domingo, fevereiro 28, 2010

Treta da semana: à vossa saúde!

Segundo um teaser online, a Visão desta semana tem uma entrevista com «Bal Krishna, presidente da Associação Nacional de Acupunctura», que «garante que a ingestão de urina "funciona como uma vacina"»(1). Não sei se é como uma vacina por fornecer antigénios e estimular o sistema imunitário se é por ser desagradável de tomar. Mas, segundo a notícia, «A ingestão de urina para prevenir problemas de saúde é um método milenar, praticado na Ásia, que tem vindo a ser divulgado no Ocidente.»

Nunca percebi a suposta virtude de ser milenar. Só quer dizer que se fazia há mil anos, e as coisas há mil anos não eram assim tão boas. Concubinas aparte, é melhor a minha vida de classe média do que a de qualquer imperador do século X. E com o que se sabia nessa altura sobre doenças venéreas, talvez eu viva melhor mesmo considerando as concubinas.

A ideia de beber urina pela saúde também não é consensual entre orientalistas. Um livro de Hatha Yoga que tenho tenta persuadir o leitor que somos naturalmente vegetarianos alegando, entre outras coisas, que «A análise química dos caldos de carne, que se costuma dar aos enfermos, tem revelado uma composição bem próxima à da urina» (2). Tem razão, porque tanto o caldo de carne como a urina são 95% água e sal. Mas os picuinhas como eu preocupam-se mais com os restantes 5% de ureia e compostos tóxicos na urina.

A ureia resulta da decomposição de aminoácidos e não é tóxica. É um fertilizante comum e é até usada em produtos para branquear os dentes, cigarros, pastilhas elásticas, gelados e cosméticos (3). Mas também não é especialmente útil para a saúde e a urina em si é moderadamente tóxica, irritante e a sua alegada utilidade como bebida para quem está a morrer à sede também não faz sentido. Quando estamos desidratados a urina é concentrada, com muitos sais, e desaconselhada mesmo como último recurso (4).

Dizem os proponentes que a urina é maravilhosa porque reúne «todas as experiências do corpo, físicas e psicológicas. Reintroduzindo a urina no corpo força o sistema imunitário do corpo a confrontar as mesmas experiências uma segunda vez, o que lhe dá um segundo incentivo para lidar com o problema»(5). Exageram. Não há evidências nem que a urina guarde tal registo nem que sirva de alguma coisa reviver essas experiências de forma tão insalubre. Excepto em certas circunstâncias. Muitas drogas são eliminadas na urina. Há uns séculos na Sibéria, onde pouco havia para fazer além de rapar frio, os mais ricos drogavam-se com Amanita muscaria e os mais pobres, sem cogumelos, bebiam a urina dos abastados (6). Enfim, povos e costumes...

Se alguém quiser beber urina, bom proveito. Em moderação deve fazer menos mal que o tabaco, não incomoda os outros e nem dá um hálito tão desagradável. Mas se o fizer convencido que isso cura foi enganado. Dizem que a urina é um elixir maravilhoso que só é pouco usado por causa da malvada industria farmacêutica (7). Mas se a urina tivesse valor terapêutico dava fortunas a quem vendesse os princípios activos numa bebida mais apelativa. Além disso, a ureia já é um produto importante na industria química e a indústria farmacêutica também extrai fármacos da urina (8). O que vale a pena aproveitar já se aproveita. O resto é melhor ir para a sanita.

Como de costume, o fundamento aqui é a ideia ridícula de que há um remédio milagroso para todas as maleitas. Nem sequer nos automóveis é assim, e um automóvel é muito mais simples que nós. As doenças e os problemas da idade são demasiado complexos para se tratar com uma mijinha.

Já agora, aproveito o espaço que me sobrou para referir a Associação Nacional de Acupunctura, «tão especial que o seu nome pode ser lido de trás para frente»(9). Arutcnupuca ed Lanoican Oãçaicossa? Penso que queriam dizer acrónimo em vez de nome. Mas gostei da página, concebida a pensar nos daltónicos tantas vezes esquecidos pelos web designers. E, como treta puxa treta, refiro também o despique entre dois representantes do budismo português, que descobri ao procurar mais informação sobre Bal Krishna.

No blog da Heloisa Miranda, que promete ser um rico filão para esta rubrica semanal, um budista de nome Carlos Amaral e cognome Lama Khetsung Gyaltsen escreve sobre cristais e mais uma baralhada de coisas. Segue-se um comentário do presidente da União Budista Portuguesa, declarando que «não pode garantir a fiabilidade da orientação budista das actividades do Sr. Carlos Amaral e declina qualquer responsabilidade pelas mesmas» e um tortuoso e prolongado contraponto do Carlos Amaral (9), cujos textos e vídeos (10) recomendo a quem sofra de insónias.

Penso que estes senhores deviam dar um exemplo da serenidade e do bom humor budista e reconciliar-se. Talvez se fossem tomar um copo...

1- Visão, E se alguém lhe disser que beber urina faz bem?. Obrigado ao Francisco Burnay pela referência.
2- Hermógenes, Autoperfeição com Hatha Yoga, Record, Rio de Janeiro, 1993. Pág. 148.
3- Kemi, Urea, e também Wikipedia, Urea
4- Wikipedia, Urine.
5- InnerSelf, Healing Yourself with Urine
6- The Vaults of Erowid, History of Amanita muscaria
7- Por exemplo, Filosofia e Tecnologia, A CURA PELA URINOTERAPIA.
8- Wikipedia, Premarin
9- Zen, Cristais: A Discussão Instala-se.
10- Vídeos de Lama Khetsung Gyaltsen, O Direito Primordial à Felicidade

sábado, fevereiro 27, 2010

Legal, 12.

O que se pode ou não pode fazer com ficheiros é confuso porque a Internet é global mas cada país tem as suas leis, que cada juiz interpreta à sua maneira. No Reino Unido, Allan Ellis foi ilibado em Janeiro da acusação de conspirar para defraudar as editoras discográficas (1). Ellis criou o OiNK, um site parecido com o Pirate Bay mas dedicado à música, onde os utilizadores afixavam informação acerca dos ficheiros que partilhavam (2). Na Islândia, Svavar Kjarrval teve menos sorte. Gestor de um site semelhante, o Torrent.is, andou deste 2007 a defender-se nos tribunais. Tal como com o OiNK e o Pirate Bay, o Torrent.is não continha ficheiros protegidos por copyright mas apenas informação acerca desses ficheiros. Foi ilibado no tribunal distrital e no supremo tribunal quando a associação islandesa de colecta (STEF) recorreu da decisão. Depois a STEF repetiu a acusação alterando um pouco as alegações e Kjarrval foi novamente ilibado no tribunal distrital. Mas agora, no recurso desta segunda volta, o supremo tribunal deu razão à acusação e Kjarrval já não tem dinheiro para continuar a pagar advogados (3).

Esta legislação foi criada para as empresas regularem entre si quem vende o quê. Não foi pensada para se aplicar a actividades pessoais, sem fins lucrativos. Quando um agente económico com bolsos fundos usa estas leis para tramar um indivíduo é só questão de ir insistindo até o arruinar. O copyright era um incentivo à divulgação e distribuição de cópias, mas agora só incentiva o litígio. E quem lucra mais com o copyright são os advogados.

Na Polónia a polícia encerrou o Filmowisko, um fórum onde os utilizadores afixavam ligações para ficheiros hospedados no Rapidshare, e prendeu os seus três administradores. Um aluno de informática com 21 anos e dois adolescentes de 16 e 15 anos (4). Outra função destas leis é apanhar quem faz algo inofensivo e trivial – gerir um fórum na Internet até um miúdo de 15 anos faz – e levá-los para onde aprendam a ser criminosos a sério.

Ainda não satisfeitos com esta legislação, representantes de alguns governos e de empresas de distribuição estão a delinear o ACTA (5), um tratado internacional para restringir ainda mais o que se pode fazer com bits e bytes. Mas apesar de representantes da eBay, Google, RIAA e MPAA terem acesso ao tratado em negociação (6), os membros dos parlamentos dos países intervenientes só conhecem o tratado pelas fugas que vão ocorrendo. Finalmente, isto de criar leis às escondidas dos legisladores começa a gerar protestos em vários países (7) e no Parlamento Europeu (8). É bom sinal.

E na Austrália o tribunal deu razão à iiNet, um ISP processado pela Associação Australiana Contra Furto de Copyright (AFACT). A AFACT, representando vários estúdios e distribuidoras, alegou que a iiNet autorizava a violação de direitos de autor por parte dos seus clientes e que tinha a obrigação de lhes enviar avisos pela violação de copyright. O juiz declarou que casos de violação de copyright não devem ser resolvidos dessa forma e que a iiNet não tem a obrigação de controlar o que os seus clientes fazem com a ligação à Internet (9). Se o ACTA entrar em efeito isto vai mudar. Cada ISP terá de policiar os seus clientes ou identificá-los com base apenas numa acusação. Mas até lá é bom ver que do outro lado do mundo ainda há bom senso.

