quinta-feira, junho 30, 2011

A diferença, ilustrada.

enquanto não se testa, ele está lá

Original: Religion Explained With Sudoku, via 9GAG.

terça-feira, junho 28, 2011

Equívocos, parte 12. Grandes equívocos da neurologia?

Técnicas modernas de imagem têm revelado correlações entre experiências religiosas e a actividade de zonas específicas do cérebro, sugerindo hipóteses acerca do que causa algumas experiências religiosas mais profundas. No post mais recente da sua série «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis critica estas hipóteses por não abrangerem tudo aquilo que o Alfredo considera experiência religiosa. Fica por explicar porque é que isto há de ser um grande equívoco do ateísmo e, de qualquer forma, parece que os equívocos estão novamente do outro lado.

Escreve o Alfredo que «Sem negar o interesse dos estudos de Newberg e dos neuroteólogos em geral, deve dizer-se que há em todos eles um esquecimento da natureza relacional do ser humano, e da dimensão comunitária da experiência religiosa, entre outros elementos.»(1) Concordo que as religiões são muito mais do que aquelas experiências que a neurologia tenta compreender. Por exemplo, o Daniel Dennett entrevistou alguns sacerdotes cristãos que não acreditam na existência de um deus sobrenatural (2). Este é um exemplo extremo, mas demonstra bem que professar uma religião se pode dever a muitos factores. Quem dedicou a vida a uma carreira terá, compreensivelmente, relutância em admitir publicamente que o fez enganado, principalmente se tal admissão lhe custar o cargo, rendimento e estatuto social. Também haverá quem professe uma religião por pressões familiares, sociais ou até legais, em alguns sítios, e também quem esteja sinceramente convicto da sua religião por uma educação que precedeu a sua autonomia intelectual. Por exemplo, a Assunção Cristas diz não se lembrar da sua vida sem Deus, o que sugere que a sua religião não resulta de uma decisão ponderada, voluntária e consciente (3).

Mas parece-me um equívoco do Alfredo assumir que os neurologistas se esqueceram da complexidade social, psicológica e cognitiva da religião, ou da multiplicidade de factores que levam alguém a dizer ámen e comer a hóstia. A tecnologia, e o que se sabe do cérebro, é que não permitem tal detalhe. Não se pode ver pelos neurónios o que é que levou a Assunção Cristas a acreditar nestas coisas desde criança, ou que factores desencorajam um sacerdote descrente de dizer à sua congregação “lamento, mas isto é tudo mentira”. O que se pode observar é mais grosseiro. Por exemplo, a síndrome de Geschwind, devida a epilepsia no lobo temporal, é caracterizada por uma forte religiosidade, pedantismo, escrita muito extensa e desmaios (4). São sintomas salientes como estes – alguns até evidentes em comentários de blogs – que podem ser correlacionados com actividade nervosa detectável, como a epilepsia. Como um cientista, ao contrário dos religiosos, não se pode afirmar perito acerca daquilo que ninguém sabe, são estas coisas que os neurologistas têm de focar. O que me leva a concordar, em parte, com o Alfredo; “neuroteologia”(5) é um termo infeliz, porque aquilo é só neurologia. Não há lá “teo” nenhum.

O Alfredo afirma também que «a actividade neuronal só poderia ser considerada condição suficiente se aquela experiência fosse fundamentalmente causada pelo cérebro. Ora, isso é o que se pretende provar.» Exactamente. E como fazê-lo? Um problema que os religiosos apontam é que a hipótese de Deus causar certas experiências religiosas não pode ser testada cientificamente, o que está parcialmente correcto. Por exemplo, a ciência não consegue testar, isoladamente, a hipótese de os ataques epilépticos serem causados por possessão demoníaca. O cientista pode examinar os neurónios mas não consegue detectar demónios. No entanto, é hoje consensual* que a epilepsia não tem nada que ver com o mafarrico. Ou seja, a ciência acabou por rejeitar, justificadamente, uma hipótese que não podia ser directamente testada.

A forma como se chegou a esta conclusão foi encontrando outra hipótese, essa testável, que explica melhor a epilepsia. Que dá mais detalhes, elucida o mecanismo e permite prever com mais rigor o que vai acontecer, por exemplo, se a pessoa for medicada. E isto aplica-se a muitas experiências. Não temos de postular um mundo dos sonhos para onde a nossa alma vai quando dormimos, nem um universo paralelo onde o bicho-papão e o Homem-aranha esperam pacientemente que alguém pense num deles. A ciência não pode provar a inexistência de tais coisas mas pode mostrar hipóteses alternativas melhores. Esse é, afinal, o melhor teste de qualquer hipótese: o confronto com as alternativas. E é o que a ciência tem feito, tantas vezes que alguns católicos até já defendem que Deus não intervém neste mundo – especialmente nos desastres naturais – à excepção do ocasional milagre necessário à contratação de novos santos.

A neurologia apenas continua este processo. O êxtase de Teresa de Ávila ou a visão de Saulo de Tarso são também fenómenos para os quais as relações sociais, a educação e a actividade dos neurónios são causas suficientes. Basta isso, que é também o que basta, como certamente o Alfredo concordará, para explicar a conversa entre Maomé e o arcanjo Gabriel, ou todas as experiências religiosas que outras religiões explicam invocando deuses diferentes do deus do Alfredo.

Um dos grandes equívocos do Alfredo é assumir que a sua hipótese de Deus ganha por omissão. Que deve ser aceite como verdadeira enquanto não se provar o contrário. É uma abordagem incorrecta. O correcto é ponderar as alternativas e favorecer aquela que explica mais dados com menos premissas por justificar. E, com o que sabemos hoje, isto deixa o ateísmo à frente de todas as religiões. Bem destacado.

*Excepto para o Bernado Motta.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Washington Post,Non-believing clergy: Now what shall we do?
3- SNPC, Assunção Cristas e a questão de Deus, via Companhia dos Filósofos.
4- Wikipedia, Geschwind syndrome
5- Wikipedia, Neurotheology

domingo, junho 26, 2011

Treta da semana: “nós”.

No Prós e Contras desta semana, a Isabel Vaz, administradora do Espírito Santo Saúde, defendeu que temos de cumprir o programa da troika porque o Estado o assinou, nós assumimos todos um compromisso de honra e, em troca, recebemos 78 mil milhões. Acrescentou que «Quando nós gastámos mais do que devíamos, fizemos uma gestão péssima do nosso dinheiro público, uma gestão péssima da nossa economia e agora estamos de mão estendida é evidente que temos de ser um bocadinho mais humildes» (1). Também esta semana, foi anunciado o despedimento de 380 trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (2). Agora, para serem mais humildes, terão menos subsídio de desemprego, menores indemnizações e menos probabilidade de encontrar emprego devido à contracção da economia portuguesa.

Este “nós” incomoda-me. Não sinto que eu tenha sido eu, nem os trabalhadores dos estaleiros de Viana, quem geriu pessimamente o dinheiro público ou a nossa economia. Não fomos “nós” que assinámos parcerias público-privadas, que comprámos casas e terrenos com contas offshore ou acções da SLN a preços de amigo. Também não fomos “nós” que usámos os juros baixos do Banco Central Europeu para criar dívidas e lucrar com os juros mais altos cobrados a outros, ou que afundámos o BPN com maroscas e especulação. Este “nós” é um punhado de (ir)responsáveis que encheram os bolsos a afundar a economia, mais a pequena minoria que vai prosperar com a venda a saldo do património público e outras medidas de “austeridade” e, finalmente, a grande maioria que vai pagar a conta.

