sábado, fevereiro 13, 2010

Treta da semana: In nomine Patris, toma lá disto.

Apesar da fé inabalável, o fundamentalista também precisa, desesperadamente, de confirmação independente para o seu livro sagrado. Para o Mats, o livro é aquele que manda bater nas crianças com um pau para que sejam obedientes (Provérbios: 13:24; 22:15; 23:13; 29:15), que os pássaros lhes comam os olhos se o pau não resultar (Provérbios 30:17), ou que os homens da cidade as apedrejem até à morte (Deuterónimo 21: 18-21*). Para confirmar isto, o Mats refere um “estudo” indicando que «Aparentemente pais que disciplinem fisicamente os seus filhos entre as idades de 2 a 6, estão a criar condições para que os mesmos sejam mais bem sucedidos na vida.»(1)

Mas esta confirmação é pouco independente. É um inquérito (2) organizado pela University of Notre Dame, uma universidade católica da Congregação da Santa Cruz (3), e financiado pela Lilly Endowment, uma fundação privada de apoio a iniciativas religiosas (4). Refere também as recomendações do American College of Pediatricians (ACP). O nome confunde-se facilmente com American Academy of Pediatrics (AAP), mas enquanto a AAP é a mais antiga e prestigiada associação de pediatras dos EUA, o ACP foi criado por um grupo de pediatras conservadores que saíram da AAP por exigir que esta se opusesse à adopção por parte de casais homossexuais (5). Em linha com a sua ideologia de inspiração cristã, o ACP defende ser apropriado bater em crianças dos 18 meses aos 6 anos.

Em contraste, a AAP opõe o uso de castigos corporais por várias razões, entre as quais tornar a criança mais nervosa e agressiva, degradar o relacionamento com os pais e deixar de ter efeito a menos que se aumente progressivamente a severidade do castigo (6). O que é compreensível. Se queremos ensinar um cão o melhor é recompensar os comportamentos desejados, com festas ou guloseimas, e desencorajar os indesejados com uma rosnadela ou mandando-o de castigo para a cozinha. Tentar ensinar o animal batendo-lhe só dá um cão assustado e violento, porque o mecanismo primitivo de aversão à dor desencadeia apenas respostas imediatas e simples: fugir ou atacar. Os cães são animais sociais inteligentes, motivados para pertencer a um grupo e ter a aprovação dos seus membros. É esse mecanismo mais sofisticado que permite ensinar-lhe coisas que não se consegue ensinar a um gato, por exemplo.

Ensinar crianças à pancada é uma asneira pior. Além do péssimo exemplo e do risco de a magoar, a criança tem formas de aprendizagem ainda mais sofisticadas que as dos cães. Não só tem a empatia e ânsia por aprovação comum aos mamíferos sociais mais inteligentes, como tem linguagem e capacidade de abstrair e compreender regras. Com estes mecanismos podemos ensiná-la a não só a sentir pelos outros mas também noções como justiça, direitos, deveres, bem e mal. Se a ensinarmos com empatia e diálogo a criança desenvolve valores éticos. Não é imediato; é preciso muitos anos e muita paciência. Mas ensinar é isso mesmo. Anos e paciência. Não se ensina coisas complicadas com um par de estalos.

À pancada o resultado é o oposto. Ensina que a diferença entre o bem e o mal está no castigo. Se leva tabefes, é porque fez mal. Se conseguiu safar-se, tudo bem. É como se o problema moral de bater na velhota fosse ir para a prisão em vez de ser o sofrimento da coitada. Isso não é ética. É egoísmo. Mas é a base da suposta “moral objectiva” destas religiões. Basicamente, há coisas que são más porque Deus castiga. E pronto. Nesta moral deturpada, é aceitável um homem bater numa criança mas não se tolera que beije outro homem. Não interessa que um cause sofrimento e outro prazer, que um seja imposto e o outro voluntário, que um seja uma violação e o outro o exercício de um direito. O que interessa é que Deus não castiga o homem que bate em crianças mas castiga aquele que beija outros homens.