Infelizmente, o bom senso é escasso. Nos EUA, a International Intelectual Property Alliance (IIPA) pediu ao governo para pôr a Indonésia, o Brasil e a Índia na lista negra dos desrespeitadores do copyright. A razão é que os governos destes países incentivam o uso de software livre e de código aberto. Que é perfeitamente legal mas que a IIPA alega que «enfraquece a indústria de software» e «não promove o respeito pela propriedade intelectual»(10).

Outra bonita foi a concessão à Facebook da patente sobre «Um método para mostrar um news feed num ambiente de rede social»(11). Ou seja, sobre mandar mensagens do tipo «o Zé deu um espirro» quando algum “amigo” numa rede social actualiza a página. Quer a Facebook tenha patenteado isto para processar empresas como Twitter, Google ou MySpace, quer tenha sido só para se defender de eventuais processos, o veredicto é o mesmo. Conceder patentes como esta é um grande disparate.

Esta confusão toda vem de não admitir que os computadores são máquinas de calcular. Fazem contas e copiam números. Podemos usar os resultados para fazer sons e imagens, mas nem os números são propriedade nem as contas devem ser patenteáveis. A lei deve proteger direitos e não negócios. Em vez de se preocupar com a troca de ficheiros a lei devia estar atenta a coisas como a segurança das nossas transacções bancárias (12) ou a protecção da privacidade. Na Filadélfia uma escola deu aos alunos computadores com software instalado às escondidas para permitir ligar as câmaras e espiar os alunos remotamente (13). Mas, provavelmente, os responsáveis por isto vão ter um castigo menor que os dois anos de prisão que apanhou o tipo que filmou o Dark Knight no cinema (14). Ao que parece, filmar coisas no cinema é que é um crime que preocupa a sociedade...

1- BBC, Music file-sharer 'Oink' cleared of fraud
2- Wikipedia, Oink's Pink Palace
3- TorrentFreak, BitTorrent Tracker Loses Lengthy Legal Battle
4- TorrentFreak, Three Arrested As Police Swoop on Rapidshare Link Forum
5- Wikipedia, Anti-Counterfeiting Trade Agreement
6- Knowledge Ecology International, White House shares the ACTA Internet text with 42 Washington insiders, under non disclosure agreements
7- Michael Geist, Legislators Worldwide Asking Questions About ACTA
8- ZeroPaid, European Parliamentarians Officially Declare Opposition to ACTA
9- TorrentFreak, Movie Studios Lose Landmark Case Against Aussie ISP
10- Guardian, When using open source makes you an enemy of the state. Obrigado pelo email com a ligação.
11- Mashable, Facebook Secures Patent for News Feed. Via o FriendFeed da Paula Simões, que espero não seja fechado por violar alguma patente, porque tem sempre coisas interessantes...
12- Computer Weekly, Chip and Pin 'broken', say Cambridge University researchers, via Schneier on Security.
13- The Standard, 'Spygate' teenager demands webcam pix from Pa. school. Obrigado ao João pela notícia.
14- TorrentFreak, Dark Knight Cammer Gets 2 Years in Prison

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Hitchens 2 – o racismo.

Isto é tangencial à palestra do Christopher Hitchens (1), algo que ele só mencionou de passagem. E pode ser que a crítica que faço aqui não se aplique à opinião dele; ele não elaborou este ponto o suficiente para ficar claro o que queria dizer. Mas isto ficou-me a comichar porque ele disse, parafraseando de memória, que a grande diversidade genética da nossa espécie mostra que o racismo está errado. E não é nada disso.

A nossa espécie não tem uma grande diversidade genética. Tem menos que muitos mamíferos e muito menos do que seria de esperar numa espécie tão numerosa e espalhada por todo o mundo. Por exemplo, apesar de haver trinta mil vezes mais seres humanos que chimpanzés, a diversidade genética, medida pelas diferenças médias entre indivíduos, é maior nos chimpanzés que nos humanos (2). Mas a diversidade por si não determina se há raças. Para isso o que importa é como as diferenças e semelhanças se distribuem.

Os primeiros seres humanos anatomicamente modernos viveram há cerca de duzentos mil anos em África. Há coisa de cem a setenta mil anos atrás a nossa espécie passou por um mau bocado, com o número de humanos diminuindo quase até à extinção. O que explica a pouca diversidade genética. E há cerca de 60 mil anos alguns grupos de humanos saíram de África e espalharam-se pelo por quase todos os continentes. Por isso a maior parte da diversidade genética humana está ainda em África. Entre finlandeses, aborígenes australianos e índios da Amazónia há menos diferenças genéticas, em média, que entre populações africanas.

Além disto, a nossa diversidade genética está quase toda dentro das populações. Duas pessoas de populações diferentes diferem apenas mais 10%-20%, em média, que duas pessoas da mesma população. E, finalmente, a nossa espécie distribui-se numa rede populações interligadas por variações contínuas. Não há divisões claras entre raças. Por estas razões a biologia moderna rejeita as distinções raciais clássicas. Não faz sentido, geneticamente, falar de coisas como “raça negra” ou “raça africana”. E há quem defenda que nem sequer vale a pena discriminar raças na nossa espécie.

Por outro lado, há correlações estatísticas significativas entre grupos de genes e regiões geográficas que permitem identificar os antepassados da maioria das pessoas. E entre estes há alguns genes particularmente salientes. Por exemplo, cerca de 90% da variação genética na cor da pele está entre populações e apenas 10% dentro de cada população. É raro o Finlandês que se confunde com um Nigeriano. E em certos casos estas correlações têm relevância médica. Por isso também há quem defenda que é útil considerar divisões raciais na nossa espécie.

Factualmente o Hitchens enganou-se. Nem temos uma diversidade genética grande nem basta uma diversidade genética grande para que uma espécie não se divida em raças. Tudo depende como essa diversidade genética se distribui nas populações. E não é claro que não haja raças na nossa espécie. As divisões clássicas são incorrectas e não podemos dividir a humanidade em grupos genéticos bem separados mas, por outro lado, há correlações entre genes e origem geográfica que definem agrupamentos estatisticamente significativos. Se isso é útil ou não depende das circunstâncias.

Mas não foi este erro que me motivou a escrever. O erro mais grave, que não sei se Hitchens comete mas que já encontrei várias vezes, é julgar que isto tem alguma relevância para o racismo. Não tem. Uma coisa é a caracterização genética das populações que compõem a nossa espécie. Outra bem diferente é a ideologia segundo a qual certas pessoas merecem menos consideração, ou têm menos direitos, por causa de quem descendem. Não há qualquer relação entre as duas. Porque seja qual for a distribuição da diversidade genética humana será sempre possível discriminar pessoas com base nos seus antepassados. E será sempre errado fazê-lo.

O problema principal do racismo não está nos erros factuais, se bem que sejam comuns em ideologias como estas. O problema do racismo está nos valores. Haja ou não haja raças humanas, o racismo é uma treta indecente e imoral.

1- Casa Fernando Pessoa, "Livres Pensadores" com Christopher Hitchens
2- Search.com, Human genetic variation

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Talvez seja melhor um financiamento homeopático?...

O comité parlamentar de ciência e tecnologia do Reino Unido começou finalmente a desconfiar que o financiamento público da homeopatia não é bom negócio, e que os quatro milhões de libras por ano gastos em gotinhas de água podiam ser melhor empregues noutras coisas (1).

A maioria dos medicamentos homeopáticos não contém nem uma molécula do princípio activo. As diluições são tão grandes que fica só o solvente, normalmente água. Os homeopatas explicam isto alegando que a água tem memória das moléculas que por lá passaram, e que retém as suas propriedades mesmo depois de já não restar nenhuma dessas moléculas. Felizmente, não há evidências que isso seja verdade.

Memória da 
água
Imagem copiada do Hell's News Stand.

A extrema diluição dos medicamentos homeopáticos é justificada, segundo os homeopatas, pela potenciação do principio activo. Quanto menos tiver mais efeito faz, diz a homeopatia, uma regra que não se verificou no falhanço de um suicídio em massa na Bélgica, em 2004. Protestando contra a cobertura da homeopatia pelas seguradoras, um grupo de cidadãos tentou suicidar-se com soluções homeopáticas potentíssimas de veneno de cobra, arsénico e até leite de cão, que segundo a homeopatia dá vómitos e faz sonhar com cobras (2). Mas não tiveram sucesso. Ao que parece, a homeopatia só funciona em quem acredita.

Mas isto sugere uma solução simples e elegante para o problema dos britânicos. Podiam reduzir o financiamento de quatro milhões para quatro cêntimos ao ano, potenciando assim em cem milhões de vezes a eficácia desta terapia alternativa.

1- BBC, NHS money 'wasted' on homeopathy. Via Bad Astronomy.
2- Quackwatch, Homeopathic Products Used for Mass "Suicide"

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Burka.

Andar de cara tapada ou destapada não é opção de moda ou idiossincrasia cultural. Em regra as pessoas não andam de cara tapada quando interagem com outros. Além de ser a parte mais expressiva do nosso corpo, a cara é a forma de nos identificarmos. Ninguém espera que os alunos estejam na aula de óculos escuros e barba postiça, se alguém pára a mota para pedir indicações deve pelo menos levantar o visor do capacete e se entrarem pessoas num banco com barretes pretos a tapar a cara é certo que alguém vai chamar a polícia. Andar de cara tapada é uma atitude ameaçadora, porque uma pessoa que esconde assim o que quer e quem é não parece vir com com boas intenções. Em todas as culturas há uma aversão natural a quem aja assim.

