dinheiro. Haver uma melhor maneira de o redistribuir é irrelevante se não podemos optar por ela.

Além disso, a Priscila guia-se por um modelo económico que ignora vários factores importantes. Como o atrito: «Há muitas possibilidades: alterar o lugar de residência, trocar o metro pela camioneta [...] ou até andar a pé. E as próprias empresas têm incentivos para se afastarem dos centros urbanos»(1). Mesmo que a mão invisível do mercado conseguisse, eventualmente, pôr a maioria dos pobres a morar perto de onde trabalham ou estudam, o que duvido, não o faria antes de tramar várias gerações. A longo prazo poderia ser mais prejudicial para a economia do que distorcer o preço do passe.

O longo prazo é um factor importante muitas vezes descurado. Individualmente, como a longo prazo estamos todos mortos, a cada um isto importa pouco. Mas, colectivamente, o curto prazo é muito menos tempo do que o longo. «Os preços servem para também sinalizar escassez ou excesso de produtos. Se o preço do petróleo é alto, os consumidores tenderão a refrear o seu consumo e os produtores sentir-se-ão tentados a investir em mais sistemas de extracção. Acontece o mesmo com carros, computadores ou batatas»(2) Isto é verdade no imediato, porque a variação no preço indica uma variação das condições daquele momento ou das expectativas a curto prazo. E o preço apenas guia o investimento para aquilo que dá mais lucro ao investidor. Se queremos convencer uma empresa a investir dez anos em investigação e desenvolvimento de um fármaco temos de abandonar o mercado livre e conceder monopólios, e nunca o sector privado iria garantir a educação de todos, da primária ao superior, mesmo apesar da importância que a educação tem na economia de um país.

Mas o erro principal, comum a muitos argumentos económicos, é aplicar um modelo descritivo como se fosse normativo. Se cada investidor procura maximizar o retorno do seu investimento a curto prazo, quando os preços reflectem os custos e benefícios e não outros factores*, os investidores podem maximizar esse retorno guiando-se pelo preço. Se chamarmos a isso produtividade, a Priscila tem razão. Eliminar subsídios aumenta essa produtividade. Mas isso é o que acontece. Não é necessariamente o que queremos que aconteça. Por exemplo, se tratar doentes e sinistrados é mais importante do que maximizar essa “produtividade”, este modelo descritivo não serve de norma. O melhor é ter hospitais que tratem as pessoas de graça, pagos pelos impostos, e a “produtividade” que se lixe.

O modelo da Priscila descreve como agem os agentes económicos motivados pelo lucro a curto prazo e implica que, sem subsídios, esse lucro, em média, será maximizado. Mas não descreve o que acontece à economia toda a longo prazo. Por exemplo, não permite estimar o impacto que terá, daqui a vinte anos, a redução do acesso ao ensino superior devido ao aumento no preço dos transportes. Não fazemos ideia se essa diminuição na mão de obra qualificada terá um custo maior ou menor do que o custo de subsidiar os transportes.

Mais importante ainda, o modelo da Priscila não diz o que é melhor. Subsidiar os transportes reduz a eficiência económica, mas também reduz o impacto do local de residência na educação e carreira das pessoas. Quando a Priscila diz que «A questão de fundo é quem deve pagar estes custos: os utentes, que são quem beneficia dos transportes, ou quem não beneficia, via impostos», ela própria admite que a argumentação da produtividade e economia é irrelevante. O problema principal é de valores. Se deve ser quem nasce no Barreiro a pagar o transporte para Lisboa para poder estudar medicina e se quem trabalha deve assumir todas as despesas de deslocação. Mesmo assumindo que mais ninguém beneficia da formação de médicos ou do trabalho dos outros, o que é duvidoso, ainda assim podemos querer que a sociedade contrarie as injustiças da lotaria do nascimento, da riqueza dos pais que se tem e de onde calha haver universidades ou trabalho. É uma inferência inválida e enganadora – uma falácia, portanto – concluir que não se deve fazer isto porque reduz a eficiência do mercado para gerar retornos aos investidores.

* Os monopólios sobre os trajectos, comuns nos transportes colectivos, tornam este modelo de mercado livre inadequado mesmo se o assumirmos como meramente descritivo.

1- Priscila Rêgo, Transportes Públicos
2- Priscila Rêgo, Custos e produtividade

segunda-feira, julho 25, 2011

O sexo, por suposto.

O Alfredo Dinis defendeu que «uma educação sexual que se centre em tornar acessível aos jovens os anticonceptivos e as técnicas do seu uso não passa de uma caricatura da educação sexual e, em última instância, do amor.»(1) Interpretando à letra, concordo. Os jovens devem aprender técnicas de contracepção nas aulas, quanto mais não seja para corrigir o que aprendem uns com os outros, e devem ter acesso a contraceptivos antes de iniciar a sua vida sexual. Além de educação, é também um problema de saúde pública. Mas concordo que a educação sexual e do amor não se deve centrar no preservativo. No entanto, essas partes aprendem-se pelo exemplo e não por livros e professores. É com a família que as crianças devem aprender a amar, pelo que o currículo escolar pode focar os outros detalhes.

Mas como o Alfredo me critica por interpretar os textos à letra, suspeito que a posição da Igreja seja mais forte do que apenas esse “não centrar”. Quando as religiões se preocupam com a educação das crianças, raramente é por acharem que falta alguma coisa. Normalmente é por as crianças aprenderem demais. A teoria da evolução, a existência de outras religiões ou os preservativos, por exemplo. Mas deixo esta questão em aberto.

O que me interessa aqui é a ética do sexo que o Alfredo propõe. Começa por apontar que «Para algumas pessoas, o princípio geral supremo é o da liberdade pessoal – supostamente oposto ao da obediência a mandamentos divinos ou outros», o que confunde dois contextos diferentes. Não é oposto à liberdade pessoal que o Alfredo opte por seguir mandamentos. Isso até é um exercício da sua liberdade pessoal. Mas haveria conflito se alguém obrigasse o Alfredo a seguir mandamentos. Em comportamentos e disposições que não se imponham aos outros – o que Robert Kane chama “esfera moral” – qualquer conjunto de valores é igualmente legítimo. Só quando saímos desse contexto, para impor regras a todos, é que a liberdade pessoal se torna importante para minimizar a distância a esse ideal, normalmente impossível, de cada um agir como entender sem prejudicar os outros. Esta distinção, importante em todos os problemas éticos, é especialmente relevante com o sexo. Era útil que o Alfredo distinguisse entre os princípios que aplica à sua vida sexual e os princípios que quer aplicar à vida sexual dos outros.