Também não somos "nós" quem vai receber o dinheiro. Nem eu, nem os trabalhadores dos estaleiros, nem a maior parte das pessoas. Uma grande fatia é para os bancos nacionais. O Banco Espírito Santo, por exemplo, prepara-se para recolher €1,250,000,000 (3) emprestado com garantia do Estado. Ou seja, com a garantia da parte do “nós” que depois lhes terá de pedir este dinheiro emprestado. A juros. E o resto é para pagar empréstimos aos bancos internacionais, nas condições que estes impuserem. Além disso, os 78 mil milhões que vão para uma pequena parte de “nós” terão de ser pagos pela parte restante, com mais 25 mil milhões de juros, em troca de medidas de austeridade. Os sacrifícios que “nós” teremos de fazer não vão ser equitativamente distribuídos entre os administradores do Espírito Santo Saúde e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana. A ideia de que estamos todos nisto por igual, que partilhamos todos a mesma responsabilidade e os mesmos sacrifícios, é uma bela treta com que têm embarretado os eleitores.

Mais triste ainda, nada disto resolve os problemas principais. Cria oportunidades para alguns fazerem dinheiro com privatizações e recapitalizações, às custas dos contribuintes, mas só vai agravar o endividamento enquanto diminui a capacidade de pagar as dívidas. Os empréstimos são uma boa forma de canalizar capital para oportunidades produtivas, e o sistema bancário é necessário para isso. Mas, se não for devidamente regulado, os empréstimos acabam por servir apenas para os bancos tirarem às pessoas ainda mais dinheiro do que elas têm.

Ao contrário do que afirmou a Isabel Vaz, este problema não se resolve com uma atitude «de trabalho, de rigor, de estudo» e essas coisas. Isso é sempre bom mas, por si só, não adianta porque o ciclo de endividamento e austeridade vai apenas continuar até algo estalar. A solução para este problema tem de ser política. Por exemplo, para poupar dinheiro, o Estado alterou unilateralmente os contratos da função pública e as pensões, faltando ao que, nas palavras da Isabel, seria um compromisso de honra assumido por todos. Se tem de ser, pois que seja, mas que não seja só para uns. Se é para faltar ao prometido, que se altere também os contratos de dívida, as parcerias público-privadas e até as condições impostas pela troika. Se a necessidade justifica a alteração unilateral de contratos – e concordo que seja esse o caso – então não se pode invocar esta treta do compromisso de honra e afins. O que se deve exigir é que o sacrifício seja distribuído de forma equitativa. Mas isso, obviamente, não interessa aos administradores e políticos, que estão solidários com o esforço que “nós” temos de fazer desde que o sacrifício deles seja só andar de avião em económica ou dizer aos outros que trabalhem mais.

1- RPT, Prós e Contras, esperança no futuro, 2ª parte, aos 25:51.
2- Agência Financeira, Estaleiros de Viana vão despedir 380 pessoas
3- Diário do FMI em Portugal, Nacionalização da Banca

sexta-feira, junho 24, 2011

Os conselhos do Jairo.

Normalmente, não ligo aos posts do Jairo. Mas a mensagem principal deste último parece ser que os homens são todos imbecis, o que achei merecer contraditório. O contexto é que um polícia em Toronto recomendou às mulheres que não se vestissem como vadias para evitar serem vítimas de agressões sexuais. Naturalmente, a culpabilização da vítima, a subjectividade da recomendação e a limitação dos direitos dos inocentes como resposta aos abusos dos culpados deu azo a protestos (1). O Jairo achou mal que protestassem, afirmando ser «sábio o conselho do senhor do Canadá que motivou tanta choradeira feminista no mundo inteiro. Por via das dúvidas, as mulheres não se deviam vestir como galdérias. Há tarados por aí», fundamentando esta última alegação com a afirmação «Quando uma mulher usa saias curtas, ou decotes, isso tem muito a ver comigo.»(2)

Mesmo considerando apenas o aspecto prático, o conselho não presta. Não há uma noção objectiva de “vestir como galdéria”, pelo que nenhuma mulher poderá antecipar o que é que um tarado, daqueles que acham que todas se vestem para ele, vai considerar “como galdéria”. E não adianta de nada. Há países onde as mulheres só saem à rua enfiadas em sacos pretos, mas também nesses há violações e tarados.

É também um conselho injusto e, vindo de um polícia, irresponsável. Se houvesse tarados a bater em quem usasse crucifixos ou fosse do Benfica, seria irresponsável da polícia propor às pessoas que escondessem o seu clube ou mudassem de religião. O problema não é vestir mini-saia ou usar um cachecol vermelho e branco. O problema é haver tarados à solta.

Mas isto é evidente para quase todos, mesmo que não o seja para o Jairo. O que me leva a mencionar este post é a forma como o Jairo apresenta o “macho”. Qualquer homem que pense com a cabeça onde guarda o cérebro percebe que há muitas razões para uma pessoa se pôr mais apresentável. Eu não presto muita atenção à roupa, mas também não gosto de ir dar aulas com a barba por fazer. Todos nós temos expectativas, e hábitos, que nos levam a ter cuidados com a aparência mesmo sem intenções de atrair o sexo oposto. Uma mulher vestida de forma atraente não quer necessariamente atrair a atenção dos homens. Pode perfeitamente ser, para ela, o mesmo que fazer a barba antes de sair. Além disso, mesmo que queira atrair alguém, as probabilidades de ser logo o Jairo são muito pequenas. Quando o Jairo acha que a saia curta e o decote são com ele, baseia-se mais na presunção do que nas estatísticas.

No fundo, o Jairo acha que os homens são tão bestas que uma mulher usar mini-saia é como abanar uma toalha à frente de um boi. O tipo descontrola-se e leva tudo à frente. Isto é um disparate. Não é razoável, nem aceitável, que tal coisa desperte tendências violentas. E não há mal nenhum em alguém, mulher ou homem, se vestir ou agir de forma a atrair outra pessoa. Não é com isso que a polícia se deve preocupar nem é esse comportamento que a sociedade deve desencorajar. Pelo contrário. Este é um direito que a polícia, e a sociedade, devem proteger, sob pena de andar tudo tapado dos pés à cabeça e ainda assim haver tarados violentos à mesma. O que devemos combater são estas ideias de que a violação é causada por decotes ou mini-saias, de que os homens têm desculpa se elas os “provocam” ou de que os Jairos têm alguma coisa que ver com a roupa que as mulheres vestem.

1- Arrastão, Slutwalk
2- Jairo Filpe, Paio com Ervilhas, Feminismo slut.

quarta-feira, junho 22, 2011

Interrogar-se.

Parece que a história do rabino, o advogado e o cão (1), afinal, é treta (2). O que até vem a calhar. O Alfredo Dinis disse que «gostava de ver o espírito crítico dos não crentes aplicar-se também às suas próprias ideias»(1). Aqui tem. Julguei que fosse verdade – estava na BBC e tudo (3) – mas não era. Enganei-me, e admito-o. Mas quando o Alfredo diz que «Na Igreja Católica não se considera uma virtude que alguém tenha fé sem que se interrogue sobre aquilo em que acredita», está a falar de um “interrogar-se” muito desenxabido. Porque só vale a pena interrogarmo-nos acerca da verdade de qualquer alegação se estivermos dispostos a mudar de ideias quando as evidências a revelam infundada. Caso contrário, é só interrogação a fingir. E isso, tanto quanto sei, é tradição da Igreja Católica desencorajar.