E a burka não é excepção porque nas sociedades onde a usam as mulheres não são consideradas pessoas. São propriedade dos pais, dos maridos ou dos filhos e não faz mal terem um pano a tapar a cara. Pessoas de cara tapada não é aceitável, mas nessas sociedades as pessoas são os homens. Esses andam com a cara descoberta.

Os franceses querem proibir o uso da burka em espaços públicos e há quem diga que isto é atentar contra os direitos e costumes daquelas mulheres. Não é uma crítica muito acertada porque os costumes visados são mais os dos “donos” dessas mulheres. Mas, além disso, há outro aspecto importante. Na Europa as mulheres são pessoas. Não são gado nem objectos. E ninguém quer viver no meio de pessoas de cara tapada.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Será desta que o Kevin se trudeu?...

Um dos posts mais populares deste blog, senão o mais popular, é a treta da semana de 28 de Maio de 2007 sobre as curas do famoso Kevin Trudeau(1). Várias condenações por fraude e publicidade enganosa (2) não lhe tiraram a fama nem o dissuadiram de vender a sua banha da cobra. Em 2007 foi novamente a tribunal pela publicidade ao seu livro «A Cura da Perda de Peso Que Eles Não Querem Que Você Saiba». Enquanto que nos infomercials Kevin o apresentava como um método fácil de seguir para qualquer pessoa, no livro exige um regime de dieta intensiva, injecções diárias de drogas sujeitas a receita médica e outras coisas menos “fáceis de seguir”.

Pelo seu historial e pelo dinheiro que o Kevin faz a enganar gente, o juiz Robert Gettleman condenou-o a pagar trinta e sete milhões de dólares e proibiu-o de aparecer em publicidade durante três anos. Kevin teve então a ideia de pedir aos seus apoiantes para enviar emails ao juiz, que recebeu um dilúvio de mensagens com ameaças e insultos, ficou com o email entupido e condenou Kevin a 30 dias de prisão por desrespeito ao tribunal(3). Os advogados do Kevin Trudeau conseguiram um adiamento para interpor recurso, mas só têm até o início de Março para o safar (4).

A ideia de respeitar as opiniões dos outros parece bonita porque assim não se critica e não se ofende ninguém. Mas respeitar opiniões impede que se corrija erros e dá carta branca à aldrabice. É um preço grande demais só pelo privilégio de dizer disparates sem contraditório.

Via Bad Astronomy.

1- Treta da Semana: Kevin Trudeau
2- Ver um resumo do historial no Skeptic's Dictionary, e também na Wikipedia
3- Wallet Pop, Infomercial king Kevin Trudeau held in contempt of court
4- Wallet Pop, Infomercial king Kevin Trudeau fighting to stay out of jail

domingo, fevereiro 21, 2010

Treta da semana: com anestesia?!

O Marcos Sabino relata com grande entusiasmo a descoberta de uma possível amputação cirúrgica feita há quase sete mil anos. O entusiasmo vem de estar convencido que «os evolucionistas ficam surpreendidos ao detectarem conhecimento tão avançado há tantos anos a esta parte»(1). Para o Marcos, que julga que o universo tem pouco mais que isto, sete mil anos é muito tempo. Mas para a evolução não é.

Não há razões para crer que os humanos há sete mil anos atrás fossem biologicamente menos capazes de fazer o que nós fazemos. À parte de algumas características que mudam rapidamente, como adaptações ao clima, dieta ou doenças, não é de esperar grande evolução em sete mil anos num animal como nós. Se criássemos um bebé do neolítico com as crianças de hoje, com escolas e livros e brincadeiras modernas, ele cresceria igual a qualquer um de nós. Porque, biologicamente, seria um de nós. Evidências de uma amputação cirúrgica no neolítico só contradizem a caricatura confusa que os criacionistas fazem da teoria da evolução, e não a teoria em si.

E esta descoberta é interessante mas surpreende mais pelo nosso preconceito. O progresso tecnológico é muito rápido hoje em dia, e se o extrapolarmos para sete mil anos no passado ficamos com a impressão que não podiam saber nada de nada nessa altura. Mas só recentemente, com a invenção da ciência, é que o progresso se tornou tão rápido e imparável. Antes de assentarmos a tecnologia numa base teórica formal e rigorosa o conhecimento prático era muito mais frágil e muito mais difícil de obter.

Um exemplo que ilustra bem isto é o transporte do obelisco da Praça de São Pedro, em Roma. Em 1586, aquando da expansão da basílica, foi deslocado cerca de cem metros para o centro da praça. Foi uma obra de engenharia extraordinária que exigiu o máximo das capacidades tecnológicas da altura. Mas o obelisco tinha sido trazido do Egipto mil e quinhentos anos antes pelos romanos e tinha sido erguido originalmente em 1835AC pelos egípcios (2).

Até recentemente a tecnologia progredia por tentativa e erro, com truques e ferramentas passados de mestre para aprendiz em comunidades pequenas e muito sensíveis a variações políticas. Com a queda do império egípcio perdeu-se aquelas técnicas de construção. Os romanos redescobriram algumas a muito esforço mas perderam-se novamente quando esse império também se desagregou.

Há sete mil anos atrás, aquelas comunidades do neolítico já tinham tido dezenas de milhares de anos para adquirir conhecimentos práticos de anatomia e de como tratar feridas. Não era medicina no sentido moderno nem terá sido um progresso constante como temos hoje. Era tentativa e erro; cada vez que mudavam de sítio, com outro clima e outras plantas, tinham de começar do princípio. E muito se perdia regularmente em cada escaramuça entre tribos, epidemia ou fome que matasse quem sabia dessas coisas na tribo. Por isso não é de admirar que certos povos primitivos soubessem como amputar um braço e manter o paciente vivo, mesmo que posteriormente se perdesse esse conhecimento naquele sítio.

O relato também indica que a amputação foi feita a um braço que tinha sido quase amputado por um acidente que tinha desfeito parcialmente o osso (3), não indicando que a amputação fosse prática regular naquela cultura. O notável é o paciente ter sobrevivido, «beneficiando de bons conhecimentos médicos, incluindo como estancar uma hemorragia, evitar infecções e promover a cura.» Mas «Este conhecimento não é inesperado, pois são conhecidas intervenções cirúrgicas em ossos, por exemplo trepanações, em períodos anteriores no Mesolítico» (3).

Este post do Marcos Sabino segue um padrão argumentativo comum nos criacionistas. Faz-me lembrar uma episódio da minha infância. A minha bisavó não nos deixava comer bolachas antes do almoço. Então fui à cozinha, apontei para a janela espantado e, quando ela olhou, fugi com a lata das bolachas. Os exemplos que os criacionistas dão para “refutar” a teoria da evolução não têm qualquer relevância. Servem apenas para distrair.

Mas não é só por isso que menciono o post do Marcos. O Marcos escreveu que «O paciente teria sido anestesiado e o corte tratado após a cirurgia»(1), e achei interessante ver como os arqueólogos teriam descoberto vestígios de anestesia num esqueleto com sete mil anos de idade. É claro que o artigo original não menciona anestesia nenhuma. Esta ideia do Marcos parece ter vindo da notícia sensacionalista no Times Online (4). Aproveito assim para deixar esta dica ao Marcos, como futuro jornalista. Para fazer jornalismo sobre ciência convém ler pelo menos o que os cientistas escrevem.

PS: Quero pedir desculpa ao Nuno Miguel Madeira Farias, também conhecido por Miguel Arcanjo Espirita dos Pobres, pois por pouco o contemplava com a treta desta semana. Mas como o Nuno demonstra as suas credenciais de vidente com uma imagem do diploma de «Basic Bodyguard Skills», pareceu-me estar pouco aberto a críticas. Por amor à pele e por respeitar a distância considerável entre o Nuno e a realidade, preferi galardoar o Marcos.

1- Marcos Sabino, Na Idade da Pedra já se faziam amputações.
2- St. Peter's Basilica, The Obelisk
3- Cécile Buquet-Marcon, Philippe Charlier & Anaïck Samzun, A possible Early Neolithic amputation at Buthiers-Boulancourt (Seine-et-Marne), France
4- Times Online, Evidence of Stone Age amputation forces rethink over history of surgery

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Hitchens 1 – a religião envenena tudo.

A palestra do Christopher Hitchens ontem (1) não deve ter surpreendido quem já tivesse lido alguma coisa dele. Nem pelo conteúdo, que foi o previsto, nem pela forma, pois no que ele escreve nota-se que é um comunicador extraordinário. Mas foi uma experiência interessante vê-lo ao vivo. Vou aproveitar algumas ideias que ele expôs como inspiração para uns posts, começando pela mais óbvia.

Hitchens defende que a religião envenena tudo quer pelas suas consequências quer pelos seus princípios. Não há nenhum acto que se reconheça como bom que seja exclusivo dos religiosos e, para ser uma pessoa boa e ter valores louváveis, não é preciso ter religião. Por outro lado, facilmente nos ocorrem actos e valores condenáveis associados a práticas religiosas, desde os sacrifícios humanos e a inquisição aos ataques bombistas e à mutilação genital de raparigas. Ele não o mencionou mas, antecipando já as criticas costumeiras, saliento que isto não quer dizer que todos os ateus sejam boas pessoas. O ponto aqui é que a religião é desnecessária para se ser bom e é motivo para muitos actos condenáveis. Pesando os prós e os contras, mais vale não a ter.