Sem fazer essa distinção, o Alfredo defende que «O problema é que ao ‘alugar’ uma prostituta, eu estou objectivamente a banalizar um género de relação interpessoal que é dos mais profundos.[...] As relações sexuais são um género muito especial de relações porque inclui um nível de complexidade e de intimidade que não se encontra noutras relações.». Na minha experiência, o sexo pode ser parte de uma relação profunda, uma parte divertida e gratificante, mas é uma parte pequena quando comparado com tudo o que torna a relação profunda, íntima e complexa. Tanto pode ser um fim de semana romântico como uma rapidinha antes dos miúdos chegarem da escola, ou o que calhar. Por isso, parece-me errado equacionar o sexo com a relação íntima e profunda, que é muito mais do que essa pequena parte. Mas o importante é reconhecer que, numa questão pessoal como esta, é legítimo haver divergências sem que uma opinião seja objectivamente mais correcta. A “banalização objectiva” será, no máximo, um problema para o Alfredo e para quem pensar como ele. Para muitos outros, o que se passar entre o Alfredo e a hipotética prostituta, se de mútuo acordo, é um assunto entre os dois.

Acrescenta o Alfredo que «A Igreja Católica baseia-se no princípio da totalidade ou do bem total do ser humano para discernir o valor humanizador das relações interpessoais concretas». O que não diz nada, porque a questão é se coisas como proibir a prostituição e não ensinar contracepção servem o bem total do ser humano. Parece-me que, se é o bem total que queremos, a repressão e a ignorância são má ideia.

Outra alegação dúbia é que «As relações sexuais são expressão de um amor amadurecido entre dois seres humanos, um homem e uma mulher,. Por conseguinte, se não se pode brincar ao amor, também deve ser verdade que não se pode brincar às relações sexuais.» Eu comecei a namorar aos dezassete com a pessoa que ainda me atura aos trinta e nove, e os meus dados sugerem que o Alfredo está enganado. O amor demora tempo a amadurecer. O que parecia amor nos primeiros anos percebe-se, em retrospectiva, que era a brincar. Mas brincar é fundamental para aprender. Quem não brincar ao amor e ao sexo não consegue amadurecer nestes aspectos da sua vida, ficando preso a noções confusas, abstractas e distantes do que estas coisas são. Ou devem ser.

Por exemplo, « A Igreja Católica tem uma concepção da relação sexual entre dois seres humanos que supõe que o sentido dessa relação é o de realizar uma união de complementaridade total entre eles. […] A Igreja Católica parte ainda do pressuposto que esta complementaridade total leva à união profunda dos esposos e à procriação como fruto dessa união.» Pressupor é um bom ponto de partida desde que, depois, se ponha à prova os pressupostos na disposição sincera de os substituir se estiverem errados. Porque supor, por si só, não é saber. Mas esta perícia instantânea, mesmo que ilusória, é útil para as religiões. Com meia dúzia de suposições infundadas, os sacerdotes são peritos em tudo. Sabem o que acontece depois de morrermos, sabem quem criou o universo, que deuses existem, o que querem de nós e como falar com eles. E sabem até o que devemos fazer na cama, com quem, e para que fins. Tudo isto só de supor.

1- Alfredo Dinis, Sexo e religião

sábado, julho 23, 2011

Adenda.

Enquanto eu escrevia o post anterior, a Helena Matos publicou outro criticando a indignação contra o News of the World da parte daqueles que defenderam a WikiLeaks. «Em Portugal esta indignação torna-se ainda mais exótica se se tiver em conta que é uma espécie de adquirido nacional que existem escutas ilegais [...] O anterior primeiro-ministro viveu anos no meio de um imbróglio sobre o que são escutas legais e ilegais e a Presidência da República considerou que existiam “vulnerabilidades” no sistema informático da PR»(1)

Focando apenas o que é legal ou ilegal, a Helena Matos ignora o problema mais importante: o que a lei deve ser e como deve ser implementada. Precisamos de leis e de quem as faça cumprir para proteger os nossos direitos. Mas é andar no fio da navalha, porque os burocratas dos tribunais, polícia e política ficam com poderes excepcionais sobre os mesmos direitos que queremos proteger. A nível global, as leis e quem as faz cumprir ameaçam muito mais os direitos humanos do que qualquer ilegalidade.

Considerando este problema percebe-se a diferença entre os três casos. As escutas ilegais do News of the World são um mal para o qual já temos solução. Não é perfeita, mas há leis que nos protegem contra o editor de um jornal que escute conversas privadas. Mais preocupante são as escutas legais. O que aconteceu no processo Face Oculta preocupa-me mais pelo que revela da opacidade e arbitrariedade desta burocracia a que, ironicamente, chamam “justiça”. O presidente do STJ é que decide tudo, tanto a destruição como a nulidade dos recursos, alegando, como diria a Teresa Guilherme, que isso agora não interessa nada (2). Os tribunais não se entendem (3) e ninguém parece interessado em regular melhor quem decide pôr escutas nos telefones dos outros. E, agora que uma carrada de burocratas já sabe o que Sócrates e Vara conversaram, decidem que é tudo segredo e até expurgam essa informação dos despachos oficiais (4), aqueles documentos públicos – nossos, não deles – que deviam permitir controlar o que esta gente anda a fazer.

Quando correctamente formulada e aplicada de forma correcta transparente, a lei protege-nos de prevaricadores como o News of the World. Mas a lei de nada nos vale contra o abuso da própria lei. Nesses casos é preciso algo como a WikiLeaks. Não é suficiente, por si, mas é necessário que algo exponha as entranhas destas burocracias e nos mostre o que lá está podre. Que há lá podres nota-se bem pelo que tresanda, mesmo cá de fora, mas sem ver o que é não se consegue amputar.

1- Blasfémias/Público, A turminha indignada
2- Sol, Decisão de Noronha sobre escutas do Face Oculta volta a ser contestada
3- Público, Presidente do Supremo ordena destruição imediata das escutas do Face Oculta
4- TVI 24, Escutas a Sócrates cortadas à tesoura

sexta-feira, julho 22, 2011

Treta da semana: a mesma coisa.

