quarta-feira, setembro 29, 2010

Revolução.

Eu defendo que não se deve aplicar o copyright ao acesso e partilha de conteúdo digital para uso pessoal. No máximo, admito apenas a regulação do seu comércio, e só se demonstrarem primeiro haver necessidade disso. Uma crítica que me fazem é que isto revoluciona o sistema de direitos de autor e, por isso, tenho de demonstrar a necessidade de excluir o copyright desta partilha de conteúdo digital*. Coisa que já fiz muitas vezes, apontando, ao enjoo e mais além, problemas como o policiamento da Internet, a impossibilidade de repartir a álgebra por vários “proprietários”, e a injustiça de condicionar a cultura ao poder de compra tendo tecnologia para distribuir tudo a custo zero. Mas isso de que me acusam é falso. Eu não sou o revolucionário, porque manter o copyright fora da partilha de ficheiros é consistente com o que o copyright sempre foi. A revolução é o que nos têm impingido nos últimos anos.

Em 1886, o tratado de Berna uniformizou o copyright internacional. Nessa altura, o direito sobre a cópia referia-se ao direito de imprimir coisas em papel. Livros, mapas, pautas, panfletos e afins. O compositor vendia ao impressor o direito de imprimir as pautas e mais ninguém podia imprimir as pautas da música que ele tinha composto. Mas todos podiam ler, emprestar, tocar, ensinar a tocar ou até transcrever a música. Muita música foi tradicionalmente partilhada, sem problemas legais, usando tablaturas em vez de pautas. Só agora, com a Intenet, é que se lembraram que também querem isso ilegal.

O direito de cópia sempre se restringiu a actos específicos de valor comercial. Não interferia com o acesso ou a partilha de qualquer informação acerca da obra. O autor de um livro podia decidir quem o imprimia mas não podia decidir quem o lia, emprestava, declamava em voz alta ou o copiava à mão.

E o crescimento do copyright com o progresso seguiu sempre estes princípios: recompensar a criação e distribuição; promover a inovação; e não interferir no uso ou acesso pessoal. Por exemplo, quando se tornou possível gravar músicas decidiu-se que o compositor seria compensado pela venda das gravações. Mas toda a gente poderia gravar o que quisesse sem precisar de autorização, e nem sequer pagamento se não vendesse nada. Ainda hoje, apesar dos esforços dos distribuidores, é legal gravarmo-nos a declamar poesia ou tocar música por livros ou pautas emprestados.

Aplicar o copyright aos números que circulam na Internet viola dois dos três princípios que sempre governaram esta legislação. Em vez de promover a inovação, impede-a. Na Internet, a tecnologia de distribuição ilegal está anos à frente do sistema legal e, com o ritmo do progresso moderno, estes anos equivalem a décadas do século passado. É tão inédito quanto absurdo. Mas aqui o problema talvez não seja a aplicação do copyright por si, mas apenas consequência da forma demasiado restritiva como está a ser aplicado. Talvez haja remédio.

Mas aplicar estas leis à partilha de dados para fins pessoais não tem remédio. Viola necessariamente o terceiro princípio. E isto é que é revolucionário. Não aconteceu com o papel; os impressores tinham direito de editar os livros mas nas cartas e diários ninguém bisbilhotava. Não aconteceu com o fonógrafo; quem tivesse um podia gravar o que quisesse. Não aconteceu com o telefone, nem com a fotografia, nem com filme, cassetes ou gravadores de vídeo. De 1886 até fecharem o Napster houve sempre uma divisão clara. O copyright era para os negócios e não se metia na vida das pessoas. Fosse qual fosse a tecnologia.

Hoje querem que o copyright determine se podemos ler um livro, em que aparelho podemos ouvir uma música ou se podemos partilhá-los com outras pessoas. Querem que o direito de cópia proíba a troca de dados que representem uma obra, qualquer que seja o meio de transmissão, a sua codificação, ou o seu propósito. Querem que esta lei proteja seu o negócio às custas da nossa liberdade de expressão, privacidade, e até do direito de comunicar, cortando a ligação a quem se portar mal.

Posso dar, e já dei, muitas razões para rejeitarmos isto. Mas não sou eu que tenho de justificar uma revolução. Porque este novo copyright é muito diferente daquilo que foi durante quase toda a sua existência. É quem defende esta mudança revolucionária que tem de explicar para que nos serve suportar um monstro destes.

* Um exemplo recente é a conversa com o João e o Barba Rija neste outro post.

segunda-feira, setembro 27, 2010

Inferências.

O Miguel Panão escreveu sobre um amigo que deixou de acreditar num deus pessoal por achar a hipótese inconsistente com o que se observa. Eu parti do outro lado, mas cheguei à mesma conclusão. O que é bom sinal. Mas o que me interessou mais no texto do Miguel foram os exemplos, comuns, de contorcionismo apologético.

«O seu pressuposto base é o de que a ciência e as explicações que providencia sobre o funcionamento da realidade esgotam tudo o que é possível saber sobre ela. Ou seja, a realidade é a realidade material. Será mesmo assim?»

Não será nada assim. Porque essa inferência salta de duas premissas questionáveis. Uma é que a ciência só lida com o “material”, e é obviamente falsa. A ciência lida com hipóteses, relações matemáticas e deduções lógicas. A ciência lida com fenómenos como a interferência de ondas, o comportamento animal e os efeitos da publicidade nos nossos hábitos de consumo. Para determinar se os primatas têm consciência de si próprios segue-se o processo científico normal de testar hipóteses confrontando-as com os dados observados, e tanto faz se a consciência do chimpanzé lhe vem do cérebro ou de uma alma. A ciência não exige que a realidade seja “matéria”. Exige apenas que as hipóteses sejam testáveis.

A outra premissa, pouco realista e ainda menos modesta, é que a realidade se limita ao que podemos conhecer. Sinceramente. Somos uma espécie de mamífero que vive num grão de óxido de sílica perdido no fim das costas de uma galáxia como incontáveis outras. Assumir que a realidade se conforma às nossas limitações cognitivas só mesmo com a presunção ridícula de que tudo foi criado para nós e por um deus à nossa imagem.

Só podemos saber se uma afirmação é verdadeira ou falsa se pudermos distinguir essas duas possibilidades. O que implica poder testar o que se afirma, por muito indirecto que seja o teste. Esta limitação não é problema da matéria nem limitação da realidade. É consequência do termo “saber” querer dizer algo diferente de “adivinhar”, “ter fé”, “especular” ou “acreditar no que vier primeiro à cabeça”. Se não podemos examinar o conteúdo da caixa não sabemos se o gato está vivo ou morto. Sem uma indicação do pensamento de alguém não sabemos se pensa em bananas ou pêras. E tanto faz se gatos ou pensamentos são matéria ou outra coisa qualquer. O que importa é que, sem dados para o distinguir, não podemos saber se uma hipótese é verdadeira ou falsa.

Não é preciso certezas. Basta uma inferência que seja plausível por ser estatisticamente fiável. Como sabemos que o tabaco faz mal e que o cinto de segurança ajuda em caso de acidente. E as evidências podem ser indirectas. Por exemplo, se alguém me disser que sabe, por um sonho, que o Miguel Panão tem 28.451 cabelos, eu rejeito ambas as alegações. Rejeito que saiba, porque um sonho não é suficientemente fiável para dar esse conhecimento. Julga, acredita, especula, tem fé se calhar, mas não sabe. E rejeito que seja aquele número porque essa hipótese não é mais plausível que milhares de outras. Por isso, a probabilidade de acertar é tão baixa que posso dizer que sei que o Miguel Panão não tem exactamente 28.451 cabelos. Não sei quantos tem, mas o mais certo é ter outro número qualquer. Tenho tanta confiança disso como tenho de que me faz mal ter peso a mais e que devia fazer mais exercício. São conclusões incertas mas plausíveis com os dados de que disponho.

Portanto, quando o Miguel me diz saber que um certo deus criou isto tudo, também digo não a ambas as alegações. Não sabe, porque não tem forma de saber tal coisa. E sei que esse deus não existe tal como sei que o tabaco faz mal ou que o Miguel não tem 28.451 cabelos. Em todos estes casos, é mais plausível a hipótese ser falsa do que a enorme coincidência de acertar por acaso. E o deus do Miguel está ainda pior, porque a par desse não há apenas milhares mas infinitas hipóteses com o mesmo fundamento. Nenhum. Quando a ciência dá explicações sem deuses, fadas, duendes ou extraterrestres não está a abster-se de nos informar acerca desses bichos. Está a dizer claramente para rejeitarmos a hipótese dessas coisas existirem.

Para contornar este problema, o Miguel escreve: «O que pode a ciência dizer sobre a realidade do que é “conceito”? Este excessivamente simples exemplo levamos a pensar como é possível conceber mais realidade para além da material.» Não sei se o exemplo é bom, que não o percebo. Mas não disputo a nossa capacidade para imaginar coisas. Eu posso imaginar-me num barco, num rio, com árvores de tangerina e céus de compota. Mas imaginar não é saber. Para saber temos de testar o que imaginamos. É por isso que quem imagina extraterrestres, fantasmas e deuses de várias cores, sabores e feitios, só imagina. Não sabe.