Mesmo entre os que são ateus, num sentido estrito, o mau comportamento institucionalizado vem da aceitação acrítica de superstições e ideologias estranhas ao ateísmo. Na Coreia do Norte, um exemplo comum dos terrores do ateísmo, a Constituição foi alterada em 1998 para nomear Kim Il-Sung o Presidente Eterno da República. O homem já tinha morrido quatro anos antes. O estalinismo, o maoismo e a ditadura em Cuba, apesar de não seguirem algo que oficialmente seja considerado divino, assentam também numa teimosia ideológica que o ateísmo não exige mas que é fundamental em qualquer religião. As religiões consideram-se acima das limitações, da falibilidade e até da contestação humana, e é essa atitude que facilmente tem consequências trágicas.

Além disso, as religiões declaram-nos todos servos dos deuses. Não somos donos de nós próprios nem os responsáveis pelos nossos valores. Somos instrumentos criados por outrem para servir os seus propósitos e cujo mérito é função da submissão a esse desígnio. Isto desumaniza as pessoas.

Nestes aspectos concordo com o Hitchens, mas parece-me que ele erra ao considerar, implicitamente, que a religião é a origem destes problemas. A religião é apenas um de vários meios de desumanizar e levar pessoas boas a praticar o mal. É o mais popular e foi provavelmente o primeiro a ser inventado, mas não é o único. O problema fundamental não é a crença num deus ou numa casta de sacerdotes; é a facilidade com que abdicamos da nossa autonomia e responsabilidade e lavamos mãos das asneiras que fazemos com a desculpa de agir em nome de qualquer fantasia que nos impinjam.

1- Casa Fernando Pessoa, "Livres Pensadores" com Christopher Hitchens

Comprar ou copiar?



Obrigado pelo email com o link.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Como funciona o BitTorrent.

No link abaixo podem ver uma animação ilustrando o protocolo BitTorrent, e que serve para perceber o P2P em geral. A animação começa com dois seeds, que têm o ficheiro completo, e dez peers, que querem o ficheiro e começam sem nada. Primeiro os seeds copiam fragmentos do ficheiro para alguns peers. Depois, quando os primeiros peers já têm um bloco completo começam a copiá-lo para outros até que toda a rede se enche de cópias de fragmentos a passar de um lado para outro.

Com as teclas S e P podem acrescentar seeds e peers, e com a tecla R retirar um participante ao acaso. Antes de passar ao link, gostava de salientar dois aspectos da partilha P2P. Um é a sua eficiência quando comparado ao sistema clássico de cliente e servidor, no qual um nó central envia cópias completas a cada um que as peça. Nesta animação pode-se ver a aceleração exponencial da cópia conforme mais peers obtêm blocos para partilhar. O outro é que não há um participante que envie aos outros o grosso das cópias. Os seeders têm um papel mais importante ao início, mas rapidamente o tráfego é dividido igualmente por todos os participantes. Estes aspectos são importantes para perceber a futilidade do combate ao P2P.

E agora, sem mais demoras: BitTorrent!

Nota: julgo que isto não dá com o Internet Explorer, pelo menos com as versões que não suportem a tag <canvas>.

Via TorrentFreak.

Christopher Hitchens, hoje às 18:30.

Se calhar não devia ajudar a publicitar isto, que os lugares são limitados. Mas, por outro lado, se a sala encher é bom sinal. Por isso aqui vai. Se ficar sem lugar também não será pelo anúncio neste blog, e é por uma boa causa.

Hoje, às 18:30, na Casa Fernando Pessoa, Christopher Hitchens vai falar sobre a Necessity of Atheism. A entrada é livre. Aproveito para dar os parabéns aos organizadores por esta iniciativa.

Mais informação no site da Casa Fernando Pessoa.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Moral objectiva, take 3.

Um atributo é objectivo se for propriedade do objecto. Por exemplo carga, massa ou comprimento. E é subjectivo se for atribuído ao objecto por um sujeito, como beleza, utilidade ou valor. Mas um atributo objectivo não é necessariamente invariante em relação aos pontos de vista. A massa e o comprimento são atributos objectivos mas variam, por efeitos relativistas, conforme a velocidade do objecto no referencial onde são medidos. E também não é necessário que uma qualidade subjectiva varie de sujeito para sujeito. O valor monetário de uma nota de vinte euros é uma qualidade subjectiva atribuída à nota pelos sujeitos de uma comunidade. Ainda assim, a nota vale vinte euros para todos esses sujeitos.

É por isso inválido o argumento comum que a moral tem de ser objectiva porque se não o fosse haveria uma para cada gosto. Além de irrelevante, porque desejar as suas consequências não torna a hipótese mais verdadeira, uma coisa não tem nada que ver com a outra. Se a moral fosse objectiva podia à mesma ser diferente de pessoa para pessoa, e mesmo subjectiva pode ser igual para todos os sujeitos. Basta assentar num aspecto comum à subjectividade de todos.

E é evidente que a moral não é objectiva. Os objectos da moral são os actos voluntários e conscientes, que a moral avalia e regula. Mas não há valores morais intrínsecos aos actos se desligados dos juízos que fazemos deles. O valor moral de cada acção tem de lhe ser atribuído por um sujeito que avalie essa acção. E foi provavelmente esta necessidade que impulsionou a religião como um atalho manhoso para fugir à ética. Ironicamente, a fonte mais apregoada da tal “moral objectiva” é um deus, um sujeito moral que determina o bem e o mal pelo seu juízo subjectivo.

A moral só pode ser subjectiva porque o seu fundamento tem de vir de cada sujeito. Nem faz sentido ser de outra forma. Mesmo que todas as acções viessem rotuladas de fábrica com “bom” e “mau” ou que um deus nos desse uma lista de “faz” e “não faças”, isso teria tanta relevância ética como a fórmula química da glucose ou as regras do Monopólio. Meros factos que nos caiam no colo são insuficientes para justificar a moral.

Aqui tenho de fazer um pequeno desvio para esclarecer esta distinção que não é consensual porque há quem use “moral” e “ética” como sinónimos. Mas muitas vezes é útil distinguir entre as regras e o seu fundamento. Uma coisa é concordar que é imoral roubar e outra é explicar porquê. Essa justificação é o papel da ética, sem a qual nenhum conjunto de regras ou valores pode ser moral.

O problema ético é um problema de decisão e não apenas um problema de conhecimento que se possa resolver consultando factos ou livros de regras. Surge àqueles que compreendem que as suas acções afectam os outros e sentem que isso restringe as suas escolhas. Quem não compreende o que faz, como o recém-nascido, ou quem é indiferente ao mal que causa, como o psicopata, não pode ser um agente moral. Mesmo que se comporte de acordo com algumas normas não as adopta para resolver esse problema ético de lhe constranger o que faz aos outros. E seguir regras por medo do castigo, com olho na recompensa ou simplesmente por hábito não tem nada que ver com moralidade.

Este constrangimento ético é subjectivo mas é necessário para qualquer sujeito ser moral. Por isso é uma base comum onde construir uma moral universal. Tal como a nossa compreensão do problema de trocar bens e serviços permite o acordo unânime acerca de algo tão subjectivo como o valor monetário de um pedaço de papel, também a nossa compreensão do problema ético permite encontrar valores morais universais sem precisarmos fingir que a moral vem de algum sítio que não de cada um de nós.

A moral religiosa é manhosa porque evita a justificação ética com um “porque Deus disse” ou uma referência inconsistente às “leis naturais”. Como o preservativo ser pecado por ser contra a natureza, mas o flúor na pasta de dentes já não. Ou embrulhar em pecado os impulsos sexuais, do mais natural que há, só por dar jeito aos padres mandar na cama dos outros. Uma “moral” que vem de brinde nos cereais da revelação divina não é moral nenhuma. É só uma artimanha para levar o pessoal à missa.

Em suma, a religião pode ser eficaz a manipular comportamentos mas não serve para orientação moral. O problema fundamental é a responsabilidade individual pelo que cada um faz aos outros, mas a religião transveste-o de mera obediência a regras impostas por deuses, listas de mandamentos ou idiossincrasias da natureza. Encarar o fundamento subjectivo da moral tem incomodado muitas religiões mas levado a um consenso cada vez mais alargado acerca dos direitos e deveres de todos, porque todos os agentes morais têm algo em comum, subjectivamente. Em contraste, a pretensão de uma “moral objectiva” universal vinda das religiões tem apenas gerado uma salada inconsistente de virtudes arbitrárias para os fieis defenderem e defeitos fictícios para apontarem aos outros.

domingo, fevereiro 14, 2010

Dia dos namorados.

Hoje é um bom dia para deixar comentários sobre criacionismo.

Até amanhã.

sábado, fevereiro 13, 2010

O princípio da igualdade.