A interrogação também só vale pelas perguntas que fizermos. Por exemplo, se um rabino disser que o cão tem a alma do advogado, importa perguntar “como raio sabe ele?” Quem deixar escapar essa pergunta de pouco lhe servirá perguntar se é sincero, se falou alto ou se outros acreditaram no que ele disse. E se disse ou não disse nem sequer é o mais fundamental. Temos relatos segundo os quais Maomé disse ter falado com Alá e os apóstolos alegaram ter conhecido o criador do universo encarnado em Jesus. Talvez estes relatos sejam verídicos e essas pessoas tenham mesmo afirmado o que lhes atribuem. Ou talvez sejam tão treta como a história do rabino e do cão. Mas, se tivermos o pensamento crítico que o Alfredo pede, vemos que não faz muita diferença. Porque mesmo que tenham dito tais coisas não tinham forma de saber se era verdade ou não. Como é que Maomé sabia que era Allah que lhe falava? Como é que os apóstolos determinaram que o filho do carpinteiro tinha mesmo criado o universo? Ninguém que pense criticamente pode aceitar o testemunho – e muito menos a autoridade – de alguém que não tem como saber se o que diz é verdade.

Finalmente, o Alfredo disse também que «Infalibilidade por infalibilidade prefiro a do Papa à de Dawkins, Hitchens, Harris... » Pois eu prefiro nenhuma. Acreditar numa autoridade infalível não é compatível com a interrogação ou com o pensamento crítico. Se admito que posso errar, e de pouco vale interrogar-me se descartar essa possibilidade, tenho de admitir que posso errar quando julgo alguém infalível. E se posso estar enganado acerca disto não posso considerar infalível o que essa autoridade me disser. Afinal, podemos estar ambos enganados. Portanto, para o Alfredo Dinis poder considerar o Papa infalível é preciso que o Alfredo Dinis se considere também ele próprio infalível, pelo menos nisto. Este é outro caminho por onde a fé o leva mas por onde eu não o consigo acompanhar.

1- Treta da semana: justiça divina.
2- Harry's Place, The Dog That Didn’t Die
3- BBC, Jerusalem rabbis 'condemn dog to death by stoning' (Já está offline, mas está aqui o cache do Google).

terça-feira, junho 21, 2011

Como guardar bitcoins.

Conforme o Bitcoin se torna mais popular é de esperar que vão surgindo mais roubos (1), troianos (2) e outras manigâncias para separar bitcoins dos seus donos. Não por qualquer fraqueza intrínseca do sistema mas aproveitando a confusão acerca do que é esta moeda criptográfica. Um problema sério de segurança com as bitcoins vem de as imaginar como uma variante anónima do cartão de crédito em vez de uma variante electrónica de notas e moedas.

O dinheiro que usamos por via electrónica está no banco. É o banco que o guarda, que identifica as pessoas, que autoriza as transacções e que resolve a maioria dos problemas. Se me roubam o cartão, posso telefonar ao banco para o cancelar, por exemplo. Assim delegamos no banco grande parte da segurança, mesmo que nem sempre mereça essa confiança (3). Em contraste, quando pagamos com notas são as notas em si que provam a autenticidade da transacção. Não é preciso alguém autorizar, comprovar que temos dinheiro ou identificar as partes envolvidas. Basta passar a nota de um para o outro que se passa também o valor que a nota representa.

As bitcoins são como as notas. Cada pessoa tem um conjunto de chaves criptográficas para autenticar as transferências que, apesar de serem por via electrónica e ficarem registadas na rede, não precisam de intermediários que possam arbitrar conflitos. Uma vez transferido, o dinheiro não volta atrás (4). Por isso é tão importante proteger o ficheiro com as chaves criptográficas como é proteger um molho de notas. Aqui fica a minha receita.

Primeiro, instalar o Truecrypt e criar um volume encriptado com cerca de 1GB. Depois, instalar o cliente Bitcoin e copiar a pasta para o volume encriptado. Se usarem Windows e Linux, podem copiar para lá ambos. Finalmente, criar uma pasta no volume encriptado para os dados (“Data”, no meu caso) e um shortcut ou script para correr o programa. Eu tenho dois, na raiz do volume encriptado. Um para correr o Bitcoin no Windows:

Bitcoin\bitcoin.exe -datadir=..\Data

E outro para Linux:

./bin/32/bitcoin -datadir=./Data

Assim, para usar bitcoins basta montar o volume com o Truecrypt e correr o programa. A directiva “-datadir=” fá-lo guardar todos os dados nessa pasta, incluindo o ficheiro wallet.dat, com as chaves criptográficas. Quando se desmonta o volume encriptado nada disto fica acessível; mesmo que alguém copie esse ficheiro não pode fazer nada sem a password.

Infelizmente, temos de usar tantas passwords que se torna muito tentador usar a mesma em todo o lado, e escolher uma pequena, fácil de lembrar e de escrever. É um erro. Não sabemos como ficam guardadas nos sites onde as usamos. A Sony, por exemplo, guardava as passwords dos clientes em texto simples (5). E mesmo quando guardam apenas o hash da password, como fazia o MtGox (6), se a password for simples é fácil descobri-la (7). Por isso eu uso uma frase secreta para os ficheiros encriptados. Uma frase é fácil de lembrar e suficientemente longa para ser criptograficamente segura. E uso o Password Safe para gerar passwords diferentes, ao acaso, em todos os sites que precisar. Como nem tenho de as decorar, porque posso ir sempre copiá-las ao Password Safe, podem ser tão complexas quanto quiser (15 caracteres, com maiúsculas, minúsculas e algarismos). Mesmo que alguém copie o ficheiro com as passwords, está encriptado com a tal frase e não lhes serve de nada.

Isto não é 100% garantido. Os sinais dos teclados sem fios podem ser interceptados, o sistema operativo pode guardar vestígios das palavras secretas no disco* e a maioria das passwords pode ser descoberta com dois gajos grandes e um barrote. Mas ter notas em casa também não é 100% garantido. Nem sequer o dinheiro no banco está garantido. Por isso parece-me que o dinheiro criptográfico ainda pode ser o mais seguro, desde que se tenha algum cuidado. O maior risco é legal. A EFF deixou de aceitar donativos em Bitcoins porque considera os riscos legais demasiado grandes (8) e, mais cedo ou mais tarde, é natural que alguém vá tentar usar a força da lei para acabar com isto. A questão é como vão proibir as pessoas de dar valor a um sistema monetário arbitrário sem deixar de dar valor aos outros, igualmente arbitrários.

Da maneira como andam as finanças internacionais, parece-me que um sistema monetário independente de bancos e governos é a nossa única esperança. Suspeito que, se não pusermos isto a funcionar, o próximo dinheiro que vamos usar será caricas de Nuka-Cola.

* Mas o Truecrypt permite encriptar o disco todo, resolvendo este problema.