Segundo a Helena Matos, no Blasfémias, e o Rui Carmo, no Insurgente, as escutas telefónicas do News of the World são a mesma coisa que a divulgação de informação secreta pela WikiLeaks(1). Citam um artigo do Bret Stephens, segundo o qual, «em ambos os casos, informação secreta, inicialmente obtida por meios ilegais, foi disseminada publicamente por organizações noticiosas que julgavam que o valor da informação se sobrepunha à letra da lei»(2). Isto é uma treta.

A afirmação é falsa. A WikiLeaks divulgou informação secreta, mas o News of the World divulgou informação privada. Há uma grande diferença entre as duas. A informação secreta é secreta apenas em virtude de alguém com autoridade a carimbar “secreto”. O vídeo de um helicóptero militar a matar civis desarmados e jornalistas (3) não é um registo privado nem coisa que automaticamente se deva esconder dos tribunais, dos familiares das vítimas ou de quem paga os impostos que sustentam esses militares e em nome de quem esses militares matam. Em contraste, as mensagens no telemóvel da Milly Dowler não eram secretas (4); as pessoas envolvidas podiam partilhar livremente o seu conteúdo. Mas eram privadas. Diziam respeito apenas a essas pessoas. A informação declarada secreta para encobrir a morte de civis inocentes numa operação militar não equivale às mensagens privadas de uma miúda de 13 anos.

O Bret Stephens não percebe esta diferença e, parece, a Helena Matos e o Rui Carmo também não. «Teria sido no interesse público saber, como descobrimos pela WiliLeaks, que o primeiro ministro do Zimbabwe e líder da oposição Morgan Tsvangirai estava a insistir, em privado, com os diplomatas dos EUA para que mantivessem as sanções, mesmo quando estava publicamente a afirmar o contrário? Não. O público tinha interesse nisso? Não.»(2) Segundo Bret Stephens, os eleitores não tinham interesse em saber que o primeiro ministro usava esse cargo para pressionar os EUA a fazer o contrário do que lhes tinha prometido, do que dizia fazer, e da vontade daqueles que o elegeram. E este exemplo foi o próprio Bret Stephens que escolheu.

A proposta de que são a mesma coisa por violar a letra da lei também faz pouco sentido. As leis não são todas igualmente legítimas. A lei que protege a privacidade não equivale à lei que proíbe as mulheres de conduzir na Arábia Saudita, por exemplo. E a lei que manda prender quem denuncia abusos de militares ou a traição de políticos merece pouco respeito. Há uma grande diferença entre bisbilhotar as mensagens telefónicas de uma miúda de 13 anos e publicar telegramas entre embaixadas revelando como os EUA praticamente escreveram a legislação espanhola acerca da partilha de ficheiros (5) ou que o Gaddafi, por birra, deixou contentores de urânio enriquecido abandonados ao ar livre (6).

É preocupante que se gabem de não perceber esta diferença, ou sequer que nem sempre o que alguém escreve na lei é o melhor critério para decidir o que lá devia estar escrito.

1- Blasfémias, Exactamente; Insurgente, Descubra as diferenças
2- Wall Street Journal, News of the World vs. WikiLeaks
3- Youtube, Entrevista do Julian Assange à Al Jazeera
4- Guardian, Missing Milly Dowler's voicemail was hacked by News of the World. O News of the World não só ouviu as mensagens da Milly, mas apagou-as quando a caixa de voicemail ficou cheia, para ouvir mais, dando falsas esperanças à polícia e aos pais de que a rapariga ainda estaria viva.
5- El País, EE UU ejecutó un plan para conseguir una ley antidescargas
6- Guardian, Diplomatic cables: Gaddafi risked nuclear disaster after UN slight

quarta-feira, julho 20, 2011

Factos, hipóteses e tretas.

Numa conversa recente com o Miguel Panão, eu apontei que a religião dele depende da verdade de hipóteses científicas, ao contrário do que alguns católicos afirmam. Por exemplo, depende de ser verdade que Jesus foi crucificado – se não foi, o cristianismo está em maus lençóis – e esta questão é científica, empírica e sem ponta de metafísica. O Miguel discordou, alegando que a «morte de Jesus na cruz, é um dado, não hipótese», que o «[Catolicismo] depende do facto Cristo e esse é anterior à verdade histórica», e que «diferimos apenas num caso concreto - a crucificação de Jesus - que eu considero com um dado histórico, um facto e tu como uma hipótese.»(1) Isto é uma confusão.

O facto é o estado da realidade. Se chove em Lisboa, é esse chover em Lisboa é que é o facto. Mas quando eu digo que chove em Lisboa apenas profiro palavras e não chuva em Lisboa. O que eu estou a fazer é enunciar uma proposição acerca dos factos. Ou seja, uma hipótese. Por vezes fala-se em “afirmar factos”, mas, à letra, isso faz tão pouco sentido como “afirmar zebras”. Pode-se afirmar algo acerca dos factos (ou das zebras) mas não se pode afirmar o facto em si. Esta é uma distinção fundamental: os factos são o que acontece na realidade e as proposições acerca dos factos são hipóteses.

Para qualquer modelo – qualquer representação de um aspecto da realidade, seja um conceito, um sistema de equações, um diagrama, um mapa, ou qualquer outra descrição de factos – podemos sempre considerar duas hipóteses. Ou esse modelo corresponde aos factos que pretende representar, ou então não corresponde. Para determinar qual das hipóteses é verdadeira temos de considerar o encaixe entre aquilo que se prevê do modelo e os dados que se obtém observando os factos que o modelo refere. À primeira vista, os dados parecem ser factos. Mas não são.

Galileu olhou pelo telescópio e viu as luas de Júpiter a orbitar esse planeta, um dado que o fez rejeitar o modelo geocêntrico. Mas a ideia na mente de Galileu, das luas de Júpiter e da sua órbita, não era o facto a que se referia. Galileu não tinha luas de Júpiter na cabeça. Essa ideia era também um modelo, e Galileu assumiu ser verdadeira a hipótese desse modelo corresponder à realidade. Os dados são modelos que, por hipótese, assumimos corresponder à realidade.