Isto, obviamente, não tem nada de ético. Mas é uma forma eficaz de manipular as pessoas. Disfarçado de “moral”, este parasita engana as defesas dos hospedeiros que, tendo levado no trombil desde pequenos, crescem sentido o dever de repetir a virtuosa façanha e infectar a geração seguinte.

É esta a preocupação principal do Mats. Se ensinamos as crianças com paciência, amor e diálogo elas tornam-se autónomas, capazes de perceber por si a diferença entre o bem e o mal. É o pecado original, e quem pensa por si corre o risco de ficar ateu. Por isso o melhor é dar tabefes a ver se aprendem a “temer a Deus”. Ou, pelo menos, a fingir de forma convincente.

* É costume nos baptizados alguém ler trechos da Bíblia. Quando tenho mesmo de ir a um baptizado, imaginar que alguém escolhe esta passagem ajuda a tolerar a seca:

«Se um homem tiver um filho obstinado e rebelde que não obedeça nem ao pai nem à mãe, ainda que estes o castiguem para o corrigir, então seus pais deverão trazê-lo perante os anciãos da cidade e declarar: 'Este nosso filho é obstinado e rebelde e não quer obedecer; além disso é um comilão e beberrão incorrigível.' Os homens da cidade apedrejá-lo-ão até morrer. Dessa forma tirarão o mal do vosso meio; e todos os outros jovens de Israel ouvirão isso que aconteceu e terão medo.»


1- Mats, Crianças novas que recebem disciplina física se tornam adolescentes mais felizes e bem sucedidos
2- pals.nd.edu
3- Wikipedia, University of Notre Dame
4- Wikipedia, Lilly Endowment
5- ACP, History of the College
6- AAP, Guidance for Effective Discipline

12 comentários:

  1. Ludwig,

    Temos de admitir que o catecismo, a Bíblia e os escritos religiosos apresentam de quando em vez um corpo consistente e coerente. outras vezes nem por isso, mas foquemos por agora os pontos de concórdia.

    Penso que há dois dias atrás perguntei ao Bruce Lóse o significado da expressão "penetrado de temor amoroso", expressão usada no catecismo para descrever a forma de relacionamento ideal entre o homem e Deus.

    Pelos vistos, esse relacionamento de temor num seio amoroso deverá, aos olhos da Bíblia, existir também entre pais e filhos. Esse temor será proporcional à espessura do pau e à frequência das pauladas...

    Portanto tudo isto encaixa.

    O (bom) pai católico é o patriarca, hierarquicamente superior, e quem está abaixo, seja filhos ou seja a mulher, "deve" amá-lo e temê-lo, numa espécie de mistura agri-doce de sentimentos, onde o medo de levar uma "paulada" é constante. A mesma mistura agri-doce deverá existir, segundo o catecismo, na relação entre homem e Deus.

    Tenho de admitir que há de facto alguma consistência nesta matéria.

    ResponderEliminar
  2. Em que mundo vive o Pedro Ferreira?! Eu considero-me um bom pai católico e cá em casa as coisas não funcionam dessa maneira. Um dos problemas dos incréus é fantasiarem sobre a religião sem terem um conhecimento mínimo do que falam.

    ResponderEliminar
  3. - Somewhat off-topic-

    Descobri agora que vem cá o Cristofer Hitchens dia 18 fev.

    Casa fernando pessoa às 18:30.

    Reconhecemo-nos pelo aperto de mão secreto. Até la.

    ResponderEliminar
  4. A BÍBLIA E A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS

    A Bíblia tem uma avaliação correcta da natureza humana pecaminosa.

    Ela considera que todos os seres humanos pecaram, sendo que isso se manifesta desde o princípio.

    Uma avaliação realista da natureza humana é essencial para o processo educativo, por mais politicamente incorrecto que isso possa parecer.

    Umas palmadas numa criança, dadas com amor, justiça e proporção, nunca fizeram mal a ninguém nem traumatizam ninguém.

    Mas a Bíblia não diz só isso, A Bíblia ensina os pais a amarem os filhos, a ensinarem-lhes tudo o que necessitam saber e a ensiná-los acerca de Deus, procurando o bem e afastando-se do mal.