1- TNW, Close to US$500k stolen in first major Bitcoin theft
2- Venture Beat, Bitcoin-stealing trojan spotted in the wild
3- Um exemplo, entre os muitos milhões em fraudes bancárias todos os anos: Krebs on Security, Court: Passwords + Secret Questions = ‘Reasonable’ eBanking Security, via Schneier on Security.
4- Mas há formas de criar contractos de transferência sem precisar de intermediários nem de confiar em ninguém: Contracts.
5- Ars Technica, Sony hacked yet again, plaintext passwords, e-mails, DOB posted.
6- Venture Beat, Popular Bitcoin exchange Mt. Gox hacked, prices drop to pennies
7- Vijay's Tech Encounters, GPU Password Cracking – Bruteforceing a Windows Password Using a Graphic Card.
8- Electronic Frontier Foundation, EFF and Bitcoin, via o Friendfeed do José Furtado

domingo, junho 19, 2011

Treta da semana: justiça divina.

Há 20 anos, em Israel, um advogado descrente insultou um tribunal rabínico. Como castigo, foi amaldiçoado para que o seu espírito reencarnasse num cão. Há umas semanas, um cão entrou num tribunal na zona ultra-ortodoxa de Mea Shearim, em Jerusalém. Assustou algumas pessoas e não queria sair, pelo que um dos juízes, rabino, concluiu que seria a reencarnação do tal advogado. Só podia. Então sentenciou o cão a ser apedrejado até à morte, exortando as crianças do bairro a executar a sentença. Mas, ao que parece, o cão conseguiu fugir (1).

Além da demonstrar a ineficácia da justiça divina, este episódio mostra também, de forma sucinta, três aspectos preocupantes da religião. O primeiro é esta atitude de tomar como certa uma especulação infundada. Este rabino não tem forma nenhuma de saber se o cão tem mesmo a alma daquele advogado. Não consegue distinguir esta hipótese de alternativas como ter a alma de outro advogado, de um vendedor de gelados, de cão ou nem sequer ter alma alguma. O segundo é esta fé em hipóteses infundadas justificar actos cruéis, injustos, imorais ou simplesmente estúpidos. Uma vez estabelecido, pela "razão" da fé, que o cão tinha a alma do tal advogado, então toca a apedrejar o animal. Finalmente, infectar as crianças antes que ganhem resistência contra estas parvoíces.

A defesa costumeira é que estes exemplos são extremos, anormais, e que a Religião Verdadeira™ não comete tais erros. É falso. Milhares de milhões de religiosos vivem convencidos de coisas destas. Almas, reencarnação, a inspiração divina de profetas e líderes religiosos ou até o número exacto de pessoas que coexistem na mesma substância do criador do universo. Tudo isto é tão infundado como o diagnóstico do rabino. Milhares de milhões de religiosos usam as suas fezadas para justificar comportamentos imorais, tais como impedir o uso de profilácticos que podem salvar milhões de vidas, discriminar as mulheres, ingerir-se na vida íntima dos outros ou reprimir, por vezes com violência, opiniões divergentes das suas. E todas as religiões se esforçam por impingir aos filhos os disparates dos pais.

A fé de cada um é consigo, mas as religiões são um mal a evitar. A falsa autoridade de quem se diz perito em coisas que ninguém pode saber é, logo à partida, desonesta. O rabino não sabe que o cão tem a alma do advogado, o padre não sabe que a contracepção é pecado e o teólogo não sabe que o seu deus criou o universo. Todos estes mentem ao dizer que sabem quando apenas especulam. E esta aldrabice serve, inevitavelmente, para obter poder e privilégios à custa dos outros.

O problema não é a crença em deuses mas sim nas tretas de quem diz saber como eles são.

1- BBC, Jerusalem rabbis 'condemn dog to death by stoning', e Ynet news, Dog sentenced to death by stoning

quinta-feira, junho 16, 2011

Legal, 14.

Nos EUA, agentes da polícia que vigiavam vendas de armas aos traficantes de droga mexicanos não tiveram autorização para prender ninguém. Centenas de armas de fogo foram parar às mão dos cartéis (1). Possivelmente, uma das razões para isto é a justiça estadunidense estar a perseguir criminosos mais perigosos, como o canadiano que partilhou filmes pornográficos. Alan Phillips foi processado nos EUA e, por estranho que pareça, não se deslocou do Canadá para se defender em tribunal. Acabou condenado a pagar $63.867 por partilhar dois filmes pornográficos (2). Isto é importante porque, ao contrário do problema dos cartéis armados no México, as ameaças à industria cultural põem empregos em risco. Escusado será dizer que, se alguma vez for possível encontrar pornografia de graça na Internet, o negócio entrará em colapso e não haverá pornografia para ninguém. Todos sairemos a perder. É por isso indispensável que a sociedade proteja, a todo o custo, os monopólios de distribuição destes filmes.

Outro marco importante foi a clarificação legal do acesso, por parte dos advogados que defendem os prisioneiros em Guantanamo Bay, à “informação potencialmente secreta” que a WikiLeaks divulgou. A decisão, razoável, foi que podiam aceder a essa informação desde que não usassem computadores fornecidos pelo governo dos EUA e que não criassem cópias locais do material consultado. Alguns críticos dizem que isto é inconsistente, porque qualquer consulta de material na Internet implica que o computador descarregue o documento, criando uma cópia local (3). Mas julgo que o objectivo é obrigar os advogados a espreitar pelo cabo de rede e ler rapidamente as letras enquanto passam, sem usar o computador. Afinal, os juristas que inventam estas regras sabem perfeitamente como funcionam os computadores e a Internet.

E estas restrições são indispensáveis para que não se arrisque a aplicar um processo judicial correcto a presos perigosos como Faris Muslim al-Ansari, detido em 2001 com 16 anos por ser “provavelmente membro dos Taliban” (4). Um risco, aliás, desnecessário, visto que o libertaram logo em 2007. Estes advogados são uns picuinhas.

Há dias roubaram 25.000 bitcoins (5). Alguém guardou as suas moedas virtuais numa carteira sem encriptação e bastou ao larápio ter acesso ao computador para transferir tudo para outro endereço. Apesar de se saber exactamente por que endereços bitcoin o dinheiro anda, não se consegue saber quem os controla. É o grande problema dos sistemas anónimos de troca. O Pentágono também levou 12 mil milhões de dólares para o Iraque e agora só sabem de metade do dinheiro (6). É o que dá estas modernices de usar moedas e notas em vez de pagar tudo com o cartão de crédito, que deixa sempre o nome e a morada guardados.

Mais ou menos guardados. Outro problema que a justiça enfrenta são os malvados hackers que roubam até os dados mais bem protegidos. O Citigroup, por exemplo, tinha um sistema de segurança praticamente à prova de bala. Para se ter acesso aos dados pessoais de um cliente, era preciso pôr no browser um URL que incluía o número do cartão de crédito do cliente (7). Mas os hackers fizeram algo impensável. Olharam para a barra de endereços (ninguém olha para a barra de endereços), descobriram este segredo e fizeram um script para experimentar números diferentes, recolhendo os dados todos dessas pessoas. Obviamente, os responsáveis pela segurança destes dados são inocentes. Fizeram o melhor possível. É a justiça, paga pelos contribuintes, que deve agora apanhar estes génios do crime que experimentaram URLs.