O Jónatas Machado é uma presença assídua neste blog, contribuindo com as suas opiniões criacionistas mesmo em posts sem qualquer relação com o assunto. Um comentador extraordinariamente consistente, não só mantém constante a sua opinião mas até o texto pelo qual a exprime. Uma, e outra, e outra, e outra vez. Mas refresca o que podia ser repetitivo mudando ocasionalmente de nome para que as suas intervenções pareçam novidade.

Mas o nosso longo monólogo tem focado quase exclusivamente a falta de formação científica dos cursos de direito. Pela sua argumentação, o Jónatas conseguiu convencer-me que um professor de direito e constitucionalista não precisa perceber nada de física, biologia, termodinâmica ou teoria da informação. É por isso que acolho com prazer esta oportunidade de examinar a opinião do Jónatas em matéria na qual ele é perito. O direito.

O Jónatas Machado falou esta semana à Comissão dos Assuntos Constitucionais representando a Plataforma Cidadania e Casamento (PCC) (1), uma organização que luta pelo referendo sobre o casamento homossexual. Estes cidadãos querem exercer o seu direito de proibir casamentos aos outros, o que é compreensível. A única vantagem de viver com as restrições arbitrárias de certas religiões é o gozo de impor um pouco dessa miséria aos outros. O Jónatas apontou como exemplo dos problemas do casamento homossexual a possibilidade de litígios caso haja restaurantes que recusem servir o banquete (2). Talvez haja um universo paralelo onde o Chapeleiro e a Rainha de Copas se preocupem com isto mas, por cá, estou mais como o Daniel Oliveira*.

Esta notícia levou-me a procurar mais informação e, no site da PCC, encontrei um texto do Jónatas sobre este assunto (3). O link na página com o resumo remete para um pdf de 25 páginas, mais sucinto do que esperava do Jónatas mas, mesmo assim, demasiado longo para tragar. Por isso fui ao que me interessava mais, o Princípio da Igualdade, nas páginas 12 a 15.

Ao contrário das outras discussões com o Jónatas, aqui estou em clara desvantagem. Falta-me a formação jurídica necessária para complicar o simples, obscurecer o claro e resumir ideias em dez vezes mais palavras do que é preciso. Mas ainda assim atrevo-me a discordar. Escreve o Jónatas que o argumento da igualdade a favor do direito ao casamento homossexual é forte mas encontra duas dificuldades.

«A primeira decorre de o princípio da igualdade pouco ou nada dizer acerca da questão de saber o que é igual e o que é diferente, quais os critérios atendíveis, quem define esses critérios, com que autoridade, etc. […] Uma outra dificuldade do princípio da igualdade prende-se com o facto de que a afirmação simbólica da igualdade relativamente a todas as orientações sexuais remete as múltiplas orientações sexuais reconhecidas, todas potencialmente carecidas de afirmação simbólica.»

A segunda dificuldade é fácil de resolver. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo não tem nada que ver com a orientação sexual. O Jónatas confunde orientação sexual com parafilia, mas neste caso é irrelevante porque o problema não é a lei limitar o casamento em função dos nubentes preferirem relações sexuais mais assim ou assado. O problema é apenas a lei impedir o casamento por os nubentes serem ambos homens ou mulheres, independentemente das suas preferências sexuais.

E a primeira dificuldade que o Jónatas aponta surge apenas por complicar a noção de igualdade perante a lei. Mas, neste caso, é muito simples. Basta a lei não tratar pessoas de forma diferente apenas por serem de sexo diferente. Só as pessoas. Os contratos podem ser tratados de forma diferente se tiverem número diferente de participantes ou duração diferente. E, neste caso, basta não discriminar quanto ao sexo. A lei pode considerar a idade, graus de parentesco, a capacidade de tomar decisões ou qualquer outra coisa que considere pertinente. O que se exige é apenas que não considere o sexo dos nubentes como legalmente relevante. Como prescreve a Constituição e como a lei já faz com a etnia, crença religiosa, orientação política e até com a orientação sexual. Esta última não é problema porque não há nada na lei que proíba um homossexual de casar com uma lésbica. O problema é apenas a lei proibir o casamento em função do sexo dos nubentes.

Quanto ao referendo que o Jónatas e a PCC exigem, já foi em 27 de Setembro. Os partidos que agora aprovam na Assembleia da República a legalização do casamento entre homossexuais foram aqueles que disseram que o iam fazer e que, por isso e por outras coisas, receberam do eleitorado os votos para o fazer. Se fosse uma decisão acerca da qual não tivessem já manifestado qualquer posição ainda compreendia que houvesse um referendo. Mas referendar o cumprimento dos programas eleitorais que foram a votos nas legislativas é contra os princípios desta democracia, que é representativa, e é um desperdício de tempo e de dinheiro.

* Obrigado ao Pedro Ferreira pelo link, as gargalhadas e a inspiração para este post

1- www.casamentomesmosexo.org
2- DN, ”Certas coisas podem fazer mal”.
3- PCC, A (in)definição do Casamento no Estado Constitucional.

Treta da semana: In nomine Patris, toma lá disto.

Apesar da fé inabalável, o fundamentalista também precisa, desesperadamente, de confirmação independente para o seu livro sagrado. Para o Mats, o livro é aquele que manda bater nas crianças com um pau para que sejam obedientes (Provérbios: 13:24; 22:15; 23:13; 29:15), que os pássaros lhes comam os olhos se o pau não resultar (Provérbios 30:17), ou que os homens da cidade as apedrejem até à morte (Deuterónimo 21: 18-21*). Para confirmar isto, o Mats refere um “estudo” indicando que «Aparentemente pais que disciplinem fisicamente os seus filhos entre as idades de 2 a 6, estão a criar condições para que os mesmos sejam mais bem sucedidos na vida.»(1)

Mas esta confirmação é pouco independente. É um inquérito (2) organizado pela University of Notre Dame, uma universidade católica da Congregação da Santa Cruz (3), e financiado pela Lilly Endowment, uma fundação privada de apoio a iniciativas religiosas (4). Refere também as recomendações do American College of Pediatricians (ACP). O nome confunde-se facilmente com American Academy of Pediatrics (AAP), mas enquanto a AAP é a mais antiga e prestigiada associação de pediatras dos EUA, o ACP foi criado por um grupo de pediatras conservadores que saíram da AAP por exigir que esta se opusesse à adopção por parte de casais homossexuais (5). Em linha com a sua ideologia de inspiração cristã, o ACP defende ser apropriado bater em crianças dos 18 meses aos 6 anos.

Em contraste, a AAP opõe o uso de castigos corporais por várias razões, entre as quais tornar a criança mais nervosa e agressiva, degradar o relacionamento com os pais e deixar de ter efeito a menos que se aumente progressivamente a severidade do castigo (6). O que é compreensível. Se queremos ensinar um cão o melhor é recompensar os comportamentos desejados, com festas ou guloseimas, e desencorajar os indesejados com uma rosnadela ou mandando-o de castigo para a cozinha. Tentar ensinar o animal batendo-lhe só dá um cão assustado e violento, porque o mecanismo primitivo de aversão à dor desencadeia apenas respostas imediatas e simples: fugir ou atacar. Os cães são animais sociais inteligentes, motivados para pertencer a um grupo e ter a aprovação dos seus membros. É esse mecanismo mais sofisticado que permite ensinar-lhe coisas que não se consegue ensinar a um gato, por exemplo.

Ensinar crianças à pancada é uma asneira pior. Além do péssimo exemplo e do risco de a magoar, a criança tem formas de aprendizagem ainda mais sofisticadas que as dos cães. Não só tem a empatia e ânsia por aprovação comum aos mamíferos sociais mais inteligentes, como tem linguagem e capacidade de abstrair e compreender regras. Com estes mecanismos podemos ensiná-la a não só a sentir pelos outros mas também noções como justiça, direitos, deveres, bem e mal. Se a ensinarmos com empatia e diálogo a criança desenvolve valores éticos. Não é imediato; é preciso muitos anos e muita paciência. Mas ensinar é isso mesmo. Anos e paciência. Não se ensina coisas complicadas com um par de estalos.

À pancada o resultado é o oposto. Ensina que a diferença entre o bem e o mal está no castigo. Se leva tabefes, é porque fez mal. Se conseguiu safar-se, tudo bem. É como se o problema moral de bater na velhota fosse ir para a prisão em vez de ser o sofrimento da coitada. Isso não é ética. É egoísmo. Mas é a base da suposta “moral objectiva” destas religiões. Basicamente, há coisas que são más porque Deus castiga. E pronto. Nesta moral deturpada, é aceitável um homem bater numa criança mas não se tolera que beije outro homem. Não interessa que um cause sofrimento e outro prazer, que um seja imposto e o outro voluntário, que um seja uma violação e o outro o exercício de um direito. O que interessa é que Deus não castiga o homem que bate em crianças mas castiga aquele que beija outros homens.

Isto, obviamente, não tem nada de ético. Mas é uma forma eficaz de manipular as pessoas. Disfarçado de “moral”, este parasita engana as defesas dos hospedeiros que, tendo levado no trombil desde pequenos, crescem sentido o dever de repetir a virtuosa façanha e infectar a geração seguinte.