    A Bíblia também ensina o homem a a mulher a amarem-se e respeitarem-se mutuamente, sendo que isso faz muito bem à educação das crianças.

    A pretensa moralidade "superior" dos pedagogos modernos é responsável pelos problemas de hoje: delinquência juvenil, criminalidade, toxicodependência, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez de adolescentes, abortos, depressões, suicídios, agressões aos professores, indisciplina nas escolas, insucesso e abandono escolar, etc.

    A Bíblia nunca fez mal a ninguém. Os judeus, em todo o mundo, nunca foram propriamente o exemplo de um povo inculto, incapaz, indisciplinado e cientificamente incompetente.

    Ainda hoje, segundo a revista The Economist, Israel, com 7 millhões de pessoas, cria mais empresas tecnológicas do que a China e a ìndia juntas.

    Os países Europeus mais influenciados pela leitura e o estudo da Bíblia depressa se desenvolveram na educação e na cultura.

    O afastamento da Bíblia é que pode propiciar indisciplina, corrupção, imoralidade e, em última análise, decadência.

    É un erro substimar a Bíblia e a sua mensagem de clareza e nitidez moral.

    Quem o faz acaba por resvalar para um pantano de imoralidade, corrupção, injustiça e decadência.

    ResponderEliminar
  5. Prespectiva:

    "Os judeus, em todo o mundo, nunca foram propriamente o exemplo de um povo inculto, incapaz, indisciplinado e cientificamente incompetente."

    Os Judeus não acreditam em Jesus. E tambem não são criacionistas.

    ResponderEliminar
  6. "Os países Europeus mais influenciados pela leitura e o estudo da Bíblia depressa se desenvolveram na educação e na cultura."

    Sim, instalaram uma idade média em pouco tempo. Felizmente só durou mil anos. Nessa altura não eramos a civilizaçao mais avançada em qualquer aspecto.

    ResponderEliminar
  7. Bom ponto.

    Eu acho que não foi a ascenção do cristianismo que causou a decadência do império romano (não ponho de parte a hipótese de que possa ter sido um factor importante). Mas a verdade é que as duas coisas foram acontecendo ao mesmo tempo. Por isso, vir com o argumento de que o ocidente é avançado por causa do cristinismo é um disparate de quem ou ignora a história, ou faz por ignorar.

    ResponderEliminar
  8. O Ludwig consegue presumir o pior sobre as pessoas. Não conheço o mats de lado nenhum, nem sei se o Ludwig o conhece, mas dizer que: "É esta a preocupação principal do Mats. Se ensinamos as crianças com paciência, amor e diálogo elas tornam-se autónomas, capazes de perceber por si a diferença entre o bem e o mal.", parece-me especulação pura, no mínimo.

    Quando leio as suas críticas ao cristianismo, ou aos cristãos, raramente me sinto atingido, tal é a sua presunção que sabe o que não sabe. Nisso o Alfredo Dinis tem muita razão, o Ludwig critica muita coisa que nem passa pela cabeça dos cristãos, sequer. Percebo que essas críticas agradem ao público aqui residente, mas de relevância têm muito pouco.

    ResponderEliminar
  9. Diz quem viu que o Papa anda pela Irlanda a pedir desculpas pelas violações do clero a centenas, centenas de crianças.
    Não está directamente relacionado com os castigos corporais, mas diz muito da falta de qualquer tipo de superioridade moral de quem se diz católico.
    E já não é caso único, primeiro nos EUA , agora na Irlanda, qual o próximo ?

    ResponderEliminar
  10. Nuvens
    o próximo já está aí, vem da própria terra do Ratzinger, anda a abalar a Alemanha há semanas e a ser muito cuidadosamente evitado pelo Papa, que até agora não tugiu nem mugiu:
    http://www.nytimes.com/2010/02/10/world/europe/10germany.html

    ResponderEliminar
  11. adenda:
    ao contrário do bispo de Augsburgo, que acha que a responsabilidade pelo sucedido cabe «parcialmente» à chamada revolução sexual dos anos 70.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.