É útil distinguir dados, hipótese e modelo quando testamos a hipótese de um modelo corresponder à realidade porque a nossa capacidade cognitiva e o nosso tempo são finitos. Precisamos de focar um aspecto de cada vez e não podemos estar constantemente a testar o que já foi testado, senão não fazemos mais nada. Por isso, Galileu teve razão em considerar a órbita das luas de Júpiter como um dado após ter decidido, por repetidas observações, que o telescópio não distorcia o que ele observava, que aqueles pontos luminosos eram os mesmos dia após dia, que passavam de um lado de para o outro porque orbitavam à volta de Júpiter e assim por diante. Tudo isto era uma rede de modelos e hipóteses. Não eram os factos em si. O telescópio podia estar a distorcer a imagem, os pontos luminosos podiam ser outra coisa, o movimento lateral podia não corresponder a uma órbita, e assim por diante.

Para focar uma hipótese é útil confiar no que nos diz o telescópio, o relógio ou a balança, mas sem esquecer que todos os dados são modelos e não a realidade em si. Importa perceber porque é que o número na balança corresponde ao peso. Não é magia. E importa saber o que fazer se o número na balança for disparatado, que pode indicar a descoberta da anti-gravidade mas também pode ser que a balança se tenha avariado.

Assim, o equívoco do Miguel quando afirma que a «morte de Jesus na cruz, é um dado, não hipótese» é não notar que os dados são hipóteses. Apenas lhes chamamos dados para indicar que, de momento, consideramos essas hipóteses suficientemente validadas. O equívoco em afirmar que o «[Catolicismo] depende do facto Cristo e esse é anterior à verdade histórica» está em julgar que o Miguel tem algum acesso magicamente directo aos factos. Não tem. Tudo o que julga saber acerca de Jesus resulta de uma rede de modelos e hipóteses acerca dos relatos bíblicos, tradições, testemunhos e afins. E quando o Miguel diz que discordamos porque ele considera a crucificação de Jesus «um facto» em vez de propor hipóteses, o Miguel equivoca-se porque uma hipótese é precisamente essa consideração acerca de factos. Ao dizer que a crucificação de Jesus é um facto o Miguel não faz mais que enunciar uma hipótese.

O ponto importante é este: não é por o Miguel alegar que a crucificação de Jesus é um facto que essa alegação deixa de ser uma hipótese científica. E qualquer hipótese científica é provisória e sujeita a revisão se surgirem dados contraditórios. Portanto, quem acreditar que a crucificação de Jesus é um dogma irrefutável, em vez de apenas uma hipótese provisoriamente plausível, está a ir contra a ciência. Pior do que isto só o que o Miguel faz quando a hipótese nem sequer é plausível, como a de hipótese de Jesus ter ressuscitado três dias depois de ter morrido. A essa o Miguel chama «facto de fé». Isto já não é confusão. É treta mesmo.

1- Comentários em Se me permitem.

terça-feira, julho 19, 2011

Evolução: a melhor explicação.

A teoria da evolução é a melhor explicação para a origem e diversidade das espécies, não só de seres vivos mas até de outros, como os vírus. No entanto, para apreciar em detalhe o papel desta teoria no conhecimento moderno é preciso saber um pouco de física nuclear, geologia, paleontologia, biologia molecular, genética de populações e taxonomia, entre outras. As evidências a favor desta teoria abrangem tanto da ciência que não se consegue dar uma ideia correcta do seu fundamento durante a sobremesa ou o café. Por isso, a melhor maneira de justificar a teoria da evolução de forma sucinta e sem detalhe científico é ainda o argumento original de Darwin, formulado antes de se conhecer muito daquilo que demonstraria a importância desta teoria.

O primeiro ponto é perceber que o termo “evolução”, neste contexto, é o processo pelo qual as características de uma população variam ao longo das gerações, conforme os indivíduos vão sendo substituídos pelos seus descendentes. É importante evitar a ideia do lagarto a transformar-se em mamífero como a lagarta se torna borboleta. A evolução não ocorre no indivíduo; ocorre sempre em populações. Pensemos então numa população de indivíduos que se reproduzem e que transmitem algumas características aos seus descendentes. O crescimento dessa população seria exponencial se não houvesse restrições, mas, estando limitado por recursos finitos, nem todos os indivíduos se conseguem reproduzir e passar as suas características à geração seguinte. Além destas premissas, vamos também assumir que nunca acontece todos os elementos da população serem exactamente iguais nas suas características herdadas. Ou seja, que existe sempre alguma diversidade, surgindo da combinação aleatória de características e por mutações também aleatórias.

Nestas condições, é inevitável que a população vá evoluindo. Os factores aleatórios que renovam a diversidade podem favorecer, por mero acaso, uma ou outra característica, gerar características novas ou mesmo fazer desaparecer alguma característica da população. E todas as características que afectem o sucesso reprodutivo sofrem pressões selectivas que as favorecem ou eliminam conforme ajudem ou prejudiquem a reprodução daqueles que as transmitem. Deriva genética, evolução neutra e selecção natural são consequências inevitáveis das premissas que assumimos: reprodução, hereditariedade, competição e diversidade*.

Até aqui o argumento é meramente tautológico. Se uma população de organismos que se reproduzem mantiver sempre alguma diversidade nas características herdadas, essa população vai evoluir de acordo com a teoria da evolução. O passo seguinte é averiguar se, na realidade, há populações que cumpram estes requisitos, às quais se possa aplicar esta teoria. A ciência precisa sempre destes dois componentes: do modelo temos de poder inferir consequências, e com os dados temos de poder determinar se o modelo se aplica.

É fácil ver que a teoria da evolução se aplica às populações de seres vivos. Pelo menos. Nestas populações, os organismos reproduzem-se, herdam características dos seus antepassados e competem pelo sucesso reprodutivo. E estas populações mantêm sempre alguma diversidade genética**. Populações nestas condições evoluem como a teoria da evolução descreve porque não têm outro remédio, a menos que algo altere estas condições. Os criacionistas defendem que as populações só podem evoluir dentro do seu “tipo”. Por exemplo, que uma população de mamíferos não pode descender de uma população de répteis. No entanto, a nossa classificação de organismos em mamíferos e répteis não tem qualquer impacto nas condições que permitem a evolução. As populações de cinodontes, há 250 milhões de anos, não esbarraram nalguma barreira genética que as impedisse de ter cada vez mais características de mamíferos só para fazer o jeitinho à taxonomia.