É esta a preocupação principal do Mats. Se ensinamos as crianças com paciência, amor e diálogo elas tornam-se autónomas, capazes de perceber por si a diferença entre o bem e o mal. É o pecado original, e quem pensa por si corre o risco de ficar ateu. Por isso o melhor é dar tabefes a ver se aprendem a “temer a Deus”. Ou, pelo menos, a fingir de forma convincente.

* É costume nos baptizados alguém ler trechos da Bíblia. Quando tenho mesmo de ir a um baptizado, imaginar que alguém escolhe esta passagem ajuda a tolerar a seca:

«Se um homem tiver um filho obstinado e rebelde que não obedeça nem ao pai nem à mãe, ainda que estes o castiguem para o corrigir, então seus pais deverão trazê-lo perante os anciãos da cidade e declarar: 'Este nosso filho é obstinado e rebelde e não quer obedecer; além disso é um comilão e beberrão incorrigível.' Os homens da cidade apedrejá-lo-ão até morrer. Dessa forma tirarão o mal do vosso meio; e todos os outros jovens de Israel ouvirão isso que aconteceu e terão medo.»


1- Mats, Crianças novas que recebem disciplina física se tornam adolescentes mais felizes e bem sucedidos
2- pals.nd.edu
3- Wikipedia, University of Notre Dame
4- Wikipedia, Lilly Endowment
5- ACP, History of the College
6- AAP, Guidance for Effective Discipline

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Placebo.

Via Pharyngula.


terça-feira, fevereiro 09, 2010

Tretologias.

O astrólogo Sérgio Rivilo perguntou «¿Cómo se podría demostrar la validez del Teorema de Pitágoras a alguien que no sabe nada de matemáticas?»(1). A pergunta devia ser retórica mas, como o Pedro Amaral Couto apontou, é trivial. Basta papel, lápis e um esquadro*. Na verdade, é fácil mostrar que um elevador funciona como se espera sem explicar como. Ou um automóvel, um computador ou uma reacção química.

É certo que há casos mais complexos. Não é trivial explicar a importância da teoria da relatividade para o GPS ou da teoria da evolução para a previsão de estruturas de proteínas por homologia. Mas mesmo assim pode-se mostrar que o aparelho dá a posição certa e que a estrutura prevista é semelhante à real. A validade do conhecimento científico pode ser demonstrada mesmo a quem não o compreenda. É por isso que não precisamos de uma dúzia de doutoramentos cada um para usar roupas, carros, medicamentos e electrodomésticos. Quando se compreende a realidade e se consegue prever como esta se comporta é fácil mostrá-lo mesmo a quem não tenha esse conhecimento.

E a realidade é só uma, ao contrário das fantasias, opiniões e conjecturas. Por isso todo o conhecimento da realidade acaba por encaixar e formar uma rede coerente de modelos e teorias. Da física à sociologia, a ciência procura hipóteses que liguem entre si os vários conjuntos de dados. E o que não encaixe ou só for compatível com uns dados e não com outros vai sendo abandonado. O éter luminífero, os quatro elementos, o flogisto. E o criacionismo, a teologia, a astrologia, o tarot e assim por diante.

Segundo Sergio Rivilo, «Para obtener una demostración de la validez de la astrología es ABSOLUTAMENTE IMPRESCINDIBLE estudiar astrología.» Isto é verdade. O psicólogo Hans Eysenck (2) teve resultados interessantes em estudos sobre a correlação entre o signo astrológico e a personalidade avaliada com um questionário preenchido por cada participante. As respostas de pessoas com conhecimento de astrologia correlacionavam-se significativamente com aquilo que a astrologia dizia ser a personalidade do seu signo. Mas as respostas de quem não sabia nada de astrologia não tinham qualquer correlação com os traços de personalidade associados ao signo. O signo astrológico não permite prever coisa nenhuma, mas se convencermos as pessoas que esses são os traços da sua personalidade, pelo menos quando nos relatam a personalidade que julgam ter fazem-no conforme essas expectativas.

Psicologicamente, as tretologias são um fenómeno interessante. É intrigante a abundância destas crenças: na influência dos planetas sobre a nossa personalidade, na criação do mundo em seis dias, na previsão do futuro pelas cartas, em milagres e afins. Isso, e a propensão para confundir narrativas fictícias com conhecimento. Praticamente qualquer história da carochinha pode dar uma coisologia. Estas idiossincrasias dão pistas importantes acerca do funcionamento da nossa mente. Mas não são explicações; são dados por explicar.

Talvez um dia consigamos explicar em detalhe porque a treta se propaga com tanta facilidade de mente em mente. Nessa altura teremos uma explicação cuja validade será fácil de mostrar pela sua utilidade, e que encaixará com o resto do nosso conhecimento, como a neurologia, a psicologia e a evolução da nossa espécie. Mas, até lá, fica o espanto por esta capacidade de acreditar em tretas tão diversas que o seu único ponto comum é a total falta de fundamento.

* Ou menos que isso, como se pode ver neste vídeo com Jacob Bronowski. Obrigado ao sxzoeyjbrhg pelo link.

1- Comentários em Treta da semana: XXVII Congresso Ibérico de Astrologia
2- Richard Wiseman, Quirkology, 2007, Pan Books, pag. 7

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Equívocos, parte 3.

No seu terceiro post acerca dos equívocos do ateísmo o Alfredo Dinis repete que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião»(1). A ver se é desta que isto se desdramatiza.

O único sítio de onde é legítimo o meu ateísmo erradicar a religião é a minha vida. E nisso o sucesso foi total. Qualquer Edir Macedo, Joseph Ratzinger ou Alexandra Solnado que me queira vender a sua banha da cobra vai ter de se haver com o meu ateísmo. E o papel social do ateísmo não é o que o Alfredo julga. O ateísmo não é um polícia das crenças. É um cinto de segurança. Não impede os acidentes nem evita asneiras mas reduz os estragos. Em grande parte, é graças à propagação do ateísmo que hoje posso criticar um sacerdote jesuíta, e director de uma faculdade da Universidade Católica, sem ir preso nem sofrer represálias. Quando o meu pai tinha a minha idade isto seria difícil. No tempo do meu avô era impensável.

E mesmo que daqui em diante o ateísmo não avance um milímetro que seja, ainda assim é importante defendê-lo para contrariar a pressão constante da religião. Este equilíbrio não é estático, e se deixamos de pressionar os que vivem convictos de ter a verdade revelada e de saber o que é melhor para si e para os outros, voltamos rapidamente aos “bons velhos tempos” da religião a bem ou a mal.

O que me traz aos novos equívocos do Alfredo. «A religião tem sobretudo a ver com a questão do sentido do universo e da vida. Os não crentes afirmam que não há nenhum sentido para além do que nos é dado pelo conhecimento científico.» Não é isso. O que eu afirmo é que o sentido da minha vida vem de mim. Não me pode ser dado, nem pela ciência, nem pela religião nem por coisa nenhuma. É claro que qualquer actividade humana pode ajudar. O Alfredo menciona a poesia e a arte, mas posso acrescentar a religião, o atletismo, o macramé e a ciência. Qualquer coisa que façamos com paixão ajuda a criar sentido na nossa vida. Uma vida sem sentido é apenas a de quem fica à espera que lhe dêem um.

Assim, não critico a religião por julgar que a vida não tem sentido. Critico-a pelos seus erros factuais e porque o sentido da minha vida me diz respeito a mim e não ao Alfredo ou ao seu deus. Se o Alfredo quer apontar algum equívoco nesta minha posição ateísta, sugiro que me explique porque preciso do deus dele para dar sentido à minha vida. Concordo que é importante «interrogar-se sobre o sentido da existência», mas discordo que a resposta do Alfredo seja relevante para mim.

Finalmente, o Alfredo aponta que a religião não é «fonte do conhecimento dos fenómenos naturais», pois isso é com a ciência, mas insiste que a religião é uma fonte de conhecimento, uma área do saber autónoma da ciência. Infelizmente, não deixa claro o que é suposto ser esse alegado conhecimento religioso. A religião sabe o quê?

O conhecimento é o conjunto dos dados e suas explicações. Sem dados não há nada que saber e sem explicações não há como sabê-lo. E estes aspectos são inseparáveis. Pode parecer que quando vejo chover sei que chove só pelos sentidos, um dado que não precisa de explicação. Mas, na verdade, concluo que está a chover por ser essa a explicação mais plausível para a sensação de ver chuva. Se em vez de chuva vir um elefante amarelo a voar já não concluo que exista tal coisa. Considero como explicação mais plausível ter sofrido um AVC, uma intoxicação alimentar ou psicose.

O Alfredo alega que a religião é fonte de conhecimento que não é científico nem é acerca da natureza. Mas se é conhecimento tem de incluir dados que possa conhecer, e falta indicar que dados tem o Alfredo que estejam fora da natureza e do âmbito da ciência. E se é conhecimento tem de incluir explicações, e não é concebível que haja explicações que não cumpram o que se exige de uma explicação científica: que explique.

Eu não cometo o equívoco de confundir religião com ciência. Sei que são bem diferentes, e nisto concordo com o Alfredo. Discordo é que a religião seja saber. A religião não precisa de dados nem de explicações porque é mera opinião e especulação. Há uns milhares de anos uns tipos inventaram umas profecias, outros mais tarde inventaram umas histórias baseadas nisso e assim por diante. Dos autores do Génesis à teologia moderna tem andado tudo a especular e opinar sobre as opiniões uns dos outros. A religião é autónoma porque inventa o que quiser.