Por cá, a coisa também vai bem encaminhada. Os futuros magistrados que copiaram e cometeram fraude nos exames tiveram um castigo exemplar. Passaram todos com 10 valores (8). É para aprenderem. E agora estão a considerar obrigá-los a repetir os exames (9). Assim, cada vez que forem apanhados a copiar terão mais uma oportunidade para evitar que sejam apanhados. Noutra faculdade que conheço, os alunos que cometem fraude numa avaliação são reprovados à disciplina. Mesmo que seja no primeiro trabalho. Mas no CEJ sabem bem que, sendo pessoas de rectidão impecável e integridade sem mácula, o pior castigo para os nossos futuros magistrados é serem aprovados sabendo que não o mereciam. Isso, sim, irá mostrar-lhes cabalmente que o crime não compensa, tais serão os remorsos.

1- BBC, Mexico drug war: US sting 'let cartels buy guns', via o Friendfeed do Henry Winckelmann
2- Torrentfreak, Canadian BitTorrent User Fined $60,000 By U.S. Court.
3-Josh Gerstein, Under the Radar Feds' policy on reading WikiLeaks docs 'incoherent,' critics say
4- Andy Worthington, WikiLeaks and the 22 Children of Guantánamo
5- Joe Falkoner, Close to US$500k stolen in first major Bitcoin theft
6- Jacob Sioan, Pentagon Admits $6 Billion In Cash Was Stolen In Iraq
7- Mail Online, Revealed: How Citigroup hackers broke in 'through the front door' using bank's website
8- Expresso, Justiça: Futuros magistrados apanhados a copiar em teste "punidos" com nota 10, via o Hugo Monteiro no Facebook.
9- Público, Alunos do CEJ serão avaliados de novo

segunda-feira, junho 13, 2011

Deve ser lindo...

Da Asylum, produtora de Alien vs Hunter e Snakes on a Train(1), chega-nos agora mais um épico. Em 2012: Ice Age, um glaciar solta-se e vem na bisga direito a Nova Iorque, onde congela pessoas e destrói tudo até que aviões dão cabo dele com mísseis.


(via Pharyngula)

O Almighty Thor também parece uma bela peça.



1- Cracked.com, The Asylum

domingo, junho 12, 2011

Os bits e os bancos.

A propósito do Bitcoin e do dinheiro criptográfico, o João escreveu que «A moeda de cada estado ou união de estados tem um valor relacionado com o que esse estado consegue produzir. [...] Nos sabemos a quantidade de dinheiro que ha em circulação e que essa quantidade deve dar para pagar o tipo de bens e serviços que se prestam e trocam.»(1) Penso que muita gente assume que o dinheiro tem um valor real porque é um Estado que o imprime, e que se sabe exactamente quanto dinheiro há em circulação. No caso das bitcoins, sabe-se quantas existem porque essa informação é publicada na rede(2). Mas, no caso do dinheiro que costumamos usar, estas premissas são falsas. Para perceber porquê basta ver como se faz o dinheiro. Ou seja, como funcionam os bancos.

A Ana deposita mil euros no BPX, que fica com um passivo de 1.000€, que deve à Ana, e um activo de 1.000€, dinheiro esse que pode emprestar. Não todo, porque se exige dos bancos que guardem um mínimo em reserva. Cá em Portugal é de cerca de 8% mas arredondo para 10% para simplificar as contas. Assim, dos €1.000 da Ana o BPX pode emprestar €900 ao Bruno, guardando €100 de reserva. O activo continua a ser de €1.000 porque o dinheiro que o Bruno deve ao BPX conta como dinheiro do BPX. O Bruno compra coisas à Carla, que deposita €900 no BPY. Este banco empresta €810 ao David, guardando €90 de reserva, e o David paga algo à Eva, que deposita o dinheiro. E assim por diante. Desta forma, os bancos transformam os €1.000 da Ana em quase €10.000 de dinheiro depositado mais €9.000 em dívidas a juros. Os €1.000 iniciais podem ter sido impressos em nome de algum Estado, mas todo o resto foi inventado pelos bancos.

E não ficam por aqui. Agora o Zacarias quer pedir dinheiro ao BPX, mas este banco já emprestou tudo o que podia. Para poder emprestar mais, o BPX pede dinheiro ao banco central, que empresta aos bancos a juros muito mais baixos do que estes cobram aos Zacarias. Mas o banco central exige garantias. Por isso o BPX contrata uma agência de rating que diz ao banco central que o empréstimo ao Bruno tem uma data de As e é seguro. Desta forma, dando como garantia o dinheiro que já tinha emprestado, o BPX obtém mais dinheiro para emprestar a juros. O banco central, sendo um banco especial, pode emprestar o dinheiro que for preciso desde que lhe dêem estas “garantias”. Isto parece surreal, mas é mesmo assim. E, volta e meia, dá asneira.

Se o dinheiro fosse um conjunto de papeis impressos pelo Estado podia desvalorizar mas não podia desaparecer. Algures teria de ir parar. Só que a maior parte do dinheiro em circulação é um conjunto de dívidas e apostas, com “garantias” que também são dívidas e apostas, num entrelaçado fictício seguro apenas na expectativa de um valor futuro. Assim que se admite que certas dívidas não podem ser pagas, esse dinheiro desaparece. Tem acontecido regularmente. Formam-se bolhas especulativas de promessas e apostas que rebentam e levam com elas enormes quantias de dinheiro que simplesmente deixa de existir. Neste momento, o Banco Central Europeu tem 740 mil milhões de euros em garantias da treta para o dinheiro que emprestou aos bancos comerciais na União Europeia. O tipo de coisas que serve de garantia inclui, por exemplo, títulos de dívida pública portuguesa de 1943 que vencem no dia 31 de Dezembro de 9999 (3). Esses 740 mil milhões de euros só têm valor enquanto todos estiverem convencidos de que essas promessas vão ser cumpridas. Daí o cagaço da reestruturação.

O João acha que uma moeda baseada em criptografia é má ideia porque não é controlada pelo Estado e é pouco transparente. É provável que muita gente pense o mesmo. Mas esta opinião vem de dois mal-entendidos. Um, é não perceber que é precisamente esse o problema que assola o sistema financeiro que temos. O dinheiro é quase todo criado por entidades privadas – os bancos – com entidades privadas a avaliar os riscos – as agências de rating – e regulado por bancos centrais sem qualquer responsabilidade para com os eleitores. Deixamos todo o dinheiro a cargo de quem só tem a lucrar com decisões que nos lixam. É como comer salsichas: um exercício de confiança cega.

O outro mal-entendido é não perceber o que é um sistema monetário baseado em criptografia. Por exemplo, no caso do Bitcoin, as moedas que eu tenho estão na rede toda, a público, em vez de ficarem guardadas num banco. Toda a gente sabe que aqueles endereços Bitcoin têm aquelas moedas. Mas não sabem quais são os meu endereços, por isso a posse desse dinheiro é pública, inteiramente transparente, mas também anónima. E como só eu é que tenho a chave criptográfica que permite assinar uma ordem de transferência desse endereço para outro qualquer, só eu é que posso usar essas bitcoins. Não mas podem tirar. Não pode acontecer o banco falir e eu ficar sem o dinheiro que lá tinha.