Finalmente, afirma o Miguel que «a fé estimula o humilde desejo de conhecer». Depende. A fé na nossa capacidade de corrigir os erros que cometemos, sim. Mas a fé numa hipótese que devíamos questionar faz precisamente o contrário. Por exemplo, «conhecer a ordem presente neste mundo é a forma mais óbvia de [...] se maravilhar com a Criação de Deus.» Esta fé não estimula o humilde desejo de conhecer. Apenas exprime a convicção arrogante de que já se sabe o mais importante, do qual o resto é meramente acessório.

1- Miguel Panão, Se a ciência explica, qual a relevância de Deus?

sábado, setembro 25, 2010

Educação.

«Pais das crianças estão indignados» porque «Há escolas que estão a recomendar um dicionário com palavrões aos alunos do 1.º ciclo» (1). O culpado é o dicionário de bolso da Porto Editora, de capa azul. Os meus miúdos têm esse desde a segunda classe. E é claro que tem palavrões. Que belo dicionário seria se não os tivesse.

Foi num instante que aprenderam a consultá-lo. Eu dizia os palavrões e eles folheavam-no à caça dos alhos e das onas naquele entusiasmo infantil que nós já só recordamos com uma ponta de inveja. São palavras como as outras, expliquei, só que incomodam as pessoas e, por isso, deviam ter cuidado a usá-las. E pronto. A partir daí, sempre que as encontravam escritas nas paredes, gritadas na rua ou pelos colegas da escola, já sabiam o que era. Nunca tive problemas com os meninos a gritar palavrões no restaurante ou à frente das avós.

Porque o problema das crianças é apenas falta de experiência. Não são burros, regra geral, a menos que os pais os treinem para isso. Infelizmente, muita gente julga que educar é pôr palas nos olhos. Nisto dos palavrões, na educação sexual, nos “valores”, nas religiões e o que mais haja que incomode os pais, a solução é tapar e fingir que só existe aquilo que os pais aprovam. O que, além do exemplo de hipocrisia, só ensina aos miúdos que não podem contar com os pais para estas coisas. Que acabam por aprender com os colegas, na Internet, em revistas às escondidas ou onde calhar.

Não é preciso ensinar tudo de uma vez. Convém até esperar que as crianças queiram aprender algo antes de o ensinar, e assuntos diferentes surgirão em alturas diferentes do seu desenvolvimento. Mas o mais importante é que confiem que os pais as ajudam a aprender, em vez de desconfiarem que os velhos são só um obstáculo a contornar.

1-DN, Dicionário do 1.º ciclo com palavrões, e TVI 24, Dicionário recomendado ao primeiro ciclo tem palavrões, via Esquerda Republicana

quinta-feira, setembro 23, 2010

Treta da semana: milhões em impostos.

Parece que a “indústria cultural” está finalmente a mudar o seu modelo de negócio. Assumindo o seu papel de entretainers, dedicam-se cada vez mais à palhaçada.

A associação portuguesa de clubes de vídeo (ACAPOR) decidiu iniciar «um procedimento administrativo com vista ao bloqueio do acesso ao site “The Pirate Bay” através de território português.»(1) Tendo em conta a arquitectura da Internet, isto é o mesmo que impedir o acesso à Suécia através de território português. Apesar de fútil, esta tentativa ilustra as prioridades que a legislação de copyright impõe. Para proteger o aluguer de rodelas de plástico, a ACAPOR quer que as autoridades interceptem todas as comunicações entre Portugal e os servidores do Pirate Bay.

Mas mais engraçada ainda é a análise do «Manuel Lopes Rocha, advogado especialista em questões relacionadas com marcas, patentes e propriedade intelectual». Ganhando a vida com o litígio por estas coisas, cita naturalmente o “estudo” da Business Software Alliance segundo o qual «só em 2009 as perdas relacionadas com software pirateado - entre programas, música e filmes - ascenderam a 179 milhões de euros. Um número que representa quase 36 milhões de euros em IVA que fugiram aos cofres do Estado.»(2)

Um problema destes estudos é assumir que, se não fosse a pirataria, tudo o que agora se obtém gratuitamente seria comprado. Julgam que, acabando a pirataria, em vez de encher o leitor de mp3 com dez mil músicas de borla, um miúdo vai gastar dez mil euros em canções. Fora do estreito universo de advogados e gestores de copyright, esta estimativa é considerada pouco razoável. Mas há outro problema nesta ideia de que a pirataria digital prejudica a nossa economia e rouba impostos ao Estado.

Mesmo assumindo que acabar com a pirataria vai obrigar alguém a comprar software, filmes e música, esse dinheiro terá de vir de algum lado. Não é dinheiro novo que entra na economia. São custos que apenas deslocarão para esta actividade dinheiro que está a ser gasto noutras. O que é bom para os senhores advogados e “gestores de direitos”, mas mau para os outros e até para o Estado.

Portugal é um importador de obras sob copyright. Seja software, filmes, séries, livros ou músicas, compramos muito mais do que exportamos. Por isso, aumentar os custos nesta área apenas manda mais dinheiro para os EUA (3). E onde o Estado perde oportunidades de cobrar impostos é nas transacções não declaradas. A partilha gratuita de ficheiros não prejudica o erário; é como dizer as horas sem cobrar nada ou lavar a loiça que se sujou ao jantar. Pelo contrário, a partilha gratuita praticamente eliminou a venda de cópias pirata. O mercado não declarado dos filmes vendidos à porta do Metro, dos CDs pirata nas feiras, ruas, e porta-bagagens, esse mercado desapareceu. A contrafacção comercial é um problema económico, mas já só é significativo nos bens materiais. A banda larga matou o mercado da pirataria digital.

E combater a partilha de ficheiros sai caro. Na França, o HADOPI custará cerca de cem milhões de euros (4). No Reino Unido, a Digital Economy Bill vai custar uns setecentos milhões (5). E o mais provável é que nenhuma destas medidas reduza grande coisa. Vai ser dinheiro investido em trabalho inútil.

Infelizmente, a palhaçada ainda vai convencendo muita gente. Ontem, o Parlamento Europeu aprovou o relatório Gallo (6). Esta iniciativa da Marielle Gallo recomenda o corte do acesso à Internet por processos administrativos e que a cópia sem fins comerciais seja tratada da mesma forma que a contrafacção de produtos para venda. Em linha com a aldrabice costumeira, parte da pressão dos lobbies das editoras veio por petições falsificadas (7).

Reprimir a partilha de ficheiros não melhora a economia nem traz mais impostos. Pelo contrário: tem custos avultados, quer em dinheiro quer em liberdades; incentiva a contrafacção comercial, cujo maior concorrente é o acesso gratuito, o que canaliza dinheiro para transacções não declaradas; e, na nossa economia, dar dinheiro à Sony ou à Microsoft é mais perda que ganho.

É claro que, por si só, estas desvantagens não bastariam para abolir o copyright, se algo as compensasse. Mas, pelo menos na cópia para uso pessoal, não há vantagens que compensem o custo das restrições. Nem nos direitos morais, que são melhor servidos evitando o policiamento e a censura das comunicações. Nem para a inovação, cujo maior incentivo é o acesso à cultura. E nem sequer para a economia, porque deixar copiar ficheiros de borla sai bem mais barato do que forçar as pessoas a pagar por eles.

1- ACAPOR, Press Release - ACAPOR requer bloqueio de "Piratebay" e "Piratatuga"
2- DN Economia, Pirataria rouba milhões em impostos ao Estado. Obrigado pelo email com a notícia.
3- Glyn Moody, BSA's Piracy Numbers: Less than They Seem, Via o FriendFeed d'ovigia.
4- PCInpact, La riposte graduée coûtera 100 millions d'euros selon les FAI
5- Cory Doctorow, BoingBoing, Britain's Digital Economy Bill will cost ISPs £500M, knock 40K poor households offline
6- La Quadrature du Net, Gallo report adopted: A stab in the back of citizens' freedoms
7- TorrentFreak, Anti-Pirates List Dead and Pre-Teen Artists as Petition Signatories

Editado, para acrescentar um "se" e corrigir uma palhaçada. Obrigado ao Sousa da Ponte e à Joaninha pela atenção.

terça-feira, setembro 21, 2010

Pensamento Crítico: 3- Estrutura de argumentos.

Aqui vai mais uma versão, já com o terceiro capítulo e muitas das correcções sugeridas pelos vários voluntários que ajudaram a rever os dois primeiros. Infelizmente, temo que a pressão para manter o texto a par das aulas esteja a torná-lo menos inteligível. Por isso agradecia que me avisassem se houver partes que não se percebe ou que não façam sentido.