Outra objecção comum é que a teoria da evolução não explica como surgiram organismos tão complexos. Um aspecto a ter em conta é que os seres vivos mais simples, como as bactérias, batem de longe os mais complexos, em número, diversidade e biomassa. E é um erro julgar que a diversidade gerada por processos aleatórios apenas permite que características se tornem mais simples. Isto até é logicamente inconsistente. O resultado de uma mutação ou recombinação aleatória tanto pode dar algo mais simples, de acordo com alguma medida de complexidade, como pode resultar em algo mais complexo. As populações podem evoluir em qualquer um destes sentidos, e a razão principal para o domínio das bactérias parece ser apenas que essa forma de vida é muito eficiente.

Em suma, o argumento mais simples a favor da teoria da evolução é de que qualquer população com as características dos seres vivos – reprodução, competição por recursos finitos e herança de características com modificações aleatórias – forçosamente evolui como esta teoria descreve. Pode-se deduzir a evolução como consequência lógica dessas condições. É quem alega barreiras ou excepções que tem de demonstrar que algo impede a evolução quando estão preenchidas as condições para que a população evolua.

* Darwin não considerou estes problemas nestes termos; isto é uma reformulação mais moderna do argumento original, que focava principalmente a evolução por selecção natural. Mas aqui estou a falar da teoria da evolução como a temos hoje, e não do tal “darwinismo” que os criacionistas gostam de atacar.
** A longo prazo. Se cai uma bactéria no meio de cultura e começa a formar uma colónia, nos primeiros tempos essa população é muito homogénea. Mas, eventualmente, começa a surgir diversidade pela acumulação de mutações.

domingo, julho 17, 2011

Treta da semana: Biodinâmica.

Gerda Boyesen tinha todas as qualificações para fundar uma medicina alternativa. Leu um livro do psicanalista Wilhelm Reich, estudou psicologia e, juntando um pouco de Jung e Freud, decidiu que as tensões psicológicas podiam ser resolvidas pelo sistema digestivo (1). « Assim, concluiu que o intestino digeria também as emoções e que os sons dos intestinos poderiam ser uma poderosa ferramenta de orientação no seu trabalho.»(2) E pronto. Agora, com umas massagens e um estetoscópio para escutar os movimentos “psicoperistálticos”, não há mal que não se cure.

Nasceu assim a Biodinâmica, «um método suave e integrador com uma visão holística do ser humano», cujo objectivo é «libertar a tensão física e emocional, desbloquear a respiração e restabelecer o fluxo energético do corpo.»(3) Admito que desbloquear a respiração seja benéfico para quem a tiver bloqueada. Mas penso que, nesse caso, será melhor uma intervenção mais célere do que marcar uma sessão de massagem Biodinâmica.

A Biodinâmica insere-se na moderna psicoterapia do corpo, que inclui outras teorias profundas sobre o nosso carácter e até a origem dos nossos medos. Por exemplo, segundo a Bioenergética, fruto dos mesmos métodos de investigação por inspiração especulativa, «O medo de cair é um estágio intermediário entre ficar em suspenso e ter os pés firmes no chão.»(4) É sempre bom saber estas coisas.

Segundo parecer dos reguladores do sistema de saúde na Alemanha, «A ideia de “resíduos emocionais” no intestino não tem fundamento científico. Além disso, não há estudos que atestem a eficácia desta terapêutica»(5). Mas os cépticos, já se sabe, têm a mente fechada. Nem sequer aceitam a prova mais sólida que existe: o testemunho. Por exemplo, a Luísa Santos escreve que «Só experimentei uma vez, mas gostei mesmo muito. Recomendo». Que mais prova se pode exigir de um método para desbloquear a respiração, restabelecer o fluxo energético e resolver resíduos emocionais estimulando o intestino com massagens?

Quem quiser aprender mais sobre a Biodinâmica pode experimentar uma workshop de Massagem Biodinâmica (6) ou, melhor ainda, comprar um estetoscópio e escutar atentamente os movimentos psicoperistálticos do seu intestino, abordagem esta que lhe dará uma boa ideia não só do que é a Biodinâmica mas também do que é a medicina alternativa em geral.

1- Wikipedia, Gerda Boyesen
2- Massagem Biodinâmica, O estetoscópio.
3- Massagem Biodinâmica, O que é a Biodinâmica?
4- Biodinâmica, Cair - Uma experiência vital
5- Massagem Biodinâmica, Testemunhos
6- Massagem Biodinâmica, Workshops

quarta-feira, julho 13, 2011

Se me permitem.

Gostava de me intrometer na conversa entre o Bruno Nobre e o Pedro Lind, no blog Companhia dos Filósofos. A conversa começou com uma pergunta do Pedro, se é «possível uma co-existência não contraditória entre Ciência e Religião?»(1). Infelizmente, os interlocutores parecem ter logo concordado que a ciência e as religiões, ou pelo menos a ciência e a vertente mais moderna do catolicismo erudito, abordam problemas diferentes e, por isso, coexistem sem conflitos Segundo o Bruno, a ciência não responde a «questões que saem do âmbito da causalidade eficiente» e «não é capaz de descortinar uma finalidade ou de fazer uma valoração moral ou estética.»(1) O Pedro concordou, escrevendo que «a ciência ocupa-se do “Como?”, mas não do “Porquê?” e muito menos do “O quê?” ou do “Para quê?”.»(2)

Esta distinção é pouco correcta. Podemos, por exemplo, perguntar o porquê da construção das pirâmides, para que foram feitas, que significado tinham para os egípcios e que valoração moral ou estética estes faziam dessa construção. Estas perguntas são científicas, mesmo tratando de sentido, valores, propósito, moral e estética. Se eu perguntar se devo construir uma pirâmide, que sentido ela terá para mim ou se é bonita, aí concordo que a ciência não dá resposta. Mas a diferença é mais subtil, e mais fundamental, do que apenas distinguir o “como” e o “porquê”.

As perguntas acerca do propósito, significado e estética das pirâmides na cultura egípcia têm respostas objectivamente correctas ou objectivamente erradas. A hipótese de que as pirâmides foram feitas para os Goa'uld aterrarem, por exemplo, é (infelizmente) incorrecta. Assim, para responder a estas perguntas é preciso obter conhecimento acerca destes aspectos da realidade, o que implica formular e testar hipóteses. Implica ciência. O segundo caso é diferente. Eu posso escolher fazer uma pirâmide para os Goa'uld aterrarem ou para ter sombra quando como pastéis de nata. Posso achá-la bonita ou feia e posso venerá-la ou aparafusar-lhe urinóis. Nenhuma destas alternativas é mais correcta ou incorrecta. É uma escolha. Essa é que é a diferença importante. A ciência não me diz para que hei de querer uma pirâmide ou que sentido esta há de ter para mim porque isso são escolhas pessoais e não alegações acerca de factos.