Os detalhes podem variar mas, basicamente, a criptografia permite criar marcadores virtuais praticamente impossíveis de falsificar e um sistema seguro, mas anónimo, de validar transferências. Sem ser preciso confiar em pessoas ou instituições para guardar o dinheiro, nem para o gerir, nem para o gerar. As regras, as quantias, as operações, tudo isso pode ser público e transparente sem violar a privacidade de ninguém e sem permitir aldrabices. A criptografia rege-se por regras matemáticas e limitações computacionais, que são muito mais fiáveis do que os escrúpulos dos banqueiros ou a justiça de um sistema jurídico que só castiga quem for pobre.

1- Comentários em Posts por encomenda.
2- Para um valor actualizado, ver Bitcoin charts
3- Não é gralha. É mesmo daqui a 8,000 anos, segundo o Spiegel online, Junk Bonds Weigh Heavy on ECB

sábado, junho 11, 2011

Treta da semana: pseudocepticismo.

Quando se adopta uma crença por fé, o primeiro passo é escolher em que se quer acreditar. Num deus, numa teoria de conspiração, no poder curativo dos cristais, o que for. Depois interpreta-se os dados à luz dessa premissa, que se quer tão inabalável quanto possível, descurando à partida qualquer alternativa. O cepticismo é diferente. Não é exactamente o contrário, porque não podemos partir dos dados sem qualquer ideia de como os interpretar. Mas não é preciso ser só uma ideia. O cepticismo difere da fé por partir de várias alternativas, tantas quantas for prático considerar, e depois confiar mais naquela que se revelar superior às restantes. O céptico também tem crenças. Obviamente. Sem crer que não há tigres no meu roupeiro teria de sair de casa sem calças. A diferença é que, para o crente, aquela crença é o ponto de partida e fundamento da sua interpretação dos dados, enquanto que, para o céptico, qualquer crença é apenas a que, nesse momento, melhor se adequa aos dados. Se vir um tigre no roupeiro revejo imediatamente as minhas crenças e sou bem capaz de sair de casa sem calças.

Infelizmente, muita gente confunde o cepticismo com a mera crença na falsidade de uma hipótese. Os criacionistas dizem-se cépticos acerca da teoria da evolução, não por considerarem objectivamente as várias alternativas e a sua adequação aos dados, mas porque têm fé que esta teoria esteja errada. Há quem se diga céptico acerca da medicina moderna, apesar das evidências, por acreditar que as doenças se curam equilibrando as energias espirituais, ou acerca do ataque terrorista ao World Trade Center por preferir uma conspiração entre o Bush, o Elvis e alienígenas. Nada disto é cepticismo.

Isto vem a propósito de um post no Ecotretas acerca da subida do nível do mar. Escreve o autor que «nunca o nível do mar esteve tão baixo nos últimos sete anos[...]. Compreende-se por isso, cada vez mais, a necessidade de esconder este declínio, pois sendo a subida dos mares o receio que mais é utilizado para assustar as pessoas, um declínio acentuado dos níveis dos mares acabaria, para sempre, com esta religião...»(1). E apresenta este gráfico do Envisat, com dados entre 2004 e 2011 (2).

olhem, está a baixar

Seria interessante ver que post o Ecotretas teria escrito acerca disto no final de 2009. Procurei por “Envisat” no blog dele, que aborda estas coisas desde 2007, mas este é o único post sobre estes dados. Pode ser coincidência, mas o gráfico seguinte é prova ainda mais conclusiva da duplicidade de critérios característica da defesa de uma posição de fé, e incompatível com o cepticismo. Este gráfico é o agregado dos dados de vários satélites, recolhidos desde 1993. O Envisat é o amarelinho no fim, aquele que indica a maior queda em 2011. Queda esta que parece muito menos significativa quando consideramos os quase vinte anos de dados em vez de apenas os últimos sete.

olhem, está a baixar

Estes gráficos não incluem a correcção glacio-isostática, que o Ecotretas rejeita como «truque sujo utilizado pelos padres do Aquecimento Global». Há cerca de vinte mil anos, uma boa parte da massa continental estava sob dois ou três quilómetros de gelo. Pesava bastante. Quando este gelo derreteu, além de elevar o nível do mar reduziu transferiu este para os oceanos. Isto levou a uma deslocação do magma no manto que, fluindo lentamente, está a levantar os continentes e a deprimir o fundo dos oceanos (3). Em média, o fundo dos oceanos está a descer 0,3mm por ano. Se quisermos medir com rigor quanto sobe o nível da água temos de considerar este movimento. O que o Ecotretas chama “truque sujo” é apenas ajustar o aumento médio do nível do mar de 2,7mm por ano para 3,0mm por ano contando com o abatimento do fundo.

Abordar este problema com cepticismo consiste em considerar, à partida, todas as alternativas. Por exemplo, que o nível do mar pode estar a subir, a descer ou a manter-se constante. E depois avaliar essas alternativas confrontando-as com os dados. Não só os dados do Envisat entre 2004 e 2011 mas também os restantes. Olhando para o segundo gráfico, é evidente que o nível médio do mar tem estado a subir. Partir da premissa contrária, seleccionar apenas os dados que convém – e só quando convém – e, pelo caminho, chamar padres aldrabões aos geólogos que querem corrigir estas medições o melhor que sabem, não é cepticismo. É treta de fanático.

1- Ecotretas, Verdades Inconvenientes do Envisat, via o FriendFeed d'ovigia.
2- AVISO, Mean Sea Level product and image selection.
3- Wikipedia, Post-glacial rebound.

quinta-feira, junho 09, 2011

Posts por encomenda.

Resumo:
Para encomendar um post envie um email para quetretablog@gmail.com indicando o assunto e quanto esse post valeria para si, em bitcoins. Pode enviar também os detalhes que entender acerca de prazos, pormenores que queira ver abordados e assim por diante. Se eu aceitar a encomenda, escrevo o post (ou posts) aqui no blog e depois envio-lhe um endereço Bitcoin para o pagamento. O cliente, que tem sempre razão, decidirá então se cumpri, se fiquei aquém ou se excedi as suas expectativas, e pagará em conformidade.

O que é isso de Bitcoin?
É um sistema monetário digital, distribuído, baseado em encriptação. Tenciono escrever sobre isto, mas por enquanto fica aqui o link para o site e para uns artigos do Rick Falkvinge:
Why I’m Putting All My Savings Into Bitcoin
Bitcoin’s Four Hurdles: Part One – Usability
Bitcoin’s Four Hurdles: Part Two – Transactions
Bitcoin’s Four Hurdles: Part Three – Escrow

Porquê Bitcoin?
A longo prazo, o dinheiro criptográfico vai ser o padrão de troca. Tem as vantagens das moedas e notas, de não depender de intermediários para a troca, anonimato e privacidade, e tem a vantagem das transferências electrónicas, transacções rápidas a distância ilimitada.
A médio prazo, será uma corrida entre a adopção deste sistema pela maioria e a compreensão do que se passa pelos velhos no poder. Quanto mais rápidos formos, menos legislação estúpida teremos de gramar quando tentarem impedir isto. Eu quero ajudar o lado certo a vencer o mais decisivamente possível.
E, neste momento, é uma forma de ultrapassar a minha relutância em monetizar este hobby – bitcoins têm mais estilo do que euros – e também de proteger o meu ego. Se ninguém me encomendar nada posso sempre dizer ah, e tal, é por ser em bitcoins.

