terça-feira, agosto 09, 2011

“Não é céptico; é normal.”

A conversa à frente das câmaras, hoje no “Querida Júlia”, não foi muito interessante (1). Ninguém lá defendia que o mundo iria acabar em 2012 e o José Martins, espiritualista (2), não se comprometeu a nada suficientemente concreto para justificar uma intervenção. A única coisa que acabei por criticar foi a teoria da conspiração de que estas profecias são um truque para nos distrair dos problemas económicos e sociais. Pareceu-me uma hipótese demasiado rebuscada só para explicar o facto, banal, de haver gente a ganhar dinheiro escrevendo disparates. Mais interessante foi a conversa que tivemos os três – eu, o José e o Rui Silva (3) – antes da emissão. O José estava a defender que não existe uma realidade, mas que cada um cria a sua realidade e as suas verdades. Um bom tema para outro post. Outra coisa interessante foi, depois da emissão, um comentário de uma senhora que acompanhava o Fernando Ventura. Disse-me que eu não era um céptico, mas sim uma pessoa normal. Concordei. O cepticismo é perfeitamente normal.

O cepticismo é, fundamentalmente, confiar na verdade de uma hipótese apenas na medida em que as evidencias a sugerem mais plausível do que qualquer alternativa. Isto é normal. Se quero a faca do pão e me disseram que está na gaveta, presumo ser essa a hipótese correcta. Mas se abro a gaveta e não vejo a faca, mudo de opinião e exploro as alternativas. Procuro no lava-loiças, na mesa e assim por diante. Todos somos cépticos nas condições ideais em que queremos apurar os factos de forma imparcial e nos dispomos a recolher os dados necessários.

Mas há muitas situações menos ideais, que nos induzem a procurar a verdade de forma anormal. Por exemplo, se um amigo nos diz que os flocos de cereais causam cancro. À partida, sem evidências nunca aceitaríamos tal hipótese. E vir de um amigo não a torna mais verdadeira. Mas custa duvidar de um amigo, e esta pressão emocional pode enviesar a avaliação da hipótese. O mesmo acontece quando nos identificamos com um grupo e queremos partilhar as suas crenças ou quando o problema é complexo mas queremos formar uma opinião sem perder tempo com os detalhes. O cepticismo consciente é o que nos safa nestas alturas, quando factores irrelevantes para apurar a verdade ameaçam condicionar a nossa avaliação das hipóteses.

Especialmente quando invocam uma anormalidade para nos empurrar para a crendice. Os astrólogos dizem que a sua arte é intuitiva e que não se pode testar de acordo com os padrões normais da ciência. É uma excepção. Os homeopatas dizem que a filosofia holística da sua medicina não pode ser avaliada por uma abordagem céptica. Excepção também. Os teólogos dizem que é preciso crer para poder compreender. Ao contrário de tudo o resto, em que se averigua a verdade com base nas evidências, na teologia tem de se ter fé. É comum as tretologias alegarem que a forma normal de apurar a verdade é só para as hipóteses dos outros, enquanto que as de cada tretologia exigem uma abordagem própria, excepcional e anormal.

O que torna o céptico menos normal do que a senhora julga não é o cepticismo. Como a senhora reconheceu, o cepticismo em si é perfeitamente normal. Todos somos cépticos em muitas ocasiões. O que é menos vulgar é tentar ser céptico em todas as ocasiões, não admitir estas alegadas excepções e avaliar todas as hipóteses da forma normal. Da forma que funciona. Se tivesse calhado discutirmos alguma hipótese que esta senhora defenda de forma anormal – acerca de um deus, por exemplo – provavelmente já estranharia a atitude do céptico.

1- Podem ver aqui, no site da SIC. Obrigado ao Barba Rija pelo link.
2- blogjosemartins.blogspot.com
3- Um dos autores do Esquerda Republicana.