Esta distinção é importante porque todas as religiões assentam em alegações factuais, mesmo quando se usa “religião” para referir apenas o catolicismo apostólico romano de hoje. Que Deus existe, que Jesus era Deus, que foi crucificado pelos Romanos e que teve apóstolos são alegações cuja verdade só pode ser conhecida testando-as, contra dados e contra hipóteses alternativas. Ou seja, pela ciência. E não são só aquelas hipóteses que, em teoria, se poderia testar, como a morte de Jesus na cruz. Inclui também hipóteses impossíveis de testar. Uma confusão recorrente é que a ciência não se pode pronunciar acerca destas hipóteses. É errado. Hipóteses que não se pode testar também não podem constituir conhecimento porque nunca podemos saber se são verdade ou não. Portanto, é sempre preferível optar por alternativas que se possa testar e que possam ser suportadas pelas evidências. Se eu propuser ao Bruno e ao Pedro, ambos físicos, que a gravidade é sustentada por milhões de duendes invisíveis a pedalar em bicicletas mágicas, eles dirão que a teoria de Einstein é melhor. Não por poderem falsificar a minha hipótese, mas porque, ao contrário da de Einstein, a minha não pode ser testada.

Sendo o âmbito da ciência o do conhecimento dos factos, o conflito com as religiões surge até na forma como estas abordam a ética. Os juízos de valor saem do âmbito da ciência porque, mesmo que os factos ajudem a decidir, o fundamental é a decisão. Por exemplo, decidir se encaramos a homossexualidade como um mal a combater ou como uma preferência pessoal. A ciência ajuda a tomar uma decisão informada mas não pode decidir por nós quando o problema é de valores e não de meros factos. No entanto, religiões como as cristãs ignoram os valores e consideram apenas alegações de factos. Deus não gosta, é contra a lei natural, é pecado e pronto. Mas quando se reduz a ética a factos não só se perde de vista o fundamental – a questão não é se Deus gosta ou não gosta mas o que nós devemos fazer – como também se passa a focar um problema científico. Saber o que Deus aprova ou reprova é um problema de conhecimento objectivo, que só se resolve testando as hipóteses e não com palpites ou auto-proclamações de infalibilidade. E se as hipóteses não forem testáveis, isso é defeito delas e nunca justificação para as assumir verdadeiras.

Resumindo, gostava de apontar ao Pedro e ao Bruno que a demarcação que concordaram inicialmente está incorrecta e desvia a conversa para longe do problema principal. Todas as religiões assentam em alegações factuais, alegações cuja verdade depende objectivamente de se adequarem à realidade. Saber se são verdadeiras ou falsas exige compará-las com os dados e com hipóteses alternativas o que, quando feito com diligência e honestidade, é ciência. O problema principal é que as religiões defendem como certezas hipóteses que não cumprem os requisitos mínimos de aceitação. Isto cria um conflito com a ciência porque um dos fundamentos da ciência é precisamente rejeitar hipóteses que não cumpram esses requisitos. Por exemplo, a ciência não pode aceitar que um homem da palestina era o criador do universo, nasceu de uma virgem e ressuscitou só porque se conta que os amigos dele achavam que sim. Considerar essa hipótese verdadeira com base em evidências tão inadequadas não é estar fora da ciência. É estar contra a ciência.

1- Começa neste post: Diálogos: dois físicos conversam sobre a fé
2- Dois físicos conversam sobre a fé (2).

segunda-feira, julho 11, 2011

Treta da semana (passada): o rating.

A Moody's baixou o rating da dívida pública portuguesa e da dívida que a CGD, o BES, o BCP e o Banif querem emitir com garantia estatal (1), o que deve aumentar as taxas de juros. A indignação patriótica de muitos portugueses é compreensível mas, parece-me, equivocada. Concordo que estas agências de notação são uma treta. Dizem que a dívida pública dos EUA é segura apesar do défice enorme e classificaram de excelente investimento os montes de lixo do crédito à habitação. Enquanto emitirem opiniões sem responsabilidade legal, em vez de relatarem factos e se responsabilizarem pelo seu rigor, estas agências nunca serão um medidor fiável do risco de investimento. No entanto, a conclusão de que é arriscado investir na dívida portuguesa não me parece nem polémica nem merecedora da reacção que teve.

Talvez uma fonte de confusão seja a taxa de juro, porque a que conhecemos melhor costuma ser-nos imposta pelos bancos. Se aumentam os juros, pagamos mais pela casa. E fazer isso a Portugal, que já se vê aflito para pagar o que deve, seria uma maldade. Mas, no contexto da emissão de dívida do Estado – ou esta dos bancos – a taxa de juro é uma coisa diferente. Vamos supor que o Estado quer vender mil milhões de euros de dívida a um ano. Se a melhor oferta for de novecentos milhões, o Estado pagará mil milhões daqui a um ano pelos novecentos milhões que recebe agora, e a taxa de juro será os cerca de onze porcento de diferença. Ou seja, a taxa de juro resulta apenas do preço pelo qual querem comprar a dívida do Estado.

E mesmo que esta classificação negativa influencie os compradores será apenas por afirmar o óbvio. O Estado português já pediu oitenta mil milhões de euros para pagar dívidas que, de outra forma, teria de renegociar. Nos próximos anos vai ter de devolver esses oitenta mil milhões e mais vinte e cinco mil milhões de juros. Se tiver de continuar a pedir empréstimos para pagar dívidas, eventualmente a música pára e alguém fica sem cadeira. Eu ficaria indignado é se a Moody's desse uma nota alta à dívida portuguesa. Por exemplo, se classificasse como segura a emissão de dívida da CGD, do BES, BCP e Banif por causa da garantia do Estado. A garantia do Estado quer dizer que, se os bancos não pagarem, a dívida fica para os contribuintes. Dar uma boa classificação a isto era tomar-nos por otários, atestando-nos dispostos a pagar, calados, todas dívidas que eles contraiam.