A versão mais recente está na página da documentação da disciplina de Pensamento Crítico. Se quiserem ir directamente aos ficheiros, aqui ficam as ligaçções, em formato PDF e formato ODT.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Originalidade.



Obrigado pelo email com o link.

O pior crime.

Os crimes são como os números. Não podemos apontar um que seja pior ou maior que todos os outros, mas também não são todos iguais. E há dois aspectos que determinam o valor de um crime. As suas consequências e o que podemos fazer para o impedir. O primeiro é óbvio; matar é pior do que roubar uma carteira. E o segundo também é fácil de perceber. Se o resultado for apenas ficar sem carteira, é menos mau ser roubado por um carteirista à socapa do que assaltado por um grupo armado. Não só pelo susto mas, especialmente, porque nos podemos precaver contra o carteirista guardando melhor a carteira. O bando de meliantes deixa-nos sem opções.

Isto vem a propósito do tal julgamento que já conseguiram imprimir e das provas que se deve exigir para condenar alguém. Quanto mais exigente for o tribunal, mais criminosos se safam. Mas quanto menos exigente for mais inocentes são condenados. Alguns argumentam que é importante conseguir condenações, mesmo que só com testemunhos dos queixosos, porque, senão, o efeito dissuasor será muito pequeno e o crime aumentará. Vejo dois erros fundamentais neste raciocínio.

Um erro é assumir que o número de condenações em tribunal tem um efeito dissuasor importante. Talvez em casos específicos como os crimes cometidos por empresas. Mas, no caso geral, a probabilidade de condenação parece um dissuasor pouco eficaz. Por exemplo, não é plausível que o comportamento dos pedófilos varie em função dos tribunais condenarem 70% ou 30% dos arguidos.

O dissuasor principal, na maioria dos crimes, é a prevenção por parte das potenciais vítimas e dos seus próximos. Os pedófilos são dissuadidos, acima de tudo, pela vigilância de pais e educadores. É por isso que a maioria dos violadores de crianças só o consegue por ter uma posição de confiança. Os furtos são dissuadidos por alarmes, trancas e não deixar valores à vista, prevenimos crimes violentos evitando os locais e horas a que são mais prováveis, burlas tendo cuidado com os negócios em que nos metemos, e assim por diante.

A seguir está a prevenção por parte das forças de segurança, públicas ou privadas. Não com câmaras ou tretas que só sirvam depois do crime, mas pela presença do polícia ou, pelo menos, do tipo fardado com um rádio no bolso. Para esta presença ser dissuasora é preciso haver uma possibilidade realista de condenar os criminosos. Mas o nível de exigência das provas pode ser alto, porque se os apanham em flagrante será fácil provar a culpa para além de qualquer dúvida razoável.

Em terceiro lugar está a investigação da polícia logo a seguir ao crime. Não impede o crime inicial mas, se seguir prontamente cada denúncia, a reincidência torna-se muito arriscada. O caso da Casa Pia exemplifica uma falha dramática destes três mecanismos de dissuasão. Ninguém se importava com os miúdos, a polícia não impediu a prostituição infantil e ninguém investigou as denúncias de abusos a não ser muitos anos mais tarde. A investigação atempada, mesmo que não levasse a condenações, teria pelo menos interrompido a prática destes crimes. Falhando tudo isto, condenar uma dúzia de indivíduos por crimes cometidos há mais de uma década não tem qualquer efeito dissuasor. O único bem que daqui virá será a maior atenção à prevenção, e mais pela falha da justiça que pelo seu alegado sucesso. Por isso, discordo de que exigir provas fortes de culpa vá diminuir o poder dissuasor da lei. É um efeito desprezável porque a condenação é apenas o fim de um processo em que cada passo é menos eficaz que o anterior.

Mas o erro principal é julgar que estamos a escolher entre menos crime, se condenarmos mais, ou mais crime se condenarmos menos. Não é essa a escolha. Porque se condenarmos mais baixando as exigências de prova vamos condenar também mais inocentes. E esse é um crime terrível. Um dos piores.

Talvez não pelas consequências. Talvez ser violado em criança seja pior que passar uns anos na cadeia. Se bem que dependa da cadeia. Mas é-o certamente pela possibilidade de impedir o crime. Contra o perigo dos pedófilos podemo-nos precaver. Não é nos sete anos de cadeia que me fio para proteger os meus filhos. É, acima de tudo, em não os deixar com estranhos. E o mesmo vale para quase todos os crimes que me preocupam. Mas contra um sistema de justiça que condena inocentes não se pode fazer nada. O Estado passa a ser o mais poderoso gang de raptores do país.

O maior dissuasor da criminalidade é a prevenção. É a atenção da sociedade e a intervenção das forças de segurança para dificultar a prática dos crimes. A condenação serve de pouco. Não é por se punir os assaltos com uns anos de cadeia que passo a deixar a porta de casa aberta. E se baixamos a fasquia das provas do crime não ajudamos a combater a criminalidade. Pelo contrário. Substituímos uns crimes por outro ainda mais grave. O crime moral de condenar inocentes. Que, ainda por cima, a lei nem sequer reconhece como crime.

Editado para corrigir umas gralhas... Obrigado ao João e ao Asmodeux por toparem os erros.

domingo, setembro 19, 2010

Treta da semana: papal disparatismo.

Joseph Ratzinger está de visita ao Reino Unido, como parte do seu plano de lutar contra o ateísmo e fazer gastar rios de dinheiro por onde passa. Esta visita já vai em mais de vinte milhões de libras, doze milhões dos quais cobrados à população maioritariamente protestante. Que, naturalmente, protestou (1,2).

Criticando o que chama de “secularismo agressivo”, o Papa recordou aos britânicos a sua luta corajosa «contra uma tirania Nazi que queria erradicar Deus da sociedade»(3). Isto porque, de outra forma, os britânicos só se recordariam dos bombardeamentos e das invasões, esquecendo que o maior perigo da segunda grande guerra foi o ateísmo. E foi pura sorte Hitler não ter sido um ateu agressivo como os de hoje. Senão, em vez de uma década de perseguição aos judeus e cinco anos de guerra mundial poderia ter escrito meia dúzia de livros sobre religião e ateísmo. O impacto nos cofres da Igreja Católica e no rating de audiências das missas teria sido terrível.

Ratzinger esqueceu, no entanto, a base cristã do nacional socialismo. Do Judeu e suas Mentiras, de Martinho Lutero, foi uma inspiração importante para a Kristallnacht, que o bispo protestante Martin Sasse, laudatório, salientou ter calhado no aniversário de Lutero (4). E Ratzinger omitiu também o apoio da Igreja Católica a Hitler (5), neste caso talvez mais por modéstia que por esquecimento. O lema da Wehrmacht era “Deus connosco”. E das duas vezes que Hitler usou “ateísmo” no Mein Kampf foi para acusar disso os partidos judeus e os marxistas. Como o exército alemão marchava com Deus e Hitler queria exterminar aqueles que considerava ateus, Razinger interpreta o nazismo como querendo eliminar Deus. Para um leigo isto pode parecer imbecil, mas temos de nos lembrar que a hermenêutica católica se rege pelo mistério da fé. Ou seja, pela máxima do “leio o que me dá jeito e que se lixe o que lá está escrito”.

Além das incorrecções históricas, a ligação entre o ateísmo e o nazismo é falaciosa. Mesmo que Hitler tivesse sido ateu, coisa que estava longe de ser, não se podia inferir daí que o problema do nazismo era o ateísmo. Afinal, Hitler também comia pão, ia à casa de banho e tinha bigode. Nem tudo o que ele fazia era terrível. E a violência e o totalitarismo nazi estão muito mais próximo das religiões que do secularismo moderno. Os ateus “agressivos” põem anúncios nos autocarros. Os religiosos agressivos põem bombas. Os ateus debatem, argumentam em público e acolhem o contraditório. Até porque, como diz o povo, pela boca morre o peixe, e quanto mais os religiosos explicam a fé mais da sua careca se vê. Em contraste, os religiosos passam a maior parte do tempo a fazer-se de ofendidos e a queixar-se que as críticas são intolerância.

A Igreja Católica, em particular, tem traços salientes de totalitarismo. Os cidadãos seculares são homens e mulheres que se dividem por vários quadrantes políticos mas que defendem consensualmente a democracia. A Igreja Católica é uma organização autoritária na qual alguns homens (sempre homens) mandam no resto. O movimento secular defende que o Estado e a sociedade deixem a cada pessoa as suas crenças, opiniões e sexualidade. A Igreja Católica quer imiscuir-se na vida privada e ditar normas de conduta sexual, casamento, divórcio e educação religiosa. Esta intromissão do poder público na vida privada é uma característica fundamental do totalitarismo.