Em suma, o Alfredo aponta como equívocos do ateísmo não servir para nada, não dar valor à vida e confundir ciência com religião. Mas o ateísmo é muito útil aos ateus, é perfeitamente compatível com uma vida realizada e com sentido. E não são os ateus que confundem religião com ciência. O problema é os crentes confundirem fé com conhecimento.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Adenda: Um vídeo a propósito. Via Pharyngula

domingo, fevereiro 07, 2010

Treta da semana: XXVII Congresso Ibérico de Astrologia

O Congresso Ibérico de Astrologia vai realizar-se de 12 a 15 de Maio no centro de congressos do Estoril, com o tema «Sob o signo de gémeos, num país peixes, bem-vindos à dualidade»(1). Segundo o horóscopo Azteca, o congresso será do signo serpente (2), pelo que será imprevisível, astuto e mudará de pele regularmente.

Uma coisa interessante neste congresso é o seu “comité científico”. O comité científico dos congressos científicos tradicionais é um grupo de peritos que se responsabiliza pelos trabalhos aceites. São reconhecidos pela comunidade e o seu prestígio é garantia da qualidade do programa. Mas, neste congresso, «O Comité Científico é secreto»(3). Dizem apenas dos membros que «Todos têm excelente experiência em pesquisa e participação de prestígio internacional e publicações nesta área. São dotados para o compromisso». Pelos vistos não o suficiente para dizerem quem são.

O programa deste ano ainda não está disponível mas, a julgar pela edição anterior, deve ser interessante. «La teoría del pronóstico astrológica de un desfile de moda», «Kirón: el guardián de la puerta Saturno-Urano», «2012. El secreto del códice Dresde y el final de los tiempos»(4). A edição de 2011, presumo, será a última desta série de congressos...

A astrologia é uma treta problemática. Por um lado, é quase sempre inofensiva. Quem gosta destas coisas encontra nelas sentido e estabilidade para a sua vida e, normalmente, não faz mal a ninguém. Mas, por outro lado, está a ser enganado. E quer seja enganado por outros ou por si próprio, isto cria um problema ético porque se o vemos dedicar-se a algo convicto de um proveito que daí nunca irá advir, certamente que temos alguma obrigação moral de apontar o erro.

Além deste problema ético mais abstracto, este tipo de engano abre também a porta para tragédias muito concretas. Estas “ciências esotéricas”, superstições e crenças em geral dão apresentam o conhecimento como algo assente na autoridade em vez de um processo de compreensão e esclarecimento. Convencem as pessoas que para saber é preciso certezas e fé em vez de dúvidas e perguntas interessantes.

Foi essa atitude, levada ao extremo, que matou Neil Beagley, um rapaz de 16 anos que morreu de um problema urinário facilmente curável porque os pais estavam convencidos que a oração era mais eficaz que a medicina (5).

Aceito que qualquer pessoa tenha o direito de crer nos disparates que quiser. Mas, do outro lado da balança, temos de colocar o direito de não ser enganado e as consequências que a crença em disparates pode ter para os crentes e para os outros.

1- www.congressoastrologia.com
2- Horóscopo Azteca
3- XXVII Congresso Ibérico de Astrologia, Regulamento
4- XXVI Congresso Ibérico de Astrologia, Ponencias presentadas
5- Huffington Post, Neil Beagley, Faith-Healing Teen, Dies Of Easily Treatable Illness, via Random Precision

sábado, fevereiro 06, 2010

Abracadabra.

O Bernardo Motta acha que eu pretendo «reduzir tudo ao material, incluindo o conhecimento» e que, por isso, caio «no chamado "cientismo", ou seja, na ideia de que só deve ser considerado conhecimento válido aquele que deriva do método científico.»(1) Não é bem isso.

Comer batatas é uma coisa, apaixonar-se é outra e explicar é outra. Explicar é uma actividade que não exclui nenhuma outra, excepto talvez a de ficar embasbacado sem perceber o que se passa. Por isso não é verdade que eu queira «reduzir tudo ao material», e quero começar por restringir esse “tudo” do Bernardo apenas as explicações. Essas sim, defendo que devem ser reduzidas ao que explica. Afinal, é esse o propósito.

Se queremos explicar porque uma peça de aço é brilhante, dura e conduz electricidade devemos considerar os seus átomos, ligações e a deslocalização dos electrões no metal. Não vale a pena perder tempo com a forma da peça, o nome do fabricante ou a cor da sua camisola. É claro que se queremos explicar o funcionamento de um motor de combustão já temos de considerar a forma das peças e como encaixam. Como disse Einstein, tão simples quanto possível e não mais (2). Mas o fundamental é que devemos reduzir as explicações ao que é relevante para explicar.

O que não nos leva necessariamente ao “material”. O materialismo da ciência moderna é culpa deste universo deixar-se descrever tão bem por modelos materialistas. E, em rigor, nem todos os modelos científicos o são. Por exemplo, a explicação da gravidade como uma distorção do espaço-tempo não é materialista. A geometria do espaço-tempo não é algo material. Esta acusação de «reduzir tudo ao material» é apenas um lamento por as melhores explicações não terem alminhas, deuses, milagres e essas coisas de que o Bernardo gosta mas que ficam de fora por falta de fundamento e, principalmente, porque não explicam nada.

O que nos traz ao conhecimento ser só científico. É ao contrário. A ciência é que é tudo o que nos dá conhecimento. Mas conhecer não é apenas inventar conceitos, especular ou coleccionar dados. Acima de tudo, conhecer é compreender. O que exige explicações, e as melhores explicações são as mais simples que os dados permitem. Essas, para tristeza dos teófilos, não precisam de enfeites sobrenaturais.

Mas nem tudo é explicação e conhecimento, como salientou o Pedro Ferreira: «Quando eu vejo duas pessoas loucamente apaixonadas, aquilo que a ciência explica ou consegue explicar, não me satisfaz»(1). Nem é para satisfazer. O que sentimos ao ver o vermelho vivo das pétalas de rosa ou o céu negro cheio de estrelas não é uma explicação nem é substituível por uma explicação. São duas de inúmeras coisas que não são explicação. Mas têm explicação. E não perdem nada por isso.

Saber que a conjugação de ligações duplas baixa a energia das orbitais moleculares livres e permite aos pigmentos absorver luz visível não rouba beleza nenhuma às rosas. Saber que aqueles pontos de luz no céu são bolas gigantes de plasma não torna o céu estrelado menos magnífico. Pelo contrário. Em quase todos os casos, perceber o que se passa complementa a experiência, enriquece-a e torna-a mais profunda. Excepto no ilusionismo, onde é a nossa imaginação que nos impressiona.

Num número da dupla Penn & Teller, Teller é amarrado, algemado e fechado numa caixa. Penn explica que normalmente se faz aquele truque pondo uma cortina à volta da caixa e largando-a logo a seguir para mostrar o ilusionista já cá fora. Em vez disso, Penn pede à audiência para fechar os olhos, por um instante, quando ele disser. Quem o fizer verá magia. Quem espreitar só vai ver um velhote a sair de uma caixa.

Não é por acaso que a religião insiste em que se fixe os olhos num tal mistério inefável além das explicações científicas. Que não se explica pela ciência, dizem, como se tivessem maneira de saber à partida que coisas a ciência não pode explicar. Quem não nota o truque vê a impressionante ilusão dos lideres espirituais, homens abençoados com uma ligação directa aos deuses. E quem espreita vê só uns velhotes a dizer disparates (3).

1- Comentário em A raposa e as uvas
2- «It can scarcely be denied that the supreme goal of all theory is to make the irreducible basic elements as simple and as few as possible without having to surrender the adequate representation of a single datum of experience.», "On the Method of Theoretical Physics" The Herbert Spencer Lecture, delivered at Oxford (10 June 1933); also published in Philosophy of Science, Vol. 1, No. 2 (April 1934), pp. 163-169 (Wikiquote).
3- Por exemplo, leiam aqui a trascrição de uma entrevista da BBC ao arcebispo de York, John Sentamu, a propósito dos sismos no Haiti.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Symbian.

O Symbian é o sistema operativo mais usado em telemóveis e smartphones. Foi desenvolvido na Symbian Ltd, uma empresa criada em 1998 por uma parceria entre a Psion, a Ericsson, a Nokia e a Motorola, e descende do sistema operativo EPOC da Psion. Em 2008 a Nokia comprou a Symbian Ltd e estabeleceu a Symbian Foundation para continuar o desenvolvimento e tornar este sistema operativo em software de código aberto.

Hoje concluíram essa parte:

The Symbian Foundation offers free code to everyone to enable them to contribute openly to the future of mobile

Jornalismo criacionista.