Eu não sei se a classificação que deram está correcta. Mas, mais B ou menos B, parece-me bem. Por um lado, porque é uma admissão explícita do problema fundamental: este endividamento não se resolve contraindo novos empréstimos. E, por outro lado, porque sugere que a Moody's suspeita algo que eu apenas espero ser verdade. Que se torne mais difícil convencer a maioria a pagar as negociatas de alguns políticos e banqueiros. Mas, para que assim seja, é preciso que em vez de se insurgirem por o rating ser baixo percebam quem é que serviria de garantia para ele subir.

1- João Pedro Santos, Moody's baixa rating de Portugal e Sol, Moody's baixa rating da dívida com garantia estatal de quatro bancos portugueses

sexta-feira, julho 08, 2011

Antes piratas que mafiosos.

Combater a pirataria é uma prioridade. O governo está a ampliar os tribunais da “propriedade intelectual” e a tentar impedir que os portugueses usufruam gratuitamente de arte e cultura (1), mesmo que lhes tenha de atropelar os direitos (2). É como se os DVD nas feiras e a partilha de ficheiros fossem os maiores problemas da justiça portuguesa. Entretanto, os beneficiários principais destes monopólios vão fazendo das suas.

Em Espanha, a Sociedad General de Autores y Editores (SGAE) está sob investigação judicial por fraude e desvio de fundos. A polícia deteve o director-geral, o presidente da direcção e alguns familiares e amigos(3). Se fosse cá eu ficava surpreendido (com a eficácia do sistema judicial). Mas também se pode abusar sem violar a lei. A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), por exemplo, proíbe qualquer associado de negociar a distribuição das suas obras fora da SPA (4). Não contentes com monopólios sobre obras e sobre a cobrança colectiva, querem também monopolizar os próprios autores. Isto não se justifica pelo interesse do autor, que pode preferir licenciar umas coisas com a SPA e outras noutro lado. Mas, obviamente, isto não tem nada que ver com o interesse dos autores.

Durante alguns séculos, entre os criadores e o público teve de haver um sistema de reprodução e distribuição. Enquanto criadores e público, em geral, não eram ricos nem poderosos, os intermediários sempre o foram. Desde as guildas de impressores às editoras discográficas, só os ricos é que podem desempenhar esse papel. Por isso, a legislação que governa a cópia e distribuição é, em pequena parte, uma tentativa de regular a actividade dos intermediários mas, sobretudo, é fruto do poder político que estes têm conseguido comprar. E engana-se quem julgar que os abusos são acidentes que se pode resolver mantendo os monopólios sobre a cópia. O sistema de monopólios é abusivo em si, e incita a tantos outros abusos que não há como o sanear: as regiões dos DVD, para as pessoas não os poderem comprar mais barato noutro lugar e para escalonar as estreias maximizando o lucro; a contabilidade fictícia para não pagar aos artistas comparticipações pelos lucros (5); a criminalização de tudo o que lhes reduza o negócio, e assim por diante. Este tipo de coisas é inevitável porque, com estes monopólios, não há concorrência que permita aos insatisfeitos mudar de intermediário. Na música, por exemplo, a distribuição mundial está concentrada em quatro empresas, todas funcionando da mesma maneira. Enquanto se conceder monopólios sobre a cópia esta situação é inevitável.

O que podemos evitar é conceder esses monopólios. Hoje, os autores podem vender o seu trabalho directamente ao público. Como a negociação entre autores e público é equilibrada, deixá-los negociar o preço num mercado livre – sem monopólios – garante o resultado mais justo. Os editores e distribuidores terão o seu papel mas, sem monopólios legais sobre a criatividade, será o papel mais razoável de prestando serviços aos autores em vez de mandar em toda a gente.

O Eduardo Simões, director-geral da AFP, revela bem os interesses por trás do copyright. Primeiro, «o advento das novas tecnologias veio criar um mundo de oportunidades de conhecimento e de acesso à cultura mas, ao mesmo tempo, veio potenciar a sua quase total desregulamentação»(6). O acesso livre é bom para o público. É bom para os autores que, antes de o serem, precisam de ter acesso à cultura e conhecimento. E é bom para a sociedade, porque quanto mais conhecimento e cultura melhor para todos. “Regulamentar” o acesso, como quer o Eduardo Simões, só interessa aos poucos que vivem de cobrar esse acesso, normalmente sem contribuir grande coisa nem para o conhecimento nem para a cultura.

O Eduardo Simões quer também uma «Lei da Cópia Privada». Esta também não convém à generalidade das pessoas. É uma imoralidade e um desperdício pôr polícia a fiscalizar uma actividade privada inofensiva. Porque, mesmo que a cópia privada afecte o negócio de quem vende cópias, vender pouco não é razão para meter interferir na vida privada das pessoas. Não vamos criar uma Lei da Culinária Privada, da Bricolage Privada ou da Limpeza Privada só para subsidiar, por decreto, esses negócios também. Os comerciantes que se amanhem sem invadir a privacidade alheia.

Finalmente, «a extensão do período de protecção das obras para Artistas e Produtores Fonográficos de 50 para 70 anos após a publicação [ é ] urgente porque [...] é importante preservar o património gravado, e agilizar formas da sua disponibilização integral com qualidade.» Treta. Com a tecnologia moderna, o copyright tem o efeito contrário. Há imensos livros, filmes e gravações que não podem ser reproduzidos sem licença. Por isso, não podem ser incluídos em obras novas (7) e até se podem perder para sempre com a degradação dos suportes originais (8), precisamente por causa do copyright.

Os Eduardos Simões querem proteger a nossa cultura. É o velho esquema. Pegam no tijolo do copyright, olham para a vitrina da cultura e dizem que bonita, mas tão frágil, é melhor pagarem a licença de “protecção” não lhe vá acontecer alguma coisa. Levar com um tijolo, por exemplo. Mas, em vez de continuar a pagar, o melhor é mudar a lei e tirar-lhes o tijolo.