E isto reflecte-se nos actos. A Igreja Católica opõe a distribuição de preservativos em África não só por considerar o seu uso imoral mas porque alega que o acesso aos preservativos aumenta a promiscuidade. O que é falso. É preciso ser muito ingénuo – ou desonesto – para defender que a falta de preservativos vai tornar celibatários milhões de africanos. Mas, pior que falso, é profundamente imoral. A Igreja Católica quer impedir o uso de preservativos para que a ameaça da SIDA obrigue milhões de africanos a alterar os seus hábitos sexuais. É uma sacanice digna do Hitler, e que os ateus unanimemente condenam.

Não quero dizer que o catolicismo seja igual ao nazismo. Apesar dos paralelos nas relações históricas com os judeus e no desprezo pela democracia e liberdade de consciência, não vou cometer o mesmo disparate do Papa. Mesmo que Hitler esteja mais distante de Dawkins que de Ratzinger, o nazismo foi muito mais terrível e violento do que é o catolicismo moderno.

Mas num aspecto a Igreja Católica ganha ao nacional socialismo. Hitler queria fundar um reich de mil anos. A Igreja Católica já vai quase no dobro, à conta da repressão, dos abusos de poder, e de aldrabices como esta.

1- CNN, Anger awaits pope on landmark UK visit.
2- BBC, Protesters march against Pope visit, via Portal Ateu.
3- BBC, Row after Pope's remarks on atheism and Nazis
4- Wikipedia, Nazism
5- Por exemplo, o Ricado Alves publicou no Diário Ateísta um cartaz de 1933 apelando ao voto católico em Hitler, no referendo de 12 de Novembro. E aqui uma fotografia da época ilustrando a forte oposição católica ao nazismo.

sábado, setembro 18, 2010

Software livre.

Hoje é o dia internacional da liberdade do software. E de quem o usa. Celebra o ideal de que os programas de computador devem ser livres de restrições que nos privem destas liberdades:

0 – A liberdade de executar o programa como quisermos.
1 – A liberdade de estudar o programa, perceber o que faz e alterá-lo.
2 – A liberdade de distribuir cópias do programa e ajudar os outros.
4 – A liberdade de distribuir as alterações que fizermos ao programa e contribuir para o melhorar.

Para muitos isto parece utopia, absurdo ou, pior ainda, comunismo. Mas suponham que tentávamos aplicar estas regras à matemática. Imaginem que alguém defendia a liberdade de fazer contas onde quisesse; a liberdade de estudar, perceber e ajudar outros a fazer contas; e a liberdade de criar e distribuir as melhorias que fizesse nas expressões algébricas. Estas liberdades são tão fundamentais na álgebra que nem vale a pena defendê-las, porque ninguém vai propor limitá-las.

Pois um segredo bem conhecido da informática é que o software é álgebra, e o computador é apenas uma máquina de calcular. Uma máquina muito versátil e rápida, com disco, memória, monitor e mais umas coisas mas que, no fundo, só faz contas e copia valores. Absurdo é este sistema de nos vender contas para fazer na nossa máquina de calcular e proibir-nos de saber que contas são e como se fazem, de as partilhar com outros ou de as melhorarmos.

Um exemplo disto é o SolTerm, um programa para cálculo do desempenho de sistemas solares térmicos e fotovoltaicos. É de uso obrigatório na certificação energética de edifícios (pelo Dec. Lei 80 de 4 de Abril de 2006), para evitar que haja concorrência. Foi desenvolvido pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia, uma instituição pública financiada por todos nós. Mas cobram 130€ para autorizar o uso deste programa que a lei obriga a usar. 130€ por uma licença restrita «a um utilizador único, para um único posto (i.e. computador)»(2). E não permitem sequer que se veja os cálculos que o programa faz.

Na licença de utilização, só acessível depois de comprar o programa, escreveram que «este software e os seus bancos de dados são propriedade do LNEG, I.P.», provavelmente sem notar a ironia de um instituto público ser proprietário do programa que lhes pagámos para criar e dos dados que lhes pagámos para recolher. E a cereja, no cimo do bolo:

«ESTE SOFTWARE E OS SEUS BANCOS DE DADOS SÂO PROVIDENCIADOS "TAL-QUAL" E SEM GARANTIAS DE QUALQUER TIPO, EXPRESSAS OU IMPLICITAS, INCLUINDO E SEM LIMITAÇÃO, QUALQUER GARANTIA DE ADEQUAÇÃO A QUAISQUER FINS PARTICULARES OU COMERCIAIS.»

Depois de cobrarem o desenvolvimento nos impostos e a autorização na licença, proibirem o uso de alternativas e impedirem que se examine o código, ainda se isentam de qualquer responsabilidade pelo resultado. E isto nem é o pior. O pior é que o pessoal aceita calado.

Admito que este exemplo é extremo, mas mostra onde se pode chegar se ignorarmos estas liberdades fundamentais. O software, e o conteúdo digital em geral, não é produto nem propriedade. É álgebra. É conhecimento. Pode ser público ou privado, pode ser acerca de coisas ou de pessoas, pode ser regulado para proteger a vida privada ou outros direitos fundamentais. Mas não é coisa que se venda a retalho. Tem de se investir para o criar mas, uma vez que se obtém conhecimento de interesse público devemos ser livres de o examinar, compreender, usar e partilhar.

Software Freedom Day
Associação Nacional para o Software Livre

1- GNU OS, The Free Software Definition
2- Manual de SolTerm, pdf.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Equívocos, parte 9.

Para o nono equívoco, o Alfredo escolheu «a negação do carácter inspirado da Bíblia»(1). E volta a insistir que «Os ateus contemporâneos [...] pressupõem não apenas que a Bíblia contém explicações de carácter científico sobre o modo como funciona a natureza, como também que estas passagens devem ser interpretadas da forma mais estritamente literal. Aliam-se, desta forma aos fundamentalistas cristãos mais radicais como são os criacionistas.» Não é bem assim.

Os criacionistas defendem que tudo o que está escrito na Bíblia é verdade e que boa parte é cientificamente relevante. Os ateus defendem o contrário, que o que está escrito na Bíblia exprime muitas ideias erradas acerca da natureza e da origem do universo e que, cientificamente, vale o que se espera de mitos tribais com dois milénios. Onde concordamos é apenas no significado da expressão “o que está escrito na Bíblia”, porque sem concordar com o objecto da discussão nem sequer poderíamos discordar do resto. E o significado dessa expressão é consensual. “O que está escrito” num texto é o que se percebe da intenção do autor. O próprio Alfredo lê (quase todos) os textos assim. E por isso pode discordar do que eu escrevo sem ter de esperar dois mil anos pela hermenêutica adequada dos meus posts.

Os autores do Génesis, do Êxodo, e de outros livros da Bíblia, não tencionaram escrever só metáforas. Tentaram a transmitir as ideias que tinham acerca da origem do universo e da história do seu povo. E mesmo interpretando-as como metáforas ficam muito longe da realidade. Deus criou os céus e a Terra e depois fez luz. Criou cada animal segundo a sua espécie e matou tudo num dilúvio, excepto uns poucos exemplares. Isto não tem nada que ver com que sabemos da formação do sistema solar, da origem das outras espécies e da evolução da nossa. Se são metáforas, falta saber de quê.

E o Alfredo contradiz as suas crenças quando afirma que «de acordo com uma actualizada leitura bíblica» a Bíblia não «contém verdades científicas». Porque segundo a religião do Alfredo a Bíblia descreve coisas como a paternidade de Jesus, a virgindade de Maria e a ressurreição, que estão claramente no domínio científico. Os cristãos não defendem que Jesus ressuscitou metaforicamente, que Maria só era “virgem” em sentido figurado e que “Espírito Santo” era uma referência poética ao jovem bem parecido que vivia na rua seguinte. Além disso, uma boa parte do Novo Testamento é lida como um registo histórico, e o estudo da história faz parte da ciência. Quer queiram quer não, a “actualizada leitura bíblica” interpreta uma boa parte da Bíblia como sendo ciência. Diferem dos criacionistas apenas na escolha da parte que interpretam assim.

Por isso, apesar do que alega, o Alfredo não exclui da Bíblia afirmações científicas. O que faz é reinterpretar o que for preciso para que não se possa confrontar o que lá está escrito com fontes independentes. E esta batota cria uma contradição ainda mais fundamental. O Alfredo defende que o seu deus inspirou os autores da Bíblia a revelar uma mensagem divina. Mas, ao mesmo tempo, defende que esses autores divinamente inspirados estavam completamente enganados acerca da mensagem que transmitiam, e que só os hermeneutas de hoje a compreendem. Pior ainda, o que propõe é que as únicas partes da Bíblia que podemos considerar literalmente verdade são aquelas cuja verdade não podemos confirmar fora da Bíblia. O que retira, logo à partida, qualquer possibilidade de fundamentar esta hipótese. Porque antes de considerar um texto como uma verdade revelada por um deus, no mínimo temos de poder aferir se o que está lá é verdade ou não.