Onde é que vou buscar bitcoins?
Uma possibilidade é “minar” moedas calculando os blocos que validam as transacções, mas isso exige bastante poder computacional (ver Bitcoin, Mining). Mais fácil é comprá-las. Eu usei o Mt. Gox.
Já agora, nos últimos tempos o valor das bitcoins subiu rapidamente em relação ao dólar e ao euro. Os €250 de bitcoins que comprei há poucas semanas já valem quase o triplo. Mas não recomendo investir muito nisto, nesta fase (ao contrário do que o Rick Falkvinge diz) porque me parece que assim que surgirem outras moedas criptográficas esta bolha vai esvaziar, e enquanto não houver uma base mais sólida para o comércio em bitcoins os preços vão flutuar muito. Por outro lado, assim que o pessoal admitir que os EUA não podem pagar a sua dívida externa sem desvalorizar imenso o dólar, vai acontecer o mesmo com as outras moedas. Por isso, a menos que queiram investir tudo em ouro, se calhar comprar bitcoins não é má ideia. Sempre espalham os ovos por mais cestos.

O post encomendado tem de ser publicado aqui?
Não necessariamente. Isso pode ser negociado, desde que fique acessível online a qualquer pessoa (sem exclusivos, subscrição, etc) e seja colocado no domínio público.

Porque é que tem de ficar acessível?
Porque não quero receber pedidos de quem tem trabalhos de casa para fazer e quer enganar o professor (ou coisa do género). Ter tudo às claras dificulta o plágio. Além disso, gostava de experimentar pessoalmente este modelo em que se paga o serviço e não um pacote de direitos exclusivos de reprodução e acesso.

E se alguém quiser direitos exclusivos de reprodução e acesso?
Azar.

E para donativos?
Estou indeciso. Por um lado, pode haver quem queira contribuir sem encomendar nada específico. Mas, por outro lado, a minha ideia é que isto seja uma troca consensual para benefício mútuo e não um peditório. Por isso não vou deixar aqui nenhum endereço para donativos, mas quem estiver interessado pode contactar-me e logo se arranja uma solução.

terça-feira, junho 07, 2011

O argumento económico.

A “pirataria”, dizem os detentores de monopólios sobre a cópia, prejudica a economia e aumenta o desemprego. Ponho-lhe aspas porque juntam na mesma palavra tanto a contrafacção comercial, tradicionalmente chamada pirataria, como a cópia e partilha para uso pessoal, assunto onde esta lei não costumava meter o bedelho. O argumento é que a cópia gratuita rouba vendas, o que leva ao desemprego muitas pessoas que trabalham na área e acaba por prejudicar toda a economia. Por isso, defendem, deve-se proibir as pessoas de copiar ou partilhar obras publicadas.

O primeiro problema com este argumento é assumir que a cópia para uso pessoal rouba vendas. Não é claro que o faça. Por um lado, porque a tecnologia que facilita a cópia privada também facilita a cópia comercial, reduzindo os custos, permitindo vender mais a preços menores e criar novos serviços de distribuição. Tal como as cassetes passaram de uma ameaça a uma fonte significativa de rendimento para esta indústria, também os downloads, uma vez ultrapassadas as parvoíces das licenças e DRM, têm potencial para substituir as formas de distribuição que se tornaram obsoletas.

Por outro lado, quando considerarmos toda esta indústria, a facilidade de acesso tem sido uma mais-valia. Dos toques para telemóveis aos concertos e bilhetes de cinema, muitas áreas têm crescido constantemente. No cômputo geral, a indústria da cultura e entretenimento está muito melhor do que alegam os clubes de vídeo e os vendedores de CDs. Esses estão tramados, é verdade, mas é preciso não confundir o sapateiro de esquina com a indústria do calçado. É inevitável que o progresso torne algumas coisas obsoletas, e é só uma questão de tempo até o DVD ir atrás da meia-sola e do sebo para as botas.

Outro problema deste argumento é a sua miopia tendenciosa. Mesmo que a tecnologia da cópia prejudicasse toda a “indústria cultural”, a economia é uma rede de transacções muito mais vasta e interligada. Facilmente compensaria noutro lado as perdas sentidas neste. Podemos apontar pessoas que perderam o emprego por fechar a loja dos discos ou o clube de vídeo, mas o dinheiro que os consumidores deixaram de gastar aí passou a ser gasto noutros lados. É um efeito menos visível; não conseguimos identificar quem ganhou emprego por causa dessa deslocação do consumo. Estes efeitos dispersam-se por toda a economia. Mas se reprimirmos a cópia privada, obrigando as pessoas a gastar dinheiro em CDs, vai haver outras pessoas, noutras partes da economia, que vão perder os seus empregos. Colei no final do post um vídeo do Milton Friedman a explicar este problema, se bem que no contexto do proteccionismo à industria do aço em vez da industria do plástico às rodelas.

Mas o problema mais importante deste argumento é que as vantagens económicas do monopólio são irrisórias, quando comparadas ao resto. A premissa implícita no argumento é que esta pequena fatia da economia tem mais valor do que as liberdades sacrificadas para proibir a cópia. É uma premissa absurda. As restrições que propõem violam directamente os direitos de acesso à cultura, de partilha de informação, de transformação da cultura e o direito de copiar. Hoje em dia é preciso relembrar constantemente que copiar é um direito. É o direito de dizer, cantar, desenhar, escrever, vestir, cozinhar, jogar, ler e pensar sem estar proibido de repetir o que alguém já fez. E, indirectamente, atropelam também outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a privacidade. Qualquer um destes direitos é muito mais importante do que o "direito" de lucrar com a venda de CDs, e argumentar que os devemos sacrificar pelo negócio de alguns é como defender a escravatura por aumentar os lucros aos donos das plantações.

E este argumento é uma admissão de inutilidade. Estão a dizer que, sem monopólios, não conseguem competir com o que cada um de nós pode fazer gratuitamente em casa. Mas, se é esse o caso, então mais vale desistirem do negócio em vez de chatear o pessoal, porque isso só quer dizer que não têm nada de interessante para nos vender. E podemos testar isto. Proponho à ACAPOR, FEVIP, AFP e afins uma nova forma de luta. Esqueçam a legislação, os tribunais e o cortes na Internet. Façam greve. Não vendam nem aluguem nada enquanto houver quem copia. Se a vossa actividade servir de alguma coisa convencerão as pessoas a mudar de atitude. E se ninguém vos ligar ficam com a prova de que já não servem para nada.

Milton Friedman, via a douta ignorância.

domingo, junho 05, 2011

Treta da semana: Reiki para animais.

Segundo explica a Susana Bastos, «Estamos vivos porque a força vital flui em nós»(1). Presumo ser algo semelhante ao princípio dormitivo do ópio. Assim, podemos «canalizar energia vital pela imposição das mãos», o que nos leva ao Reiki, que pode ser traduzido como «Força da Energia Vital do Universo». Não consegui perceber o raciocínio que ligaria estas coisas, mas pode ser algum defeito na minha espiritualidade. Já me avisaram várias vezes deste problema.

A prática do Reiki é fácil. Tão fácil como inventar tretas. É «aplicado sem necessidade de retirar qualquer vestuário»; basta abanar as mãos que «O receptor absorve a energia vital através do praticante» e «O seu "Entendimento Interior" utilizará o complemento de energia assim disponível, para dissolver, rápida e suavemente, os bloqueios que, ao impedirem a livre circulação da energia vital, provocam entre outras coisas, dores e problemas agudos.»