1- SIC, Associação Fonográfica dá nota positiva ao programa governativo. Via Miguel Caetano
2- Partido Pirata Português, Bufos Reais
3- Torrentfreak, Music Rights Groups Raided By Police, Bosses Arrested For Fraud; El País, Una comisión rectora dirigirá la SGAE; El País, Neri lo "ideó" y Bautista "consintió"
4- SPA, Vamos penalizar cooperadores que não cumprem a regra da exclusividade contratual. via Marcos Marado.
5- Deadline, STUDIO SHAME! Even Harry Potter Pic Loses Money Because Of Warner Bros' Phony Baloney Net Profit Accounting, via Boingboing
6- Eduardo Simões (Exame informática) Um futuro melhor para os direitos de propriedade intelectual, via ovigia.
7- Question Copyright, How Copyright Restrictions Suppress Art: An Interview With Nina Paley About "Sita Sings The Blues"
8- Economist, The sound of silence, via Boingboing

domingo, julho 03, 2011

Treta da semana: «Mentes fechadas».

A homeopatia não funciona. Esta é uma conclusão bem fundamentada quer pela teoria quer pelos muitos testes já feitos. A homeopatia assume que o remédio para uma maleita é uma solução diluída de algo que cause os mesmos sintomas, o que não faz sentido. É como dar um chá de barrote a quem partiu uma perna. E a diluição pode ser tanta que não sobre qualquer átomo do princípio activo porque, alegam, a água guarda a memória dos remédios enquanto, convenientemente, se esquece dos dejectos que por ela já passaram. Os testes também são claros. Se a um grupo de doentes dermos medicamentos homeopáticos e o outro dermos algo parecido sem homeopatia, desde que não saibam qual é qual vão relatar melhorias idênticas (1).

Infelizmente, muitos meios de comunicação social dão uma ideia diferente. A RTP 1 dedicou há dias mais de meia hora a fazer publicidade ao homeopata Nuno Oliveira, não criticando sequer afirmações como «não há necessidade [de uma criança] estar a iniciar um tratamento da medicina convencional, um antibiótico, por exemplo, numa infecção, quando nós podemos tratá-lo de uma forma totalmente inócua e extremamente eficaz», nem questionou a sua prática de pediatria homeopática quando só tem um curso de homeopatia (2). Isto é um perigo. É possível que uma infecção passe sozinha – nesses casos a homeopatia “funciona” – mas também é possível que perder dias a experimentar tretas tenha consequências graves para a criança. Adiar o tratamento de uma infecção perigosa não tem nada de inócuo.

Mas o ponto principal deste post é a justificação dessas alegações, e não tanto o problema de saúde pública que estas coisas criam. Em resposta a um artigo na Visão, que criticou a homeopatia, o Nuno Oliveira alega que os cientistas é que têm a mente fechada e dá exemplos de três erros comuns nas tretologias: «Estudo Homeopatia quase compulsivamente há muitos anos»; «os critérios de evidência aos quais a Homeopatia tem sido submetida, estão totalmente errados. A Homeopatia tem as suas regras específicas»; e «não podemos querer ter resultados homeopáticos, quando os medicamentos são utilizados segundo a visão da medicina convencional.»

O primeiro problema é “estudar” a hipótese em vez de confrontar várias alternativas com os dados. É verdade que na escola nos dão as hipóteses e teorias pré-fabricadas, mas não é assim que elas são geradas. As terapias surgem quando a medicina estuda as doenças, tenta perceber os mecanismos que as causam e selecciona, testando, as formas mais eficazes de as tratar. Isto é o que a ciência faz. Estuda o fenómeno, reúne dados e usa essa informação para seleccionar as hipóteses mais correctas. As tretologias fazem o contrário. Partem de umas crenças que não questionam, seja as “leis” da homeopatia, o credo ou os efeitos astrológicos dos planetas, e depois inventam histórias para enfiar isso em todo o lado, interpretando os dados a gosto.

O segundo problema é invocar excepções arbitrárias. A propósito da religião, o Carlos Soares comentou que «É abusivo reduzir conhecimento a ciência»(4). Mas é precisamente o contrário. Os defensores de disparates sem fundamento é que tentam reduzir a ciência àquilo que não os incomode. Quem crê num deus diz que a ciência não se pronuncia acerca do seu deus, ainda que não se oponha à refutação científica dos deuses dos outros. Quem crê na vidência, tarot ou astrologia, idem. E a homeopatia faz o mesmo. Testar medicamentos em ensaios clínicos controlados, estatisticamente significativos e com dupla ocultação é excelente. Para os outros. Seria excelente também para a homeopatia se ela funcionasse, e nenhum religioso, astrólogo ou cartomante rejeitaria provas conclusivas de ter razão. Se as houvesse. Mas como não há, todos dizem alto lá, aqui a ciência não entra.

Finalmente, o tal pensamento positivo. É preciso ter a visão certa para testar a homeopatia, crer para compreender a religião, aceitar a existência do Serviço Magnético para receber a sabedoria do Kyron e assim por diante. Só que não é interpretando dados ambíguos de acordo com premissas falsas que se corrige o erro inicial. É por isso que a ciência formula testes objectivos, cujos resultados sejam claros independentemente daquilo que se deseja. É por isso que, quando quero saber se emagreci ou engordei, não me guio pelo espelho nem pela minha avó (que diz sempre que estou mais magro). Guio-me pelos buracos do cinto e pela balança, menos influenciáveis por factores subjectivos. Só assim se distingue entre conhecimento e erro, entre realidade e wishful thinking.

A ciência inclui todos os métodos, truques, procedimentos e técnicas que maximizam a probabilidade de seleccionar hipóteses verdadeiras. Mesmo que tenham de ser adaptados aos detalhes de cada problema, guiam-se sempre pelo princípio de que nos podemos enganar, procurando resultados claros que determinem, sem ambiguidade, quais das nossas hipóteses estão mais de acordo com a realidade. Quem é redutor, e tem mente fechada, é quem invoca excepções para proteger deste escrutínio as suas hipóteses favoritas. O Nuno Oliveira escreve que «Se queremos verdadeiramente evoluir no conhecimento, temos que estar abertos, temos que questionar, pela positiva e não pelo derrotismo.» Não. Temos é de questionar com objectividade. Temos de obter dados que indiquem o caminho correcto mesmo que isso frustre as nossas expectativas. Isso de “questionar pela positiva” não é conhecimento. É ilusão.

1- Ben Goldacre no Guardian, 16-9-2007, A kind of magic?
2- A.P. Homeopatia no YouTube, Homeopatia na RTP 1 - parte 1/4
3- Nuno Oliveira, 18-2-2011, Mentes Fechadas
4- Comentário em A diferença, ilustrada.