Daí a necessidade do equívoco do Alfredo, um equívoco comum na apologética. Diz que o meu ateísmo erra pela «negação do carácter inspirado da Bíblia». Como diz que eu nego Deus ou que nego a transubstanciação da hóstia. Mas isto é um equívoco porque não são as coisas em si que eu nego. Para já porque não se pode negar coisas, só proposições. E, além disso, não tenho aqui qualquer inspiração divina, deus ou transubstanciação para “negar”. A única coisa que o Alfredo me dá são as suas afirmações. E é apenas isso que eu nego. São essas hipóteses que rejeito, tal como rejeito as hipóteses de haver deuses ou do criador do universo ter inspirado a Bíblia, o Corão ou o Livro de Mórmon.

Este equívoco é importante porque negar a inspiração divina ou negar um deus com maiúscula parece uma enorme arrogância. Afinal quem sou eu, humano insignificante, para negar o criador do universo ou dizer quem ele pode ou não pode inspirar. Manter este equívoco dá toda a vantagem ao Alfredo. Mas desfazendo-o percebe-se que estou apenas a duvidar do Alfredo. O Alfredo que não é o criador do universo, que não inspira bíblias e que é apenas outro humano como eu. E se o Alfredo diz saber que uns livros escritos há mais de dois milénios foram inspirados pelo deus criador do universo, faz todo o sentido pedir ao Alfredo que fundamente devidamente essa afirmação extraordinária. E se vier com interpretações, reinterpretações e desculpas para não se poder testar o que lá está escrito, então é caso para dizer ao Alfredo desculpa lá, mas isso soa-me a treta.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

terça-feira, setembro 14, 2010

Pensamento Crítico: 2- Raciocínio e Argumentos.

Com mais de um ano de atraso, volto finalmente a isto. O serviço docente do ano passado não me deixou continuar o manual de pensamento crítico, mas agora posso dedicar mais tempo a esta disciplina. Por isso estou optimista. O meu objectivo é que, até aos exames (em Janeiro), tenha aqui um resumo de toda a matéria leccionada durante o semestre.

É claro que, para cumprir este objectivo, os capítulos terão de ficar bastante concisos. Mas a minha ideia é depois aproveitar as sugestões, dúvidas e críticas dos alunos – e a preciosa ajuda dos leitores deste blog – para ir dando mais corpo ao texto e aprofundando os temas. Como isto fica em formato electrónico posso alterar as vezes que for preciso e melhorar o que puder melhorar. Não tenho pressa para dar o trabalho por concluído.

Neste momento tenho só os dois primeiros capítulos, despidos, sem mais nada, e não estou preocupado com o aspecto gráfico*. Falta bibliografia, mais exemplos, exercícios e uma data de outras coisas mas, por enquanto, isto é para ir servindo de resumo das aulas. Com o tempo é que irá ficar mais parecido com um livro. Por isso se tiverem já sugestões acerca destes aspectos agradeço, mas vou guardá-las para mais tarde porque agora têm de ficar em segundo plano. O que me ajudaria mais por enquanto era dar conta dos erros e gralhas, trechos que não se perceba, omissões de aspectos importantes e assim, pelo qual agradeço desde já o vosso trabalho (não remunerado :)

Vou manter a versão mais recente na página da documentação da disciplina de Pensamento Crítico. Deixo também aqui a ligação directa para esta versão em formato PDF e formato ODT, mas provavelmente vou retirar estes ficheiros quando lá puser a próxima.

* Só tirei as caixas cinzentas para poupar tinteiro aos alunos, caso algum queira imprimir. Se calhar de futuro porei duas versões, uma para leitura electrónica e outra para papel, que até gosto do cinzento...

domingo, setembro 12, 2010

Treta da semana: patético.

O Francisco Moita Flores lançou uma petição em defesa do que ele chama “Festa Brava”(1). É aquela festa em que uns tipos a cavalo espetam ferros num toiro confuso enquanto o pessoal espera que alguém de ceroulas leve uma cornada. Para o Francisco o que importa é a tradição, a História, a Terra e mais uma data de coisas que não parecem precisar que se faça mal ao bicho. Por outro lado, propõe que «O argumento do sofrimento do toiro é uma questão patética.»(2) Na verdade, o sofrimento do toiro não é questão nem argumento. Se lhe espetam ferros, é um facto que sofre. E quanto ao patético, é só extrapolar. Com tanta argolada numa frase tão curta, imaginem o que consegue na petição, com cento e cinquenta vezes mais texto para se espalhar.

A petição declara ser pela Festa Brava, História, Terra, Homens, Animais e Natureza. Bastante abrangente mas quem pede cem pede mil. E começa por um resumo da vida do Francisco, que é escritor, pai, avô, e franciscano pelo muito sofrimento a que assistiu. Fala de gregos e romanos, de como «o irmão touro bravo integrava o psicodrama essencial do Homem» e da importância de preservar o «simbólico enredo taurino». Tudo bem. Ninguém se opõe a esta simbologia, tradição ou mito. Mas não é preciso espetar ferros no toiro por causa disso. Vejam o cristianismo, por exemplo, que venera um símbolo de um homem torturado até à morte sem torturar e matar pessoas. Se bem que tenha também demorado a separar a simbologia da prática. Da mesma forma, o Francisco e restantes aficionados podem preservar a simbologia sem maltratar os animais. Até podem continuar a pavonear-se pela arena de ceroulas e, aí sim, o problema será só de quem queira assistir.

O Francisco menciona também a agricultura e a ecologia, um argumento comum na defesa do espeta-o-touro. É verdade que o toiro bravo é criado em montados, zonas de agricultura semi-silvestre valiosas pela sua exploração sustentável. Mas o toiro bravo é uma parte irrelevante desse ecossistema, o montado depende economicamente da procura de cortiça e animais de pasto, não da tourada, e o toiro bravo é apenas uma variante de Bos taurus, uma espécie muito longe do perigo de extinção.

Na sua longa petição, o Francisco também critica a hipocrisia de defender os direitos dos animais mas comer hambúrguers. E aponta como é fácil esquecer o sofrimento que se causa quando a carne vem embalada às fatias. Tem alguma razão, mas em nada que defenda a tourada. Porque a imoralidade de causar sofrimento no matadouro não reduz a imoralidade de causar sofrimento na arena. E, além disso, a sociedade revela uma preocupação crescente com estes problemas. Chouriço de soja, frango do campo, ovos de galinha criada ao ar livre, pratos vegetarianos nos restaurantes e fiambre de peru são alguns de muitos exemplos do aumento de consciência dos problemas éticos de criar, transportar e abater os animais. Há muito ainda a melhorar, mas eliminar as touradas é um dos passos a dar. Não há razão para que seja o último nem para exigir que se dê todos ao mesmo tempo.

O que me traz a um ponto importante, muitas vezes esquecido. A indústria alimentar safa-se com práticas imorais porque é fácil o consumidor fingir que não sabe. Mas conforme a sociedade se torna mais consciente desses abusos, mais exige que as práticas mudem. Porque, naturalmente, custa-nos saber que causamos sofrimento. Seja a outra pessoa, seja a um cão, vaca ou toiro. Por isso é que o Francisco escreve «Aprendi nos campos alentejanos a ser aficionado». Aprendeu, como todos os aficionados aprendem, porque não nascemos a gostar de ver sofrer. Espetar ferros num animal é um espectáculo que incomoda qualquer criança, à excepção eventual de futuros psicopatas. Só pode gostar se “aprender” primeiro a ser insensível ao sofrimento daquele animal. Se ficar como o Francisco e julgar que o sofrimento do touro «é uma questão patética.» Este é um problema que queremos evitar. Os aficionados, naturalmente, têm dificuldade em sequer reconhecer que há um problema. “Aprenderam” a não notar. Mas ensinar as crianças a serem insensíveis ao sofrimento é um problema, e não se justifica fazê-lo só por causa de uma festa ou de espetáculo.

1- Francisco Moita Flores, Petição EM DEFESA DA FESTA BRAVA.
2- Correio da Manhã, Discurso Directo, entrevista a Moita Flores. Obrigado pelo email com a notícia.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Vídeos.

Uma demonstração do Google Instant Search com música do Tom Lehrer:



Os asteróides descobertos nos últimos 30 anos. As circunferências são, por ordem crescente, as órbitas de Mercúrio, Vénus, Terra, Marte e Júpiter, os pontos brancos os asteróides recém-descobertos, a verde os que não se aproximam da Terra, a amarelo os que passam perto (chegam a menos de 1.3AU do Sol) e a vermelho os que atravessam a nossa órbita. Para quem julga que a religião e a Bíblia são fontes de conhecimento aqui fica um exemplo do artigo genuíno.


Ambos via BoingBoing.

Isto é o que fazem no Japão em vez de ver o Carlos Queiroz e o Carlos Cruz na TV.


Via o FriendFeed do Carlos Canau. Se tiverem oito minutos livres, vejam o vídeo completo, que vale a pena.