9 comentários:

  1. Ludwig,

    Parabéns, vc se saiu muito bem :-)

    OFF TOPIC
    Nasa descobre, no espaço, substâncias que compõem DNA
    http://ultimosegundo.ig.com.br/ciencia/nasa+descobre+no+espaco+substancias+que+compoem+dna/n1597126003292.html

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  2. O teu erro foi categorizares-te no programa como um "céptico" e desenvolveres o "cepticismo é isto e aquilo" como se estivesses a descrever uma seita e uma prática da seita.

    Podias ter simplesmente ter-te descrito como uma pessoa normal cujo cepticismo etc. Dessa maneira terias ganho muito mais simpatia, acho.

    Seja como for, concordo foi banal ;). Talvez para a próxima haja mais fogo. A Júlia teve azar ou falta de competência ao não encontrar alguém que acreditasse naquilo.

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  3. Barba,

    Talvez. Mas penso que se alguém concordar comigo por causa da minha simpatia isso acaba por ser precisamente o contrário do que eu quero. O meu cepticismo faz-me preferir que concordem comigo por achar que tenho razão :)

    Não vou ser propositadamente antipático, mas prefiro dizer as coisas como julgo que são, o mais claramente possível. E parece-me que caracterizar-me como um céptico é correcto pela forma determinada como rejeito todas as desculpas que as tretologias invocam para que sejam tratadas de forma excepcional.

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  4. Ludwig,

    O problema, que tu e o Barba de certa forma apontaram, foi terem-se esquecido de convidar alguém que defendesse a tese proposta. Assim aquilo acabou por não ser tecnicamente um debate, mas antes quatro pessoas sensatas (in latu sensu, no caso do espiritualista), a tentarem meter algum juízo na cabeça da Júlia Pinheiro. O que pode ser, à partida, uma tarefa pouco sensata.

    Fico à espera, com muito interesse, do post sobre as variações da realidade, conforme propostas pelo José.

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  5. Ludwig,
    tens um discurso fluido e bem estruturado. Que tal uns vídeos, tipo versão suave de Pat Condell?

    É que isto de ler torna-se num esforço sobrenatural aquando das férias.

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  6. AS INCONSISTÊNCIAS DE UM "ESPECIALISTA" EM PENSAMENTO CRÍTICO

    O Ludwig diz:


    "À partida, sem evidências nunca aceitaríamos tal hipótese."

    No entanto o Ludwig acredita, sem qualquer evidência, que a vida surgiu por acaso.

    Os milhres de estudos científicos realizados ao longo de décadas sobre a origem da vida mostram que não se conhece qualquer lei natural ou processo físico aleatório que crie vida.

    Isto, em qualquer tempo e sob quaisquer condições!

    Pelo contrário, toda a evidência mostra que a vida depende de informação codificada e que esta tem sempre uma causa inteligente.

    Ou seja, toda a evidência corrobora a fé na criação sobrenatural e inteligente da vida.

    As "evidências" do Ludwig não passam, afinal, de especulações naturalistas sem qualquer fundamento.

    O Ludwig é que não quer ver e reconhecer a sua inconsistência e dualidade de critérios.

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  7. "Pelo contrário, toda a evidência mostra que a vida depende de informação codificada e que esta tem sempre uma causa inteligente."

    Esta frase cria um grande paradoxo, e me parece que ela se auto refuta.

    Se toda a vida sempre tem que ter uma causa inteligente, então quem criou a primeira inteligência?

    Nota .:. Se for para responder que Deus é a causa primária pura e simplesmente, nem perca seu tempo para responder. Isso não explica absolutamente nada.

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  8. O pastor e radialista evangélico Harold Camping diz que o “fim do mundo” será no próximo 21 de Outubro de 2011 . É a sua terceira previsão …

    Não poderia estar mais de acordo com a expressão “outros carnavais” utilizada pelo teólogo e frade franciscano Fernando Ventura (16m17s) :

    “esta tendência … para a escatologia, se quiseres, são outros carnavais “

    Uma releitura do capítulo 20 do Livro da Revelação seria algo adequada ao tema .

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