E isto não é só para pessoas. Além de medicina complementar, a Terapia Reiki também é veterinária complementar: «Cães, gatos, cavalos e aves são os nossos novos pacientes da técnica secular do Reiki, arte japonesa/ tibetana de canalizar a energia vital do universo e transmiti-la através das mãos…»(2). E os burros também, presumo.

Segundo a Susana, é o próprio animal que «determina a duração da sessão, e quando estiver satisfeito afasta-se das mãos». No caso do animal ser manso, «o tratamento faz-se por imposição directa das mãos.» Obviamente que, se não o for, a terapia terá de ser diferente. «Em animais selvagens ou de grande porte e inquietos, a princípio, utiliza-se o Reiki à distância.» Pudera. A Força da Energia Vital do Universo que descubra o caminho para as maleitas. Não se vai meter o braço na jaula do leão. Abana-se os dedinhos cá de fora e lá vai de energia. Até serve para não ter de molhar as mãos: «Em peixes ornamentais podemos enviar-lhes o Reiki pelo lado de fora do aquário.» Digam lá se não é prático. Até Rafael Bordalo Pinheiro celebrou, em famosas cerâmicas, a arte de enviar energia Reiki à distância só pelos gestos.

O argumento costumeiro dos cépticos é que estas alegações são infundadas. Mas a terapia energética para animais tem um forte fundamento testemunhal, e todos sabemos como os testemunhos são de fiar. «Nas aplicações em vacas leiteiras relatam-se observações da satisfação destes animais, como também um aumento na produção de leite.» E há mais. «Relatos referentes a cavalos citam resultados positivos na aplicação do Reiki em problemas como dor, inchaços, distensões musculares, stress, assim como resfriados e infecções.» Não é preciso explicar como fizeram essas observações ou mediram esses resultados. Nem vale a pena referir as fontes. Basta dizer que há relatos. Porque duvidar deste fundamento testemunhal seria como duvidar que Joseph Smith traduziu as placas de ouro do anjo Moroni, que Alá ditou o Corão a Maomé ou que Jesus nasceu de uma virgem.

1- Susana Bastos, Reiki
2- Susana Bastos, TERAPIA Energética PARA ANIMAIS

sexta-feira, junho 03, 2011

Abençoado gavetismo.

Demarcar o conhecimento daquilo que, ilegitimamente, alega ser sabedoria é um problema complexo. Não deve ser possível dar uma receita detalhada e simples que se aplique a todos os casos. Mas há uma diferença fundamental entre o conhecimento e as várias fés, fezadas, religiões, superstições e disparates da moda que se apresentam como “outras formas de saber”. Enquanto o primeiro tenta integrar os dados em explicações que os unifiquem, o resto separa tudo em gavetinhas para disfarçar as inconsistências.

Disto, o criacionismo dá muitos exemplos claros e caricatos. «Que hipóteses tem um grilo voador nocturno de escapar aos dentes do morcego?», pergunta o Mats. «A solução que o Criador inventou como forma de preservar a existência do grilo revela mais uma vez a Excelência Criativa de Deus. Ele construiu o grilo com um detector de morcegos mono-celular conectado ao seu sistema nervoso.»(1) Quem quiser perceber o que originou esta situação quererá considerar todos os dados de que dispõe. Há grilos que se escapam e morcegos que comem grilos. Os grilos que são comidos e os morcegos que morrem à fome deixam de se poder reproduzir. Cada grilo e morcego descende de antepassados parecidos consigo que, obviamente, se conseguiram reproduzir. E assim por diante. Tentar encaixar estes dados leva-nos a hipóteses testáveis, o teste dessas hipóteses revela mais dados e a restrição de manter tudo consistente guia-nos ao conhecimento.

Mas o Mats já julga saber as respostas todas. Foi o menino Jesus e os detalhes estão na Bíblia. Por isso não quer perceber. Quer apenas disfarçar o disparate das premissas isolando-as, para não se notar a inconsistência. Deus teve pena do grilo e deu-lhe um detector de morcegos para o salvar. Que querido. E ao morcego deu o sonar com que caça grilos para comer. Que bonzinho. Desde que ponha cada ideia na sua gaveta não precisa de enfrentar o problema do mesmo deus ter criado ambos, algo que sugere crueldade, estupidez ou uma extraordinária falta de atenção.

Passa-se o mesmo com as medicinas alternativas. Querem um estatuto igual ao da medicina a sério mas sem o inconveniente dos testes rigorosos. Isso de testar é uma coisa à parte, uma modernice da medicina “convencional”. E, tal como nas astrologias e bruxarias, cada um inventa o seu método sem incomodar os outros porque ninguém quer explicações que unifiquem com a ciência coisas como a influência dos astros, a clarividência das cartas e a terapêutica dos cristais. Se fizerem de conta que o conhecimento é apenas uma lista de opiniões isoladas, cada um pode fingir-se perito no que quiser. Afinal, não se pode provar que as vibrações positivas do cristal não desbloqueiem mesmo as energias espirituais dos chakras. Como diria o Sherlock Holmes da nova era, o que não se prova ser falso, por mais disparatado que seja, é a mais pura Verdade.

Mas é pelas religiões que este gavetismo tem maior impacto. Não por ser mais extremo ou ridículo nestas do que é nas outras tretas – nisto andam todas empatadas – mas porque, de todos os disparates, são as religiões que mais gente leva mais a sério. Isto tanto na religiosidade dos criacionistas e fundamentalistas mais crédulos como na dos teólogos e dos crentes que se dizem mais esclarecidos. Os primeiros, se lhes quiserem vender um carro em segunda mão são tão cépticos como qualquer outra pessoa. Mas no que toca a curas milagrosas, santinhos e histórias da carochinha, desde que venham da sua religião engolem tudo. Os religiosos mais doutos tentam disfarçar esses detalhes e engavetam os métodos. A ciência, admitem, serve para conhecer a idade do universo, compreender a geometria do espaço-tempo e fazer vacinas. Mas para saber se Maria era virgem ou se o Papa é infalível tem de ser com a teologia. Como e porquê, nunca se percebe bem. O que importa é pôr cada uma na sua gaveta, porque se vão testar as alegações dos teólogos como testam quaisquer outras nenhuma religião se safa.

Eu não consigo provar que a posição de Marte não afecta a minha carreira profissional, nem que a epilepsia não seja causada por demónios, nem que é falsa a hipótese do criador do universo se ralar com a minha vida sexual. Ainda assim, posso justificar rejeitar estas alegações – e outras afins – porque não encaixam nos dados que tenho nem nas explicações que encontro. Rejeito-as por consistência, tal como rejeito os contos de fadas ou as promessas do Sócrates. Se para aceitar uma hipótese tenho de abrir uma excepção só para ela e avaliá-la por critérios opostos aos que aplico a todas as outras, parece-me mais honesto admitir que essa hipótese não tem fundamento. A sabedoria não se pode reduzir a uma gaveta para cada treta.

* O Mats é capaz de dizer que os morcegos só comem grilos por causa do pecado original, que dantes usavam o sonar para apanhar uvas em pleno voo e que Deus só deu o detector ao grilo à cautela, porque já sabia como era a Eva. Mas isso será apenas mais um exemplo daquilo que quero ilustrar aqui.

1- Mats, O grilo e o seu alarme ultra-sónico