E como esta treta já dava um filme, vai também no post:
Especialistas da Microsoft ajudam juíza a formatar acórdão da Casa Pia.
Via o FriendFeed da Carla Graça.

quinta-feira, setembro 09, 2010

Caso bicudo.

Há uns dias o Mats recomendou-me um post seu sobre um fóssil de pelicano (1). Segundo o Mats, “embaraça os evolucionistas” que um pelicano fossilizado com 30 milhões de anos tenha o bico parecido com o dos pelicanos modernos. Diz o Mats que é «Mais uma [sic] animal que se esqueceu de evoluir.» Nenhum biólogo fica embaraçado com isto, mesmo que ficasse seria irrelevante, que a ciência não depende do embaraço, e a evolução não tem nada que ver com o que os animais se lembram de fazer. Além destes disparates, o Mats escreve também que «os adivinhos evolucionistas tiveram que inventar um esquema para explicar a não-evolução deste animal:»

O bico ser semelhante não quer dizer que não tenha evoluído; a evolução é a variação de características herdadas, muitas das quais não são visíveis num fóssil, desde vias metabólicas a comportamentos à sequência dos genes. E é claro que temos de inventar uma explicação. As explicações são criações simbólicas nossas que nos ajudam a compreender e prever os fenómenos. Não vêm nos pacotes de Nestum e não surgem em livros bolorentos por obra e graça do espírito santo.

Uma explicação proposta para o comprimento do bico se manter durante 30 milhões de anos é que corresponde ao valor óptimo entre a necessidade de apanhar peixes e o custo de voar com um bico comprido (2). Ao que o Mats responde:

«Não se sabe como é que eles estão cientes que a forma actual do bico do pelicano é a forma “óptima”, mas palpito que a resposta será tautológica:
-O bico não evoluiu porque atingiu a forma óptima.
-Nós sabemos que atingiu a forma óptima porque não evoluiu.»


Todas as teorias científicas são assim. A física de Newton diz que a força é igual à massa multiplicada pela aceleração. O que quer dizer que se um objecto acelera está sujeito a uma força e que se está sujeito a uma força então acelera. A teoria é assim porque o propósito de uma teoria é exprimir relações genéricas entre parâmetros, muitas das quais têm simetrias como esta. A teoria da evolução não é excepção. E estas relações restringem os modelos que a teoria permite. Quando lhe damos os valores, por exemplo medindo a massa e a aceleração de um corpo, podemos inferir pela teoria os valores em falta, como a força. Isto gera modelos mais detalhados do que seria possível sem a teoria e permite testá-la por intermédio deses modelos. Se a força não é igual ao que a teoria obriga, sabendo a massa e a aceleração, então a teoria não se aplica a esse caso. E se isso acontecer em todos os casos a teoria não vale nada.

A teoria da evolução diz que uma característica que optimize a reprodução tende a dominar as outras e que as características tendem a dominar as outras na medida em que optimizam a reprodução. O que, para quem não percebe, parece não dizer nada. Mas instanciar isto na evolução do pelicano diz que se o comprimento do bico se mantém por esta razão então pelicanos com bico maior ou mais curto terão, em média, menos descendentes do que pelicanos com o bico daquele comprimento. E isto pode ser testado. Podemos medir os bicos e contar o número de filhos, netos e bisnetos. Podemos aumentar ou diminuir o tamanho médio do bico numa população, por selecção artificial, e ver o que acontece quando a retornamos às pressões iniciais. Não conheço experiências destas com pelicanos, mas há muita gente a fazer este tipo de testes em animais e plantas mais fáceis de criar. E a teoria da evolução tem passado esses testes todos.

O criacionismo não. Logo à partida, não é directamente comparável com a teoria da evolução. Esta é um esquema genérico para criar modelos enquanto o criacionismo bíblico é um modelo particular da criação, desligado de qualquer suporte teórico mais geral. É um legado de quando não se sabia o suficiente da vida na Terra para inferir relações genéricas como as que a teoria da evolução exprime. E o criacionismo não serve para nada. Diz que o pelicano foi criado por Jeová, que o dotou deste bico comprido adaptado à pesca. Mas numa altura em que todos os animais eram vegetarianos porque não havia morte nem sofrimento no Paraíso (as plantas, ao que parece, não contam).

O criacionista dirá que o bico do pelicano já era perfeito no paraíso porque Jeová criou tudo perfeito, e sabemos que Jeová criou tudo perfeito porque o bico já era perfeito no paraíso. Mas isto não é uma relação de parâmetros que restrinja os modelos permitidos pela teoria. Nem sequer há teoria, este raciocínio circular não permite estimar uns parâmetros a partir de outros, e acaba por roubar ao modelo qualquer capacidade de prever ou ser testado. O parasita da malária, as mandíbulas do tubarão, as larvas de mosca que crescem em carne podre, tudo isso é varrido para debaixo do tapete do deus perfeito que os criou no paraíso por razões misteriosas mas certamente louváveis.

A tautologia faz parte integrante da dedução e qualquer teoria terá exemplos disso. A diferença entre a ciência e o criacionismo é que a primeira usa a tautologia para restringir os modelos e criar explicações melhores e mais testáveis, enquanto o criacionismo cola tautologias ao seu modelo só para o isolar de dados contraditórios, acabando numa treta ridícula e inútil.

1- Mats, Fóssil de Pelicano Embaraça Evolucionistas
2- New Scientists ,Pelican fossil poses evolutionary puzzle

terça-feira, setembro 07, 2010

O caso pia.

Foi concluído o julgamento com a menção do acórdão, grande demais para ler. Os arguidos foram condenados, excepto Gertrudes Nunes porque «foi entendido pelo tribunal, pela valoração que fez das provas, e o Direito aplicável, não permitiam a sua condenação» (1). Declararam provado que recebia dinheiro para que violassem crianças em casa dela, mas não tão provado que a condenassem (2). A explicação terá ficado enterrada no acórdão.

Há quem proteste a leveza das penas, a demora ou a liberdade dos condenados enquanto aguardam o recurso. Com alguma razão. Mas o que mais me preocupa é não se esclarecer como foi provado que estes homens (a senhora safou-se) cometeram estes crimes. Averiguar a culpa é a parte mais importante de qualquer julgamento. É a parte que tem de ser melhor explicada. E é a parte da qual ninguém fala. A juíza diz que está provado e pronto.

Num caso destes seria de esperar que a comunicação social agarrasse qualquer prova. Uma escuta telefónica, as luvas do arguido no local do crime, qualquer indício objectivo e claramente indicativo de culpa. Mas, à parte do Carlos Silvino, que confessou, parece que só há acusações. Compreendo que seja difícil obter provas em casos destes, especialmente depois de tanto tempo. Mas isso é irrelevante. A dificuldade de provar a culpa não justifica afrouxar os critérios da condenação. É um mau sistema o que considere a acusação como prova sempre que seja difícil encontrar outras mais fiáveis.

Por exemplo, «O coletivo que julga o processo Casa Pia rejeitou hoje a hipótese de as vítimas terem sido "manipuladas" e combinado histórias para incriminarem os arguidos»(3). Segundo a notícia, os juízes rejeitaram esta hipótese porque «são referidas "situações que se ramificaram por locais diferentes com abusadores e abusados diferentes"» e por «um tal plano concertado exigir uma "capacidade intelectual e de sofisticação" que não seria habitual em menores com o perfil dos assistentes.» Dá ideia que a prova é o palpite da juíza que nah, os miúdos não iam fazer uma coisa dessas. E preocupa-me que a resposta não tenha mencionado alguma prova objectiva, independente da opinião da juíza e das alegações dos acusadores*.

Eu até acho que estes tipos são culpados. No entanto, o sistema judicial não se pode guiar por palpites e, pelo que vejo, os palpites dos juízes não serão melhores que o meu. Porque se tivessem provas concretas não havia milhares de páginas de acórdão, centenas de testemunhas, dois anos de investigação e seis de julgamento para depois concluírem que a acusação não mente porque as vítimas não têm inteligência para inventar histórias**.

Todo este processo faz desconfiar da justiça. Dois anos desde que são presos até que se possam defender em tribunal. Além de injusto, e assustador que seja legal, pressiona logo os juízes para os considerar culpados mesmo antes do julgamento começar. Porque depois de os prender uma data de tempo naturalmente custa admitir que erraram, se não tiverem provas. E se bem que, em teoria, o juízo, a investigação e a acusação sejam independentes, na prática são todos colegas de curso a trabalhar no mesmo edifício.

E a conclusão preocupa-me, se bem que não pelas razões que muitos apontam. Demorou e foi caro, concordo. Mas oito anos a falar disto deve ter criado muitas dificuldades aos pedófilos. Se as penas são leves demais ou não, não faço ideia. Nestas coisas o mais importante é a prevenção. O castigo é mais um sintoma da falha do que uma solução para o problema. E se bem que me pareça improvável que uma rede de prostituição infantil tenha explorado tantas crianças durante tanto tempo apenas com um bibi, uma dona de casa e cinco clientes, reconheço que não é fácil provar este tipo de crimes. Especialmente depois de tantos anos de negligência por parte de responsáveis que me parece também deviam ter sido julgados.