O Marcos Sabino escreveu que «Os geólogos “datam” as rochas através dos métodos de datação radiométricos. [...] Porém, a maior parte das pessoas desconhece as pressuposições que os geólogos têm de assumir ao utilizarem este tipo de métodos. Uma destas [...] diz que o decaimento radioactivo permaneceu constante»(1). Depois citou Gregory Brennecka, referindo um artigo na Science (2): «This assumption is a cornerstone of the high-precision lead-lead dates that define the absolute age of the solar system», e continuou com:

«A idade do Sistema Solar baseia-se na crença de que o decaimento radioactivo permanecia constante ao longo dos tempos. Mas se esta suposição é falsa, as milhares de idades atribuídas através deste método também são falsas. Brennecka disse: “Esta variação implica algumas incertezas substanciais nas idades anteriormente determinadas pelo método chumbo-chumbo”. Gerald Wasserburg, professor emérito de Geologia, comentou a respeito desta descoberta: “Toda a gente confiava na estabilidade desta ferramenta, mas acontece que ela não é estável”.» É por isto que o Marcos afirmou, no título do seu post, que «É oficial: decaimento radioactivo não é constante». Parece um grande golpe a favor do criacionismo preferido do Marcos.

Mas não é. O Marcos deu a entender que por «This assumption», Brennecka se referiu à constância do decaimento radioactivo. Mas olhando para a frase no contexto vê-se que o sentido era outro. «The 238U/235U isotope ratio has long been considered invariant in meteoritic materials (equal to 137.88). This assumption is a cornerstone of the high-precision lead-lead dates that define the absolute age of the solar system.»(2) A premissa que se constatou ser falsa não é a da constância do decaimento radioactivo mas sim a da proporção entre estes dois isótopos de urânio ter o mesmo valor em qualquer meteorito.

Ambos os isótopos decaem em isótopos de chumbo, com o 238U dando 206Pb e o 235U decaindo em 207Pb. Assumindo que a proporção de 238U/235U era igual em todo o material formado na origem do sistema solar*, e sabendo que essa proporção é hoje de 137.88, para medir a idade de um meteorito basta quantificar os isótopos de chumbo. Isto é útil porque o chumbo pode ser quantificado com muito mais precisão que o urânio, permitindo datações com erros relativos de uma parte em dez mil.

O que Brennecka e a sua equipa descobriram é que esta premissa é falsa. A proporção de 238U/235U não era 137.88 em todas as amostras mas variava entre 137.35 e 137.90, o que pode obrigar a uma correcção de até cinco milhões de anos nas idades estimadas anteriormente pela quantificação dos isótopos de chumbo.

Devo salientar que esta correcção é da ordem de uma milésima da idade medida. Só é relevante porque a quantificação do chumbo é tão precisa que reduz o erro experimental às décimas de milésima. O resultado é que um meteorito que se julgava ter sido formado há 4565 milhões de anos pode ter surgido há apenas 4560 milhões de anos, devendo-se a discrepância de 5 milhões de anos às diferenças na proporção entre os isótopos de urânio. Não é coisa que justifique a confiança do Marcos nos dez mil anos estimados pela Bíblia.

Mas o mais importante é que isto não mostra que o «decaimento radioactivo não é constante». Nem tem nada que ver com isso. O decaimento radioactivo, mais propriamente o tempo de meia vida, é uma constante estatística que resulta da probabilidade de decaimento em cada intervalo de tempo. Essa probabilidade é constante para cada isótopo e nada no artigo referido sugere o contrário. A descoberta foi apenas que a proporção de 238U para 235U nestes meteoritos não pode ser assumida com sendo sempre 137.88 porque varia, de meteorito para meteorito, entre 137.35 e 137.90.

Esta variação é muito pequena. É ridícula. E é isso que torna esta baralhada do Marcos especialmente irónica. É que isto só é digno de nota porque, ao contrario do que o Marcos alega, o método de datação é tão preciso e fiável que vale a pena aplicar correcções de poucos milhões de anos em idades de milhares de milhões. Podemos pegar numa rocha que anda por aí há quatro mil e quinhentos milhões de anos e saber quando foi formada com uma margem de erro de centenas de milhares de anos. Equivale a um erro de dez metros ao medir a distância entre Lisboa e Porto. É um método de datação muito melhor que o “ah, e tal, p'raí dez mil” dos criacionistas.

*Em rigor, nas inclusões ricas em cálcio e alumínio, pequenos fragmentos dos primeiros sólidos que se condensaram durante a formação planetária.

1- Marcos Sabino, É oficial: decaimento radioactivo não é constante
2- Brennecka et. al., 238U/235U Variations in Meteorites: Extant 247Cm and Implications for Pb-Pb Dating. (pdf), Science, 327-22 Jan 2010.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

A raposa e as uvas.

O Alfredo Dinis continua a sua série de posts sobre os equívocos do ateísmo recapitulando erros anteriores e propondo que a ideia de um deus criador é que nos aponta para procurar explicações racionais. Essas partes merecem que as considere quando tiver mais disponibilidade. Hoje fico-me pelo que o Alfredo diz ser um «errado pressuposto de que os crentes, tomemos o caso dos Cristãos, procuram obter na Bíblia ou em teorias teológicas o conhecimento do universo e a explicação dos fenómenos naturais.»(1)

Uma razão para não considerar isto um equívoco dos ateus é que muitos cristãos defendem que a sua teologia ou interpretação da Bíblia dá conhecimentos acerca do universo e explica fenómenos naturais. Os criacionistas evangélicos, por exemplo; que o Alfredo não os considere cristãos de verdade não é culpa dos ateus. Mas não só. Muitos católicos acreditam em milagres. Acreditam que há acontecimentos neste universo que só podem ser explicados pela teologia. Até o Papa defende que não se pode compreender a evolução natural da nossa espécie sem a teologia. Não diz o que a teologia explica, mas insiste que a ciência sem a teologia não pode explicar pedaços do universo como nós e processos naturais como a origem da nossa espécie.

Mas uma objecção mais interessante vem de considerarmos qual seria a posição do Alfredo se descobríssemos alguma coisa ou processo que só a Bíblia ou a teologia pudessem explicar. Por exemplo, evidências incontestáveis da ressurreição de Jesus, da assunção de Maria ou da transubstanciação da hóstia. Qualquer coisa que, por só poder ser explicada com recurso ao deus católico, fosse uma prova cabal da existência desse deus.

Parece-me improvável, se houvesse tal prova, que o Alfredo a rejeitasse e continuasse a insistir num deus impossível de provar por qualquer observação da natureza. Pelo contrário, parece-me que o Alfredo faria como fizeram muitos cristãos no passado quando julgaram ter encontrado tais provas. Declarar como comprovada a importância da sua teologia para a compreensão do universo.

E seria de esperar tais evidências. Se um deus tivesse criado isto tudo para nós e nos tivesse dotado da capacidade para compreender como tudo surgiu, então quanto melhor compreendêssemos o universo mais evidências deveríamos ter dessa origem divina. Mas tem sido o contrário. Quanto melhor conhecemos a natureza menos espaço encontramos para esconder os deuses.

Sendo esta evidência tão importante para a hipótese que o Alfredo defende, e sabendo quão bem-vinda seria se surgisse, parece-me falta de desportivismo que, depois de séculos a tentar alcançá-la, agora digam que nunca fez falta alguma.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

O melhor de dois mundos.

Portugal é um país de gente pacata. A guerra colonial matou cerca de oito mil soldados portugueses, uma média de 600 por ano. Todas as mortes são trágicas mas, em comparação, em 2008 morreram por cá 776 pessoas em acidentes de viação. Um primo meu morreu na guerra em África. Segundo me contaram, morreu electrocutado quando se encostou a um candeeiro durante um jogo de bola à chuva.

Salvo excepções como a batalha de La Lys, que em quatro horas matou quase tantos soldados portugueses quantos morreram em 13 anos de guerra colonial, Portugal tem se safo bem da violência. O segredo de uma boa revolução é pôr cravos nas espingardas. É muito mais sensato que desatar aos tiros durante três anos e matar meio milhão de pessoas, como fizeram os nossos vizinhos do lado. Brutos. Para terrorismo separatista temos o Alberto João Jardim. Incomoda um pouco mas é melhor que a ETA, porque se matar alguém será só de vergonha. E as nossas forças armadas têm tão pouco que fazer que, para se entreterem, até têm de disparar contra a polícia (1). É bom sinal.

Os russos não tiveram tanta sorte. A sua história tem sido violenta, quer por serem como são quer pelos vizinhos que lhes entraram pelo país adentro a partir tudo. Cinco milhões de mortos na primeira guerra mundial, uma revolução sangrenta, purgas e fome pela industrialização forçada e depois vinte e cinco milhões de mortos na segunda guerra mundial, com mais uns trocos no Afeganistão e guerra civil. Entre 1941 e 1945 morreram por dia, em média, duas vezes mais russos que o total de soldados portugueses mortos durante a guerra colonial.

Não sei se isto tem alguma coisa a ver com a composição de hinos militares. Talvez seja preciso morrer muita gente para ter compositores com talento. Se for esse o caso ficámos a ganhar, porque nenhum hino vale milhões de vidas. Mas talvez a chefia das nossas forças armadas pudesse aproveitar o talento de algum compositor russo desempregado e arranjar uma musiquinha menos embaraçosa para os nossos militares. Saía mais barato que os submarinos e sempre servia para alguma coisa.

Hino da marinha soviética:


Hino dos fuzileiros portugueses:



1- Rádio Renascença, Marinha dispara contra barco da Polícia Marítima