O que me preocupa mais é não dizerem como apuraram os factos. Apurar factos não é trivial e o pouco que revelam sugere que, neste caso, os factos foram apenas os testemunhos em que os juízes escolheram acreditar. O tamanho do acórdão sugere muita palha, a súmula apenas afirma que é facto sem dizer como lá chegaram e o resumo da súmula, «no intuito de tornar transparente para o Cidadão, a sentença proferida»(1), lista apenas os números de crimes e sentenças para cada um. E o pdf do acórdão só virá lá para o fim da semana se entretanto encontrarem o “save as”.

A única forma fiável de apurar factos é com transparência. Não se pode depender da honestidade das testemunhas, da presumida ingenuidade das crianças ou da infalibilidade dos juízes. Isto não são as aparições de Fátima. Na vida real, a verdade encontra-se às claras, pela critica aberta dos processos e acesso à informação. A opacidade desta burocracia, uma caixa preta onde uns poucos decidem e ninguém sabe ao certo como, não só torna a justiça muito mais falível como faz suspeitar dos motivos por trás de cada decisão.


* Não estou a acusar ninguém de mentir ou aldrabar. Mas, mesmo com as melhores intenções, os depoimentos de vítimas e testemunhas são notoriamente inadequados como prova. Por exemplo, os escândalos com rituais satânicos, abusos e prostituição infantil que assolaram vários países e que levaram a muitas condenações, com base em testemunhos sinceros mas falsos.
** A presunção de inocência e o “provado para além de qualquer dúvida razoável” não são apenas princípios morais. São uma necessidade estatística. Se tivermos 100 acusados e só um deles for criminoso, um método que determine a culpa com 90% de fiabilidade faz prender dez dos acusados e ainda deixa 10% de probabilidade do culpado escapar.

1- Resumo da súmula do acórdão, que não diz nada de jeito mas que podem descarregar no Conselho Superior da Magistratura
2- Correio da Manhã, Casa Pia: Prisão efetiva para seis arguidos
3- Visão, Vítimas não foram manipuladas nem combinaram versões, concluem juizes

domingo, setembro 05, 2010

Treta da semana: Mexe? Nah...

No dia 6 de Novembro vai haver uma conferência interessante no Indiana, EUA. É a “Primeira Conferência Católica sobre o Geocentrismo” (1). Segundo o cartaz, Galileu estava enganado e a Igreja Católica é que tinha razão. O programa promete. O “Dr.” Robert Sungenis, mestre em teologia pelo Seminário Teológico de Westminster, começa com a sua palestra “Geocentrismo: eles sabem mas estão a escondê-lo”. Os maganos... isso não se faz.

Segue-se uma introdução à mecânica do geocentrismo, e depois vem o Dr. Robert Bennett com experiências científicas que demonstram que a Terra está parada no espaço. Estas experiências devem ser fascinantes. Há também evidências bíblicas do geocentrismo – nestas coisas “evidência” inclui as fantasias de tribos antigas – e, como não podia faltar, o Carbono 14 para demonstrar que a Terra é um planeta jovem. A idade da Terra não tem nada que ver com o geocentrismo mas, treta por treta, que venham também as do criacionismo. E tudo isto por uns meros cinquenta dólares com almocinho incluído. Se fosse aqui perto (e só o almoço) talvez eu até lá fosse.

Na conferência estará à venda o livro de Sungenis e Bennett, Galileo Was Wrong: The Church Was Right, uma obra em dois volumes. O argumento central, se argumento se pode chamar, parece ser que a física permite estipular qualquer referencial onde medir coordenadas (2). O que é verdade, mas eu diria ser mais um argumento contra o geocentrismo do que a seu favor, visto não dar qualquer razão para considerar a Terra como estando no centro do universo. E até dá boas razões contra escolher esse referencial.

Num sistema de referência inercial as expressões são mais simples. Se medirmos as coordenadas num sistema de referência que acelere ou rode em relação a sistemas inerciais, temos de acrescentar forças fictícias para descrever as trajectórias e a expressão das mesmas leis da física torna-se muito mais complexa. Por exemplo, a figura abaixo mostra as órbitas de Mercúrio, Vénus, Terra e Marte representadas, da esquerda para a direita, em relação ao Sol, em relação a um referencial centrado na Terra mas sem rodar, e num referencial na Terra rodando com esta (3).

complicar o simples

Como é normal nestas coisas, o geocentrismo massaja o ego de quem não consegue admirar o universo pelo que ele é – naturalmente indiferente às nossas preferências ou inseguranças – em detrimento de uma descrição correcta, rigorosa e sucinta. Mas, para mostrar que tenho aprendido umas coisas no diálogo com os defensores da teologia, decidi concluir este post com uma apologia do modelo geocêntrico.

Fisicamente, o geocentrismo não faz sentido. Mas, ainda assim, é uma certeza metafísica pelo mistério da fé. Como a transubstanciação da hóstia e a virgindade de Maria. E sendo a fé um complemento da razão, estas nunca podem contradizer-se e é impossível interpretar a doutrina geocêntrica de forma a contradizer a ciência. Temos de considerar vários níveis de interpretação, como o arbitrário e o fictício, para interpretar o geocentrismo e poder afirmar que a Terra está imóvel no centro do universo sem contradizer, de forma alguma, a ciência que afirma precisamente o contrário.

E, se for preciso, podemos chamar a atenção dos cientistas para um aspecto fundamental de qualquer questão acerca do universo. A jurisdição. Tal como a origem do universo, a existência de deus e a aparição milagrosa de vários defuntos, a posição da Terra é um problema teológico e não científico. Por isso os cientistas não podem dizer que o universo surgiu sem precisar de um deus nem dar dicas acerca da posição da Terra. Esses são assuntos que não lhes dizem respeito.

1- Galileowaswrong.com. Obrigado à Ana Luísa pela informação, os momentos de incredulidade e o facepalm quando, umas googladelas depois, descobri que era mesmo a sério.
2- Catholic Truths, Geocentrism 101. (Mas confesso que não tive pachorra para ler tudo...)
3- O código fonte, para Octave, está aqui. As unidades dos gráficos são em centenas de milhões de kilómetros, mais ou menos alguns zeros caso me tenha enganado. Os gráficos são para 690 dias terrestres, que é um ano de Marte, com um ponto por dia excepto no último, onde calculo 6 pontos por dia para contar com a rotação da Terra.

sábado, setembro 04, 2010

Escolha óbvia.

Optimus rules!

Via 9GAG, originalmente do Septemberism

Q&A.

O Miguel Panão fez quatro perguntas no seu blog, em quatro posts recentes. Como as respostas do Miguel não me parecem fazer justiça à clareza das perguntas, decidi dar uma ajuda.

«É possível considerar uma ciência de Deus?»(1)

É. E nem é preciso inventar um “método científico-teológico”, como o Miguel propõe. Basta que se possa inferir algo observável das hipóteses acerca de Deus. Basta isto porque os objectos da ciência são as hipóteses, modelos e teorias. Se formarmos as nossas ideias de maneira a poder descobrir quando erramos, elas dão-nos um caminho para o conhecimento. E isso é ciência.

Infelizmente, gato escaldado tem medo de água fria. A Igreja Católica já sofreu tantos traumas com a refutação dos seus modelos falsificáveis que agora prefere alegações vagas que nunca se possa saber se são verdade, mentira ou sequer se alguma diferença faz. E o incentivo da crença lucrativa em milagres e aparições disfarça-se de tolerância erudita pela simplicidade dos menos esclarecidos.

«Prova científica da existência de Deus?»(2)

Também. Mas a prova científica não é um argumento ou uma demonstração. É um teste. A prova científica da existência de Deus é, simplesmente, o teste da hipótese “Deus existe”. O que é perfeitamente viável. Só que, para os crentes, é inconveniente. E se falha? Grande chatice. Por isso o Miguel apressa-se a excluir a possibilidade alegando que «se Deus fosse considerado uma hipótese formulada no quadro do mundo natural implicaria considerá-lo como um ser entre outros seres, uma causa entre outras causas, logo, não seria Deus. Por definição».

À parte de querer dizer à realidade como ela é à força da definição, o que claramente não funciona, esta objecção é irrelevante. Há muito na ciência que não é “causa entre outras causas” nem “ser entre outros seres”, desde o princípio de incerteza de Heisenberg às leis da termodinâmica, e incluindo todas as abstracções lógicas e matemáticas que usamos para construir modelos, como a raiz quadrada de dois ou as funções trigonométricas.

E já se fez muitas provas cientificas a muitas hipóteses acerca de muitos deuses. Incluindo o do Miguel. O resultado é que foi desanimador para os crentes. Sempre que alguma destas hipóteses foi posta à prova, chumbou. Daí a preferência moderna por hipóteses que nunca podem ir a exame.

«Todo o cientista é não-crente?»(3)

Aqui estou de acordo com o Miguel, se bem que a resposta não tenha nada que ver com o materialismo. É claro que o cientista pode crer num deus e ter fé. Mas só da maneira como o neurocirurgião pode ser pugilista e o padeiro fazer compostagem. Separadamente. O problema não é se a mesma pessoa é capaz de ambas as actividades mas que as actividades são incompatíveis. O bom padeiro tem de lavar as mãos antes de meter a mão na massa, o neurocirurgião tem de trocar de luvas e o cientista tem de deixar a sua fé noutro lado. Porque a convicção de já saber a Verdade impede que descubra a verdade. Esta última, apesar de escrita com minúscula, é mais útil e mais honesta. E chegamos à quarta pergunta do Miguel.

«Como interagem ciência e fé?»(4)

Mal. A fé é convicção, empenho emocional e apego às ideias. É ser fiel a uma hipótese, é confiança e crença pela crença. É ver como virtude a defesa persistente de uma ideia face a qualquer vicissitude ou evidência contraditória. A ciência é o oposto. É dúvida metódica, imparcialidade e desapego. É a disposição para mudar de ideias, desconfiar das premissas e aceitar as crenças apenas em função das evidências. E ver como virtude a capacidade de dizer enganei-me, esta ideia não serve, vamos procurar outra.

Uma pessoa poder dedicar-se a ambas não indica que sejam compatíveis. É como um copo poder ter água e azeite. Continua a ser preciso escolher como agir em cada situação. Ou dando um salto de fé na esperança de cair em respostas certas. Ou avançando com o andar prudente da dúvida, ciente que cada passo pode ser um erro, que tem de ser sujeito a testes e fundamentado em evidências, e admitindo a possibilidade de voltar atrás para procurar melhores caminhos.

1- É possível considerar uma ciência de Deus?
2- Prova científica da existência de Deus?
3- Todo o cientista é não-crente?
4- Como interagem ciência e fé?

sexta-feira, setembro 03, 2010

Chiu! É segredo...

No dia 30 de Setembro de 2005 o Conselho da União Europeia delineou a “Estratégia Europeia Contra Terrorismo”. É um documento público, disponível no portal da União Europeia (1), que traça as directivas gerais de combate ao terrorismo. No passado dia 26 o Conselho de Ministros deliberou finalmente sobre esta directiva europeia. Foi o último país a fazê-lo. E o ministro da Administração Interna decidiu que a transposição para Portugal desta directiva é confidencial. Quem quiser saber como Portugal adoptou uma directiva pública da União Europeia precisa de autorização especial da Agência Nacional de Segurança (2). E tem de ficar caladinho.

Agravando o problema, parece que a proposta, elaborada pelo Sistema de Segurança Interna (SSI), foi alvo de protestos dos ministérios da Defesa e da Justiça por estipular que as Forças Armadas ficariam sob o comando do SSI e que seria este a investigar os crimes de terrorismo em vez da Polícia Judiciária (3). Penso que seria importante o povo português saber se, à primeira ameaça de bomba, vamos ou não ficar com as Forças Armadas e a investigação judicial sob a alçada desta nova polícia para a defesa do estado.

Se há razões para manter confidencial a transposição da directiva europeia, por exemplo por conter detalhes operacionais que não devem ser revelados, então formularam mal a proposta. Porque esse documento deveria ser uma directiva genérica, estipulando os objectivos e questões de interesse público como as entidades envolvidas e a cadeia de comando, e não devia conter detalhes confidenciais. Precisamente para podermos saber o que se comprometem a fazer acerca disto. E se não há razões para a manter confidencial então estão a armar aos cágados. Seja como for, não estão a cumprir aquilo para que foram eleitos.

Mas se calhar é daquelas coisas que os governos fazem porque sim. Como explicam Mitchell e Webb:



Via Bad Astronomy.

1- Europa, Counter-terrorism strategy
2- DN, Governo torna 'secreto' um plano que é público na UE
3- CM, País sem plano para terrorismo

Editado a 4-9 para corrigir as armadilhas dos cágados. Obrigado ao Zarolho pela explicação.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Equívocos, parte 8.

No novo episódio desta série, o Alfredo Dinis aborda o que diz ser o «Oitavo equívoco [do ateísmo]: a persistência do literalismo bíblico»(1). Alega que os ateus recusam «afastar-se da interpretação literal sistemática e descontextualizada» da Bíblia, «à boa maneira do fundamentalismo criacionista».

Não é verdade. Os fundamentalistas defendem que a Bíblia é a palavra literal e inerrante de Deus enquanto os ateus defendem que a Bíblia contém afirmações falsas e maus conselhos. Como, por exemplo, que o universo foi criado em seis dias ou que se deve apedrejar as crianças desobedientes. Por isso, fundamentalistas e ateus têm posições opostas acerca da Bíblia, e não semelhantes como o Alfredo sugere. Uns defendem que a Bíblia é a verdade revelada por Deus e os outros que defendem tratar-se de histórias inventadas por humanos.

A posição católica é que está no meio. Admitindo que a maior parte do que está na Bíblia não é aceitável se for lido como foi escrito, defende que ainda assim é verdade porque tem de ser “interpretado”. E aqui começam outros problemas.

Escreve o Alfredo que a interpretação literal da Bíblia é «descontextualizada», não considerando «o contexto histórico e cultural dos textos bíblicos.» Mas é a interpretação católica moderna que retira os textos bíblicos seu contexto original e os reinterpreta à luz da nossa cultura moderna. Originalmente, o Génesis foi escrito – e era lido – como um relato factual da criação do universo. E as recomendações do Deuterónimo, como apedrejar os filhos desobedientes, não eram uma mera ilustração dos costumes bárbaros de tribos primitivas. Foram escritas e lidas como representando a vontade de Deus. E foi assim durante séculos até que o progresso da ciência e da ética obrigaram muitos religiosos a rejeitar a letra da Bíblia. Mas, no contexto original, a Bíblia era para ser levada à letra como fazem os fundamentalistas.

O Alfredo Dinis explica também que se deve considerar «quatro sentidos hermenêuticos na interpretação do texto bíblico: literal, metafórico, moral e escatológico» e que devemos dar atenção «às formas literárias e às maneiras humanas de pensar presentes nos textos bíblicos». Apesar dos teólogos modernos deturparem o sentido original destes textos, concordo com a ideia em abstracto. A análise de um texto, enquanto tal, deve considerar os sentidos de interpretação, os estilos literários e essas coisas.

Mas o que está aqui em causa não é a crítica literária. O que separa crentes e ateus não são questões de estilo ou de interpretação. É saber se a Bíblia é como defendem os crentes, um veículo da revelação divina de factos e deveres, ou se é como desconfiam os ateus, opiniões e histórias escritas por humanos. E para ver se a Bíblia tem origem divina temos de testar o que lá está escrito. Para isso as hermenêuticas não ajudam. O Alfredo também não daria vinte valores a um aluno que, não tendo uma única resposta certa, lhe dissesse saber tudo da matéria mas que o seu exame devia ser interpretado e não levado à letra. Para avaliarmos se a Bíblia foi mesmo algo que Deus revelou àqueles que a escreveram temos de considerar o que está lá escrito e o contexto em que o escreveram.

As (re)interpretações modernas da Bíblia constituem uma falácia de petição de princípio. Escreve o Alfredo que a interpretação literal da Bíblia «não é possível, por exemplo, quando entra em contradição com dados provenientes da história, das ciências naturais, etc.» Mas a interpretação literal é sempre possível. Só que mostra que a Bíblia não surgiu por revelação divina mas sim por especulação humana, porque a Bíblia exprime exactamente os erros e preconceitos que se esperaria ver num texto escrito por pessoas como aquelas que a escreveram. É isto que os ateus apontam.

Quando o Alfredo diz que essa interpretação literal “não é possível” porque contradiz os factos está a assumir, implicitamente, que é impossível a Bíblia conter falsidades. Mas é precisamente essa premissa que está em causa. A reinterpretação que a teologia moderna faz da Bíblia surge de assumir como premissa aquilo que só faria sentido como conclusão: que a Bíblia é a palavra inerrante de Deus.

A teologia diz que a Bíblia deve ser sempre interpretada de forma a não contradizer o que sabemos. O reverso da medalha é que, com esta restrição, a Bíblia nunca nos pode dar qualquer novidade testável. Ou a interpretamos pelo que julgamos saber ou especulamos que nos diz coisas cuja verdade nunca poderemos determinar. Isto protege a teologia de qualquer refutação mas torna-a numa mera mancha de Rorschach que só mostra o que lá imaginamos ver. E isto acaba por dar razão aos ateus. A religião não é uma revelação divina de verdades profundas. É apenas uma ilusão criada por humanos.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo