sexta-feira, outubro 30, 2009

De novo a interpretação.

O Alfredo Dinis, depois de algumas considerações sobre mim, que agradeço, aponta que «O que está em causa no ‘caso Saramago’ é a interpretação da Bíblia», acrescentando que a minha «insistência em que tudo na religião e, em particular no cristianismo, é mera opinião, é mera subjectividade, ignora que qualquer texto tem que ser interpretado de acordo com alguns parâmetros objectivos: estilo literário, época de composição, modo de composição, contexto cultural em que surgiu, significado dos conceitos utilizados no espaço cultural a que pertencem originalmente, etc. Nada disto é subjectivo.»(1)

Concordo que uma interpretação de um texto é apenas tão fiável quão relevantes forem os parâmetros em que se baseou. Mas estes atributos do texto são insuficientes para a maioria das conclusões que os católicos defendem. O post anterior ao do Alfredo, do Miguel Pedro Melo, dá um exemplo: «Foi em Jericó que Jesus curou o cego Bartimeu |Lc. 18, 35|.»(2) Nem o estilo literário, nem a época de composição, nem o modo, contexto cultural ou significado justificam concluir que Jesus realmente curou o cego Bartimeu. Porque o problema não é apenas determinar o significado do texto ou a intenção do autor. É aferir a sua correspondência à realidade. Apesar da insistência do Alfredo, ainda suspeito que os cristãos consideram verídicos estes relatos por razões meramente subjectivas e especulativas. A análise do texto, por muito objectiva que seja, não permite saber se o que lá está escrito é verdade.

Este problema é menos grave com católicos que com fundamentalistas. Como o Alfredo apontou, os católicos cedem quando as evidências em contrário são suficientemente fortes. O correcto seria aceitar como verdade apenas aquilo para o qual essa é a hipótese mais plausível mas, como o post do Miguel Melo também ilustra, este problema é mitigado por os católicos mais esclarecidos de hoje preferirem focar apenas aspectos éticos, morais e religiosos. Salvo algumas excepções importantes, os últimos séculos ensinaram os católicos a não insistir em matérias de facto. No entanto, o “caso Saramago” foi precisamente sobre a moral da Bíblia. Saramago não disse que a Bíblia era um manual de erros factuais. Disse que é um manual de maus costumes. Por exemplo, o Deuteronómio estipula que os filhos desobedientes devem ser apedrejados até à morte e que os soldados vitoriosos podem raptar mulheres que lhes agradem de entre os povos derrotados. Isto, parece-me indiscutível, eram maus costumes.

Dizem os entendidos que é preciso considerar o «contexto cultural em que surgiu» cada uma destas recomendações e, por isso, não se pode interpretá-las de forma literal. Isto é uma contradição porque, no contexto cultural em que surgiram, estas normas eram para ser levadas à letra. Era a lei. E ainda há hoje quem pratique abominações destas. A menos que no hebraico original “apedrejar até à morte” quisesse dizer “uma semana sem ver televisão”, não há interpretação que safe estas partes da Bíblia. São maus costumes. São exemplo daquilo que há de pior na humanidade: a capacidade de exaltar o mal como virtude.

Queixa-se o Alfredo que «Se a Igreja Católica nada muda, é acusada de imobilismo, de falta de liberdade de investigação, de espírito crítico, etc. Se muda, pergunta-se: quem lhe deu o direito de mudar?» Mas as histórias do antigo testamento foram consideradas sagradas porque eram a Palavra de Deus. Não foi por serem metáforas bonitas. Eram regras para se obedecer, relatos de como ele criou o mundo e afogou toda a gente e eram um aviso claro a quem o aborrecesse. A Igreja Católica manda agora interpretar literalmente umas partes, pelo contexto histórico outras e pelo estilo umas terceiras, tudo isto em função do que serve a sua doutrina, chamando ignorantes a quem não concorde com estas escolhas e recusando-se admitir que, desta forma, deixa de haver razão para considerar a Bíblia um livro diferente dos outros. Isso é mais arrogância que espírito crítico.

A raiz deste problema é que, como qualquer religião, o catolicismo assenta em “factos” inventados pelos crentes. Para os católicos Jesus curou cegos com milagres, nasceu de uma virgem e ressuscitou. Para muitos protestantes, também Jonas viveu três dias na barriga de um peixe e Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho. Os católicos dizem que acreditar nisso é ser ignorante, mas a verdade é que nenhuma destas crenças tem fundamento. Rejeitam o feito de Jonas e aceitam a virgindade de Maria apenas porque querem, porque são alegações igualmente implausíveis.

Passa-se o mesmo com as crenças mais fundamentais do cristianismo. Não há evidências que Jesus era Deus, que temos alma, que há vida depois da morte ou que a Bíblia é mais que os outros livros. É especulação sem fundamento em que só se acredita por razões subjectivas. Daí o contorcionismo, pouco honesto, que vende como milagre aquilo que ainda não se refutou e como metáfora o que já se sabe ser disparate. E que disfarça os maus costumes com alusões vagas ao estilo literário ou contexto histórico. Como se isso desculpasse Deus de ter posto na cabeça de alguém a ideia de matar crianças à pedrada.

Só será legítimo aos católicos chamar conhecimento à forma como interpretam a Bíblia quando a interpretarem como qualquer outro texto, distinguindo factos e ficção pelas evidências em vez de pelo que gostariam que fosse verdade. Enquanto subordinarem os seus critérios alegadamente objectivos a crenças sem fundamento não podem apontar o resultado como conhecimento. É apenas fé.

1- Alfredo Dinis, Aprendemos alguma coisa com o ‘Caso Saramago?’
2- Miguel Lemos, da hostilidade à hospitalidade, da cegueira ao seguimento

quarta-feira, outubro 28, 2009

E física sem hermenêuticas.

Não quis juntar este ao do post anterior, apesar de o ter encontrado no mesmo sítio*. É uma palestra do Lawrence Krauss sobre cosmologia. Quando tiverem uma hora para ver televisão, vejam isto. Seja o que for que esteja a dar, isto é de certeza melhor.



Uma citação para guardar, e emoldurar: «Knowing the answer means nothing. Testing your knowledge means everything.» (aos 24m e 40s).

*Pharyngula.

A hermenêutica da física.

Não são só os livros sagrados que podem ser interpretados à luz de uma ou outra fé. Também os manuais de física podem ser sujeitos a este tratamento. E com resultados semelhantes...



Via Pharyngula, onde aconselho que assistam ao antídoto.

terça-feira, outubro 27, 2009

Falácias disto e daquilo.

Falácias são inferências inválidas que, muitas vezes, enganam por terem uma estrutura semelhante a inferências válidas. Se numa cidade que desconhecemos muitos aconselham evitar um certo bairro é boa ideia dar-lhes ouvidos. Mas o apelo à opinião popular é falacioso se concluirmos que a gripe A foi criada pelas empresas farmacêuticas só porque muita gente anda a dizer isso. Num caso a opinião é dada por quem sabe enquanto que, no outro, muitos o afirmam sem conhecimento dos factos. O ataque à pessoa, ad hominem, também pode não ser falacioso. Normalmente, ser coxo não tira a razão a ninguém. Mas se o coxo está a testemunhar em tribunal que perseguiu o réu em corrida pelo bosque é legítimo levantar dúvidas.

O Bernardo dá um exemplo da confusão entre um argumento válido e uma falácia que segue o mesmo esquema. Há uns posts atrás eu propus que não se deve elaborar modelos detalhados da origem desta ou daquela religião porque não conhecemos os detalhes necessários para fundamentar tais modelos (1). O Bernardo escreveu que isto é uma falácia de argumentum ad ignorantiam, por eu justificar a minha conclusão apelando à nossa ignorância. Mas este apelo à ignorância não é falacioso. Se ignoramos os detalhes é legítimo inferir que não vamos poder criar modelos detalhados que mereçam confiança. Seria especular no vazio.

O que podemos dizer, para ter fundamento, terá de ser mais genérico. Por exemplo, que religiões ligadas ao poder político tendem a propagar-se ou fragmentar-se em função do que acontece às nações que as albergam e contribuem para exacerbar os conflitos entre estas. E que quando se reduz o poder da religião a diversidade religiosa pode aumentar sem pôr em perigo a sociedade. Modelos como estes podem ser confrontados com os dados históricos. A história da Europa nos dois últimos milénios confirma estas tendências. Mas tentar inferir causas para certa figura histórica ter aderido a esta religião em vez de a outra, ou para uma religião ter aqueles dogmas em vez de outros ligeiramente diferentes, vai muito além daquilo que se pode justificar com os dados de que dispomos. São essas inferências que são falaciosas.

O que eu propus até evita a falácia do apelo à ignorância, entre outras. Esta falácia consiste em inferir, da ignorância admitida acerca de algo, que esse algo tem de ser assim, assado e da outra maneira. Um chorrilho de detalhes tirados do chapéu. O Bernardo quer justificar isto com a magia da “coerência”, termo pelo qual julgo querer dizer consistência, que é «usar o intelecto para procurar incoerências em certa doutrina religiosa, e assim, removê-la do baralho.» A consistência, a ausência de contradições, é um requisito de qualquer modelo. Um modelo que se contradiga a si próprio nunca será um bom modelo seja do que for. Mas é uma condição necessária que está longe de ser suficiente, porque para cada modelo consistente que corresponde à realidade há infinitos, igualmente consistentes, que são treta. É por isso que não é sentado no sofá, especulando e rejeitando apenas o que for contraditório, que se consegue bons modelos da realidade. É preciso dados, hipóteses testáveis e confrontar estas últimas com os primeiros.

Sem isso tem-se religiões. Uma salada de crenças, rituais e preceitos, extraordinariamente detalhados e sem qualquer fundamento. Os católicos dizem saber exactamente quantas pessoas são o seu deus único – como se as tivessem contado – e que a hóstia se transubstancia na substância de Jesus. Não é na substância de um primo ou parente afastado, nem na de um santo ou na substância de um batido de morango. Segundo a hipótese que a substância muda deixando intacta a forma, estas alternativas são todas impossíveis de distinguir. No entanto, o modelo católico diz exactamente qual delas é verdadeira e que todas as outras são falsas. Sem qualquer informação concreta que permita fazer esta distinção. Isso é que é pôr a ignorância a trabalhar.

Não quero dizer que a crença por razões pessoais seja ilegítima. A fé é subjectiva mas, dentro do subjectivo, justifica igualmente bem qualquer coisa. Mas dos dados que os religiosos dispõem não é legítimo inferir, como verdadeiro, todo o detalhe com que enfeitam os seus modelos. E nisto incluo todos, dos católicos aos budistas, dos muçulmanos aos cientólogos. A informação que temos, em todos estes casos, é que alguém escreveu umas histórias. Não é correcto inferir daqui que os deuses são assim, que pensam daquela maneira, que tal ritual tem de ser desempenhado por um homem vestido com estas roupas, dizendo estas palavras e fazendo assim com as mãos.

O Bernardo acusa-me da falácia do apelo à ignorância. Acusa-me de inferir da minha ignorância uma conclusão que não se pode fundamentar na ignorância. Não me parece que esse erro seja o meu.

1- Razões históricas.
2- Bernardo Motta, Argumentum ad ignorantiam

domingo, outubro 25, 2009

Treta da semana: Leitura simbólica.

A propósito das declarações de Saramago, que a Bíblia é um «manual de maus costumes», teólogos e sacerdotes têm apontado que ler a Bíblia é uma coisa muito complicada. Como disse Carreira das Neves em debate com Saramago, a Bíblia tem infinitas leituras (1). Mas isso quase tudo tem e, retorquiu Saramago, por muitas interpretações que se dê a um texto não se pode esquecer o que lá está escrito.

Um problema que este episódio revela é a noção que alguns iluminados católicos sabem, com o saber de quem sabe, qual a interpretação certa para cada passagem. Por exemplo, o Filipe Noronha, no Companhia dos Filósofos, escreve acerca de Saramago que «mesmo para quem se diz ateu, a sua interpretação do texto e a mensagem que nos quer fazer chegar é [...] um sinal claro de que devemos insistir na luta contra este tipo específico de ignorância.»(2) Mas dizer que a interpretação de Saramago é ignorante implica haver conhecimento. E, acerca disto, não há. Podemos ler tudo o que os cristãos escreveram acerca da Bíblia, de Aquinas a Ricoeur passando por Kiergegaard e C. S. Lewis, e o que vamos encontrar – nos duzentos mil livros que Carreira das Neves mencionou – é só opiniões. Para ser conhecimento precisavam assentar a opinião em algum processo fiável, testável e independente de opções subjectivas. Julgam que interpretam bem, cada um com a sua interpretação. Mas não sabem.

E isto de exigir «uma compreensão da Bíblia enquanto texto literário para verdadeiramente chegar ao seu sentido»(3) é moda recente. Só a partir do século XIX é que a exegese católica começou a considerar a Bíblia literatura. Antes disso defendiam uma interpretação literal. Daí que, quando afirmam que não se deve ler a Bíblia à letra, de uma forma a que chamam “banal”, contradizem dezoito séculos de tradição católica e outras variantes contemporâneas de cristianismo.

E a letra continua lá. Podemos interpretar o livro de Jó como uma crítica à justiça retributiva, mas é ainda verdade que Jahve e Satan submeteram o desgraçado a uma injustiça intolerável. Podemos ler o sacrifício de Abraão como um salto de fé, a solução para um dilema impossível, algo com um significado existencial tão profundo que não serve para nada. Mas não podemos negar que o texto exalta um personagem disposto a matar o filho em nome da religião. E isso é um mau costume. Qualquer pessoa civilizada reconhece que a liberdade religiosa acaba muito antes do infanticídio. Mesmo sendo legítimo aos católicos darem outras interpretações a estes textos, essas não anulam o que lá está escrito.

E há episódios que nenhuma (re)interpretação pode safar. Moisés desce da montanha e manda chacinar uma data de gente por ter um deus diferente. Deus manda matar cidades inteiras, destrói Sodoma e Gomorra sabe-se lá porquê*, transforma uma mulher em sal só porque olhou para trás, mata os primogénitos no Egipto só porque o Faraó era teimoso e assim por diante. Se os lermos como obra humana, estes relatos explicam-se pelo contexto cultural. Eram pessoas menos esclarecidas, intolerantes, sem respeito pela liberdade religiosa, privacidade e outros direitos fundamentais. Mas se é um livro inspirado por um deus então esse deus é horrível. Esse deus permitiu – e permite – que se façam coisas terríveis em seu nome. Se apedrejar uma rapariga até à morte por ter relações sexuais antes de casar não é um mau costume, não sei o que possa ser.

Finalmente, muitas interpretações pouco ajudam. O Novo Testamento relata como Jesus cresceu, liderou um grupo de crentes e foi morto na cruz. Os cristãos interpretam isto como um sacrifício do seu deus que, tornando-se homem, morreu e ressuscitou para nos redimir e mostrar que a morte pode ser vencida. O que é uma afronta ao sofrimento humano. Ser torturado e morrer é terrível, mas é terrível para quem é mortal, quem perdendo a vida perde tudo, quem não se pode defender do mal que lhe causam e deixa filhos órfãos e família desamparada. Um deus eterno, omnisciente e omnipotente, que com um pensamento podia ter transformado os soldados romanos em bolacha Maria, nunca esteve em perigo nem fez sacrifício nenhum. Fez teatro. E de mau gosto. É como ir à Etiópia, passar lá uma tarde sem lanchar e, de volta a casa, mandar àquela gente que morre à fome um postal da jantarada para terem esperança de vencer o seu jejum.

Muito pouco na Bíblia é compatível com os valores da civilização moderna. Quem preza a liberdade e a justiça não pode concordar nem com o antigo testamento, com um deus tirano que castiga e tortura só porque lhe apetece, nem com o novo testamento, em que o mesmo deus se faz inocente e se finge matar para nos dar esperança ou mostrar que morrer na cruz é amor. É claro que podemos reinterpretar a Bíblia à luz dos nossos valores. É sempre possível inventar que tudo o que parece mal é metáfora para outra coisa que vá escapando. Mas é incorrecto vender esta reinterpretação, muito forçada, como conhecimento. É mera opinião. E seria mais prático e honesto admitir, de uma vez por todas, que a Bíblia é um conjunto de obras literárias escritas por humanos. De grande valor histórico e cultural, com passagens bonitas, e com as falhas e caducidade de qualquer obra humana. O texto faz parte da nossa cultura mas a mensagem, felizmente, deixou de ser relevante.

* Tinha escrito originalmente “por causa de preferências sexuais”, mas o Pedro Amaral Couto apontou que isso não está na Bíblia. Tem alguma razão. Os vizinhos de Lot queriam ter relações sexuais com os anjos que o visitaram, mas pode ser por razões diferentes. Aqui há um apanhado de várias hipóteses.

1- SIC, 23-10-09, Frente-a-frente, José Saramago e Joaquim Carreira das Neves
2- Filipe Noronha, 23-10-09, Todos temos razão.
3- Agência Ecclesia, Saramago faz releitura banal da Bíblia. Via (2).
4- Catholic Encyclopedia, Biblical Exegesis

sábado, outubro 24, 2009

TEDx Porto.

TED, Technology, Entertainment, Design, é uma organização académica famosa pelas suas conferências acerca de «ideias que vale a pena divulgar». Esta organização tem também um programa, o TEDx, ao abrigo do qual grupos independentes da TED podem organizar eventos semelhantes.

No dia 20 de Fevereiro de 2010 vai haver a primeira conferência TEDx em Portugal. Será no Parque Biológico de Gaia, no Porto, com o tema «Primavera, A arte de Viver», e está a ser organizada pelo Manuel Forjaz e o Tiago Gaspar. No site da TEDx Porto há mais informações acerca da conferência, os conferencistas e os temas:

TEDxPorto.com

sexta-feira, outubro 23, 2009

Guerra Junqueiro.

No secundário tive de ler (partes d') os Lusíadas, As Viagens na Minha Terra e outras coisas que me pareceram um bocado seca. Pena que Guerra Junqueiro não tivesse feito parte do programa. Sempre ajudava a reduzir a histeria quando alguém como o Saramago dissesse aquilo que toda a gente já sabe.

Na Wikipedia está o texto completo d'A Velhice do Padre Eterno. Se quiserem um pdf do livro, num maravilhoso amarelo envelhecido, está na Biblioteca Nacional Digital. Fica aqui o capítulo sobre o Génesis, que recomendo especialmente aos criacionistas.

Jehovah, por alcunha antiga o Padre Eterno
Deus muitissimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Poz-se a esgaravatar co-o dedo no nariz,
Tirou d'esse nariz o que um nariz encerra,
Deitou depois isso cá baixo, e fez a terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapeu,
Pol-o em cima da terra, e zás, formou o céo.
Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis ahi porque o céo ficou todo estrellado.
Depois o Creador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo serrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assignaria,
E furioso escarrou no mundo sublumar,
E a saliva ao cahir na terra fez o mar.
Depois, para que a Egreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada alguns cruzados novos,
E Tartufo podesse inda d'essa maneira
Jejuar, sem comer de carne á sexta feira,
Jehovah fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada marmota.
Em seguida metteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas extranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos
Lançou sobre a terra, e d'este modo insonte
Fez elle o megatheiro e fez o mastodonte.
Depois, para provar em summa quanto póde
Um Creador, tirou dois pellos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
(Obra em que elle estragou quatrocentos machados)
Dispersou-os no globo, e foi d'esta maneira
Que nasceu o carvalho o platano e a palmeira.

..................................................

Por fim com barro vil, assombro da olaria!
O que é que imaginaes que o Creador faria?
Um pote? não; um bicho, um bipede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
O pobre Creador sentindo-se já fraco.
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!) pensou: — Deixem-nos de asneiras.
Trago já uma dôr horrivel nas cadeiras,
Fastio... Isto dá cabo até d'uma pessoa...
Nada, toca a dormir uma sonata boa!
Descalçou-se, tirou os oc'los e chinó,
Pitadeou com delicia alguns trovões em pó,
Abriu, para cahir n'um somno repentino,
O alfarrabio chamado o livro do Destino.
E enflanelando bem a carcassa caduca,
Com o barrete azul celeste até á nuca,
Fez ortodoxamente o seu signal da cruz
Como qualquer de nós, tossiu, soprou á luz,
E de pança p'ro ar, n'um repoiso bemdicto,
Espojou-se, estirou-se ao longe do infinito
N'um immenso enxergão de nevoa e luz doirada.
E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.

Via Esquerda Republicana

E assobiar, também precisa de licença?

Uma mercearia no Reino Unido foi contactada pela Performing Rights Society (PRS) exigindo 80£ para o licenciamento anual do direito de ter o rádio a tocar. Sandra Burt, uma empregada da mercearia, lembrou-se então de desligar o rádio e cantar enquanto trabalhava. Os clientes até gostaram, que parece que a senhora até tem boa voz.

Gareth Kelly, da PRS, decidiu que isto era trafulhice, que era só uma forma ilegal de se tentar safar da licença. «Usar qualquer material protegido por copyright na loja, sem pagar por isso, é ilegal. Não interessa se está a cantar uma música do Robbie Williams ou a ouvir uma música do Robbie Williams, tem de pagar à mesma. Pode ser multada por não ter uma licença de actuação pública, e se não pagar pode ir a tribunal.» (1)

Para sorte da loja e da Sra. Burt, a notícia apareceu nos jornais e o pessoal da PRS fez as contas a quanto a má figura lhes ia custar. Acabaram por lhe mandar um ramo de flores a pedir desculpa (2). Mas o facto é que a lei lhes daria razão, se um juiz a interpretasse dessa forma. E como estas organizações têm mais dinheiro para advogados que as empregadas de mercearia, se não fosse a atenção que o caso gerou o mais certo é que a Sra. Burt teria acabado por pagar a multa e as custas do tribunal.

É mais um exemplo da necessidade de alterar a lei. Se alguém causar prejuízos injustificados a um negócio legítimo é razoável que o prejudicado seja indemnizado. Mas é razoável exigir que demonstre adequadamente esse prejuízo, e é isso que a lei deve especificar. Isto não deve ser uma fórmula decidida por lobbies nem uma coisa que fique ao gosto do juiz. Deve ser responsabilidade da acusação provar que houve prejuízo e mostrar evidências do seu valor monetário. E acusações infundadas por parte de organizações de cobrança deviam ser punidas. Não se deviam safar com um ramo de flores.

1- Daily Mail, 15-10-09, Corner shop worker told to stop singing in her store - or pay for a performing licence
2- BBC, 21-10-09, Apology for singing shop worker

Protões, membranas e geologia marinha.

O trifosfato de adenosina, ou ATP (de adenosine triphosphate), é a molécula mais usada como fonte de energia em reacções biológicas, devido à facilidade com que perde o terceiro fosfato e se converte em ADP (difosfato de adenosina). E esta molécula, universal nos seres vivos, é sintetizada de uma forma estranha. Seja em mitocondrias, bactérias, archaea ou cloroplastos, o que alimenta a reconversão de ADP em ATP é o fluxo de protões através de uma membrana. A célula ou organelo usa energia química ou da luz do Sol para empurrar protões (iões de hidrogénio) para fora, criando uma diferença de concentração entre os dois lados da membrana. Depois, enzimas sintetizam o ATP usando a “força” que os protões fazem para voltar a entrar.

Isto é intrigante por ser uma forma rebuscada de produzir energia. É como se usássemos geradores a gasóleo para bombear água para um tanque e depois turbinas para gerar electricidade esvaziando-o. Quando Peter Mitchell propôs este mecanismo, no final dos anos 50, os biólogos torceram o nariz. Mas acabou por receber o prémio Nobel em 1978 por esta descoberta. Que se foi tornando cada vez mais intrigante e interessante.

A genética molecular trouxe ferramentas para estudar o parentesco entre organismos e genes e revelou que os dois reinos mais antigos, Archaea e Bacteria, têm em comum essa enzima que produz ATP usando a passagem de protões pela membrana. Mas Archaea e Bacteria têm membranas celulares diferentes. As membranas celulares são compostas por fosfolípidos, moléculas compridas com uma extremidade polar, com afinidade pela água, e caudas apolares que tendem a aglomerar-se como gotas de óleo em água. As ligações químicas entre estas partes, a estrutura da cauda e até o grupo glicerol que se liga às caudas são diferentes entre estes dois reinos, o que sugere que os mecanismos de síntese da membrana evoluíram independentemente.

E isto é intrigante porque indica que o antepassado de Archaea e Bacteria produzia energia usando a diferença de concentração de protões entre os dois lados de uma membrana, tal como todos os seres vivos de agora, mas não sintetizava a sua membrana. Era um bicho muito estranho.

O que nos traz à geologia marinha. Quando a água do mar reage com a olivina, uma rocha composta por silicatos de ferro e magnésio, produz calor, hidrogénio e compostos alcalinos, criando chaminés parecidas com as chaminés vulcânicas mas de temperatura mais amena. Estas chaminés são formadas pela precipitação de carbonatos, quando os produtos alcalinos da reacção são neutralizados pela água do mar. E este processo cria uma rocha porosa, com poros de dimensão semelhante à das células, onde correntes de convecção e temperaturas suaves levam à acumulação de moléculas orgânicas. Possivelmente foi aqui que viveu o antepassado das Archaea e Bacteria.

O tal bicho estranho que não sintetizava as suas membranas era um aglomerado de proteínas, ADN, ARN e catalizadores inorgânicos a viver numa poro da rocha onde a acumulação de espuma orgânica lhe dava as membranas entre o interior alcalino e o exterior mais ácido. Nesse tempo o oceano era muito mais ácido que hoje, o que quer dizer que tinha uma concentração mais elevada de iões de hidrogénio. Os tais protões usados para sintetizar ATP.

Estas condições geológicas e químicas criavam nos poros da rocha um gradiente de protões como o que as células de hoje recriam. Uma concentração mais alta no exterior, o oceano ácido, e mais baixa no interior, no poro alcalino. Esta fonte de energia mesmo à mão pressionou a evolução de enzimas que a convertessem em moléculas úteis. O ATP, que ficou para a posteridade. Daí que esta parte do processo de produção de ATP seja igual em todos os organismos modernos. O que varia, e varia muito, é a forma como os descendentes deste ermita das furnas recriam o maná inicial daquele gradiente de protões. Queimam açúcares com oxigénio, usam luz do Sol, oxidam ferro, amónia, nitritos ou sulfitos, enfim, fazem tudo o que conseguem para bombear protões para fora da célula. Depois produzem ATP com a mesma enzima de sempre.

É uma hipótese. Há muito ainda a fazer para a testar. Mas é uma boa hipótese. Quer esteja certa quer se venha a descobrir que estava errada, dá-nos mais um degrau para avançar. Porque mostra relações entre dados, explica factos intrigantes e, sobretudo, impõe restrições às condições que vamos encontrar nestes sistemas. Se o antepassado comum a todos os seres vivos evoluiu em chaminés alcalinas, então esse ambiente teve de ser compatível com os mecanismos de síntese de ADN e ARN e proteínas, entre as quais a ATP sintase, a tal que faz ATP da passagem de protões. Tudo isto produz novas hipóteses testáveis que se pode explorar, confrontar com os dados, corrigir e melhorar. Ou seja, produz conhecimento.

É muito superior às histórias da carochinha que querem impingir em vez disto...

Escrevi isto por causa de um post do Larry Moran no Sandwalk, Ode to Peter Mitchell, que me levou ao artigo Was our oldest ancestor a proton-powered rock?, do Nick Lane na New Scientist. Recomendo que leiam ambos. Para quem gosta destas coisas, as páginas da Wikipedia sobre ATP synthase, Archaea e Bacteria também podem ter interesse.

terça-feira, outubro 20, 2009

Razões históricas.

O Jairo Entrecosto criticou as «la palissadas» com que se tenta explicar o sucesso do cristianismo. «O cristianismo é forte porque foi o que sobreviveu, existem cristãos porque as pessoas acreditaram em Jesus e não em outros. Sim, isso é um facto. Mas era muito importante saber; qual a razão histórica que justifique isso?»(1). Dou-lhe razão. Era bom compreender as causas deste fenómeno. No entanto, parece-me que o Jairo é demasiado exigente e parte de pressupostos errados.

Quais são as razões históricas para o sucesso do cubo de Rubik? Que tem graça e as pessoas gostam, que pegou a moda e assim, são mais «la palissadas». O próprio Rubik não adianta nada de concreto: «é um desafio intelectual, é acessível a pessoas de todas as culturas e ajuda a dar uma sensação de ordem e estabilidade num mundo incerto»(2). Fica por explicar porque se tornou famoso o cubo de Rubik em vez do dodecaedro de Fonseca ou o tetraedro de Lopes da Silva. O problema é que estes fenómenos são demasiado complexos para conseguimos dizer mais que “se calhar foi porque...”. E o cubo de Rubik surgiu há trinta anos e ainda se vende nas lojas. Para algo que se passou há dois mil anos, no meio de não sei onde e segundo contou sabe-se lá quem, num livro tão velho que já só há cópias de cópias, não é de esperar explicações detalhadas.

O Jairo defende que «o cristianismo, na sua origem, é uma religião distinta de qualquer outra» por o seu deus ser «uma figura histórica de carne e osso, que tenha andado por cá e ressuscitado.» Mas o budismo também tem uma divindade que supõe ser personagem histórica, a morte e ressurreição são temas comuns na mitologia e o cristianismo até se assume como um derivado do judaísmo. E há muitos cristianismos. Se virem um padre jesuíta a debater com um criacionista protestante verão de imediato que o cristianismo, na oferta de crenças, é mais bazar que capela. Por isso discordo que os cristianismos sejam mais carentes de explicação que quaisquer outras crenças religiosas. Pelos aspectos análogos das muitas religiões e pela dificuldade em apurar os detalhes acerca de acontecimentos tão antigos, o melhor é procurar explicações genéricas para as religiões em vez de focar uma só religião ignorando as outras, que é um erro de muitos crentes.

Considerando a diversidade religiosa da nossa espécie, é muito mais plausível que as religiões – sem excepção – sejam invenções humanas. Todas sofrem dos mesmos problemas e nenhuma se destaca como inspirada por um deus. O cristianismo começou como uma pequena seita judaica, espalhou-se discretamente até se associar ao poder e reprimir a concorrência, fragmentou-se conforme os impérios se dividiram, em ortodoxos, anglicanos e protestantes de várias espécies, e agora até algumas sucursais abrem falência para evitar indemnizar as vítimas de abusos sexuais (2). Os detalhes variam, mas o percurso é o normal para qualquer religião humana, sem nada que aparente ser divino.

A sua origem histórica também é pouco compatível com a obra de um deus todo-poderoso. Os judeus são os protagonistas do antigo testamento por razões óbvias mas, historicamente, o seu papel foi pouco relevante. Excepto para eles. Foram dominados pelos egípcios, pelos persas, pelos romanos e, mais tarde, perseguidos e oprimidos pelos cristãos semana sim, semana não. À excepção dos Rothschild, se são o povo escolhido foram escolhidos para apanhar.

Também é costume apontarem o cristianismo como excepcional por ter dado origem à civilização ocidental moderna. Se bem que o cristianismo tenha sido um atributo de quase todos os intervenientes importantes na revolução social e científica dos últimos séculos, também o foram os testículos, o chapéu, a cerveja e uma cara séria nos retratos. Em geral, é um erro inferir de uma mera correlação uma relação causal. E, neste caso em particular, não há razão para que a religião, o sexo ou essas outras características tenham sido mais que consequências das restrições culturais da época. E até podemos constatar que, conforme o progresso cultural e tecnológico tem acelerado, também se tem distanciado da religião. Só quem não lê notícias desde que Galileu nasceu é que pode confundir a Igreja Católica como um motor de progresso e inovação.

Em suma, para responder ao Jairo, não é verdade que os cristianismos sejam um fenómeno único. É certo que cada religião tem as suas manias, precisamente para se distinguir da concorrência, mas não há nada nas várias versões do cristianismo que careça de uma explicação extraordinária. E se bem que também gostasse de perceber os porquês desta coisa toda, não me parece realista exigir uma explicação detalhada para ter sido aquela seita, e não outra das muitas da altura, a religião oficial do Império Romano. Mais fácil seria explicar o sucesso do cubo de Rubik e ainda não vi quem o fizesse...

1- Comentário em Plausibilidade.
2- Time, 2-1-09, The Rubik's Cube: A Puzzling Success
2- Público, 20-10-2009, Diocese norte-americana declara falência para fugir a julgamento por abusos sexuais. Obrigado pelo email com a notícia.

domingo, outubro 18, 2009

Treta da semana: Terapia da Música do Cristal.

Por alguma razão (deve ser karma), recebo regularmente emails da Indian Rose (1). Esta semana vinha a anunciar «o regresso de Bradford W. Tilden a Portugal ». Segundo o email, «De Outubro a Dezembro, vai dar continuidade aos trabalhos já iniciados com cristaloterapia e som, e dar inicio a novos cursos. […] Para além de todas as actividades já mencionadas, Bradford vai realizar, pela primeira vez em Portugal, dois concertos de piano, que terão lugar em Dezembro, e prometem ser uma experiência única.» O tipo é fantástico. Não é qualquer um que proporciona uma experiência única duas vezes.

No site do, segundo o próprio, talentoso Bradford, podemos ver uma «condensação dos muitos talentos do Bradford que incluem Música de Piano Original, Cura por Cristais e Pedras Preciosas, Cura por Som, Supercomidas e mais.»(2) Vem até com a explicação como estas terapias funcionam, segundo a tão famosa disciplina de física-quântica-da-treta:

«O Tempo Branco Universal ensina uma abordagem científica às terapias por pedras preciosas baseada em como as frequências emitidas por cristais diferentes, pedras preciosas e várias combinações afectam as nossas vibrações ao nível sub-atómico do nosso ser. A este nível, os cientistas descobriram que os átomos são feitos de cordas de energia a vibrar a várias velocidades. Isto significa que toda a matéria é simplesmente som cristalizado criando uma estrutura que pode conter luz.» (3)

Alguns neo-físicos, também conhecidos como ultra-físicos, chegam a dizer em público que isto é um disparate e alegam haver um conflito entre a Cristaloterapia Musical e a ciência. Isto começa logo por ser a falácia comum da técnica de Dizer que Há Conflito. É muito fácil de refutar. Considerem o seguinte diálogo, perfeitamente realista e nada inventado.

NEO-FÍSICO: Há aí um conflito porque essa coisa do som cristalizado contendo luz não faz sentido nenhum na física moderna.
REFUTADOR: Ah, mas você pode PROVAR que não faz sentido NENHUM?
NEO-FÍSICO: Sim... o som são ondas de choque que se propagam na matéria, pelo movimento de partículas, enquanto que um cristal é uma estrutura ordenada de átomos ou moléculas. E a luz não tem nada a ver com isso...
REFUTADOR: Sim, você prova que não tem ESSE sentido. Mas pode provar que não tem sentido NENHUM? NENHUM MESMO? HEIN?
NEO-FÍSICO: O quê?... Mas...
REFUTADOR: AHA! Está refutado!

Como se vê, a refutação é automática e nem é preciso saber nada de física. Basta ir insistindo até o outro desistir. Além disso, estes ultra-físicos, ao tentar destruir a visão do mundo dos cristaloterapeutas musicais, cometem o erro de não reconhecer como a subjectividade é o mais importante nas teorias acerca da realidade. Não interessa se os cristais curam mesmo ou não. O que interessa é adiarmos uns meses a ida ao oncologista e ficar a ouvir os CD deste senhor com um cristal na mão até ser tarde demais. Porque se alguém morrer desta maneira, no hospital, obviamente, só dá mais um exemplo de como a ciência e a medicina convencional não resolvem tudo.

Para quem estiver interessado, aqui fica o anúncio da workshop na próxima sexta-feira.

O Bradford é um músico com formação académica na área do piano, que enveredou depois pela área da cura através da formação em massagem, cura pelo som, Cristaloterapia com Tempo Branco e Cura com Tempo Branco. Hoje em dia abraça também o projecto de criar a Escola Lemuriana de Cura Natural Intuitiva.»

Tendo formação na área do piano e na área da cura, presumo que a escola seja na área da Lemúria ou arredores...

1- www.indianrose.pt.
2- Crystal Music Healing
3- Crystal Music Healing, Universal White Time Gemstone Healing & Lemurian Intuitive Crystal and Sound Healing

sábado, outubro 17, 2009

Plausibilidade, de novo.

O Ricardo, do Companhia dos Filósofos, ficou tão espantado com o meu post sobre a plausibilidade (1) que decidiu «escrever uma resposta ao mesmo.» Eu propus que, perante um relato, se use as evidências de que se dispõe para avaliar a plausibilidade das alternativas, duas das quais são o relato ser factual ou ser fictício. Mas, obviamente, podemos considerar hipóteses mais detalhadas, como o relato ser factual em certos aspectos e fictício noutros, por exemplo. Em resposta, o Ricardo escreveu:

«Contudo o que é o «mérito relativo»? Ludwig nada nos diz. Como pode Ludwig apresentar um ponto de partida melhor, se não o explica? No que é que consiste esse seu ponto de partida? [...Q]ue evidencias são essas? […] Será que estas «evidências» bastam para justificar algo?Porque é que o relato da ressurreição de Jesus é implausível à partida? Com que critérios? Com que argumentos?»

Felizmente, parece-me que o Ricardo subestimou a sua compreensão da ideia. Compensando os muitos defeitos do meu post, o Ricardo deu dois bons exemplos daquilo que eu queria dizer.

«Um relato pode ser factual não sendo plausível, e também um relato pode ser plausível e ser fictício. Vejamos o seguinte exemplo: se alguém me desse o testemunho de uma mulher ter sido mãe aos 65 anos de idade na Índia onde a esperança média de vida das mulheres ronda os 63 anos, eu diria que era um relato muito pouco plausível. Porém esse relato, «pouco plausível», constitui um facto verdadeiro.[...] Agora vejamos um outro exemplo: vou na rua e encontro um amigo que me dá um relato de ontem ter se desmoronada uma casa num bairro X. Eu conheço esse bairro e sei que ele é composto por casas bastante velhas e mal tratadas. Por isso, o relato dele é plausível. Agora acontece que depois de o ter encontrado, seguindo o meu trajecto, passo por esse bairro X e vejo que nenhuma casa se encontra desmoronada.»(2)

Uma coisa que por vezes omito, assumindo erradamente que todos já sabem, é que quando avaliamos se algo é plausível, ou formamos um juízo acerca da verdade de uma proposição, não o fazemos para todo o sempre. Fica sujeito a revisão posterior se novos dados o justificarem. Como o exemplo do Ricardo demonstra. Inicialmente, considerou plausível que a casa tivesse desmoronado e implausível que a senhora de 65 anos tivesse dado à luz. Com base nas evidências que tinha era a conclusão mais razoável. Mas a notícia do parto explica que foi por inseminação artificial, com tratamentos de fertilidade e um óvulo da sobrinha de 26 anos (3). Além disso, dado o detalhe da notícia e as fontes que a divulgaram, se fosse mentira era de esperar que alguém o apontasse. Isto torna mais plausível que o relato seja verdadeiro. Por outro lado, se o Ricardo vê que a casa não desmoronou tem razões para concluir que o que lhe disseram não era verdade.

Assim é fácil responder às muitas perguntas da resposta do Ricardo. O Ricardo já sabe as respostas. Demonstrou ser perfeitamente capaz de avaliar a plausibilidade de dois relatos com base nas evidências que tinha, que mulheres de 65 anos não engravidam e que casas velhas provavelmente desmoronam. Mais importante ainda, mostrou ser capaz de rever essa sua estimativa quando as evidências indicaram o contrário, concluindo que afinal a mulher engravidou e que o amigo lhe tinha mentido. Agora resta apenas ao Ricardo manter esta atitude afastada de assuntos como a ressurreição de Jesus e afins. Porque se só aceita que uma mulher de 65 anos tivesse engravidado quando lhe dão evidências à altura da alegação, se lhe dá para ser consistente arrisca não só a confiança nos dogmas da sua fé mas talvez até o curso ou a carreira.

O Andreas Lind, a quem agradeço a referência ao post do Ricardo, comentou acerca de avaliar o mérito de um relato. «Ao fim ao cabo, essa escolha assentará sempre numa crença (por mais justificada que seja, trata-se de uma crença).» (1) Tem toda a razão. Sempre que formamos uma opinião acerca da verdade de uma proposição formamos uma crença. Ou na proposição, se a julgamos verdadeira, ou na sua negação se a julgamos falsa. Mas a questão é precisamente se a crença é justificada. Ou seja, se é racional, no sentido de haver razões que a fundamentem. E é aqui que surge uma confusão infeliz entre dois usos do termo “razão”, um mais lato e outro mais estrito.

O Andreas explica que «se for um grande amigo» que nos relata algo, «se for o nosso pai ou alguém que, pelas mais variadas razões, nos mereça muita confiança, confiaremos: tenderemos a acreditar. Mais, o modo do relato ser feito também nos leva a acreditar ou não no mesmo.» Isso é verdade mas nem tudo isso é razão no sentido de um fundamento racional. Eu posso acreditar em alguém porque me dá jeito, porque tenho medo de discordar, por distracção ou credulidade. Tudo isso me pode levar a formar crenças. Mas esses factores são mais causas que razões. Razões a sério fundamentam a conclusão de forma independente do sujeito. É para isso que elas servem. Se tenho razões para uma crença consigo mostrar aos outros que a crença é justificada. Quando acredito porque confio, porque me apetece ou porque sei lá, toda a gente diz que é assim, então não tenho razões. E é aí que está a diferença. Nas razões, e não em ser mais ou menos crença.

1- Plausibilidade
2- Ricardo, Mas que «Plausibilidade»? - Resposta a Ludwig Krippahl
3- BBC Brasil, Indiana de 65 anos pode ser a mãe mais velha do mundo

sexta-feira, outubro 16, 2009

Incentivar a inovação.

A função das patentes é compensar e incentivar o investimento em investigação e desenvolvimento concedendo um monopólio sobre a exploração. É uma boa ideia quando o negócio compensa à sociedade. Ou seja, quando é mesmo preciso que a sociedade financie a inovação e o custo de conceder o monopólio é inferior ao de outras formas de financiamento. Se não for esse o caso a patente é um mau negócio para a sociedade. Inibe a inovação e a concorrência e paga caro algo que custa, ou vale, pouco. Por isso não se devia conceder patentes a qualquer inovação, mas apenas àquelas que justifiquem este investimento da sociedade, que compensem o custo de oportunidade de monopólios que inibem outras inovações e que não possam ser financiadas de outra forma.

Um exemplo de uma patente que não devia ter sido concedida é esta da Google, para «Um sistema incluindo um data-center montado numa plataforma flutuante, consistindo numa pluralidade de unidades de computação, um gerador baseado no mar em ligação eléctrica com a pluralidade de unidades de computação, e uma ou mais unidades de arrefecimento com água do mar para refrigeração da pluralidade de unidades de computação»(1). Ou seja, ter computadores em algo que flutue ou perto do mar. Se alguém usar um barco, plataforma petrolífera, ou mesmo uma casa à beira mar para ter um data-center tem de pagar à Google. Isto é um mau negócio para a sociedade porque em vez de pagar o esforço de inovar serve apenas para obstruir a concorrência. Este tipo de concessões está a tornar-se cada vez mais comum, grave e absurdo por causa da popularidade crescente de duas ideias erradas.

Uma é a propriedade intelectual, a ideia que ideias têm dono. A justificação principal para a propriedade é proteger cada um de ser privado daquilo que tem. Da camisa, do carro, da casa onde vive. Algo que deixe de ter se outro passar a tê-lo. Por isso é que não precisamos de leis de propriedade para palavras, números, costumes, tipos de nós e combinações de cores na roupa que vestimos. Todo o sistema de ensino, toda a nossa cultura e civilização funcionam por ser desnecessário tratar ideias como propriedade. Na verdade, tratar as ideias como propriedade é a única maneira de deixarmos de ser donos do que pensamos, dando o poder legal a outros de nos vedar o acesso a informação pública.

A outra ideia errada é que a obrigação de pagar vem do usufruto em vez de ser consequência dos custos que impomos aos outros ou daquilo que prometemos dar em troca. É como se me sentar no meu quintal à sombra da árvore do vizinho me obrigasse a pagar-lhe o mesmo que se o tivesse contratado para plantar a árvore. A remuneração pelo usufruto, por si só, não faz sentido. E estas ideias transformam o comércio em extorsão. Aquilo que devia ser uma interacção voluntária na qual ambas as partes dão algo torna-se um acto coagido em que uma das partes é forçada a pagar e a outra não dá nada em troca.

As patentes e o copyright não devem ser vistas como um direito de propriedade ou um dever de quem usufrui. São um incentivo e uma forma de pagar o investimento na inovação. Por isso deve ser concedidos apenas quando estes monopólios forem uma forma necessária de financiamento e quando a inovação resultante justificar o custo, que inclui não só o que o consumidor paga mas também o sistema legal e os obstáculos à criatividade, divulgação cultural e livre concorrência. Anedotas, receitas, canções, histórias, filmes ou lembrar-se de pôr os computadores num barco ficam muito abaixo dessa fasquia.

Obrigado pelo email com a ligação para a patente.

1- US Patent and Trademark Office, United States Patent Application 20080209234, Water-Based Data Center

terça-feira, outubro 13, 2009

Plausibilidade.

O António Parente comentou que «Existem testemunhos que [afirmam] ter Jesus ressuscitado. Dado que é um acontecimento único e não repetível, é motivo para [considerar] Jesus como Deus.[...] Claro que todo este esquema de prova parte da hipótese da credibilidade do testemunho» e perguntou «O que faz com que um testemunho histórico seja credível?»(1).

O problema é este “esquema de prova”. Não faz sentido que se comece por escolher uma hipótese como verdadeira, excluindo qualquer alternativa, antes sequer de considerar as várias hipóteses e evidências. Em vez desta “prova”, cujo valor nunca é maior que o da escolha inicial, o que devemos fazer é avaliar cada hipótese para escolher a mais plausível.

O que temos acerca da ressurreição de Jesus é um relato escrito alegando ter havido testemunhas desse feito notável. E, perante um relato de um alegado acontecimento, há duas hipótese que se apresentam de imediato. Ou o relato corresponde a um facto ou é um relato fictício. Considerar o mérito relativo destas hipóteses é um ponto de partida melhor que simplesmente optar por uma e ficar-se por aí. Isto aplica-se aos relatos bíblicos e a quaisquer outros.

Por exemplo, uma placa suméria de 1850 AC relata um julgamento de três homens acusados de assassinar um quarto. O texto conta o que disseram as testemunhas, que a mulher do assassinado permaneceu calada quando soube do sucedido, que os acusadores queriam que a mulher fosse também condenada mas que a “assembleia de Nippur” decidiu condenar apenas os três assassinos e ilibar a mulher por não ter morto ninguém (2). Como relato factual é plausível mas é pouco plausível que seja ficção. Além disso, mesmo que seja ficção, provavelmente estará próximo da realidade. Por isso, neste caso, é razoável dar credibilidade a este relato a menos que haja evidências em contrário.

Outro relato sumério antigo conta como Inanna, deusa do amor e da luz, desceu ao inferno, jazeu morta durante três dias e três noites e depois voltou à vida. E, quando voltou, trouxe consigo espíritos de várias pessoas mortas (3). É curiosamente parecido com o relato da ressurreição de Jesus segundo Mateus. Neste, quando Jesus ressuscitou também ressuscitaram vários mortos (Mateus 27:52). Nestes casos, os acontecimentos relatados são implausíveis à partida. E a hipótese de se tratar de um história inventada para ilustrar algum conceito, dar esperança, convencer ou algo assim é plausível porque temos evidência que as pessoas gostam deste tipo de história. O herói que vence a morte é um tema recorrente em muitas culturas.

Ao contrário do António Parente, eu não tento “provar” algo decidindo dar credibilidade a um relato só porque sim. É mais correcto considerar as várias alternativas, confrontá-las com as evidências que permitam avaliar a verosimilhança dos relatos e a propensão humana para inventar histórias e, na ausência de outros indícios, usar esses dados para escolher a hipótese mais plausível.

É por isso que aceito que na Suméria a assembleia de Nippur condenava assassinos mas rejeito que o filho do carpinteiro tenha sido um deus e tenha ressuscitado, ou que a deusa dos céus tenha descido ao inferno e voltado. Porque num caso o mais plausível é tratar-se de um relato factual e, nos outros, de histórias inventadas. São histórias apelativas, reconheço, e certamente comoveram e deram esperança a muita gente. Mas são ficção. Não há razão para inferir que um relato é factual só por ser popular ou ter um grande impacto. É até comum pessoas sentirem-se mais movidas e tocadas pela ficção que pela realidade.

1- Comentário em Treta da semana: o ónus da prova.
2- Samual Noah Kramer, A história começa na Suméria, Circulo de Leitores, p.83.
3- Sacred Texts, Myths of Kur

segunda-feira, outubro 12, 2009

Moral absoluta.



E, por falar em moral e assim,

sábado, outubro 10, 2009

Treta da semana: o ónus da prova.

É comum ateus, e cépticos em geral, alegarem que o ónus da prova recai sobre os crentes porque estes é que propõem que algo existe, seja o monstro de Loch Ness seja Deus. Isto não é correcto. Dá a ideia, errada, que não é preciso fundamentar a tese que não existem deuses ou monstros nos lagos só porque se afirma que algo não existe em vez de afirmar que existe. Mas não é o tipo de tese que nos responsabiliza pelo seu fundamento. O ónus da prova recai sobre quem defenda qualquer tese. É a responsabilidade de propor algo como verdade, devido à promessa implícita, de quem participa num diálogo, de explicar ao outro o que defende. Se recusamos o ónus da prova prescindimos de defender a nossa posição ou desistimos de um diálogo racional.

Mas “prova” aqui é no sentido de um teste para aferir a plausibilidade da tese proposta. É um erro alegar não ter o ónus da prova por não se poder provar a inexistência de algo porque isto é confundir o sentido de “prova”. Se eu propuser que não há tigres à solta no Chiado não é razoável exigir uma demonstração matemática. Não o posso provar nesse sentido. Mas tenho o ónus de mostrar que a minha tese é plausível e, neste caso, basta apontar que não há indícios de pessoas atacadas por tigres no Chiado. Se da existência de algo prevemos certos efeitos e não os encontramos justifica-se concluir que a coisa não existe. A calma das pessoas a ver montras é um forte indício de não haver tigres lá perto. Isto suporta perfeitamente o ónus da prova.

Da mesma forma, se alguém propõe que algo existe incorre na obrigação de mostrar que a sua tese é a mais plausível. Se não o fizer é razoável rejeitá-la. O bule de Russell é um exemplo famoso. Para rejeitar a hipótese que há um bule a orbitar o Sol basta que quem o proponha não apresente indícios de haver tal coisa, pois assim não há razão para tomar a afirmação como verdadeira. Por isso, como disse Russell, não é ao céptico que compete provar a inexistência de algo ou, mais genericamente, a falsidade de uma afirmação. É quem a diz ser verdade que tem o ónus da prova. Mas isto deve-se a propor uma tese. Seja pela existência seja pela inexistência, qualquer tese requer fundamento.

Por isso, quando o ateu vai além da mera rejeição das hipóteses dos crentes, por lhes faltar fundamento, e afirma que nenhum desses deuses existe passa a carregar também o ónus da prova. Para justificar o “não me convences” basta a outra parte não mostrar que a sua tese é a mais plausível. Mas para justificar o “isso é falso” já é preciso mostrar que é esta a hipótese mais plausível. Tal como quem afirma não haver tigres à solta no Chiado, o ateu tem o ónus de mostrar que é mais plausível não existir deuses.

Mas não é preciso uma prova matemática da inexistência de tigres ou deuses. É preciso apenas mostrar que essa é a hipótese mais plausível. E aqui a ausência de indícios esperados é determinante. Se está tudo calmamente às compras é plausível que não andem lá tigres à solta. Pela mesma razão, cada criança que fica sem pernas por pisar uma mina, morre de cancro ou nasce com uma doença genética sugere fortemente que não existe um ser benévolo e omnipotente preocupado connosco. É claro que se pode propor que os tigres são invisíveis e só mordem as almas das pessoas, que só dão por ela depois de morrerem. Mas essas hipóteses são, logo à partida, pouco plausíveis. E, mais importante que isso, a hipótese de não existirem continua a ser a mais plausível. Não é por pintar algo de invisível que a sua existência se torna mais plausível à falta de quaisquer evidências.

Por isso acho que, nestas conversas, devemos focar a plausibilidade de cada hipótese em vez de tentar passar a batata quente para o outro. Isto ocorreu-me porque aconteceu com o Ricardo Silvestre e uma senhora espírita no passado dia 2 (1). Ela pediu que ele provasse não existirem espíritos, ele disse que o ónus da prova era dela e ela disse que «o ónus é exactamente igual». E tinha razão. Se um afirma que existe e o outro afirma que não existe têm ambos o dever de fundamentar as suas teses. Mas isto não é só problema do Ricardo, por isso não quero focar esse episódio em particular.

O problema é uma confusão comum entre o dever de justificar uma tese e a dificuldade de provar, em definitivo, que algo não existe. A tal ambiguidade do termo “provar”. Apesar de ser muito difícil provar, no sentido forte, que uma coisa não existe, é relativamente fácil pôr à prova as teses da sua existência e inexistência e aferir qual delas é a mais plausível. E é isto que suporta o ónus da prova. Em relação aos extraterrestres que roubam mamas de vaca, aos santos que curam salpicos de óleo, às almas, espíritos, deuses e companhia, a hipótese que não existem é muito mais plausível que a enorme salada de alternativas que os crentes propõem.

1- Portal Ateu, Mais uma oportunidade para ver… a Arádia (actualizado)

quinta-feira, outubro 08, 2009

O desafio do Bernardo.

«Termino com um desafio: peço ao Ludwig que me aponte uma contradição, basta apenas uma, entre doutrina católica e ciência.» (1)

Mais que um conjunto de crenças, a ciência é o processo de escolher e transformar crenças para formar ideias correctas acerca da realidade. Por isso a ciência subordina as crenças aos dados. Se estes contradizem uma hipótese a ciência recomenda crer essa hipótese falsa. E se não há dados que favoreçam uma hipótese a ciência recomenda que não se confie nessa. As religiões vão no sentido inverso. Cada religião define-se por um conjunto fixo de crenças, costumes e rituais. São o seu fundamento, à luz dos quais interpretam tudo o resto, e exprimem os anseios e tradições do povo de origem e dos povos que a adoptaram. Estas abordagens são incompatíveis. Enquanto a ciência visa escolher hipóteses segundo critérios objectivos de adequação à realidade, independentes do sujeito, as religiões são manifestações de subjectividade que projectam sobre a realidade o acto pessoal de crer.

A diferença é óbvia ao longo da história. Filósofos gregos especularam que o universo seria feito de água, fogo, ar ou terra. Os alquimistas elaboraram a especulação e, eventualmente, nasceu a química e a moderna teoria dos átomos. Ficou muita treta pelo caminho mas, como o processo foi guiado pelos dados, os gregos até podiam ter proposto que o universo era feito de marmelada ou arenques fumados. Tanto fazia. Mais cedo ou mais tarde, empurradas pelo que se observa, estas especulações acabariam por convergir numa descrição mais próxima da realidade. Coisa que o fundamento subjectivo das religiões impede. Por isso as religiões divergem constantemente, e o seu número só não cresce sem parar porque muitas duram pouco. Religiões e ciência são incompatíveis à partida porque não podemos subordinar as crenças aos dados que obtemos ao mesmo tempo que assentamos uma visão do mundo num crer arbitrário. E porque não podemos encontrar formas objectivas de seleccionar crenças ao mesmo tempo que nos governamos por actos pessoais de fé.

Isto não impede que alguém seja religioso e cientista. Também há pára-quedistas que fazem mergulho. Mas a capacidade humana para fazer e pensar coisas incompatíveis não faz com que deixem de o ser. Não é por um cientista ir à missa que provam a compatibilidade. Para isso teriam de mostrar como se faz ciência com rezas, fé e dogmas religiosos.

E não é só no processo que há contradição. Também naquilo que é aceite como verdade as religiões contradizem a ciência. Por exemplo, muitas religiões – entre as quais a católica – afirmam a existência de seres conscientes e imateriais. Deus, almas, anjos, espíritos santos. E isto a ciência diz, claramente, ser impossível. Não é algo que esteja fora do conhecimento científico nem dependente dos modelos ainda incertos da neuropsicologia. É algo que segue da física mais fundamental. O processamento de informação, no sentido mais lato que abrange certamente qualquer forma de consciência, exige energia e acarreta custos em entropia. Disso não há escapa. A menos que a ciência moderna esteja redondamente enganada.

Os poderes do deus católico são outro exemplo. As teorias científicas servem-nos por serem claras e explícitas, e a teoria da relatividade é das melhores que temos nisso. Quando nos diz que não se pode acelerar objectos à velocidade da luz é mesmo isso que quer dizer. Não há excepções, nem para o Capitão Kirk, nem para o Kal El nem para o Jeová. Não se pode. Ponto. É assim que se faz em ciência porque se a teoria é correcta, desta forma dá-nos uma visão clara e útil da realidade. E se a teoria for incorrecta damos logo com o gato. Por isso, afirmar que um amigo invisível pode acelerar coisas a velocidades superiores à da luz contradiz a ciência moderna. Da cosmologia ao GPS, muito na ciência depende de ser impossível fazer tal coisa.

Para disfarçar esta contradição é costume alegar-se que Deus opera num domínio diferente ou que ele é que criou as leis da natureza e pode fazer o que quiser. Nada disso serve. Só há duas possibilidades. Ou a ciência está correcta nisto e é impossível deslocar objectos mais depressa que a luz. Ou não é impossível e a ciência está enganada. Torçam-se como quiserem, mas dizer que há um deus que o pode fazer é contradizer a ciência.

E há os milagres, que os católicos adoram. Literalmente. Quando alguém se cura e dá jeito mais um santo, reúne-se cientistas para certificar que a cura é cientificamente impossível e oficializa-se o milagre. É uma fantochada, é certo. Não há qualquer contradição porque não há milagre. Há só aldrabice e trapalhada. Mas a ideia que querem transmitir é que o deus católico manda na ciência. A ciência diz que não pode e vem Deus e, pimba, já está. Os milagres são cartazes publicitários apregoando a incompatibilidade entre pensar objectivamente na realidade e acreditar que isto anda tudo a mando do homem invisível.

É claro que o Bernardo vai dizer que Deus é um ser transcendente, que está para além do tempo e do espaço, é incompreensível para a mente humana e essas coisas. O que o leva a mais uma contradição com a ciência. Em ciência, essas desculpas são inaceitáveis. Porque não há maneira nenhuma de saber se isso é mesmo assim ou se é tudo treta. Nem faz qualquer diferença...

1- Bernardo Motta, 6-10-2009, «Crenças e diferenças»

quarta-feira, outubro 07, 2009

Um delírio de refutações.

O blog do Luciano Henrique, “Neo-ateísmo, um delírio”(1), tornou-se popular aqui nos comentários desde que o Nuno Gaspar descobriu a conveniência de remeter quem discorda dele para textos longos e incoerentes escritos por outros. É prático e mais seguro que expor à crítica ideias escritas por palavras suas. E se alguém se der ao trabalho de ler os posts do Luciano e notar que não adiantam de nada, o Nuno só precisa copiar mais uma ligação e dizer “este é que é”.

Mas o Luciano tem uma forma intrigante de demolir o ateísmo. Como «fã da aplicação do método científico para resolução de problemas corporativos» e auto-proclamado «especialista em ceticismo empresarial»(2), de um fardo de palha inventa um conjunto de técnicas que diz refutar facilmente. Tem índice e tudo, onde promete coisas como «Técnicas de Pseudo-Consultoria» e «Técnicas de Disfarce Científico»(3). E as refutações do Luciano são tão boas que se refutam a elas próprias.

Segundo o Luciano, a «Leitura Mental consiste em agir tomando como premissa de que se tem o poder de telepatia de forma a conseguir ler o pensamento de outra pessoa»(4). À letra, a definição aplicar-se-ia apenas a quem se dissesse telepata, o que é pouco útil. Mas o uso que o Luciano lhe dá sugere que se refere a quem quer que forme uma opinião acerca daquilo que o interlocutor pensa. Precisamente o que o Luciano faz, se bem que diga ser sem querer: «Como não quero “ler a mente” dos neo-ateus, afirmarei várias possibilidades para o uso da Leitura Mental, podendo ser desonestidade intelectual, fanatismo, raciocínio de auto-ajuda, credulidade pura e/ou então ingenuidade argumentativa.»

Outra técnica que o Luciano diz refutar é a da «Seleção do Adversário», que «funciona basicamente da seguinte maneira: por medo de falar sobre interpretações corretas de ciência e religião, eles afirmam que ciência e religião estão em luta, e então colocam um componente da entidade que dizem defender (ciência) em duelo com um componente falso (ou mal associado) do adversário (religião)» (5). À parte de se esquecer de não ler a mente do adversário, descaindo-se ao dizer que é por medo, o Luciano esquece-se também que, nas religiões, o que uns crentes dizem falso outros dizem verdadeiro. E, ao contrário da ciência, as religiões não têm maneira de saber quem tem razão. Cada um diz que o seu deus é que é infalível, que o seu livro é que é perfeito e que a sua fé é que é fonte de sabedoria. Ninguém se entende. Além disso, nesta “refutação” o Luciano faz precisamente o que refuta: «Muitos neo-ateus NÃO SÃO CIENTISTAS (raros deles são) e fingem serem “representantes da ciência’. Eles costumam ficar irritados quando se descobre que eles não são o que afirmam ser.» Ou seja, coloca um componente da entidade que diz defender em duelo com um componente falso (ou mal associado) do adversário. Conheço muito mais ateus cientistas que ateus que se digam “representantes da ciência” ou que, não sendo cientistas, fiquem irritados quando se descobre que não são.

Estas restrições podem parecer estranhas. No fundo, o Luciano condena que se escolha as teses contra as quais se argumenta ou que se tente perceber o que o outro está a pensar. Quando saber com quem estamos a dialogar e perceber o que o nosso interlocutor pensa são peças fundamentais de qualquer diálogo produtivo. Mas há que considerar o contexto das refutações do Luciano. Imaginem. Sábado de manhã. Toca a campainha. Duas pessoas bem vestidas à porta, de livrinho debaixo do braço. Uma pergunta uma banalidade qualquer, começando por “Jovem...”. Independentemente da resposta que dermos, olha para longe e começa a recitar uma lengalenga acerca de Jesus, da salvação, da fé, da Palavra e assim por diante. E evita qualquer destas grandes falhas de considerar a quem se dirige, o que o interlocutor possa pensar daquilo ou sequer de pôr o cérebro a trabalhar (afinal, ao Sábado não se pode trabalhar).

Outra pérola, e um monumento à ironia, é a técnica da «Defesa associada à fragilidade»(6). O Luciano explica que os ateus acusam os crentes de só tentarem atacar os argumentos dos ateus por não terem fundamento para as suas crenças. Como fazem os criacionistas, que tentam baralhar a teoria da evolução como se isso provasse que Jesus fez cada animal e planta. E como é que o Luciano “refuta” isto? É genial. Faz exactamente isso:

«NEO-ATEU: Vocês ficam tentando refutar os ateus pelo simples fato de que não estão seguros de que a religião está certa.
REFUTADOR: Você tem como PROVAR que esse é realmente o motivo pelo qual os teístas se defendem da difamação feita por Richard Dawkins e sua turma?»


Fico por aqui. Há muito mais, mas já cocei o que tinha a coçar. Prossigo agora com o programa habitual.

1- neoateismodelirio.wordpress.com
2- Neo-ateísmo, um delírio, About
3- Neo-ateísmo, um delírio, Conhecendo o inimigo
4- Neo-ateísmo, um delírio, Leitura Mental
5- Neo-ateísmo, um delírio, Seleção do Adversário
6- Neo-ateísmo, um delírio, Técnica: Defesa associada à fragilidade

terça-feira, outubro 06, 2009

Próximo passo: cortar os fios.

O Pirate Bay mudou-se recentemente da Suécia para a Ucrânia, porque na Suécia todos os ISP que hospedavam este site recebiam imediatamente ameaças da MPAA (1). Mas o tráfego de dados para os servidores do Pirate Bay na Ucrânia é reencaminhado por um ISP holandês, NForce. E agora a BREIN, a organização holandesa anti-piratas, pressionou o NForce para bloquear o acesso ao Pirate Bay (2). Isto é novidade porque desta vez estão a agir sobre quem apenas presta um serviço de reencaminhamento de dados, e não quem alberga o site. E reencaminhamento é o que fazem todos os ISPs na Internet.

Neste momento o Pirate Bay está inacessível, mas é provável que seja por pouco tempo. O que me faz suspeitar que a RIAA e a MPAA já compraram pás e picaretas e estão a preparar as próximas medidas de combate ao roubo de bits. Se os virem a arrancar fios na vossa rua, não se admirem...


1- Remixtures, 5-10-09, Pirate Bay ruma para as águas da Ucrânia
2- TorrentFreak, 5-10-09, BREIN Disconnects The Pirate Bay, For Now

segunda-feira, outubro 05, 2009

Legal, 8.

Em 2005 a Autodesk começou a enviar notificações à eBay, ao abrigo do DMCA (1), mandando retirar das listagens os programas que Timothy Vernor vendia em segunda mão, como o AutoCAD. Ao fim de uma meia dúzia de notificações, que Vernor sempre contestou, a eBay cancelou-lhe a conta. Em 2007, Vernor processou a Autodesk por danos e por abuso do DMCA (2). A Autodesk requereu um juízo sumário do processo alegando que não vende o software, que apenas o licencia aos seus clientes. Mas o juiz rejeitou a pretensão porque a transacção tem as características de uma venda e não de um mero licenciamento ou aluguer. Não é apenas por dizer o contrário no pacote que o comprador perde os direitos que a lei lhe garante (3).

Na semana passada um tribunal de Seattle deu razão a Tomothy Vernor no que toca à venda de software em segunda mão. A Autodesk alegou que as restrições que impõe aos seus utilizadores significam que não lhes vende o software, que apenas licencia o seu uso, mas o juiz considerou esse argumento insuficiente para negar, a quem compra um produto, o direito de o vender posteriormente. A ainda bem. Uma licença dessas na capa dos livros acabava com as bibliotecas e os livros em segunda mão. No entanto, o juiz não considerou que a Autodesk tivesse abusado da legislação de copyright. O que pode ser juridicamente correcto mas mostra que o DMCA é que é uma lei abusiva, permitindo, na prática, que alguém seja condenado por mera acusação (4).

Foi o que aconteceu em 2006 quando a cadeia Best Buy mandou retirar do BlackFriday, um agregador de preços, as listagens de preços das suas promoções. Ao usar o DMCA para isto a Best Buy estava a reclamar copyright sobre os seus preços. Apesar de absurdo, o BlackFriday não tinha uma alternativa segura que não fosse retirar os preços, pois o DMCA coloca o ónus da prova sobre o acusado. Culpado até que se demonstre inocente (5).

Para quem não quiser gastar dinheiro com o AutoCAD, segundo os peritos o ArchiCAD é melhor (6). E se não querem ter preocupações com o que compram, podem fazer como uns senhores na Suécia que assaltaram um armazém de onde roubaram uns largos milhões em notas, que estavam lá aguardando distribuição pelas caixas multibanco lá do sítio. Roubaram um helicóptero, desceram para o telhado, usaram explosivos para entrar enquanto a polícia cercava o armazém e aguardava reforços. Depois carregaram o dinheiro para o helicóptero deles enquanto o da polícia ficou parado porque alguém deixou uma caixa marcada “Bomba” ao lado (7).

Na Alemanha, mais um inconveniente para os protectores do copyright. No lançamento do último filme do Harry Potter, a Warner Brothers deu instruções aos operadores dos cinemas para colocarem pessoal de vigilância com óculos de visão nocturna, não fosse algum assaltante como aqueles da Suécia roubar o filme com uma câmara de filmar. Mas no estado de Sachsen-Anhalt, as autoridades obrigam os cinemas que tomarem estas medidas a avisar os espectadores antes de vender os bilhetes (8). Se a medida se generalizar é provável que passe a haver menos gente a espiar os casais de namorados à conta da “pirataria”.

1- Wikipedia, Digital Millennium Copyright Act
2- Ars Tecnhnica, 23-09-2009, Autodesk sued for $10 million after invoking DMCA to stop eBay resales
3- Ars Technica, 23-05-2008, Court smacks Autodesk, affirms right to sell used software
4- MacWorld, 2-10-2009, Autodesk Vs Vernor: US judge rules secondhand software sales OK
5- ArsTechnica, 14-11-2006, Best Buy tries to copyright sales prices
6- OK, só conheço um perito. E é meu irmão. Mas tem aqui uma data de dicas para quem usar o ArchiCAD: Architruques
7- The Local, 24-9-09, Helicopter robbery - how it happened e 5-10-09, Helicopter heist hits global top ten list. Também com um vídeo no YouTube. Via Nice Use of Diversion During a Robbery
8- TorrentFreak, 3-10-09, Cinemas Must Warn Visitors Of ‘Anti-Pirate’ Goggles

sábado, outubro 03, 2009

Treta da semana: às aranhas.

Carlos Azevedo, Bispo auxiliar de Lisboa, tem certamente muito pouco tempo disponível. O seu deus tem de ser louvado e não é deus que se contente com meias louvadelas. Dependemos de homens como este – que, para estas coisas, não se pode contar com as mulheres – para evitar que morramos todos afogados num dilúvio, transformados em sal, queimados vivos, ou pior. Compreendo por isso que, quando decidiu escrever no Correio da Manhã sobre um comunicado da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) acerca da visita do Papa, não lhe tenha sobrado tempo para também ler o comunicado. Afinal, o Bispo é apenas humano. Só a Deus se pode pedir o impossível e mesmo a esse pouco adianta.

O comunicado da AAP começa por deixar claro que esta respeita e defende os direitos dos crentes e que não se opõe a visitas de líderes religiosos enquanto tal. O problema é que a visita do Papa a Portugal é um assunto que diz respeito aos católicos e não aos órgãos de soberania do Estado português. O Presidente da República anunciou esta visita em véspera de eleições, surpreendendo a Conferência Episcopal Portuguesa e relatando que o Papa visita Portugal a convite do Presidente (2). Isto revela uma promiscuidade preocupante entre política e religião no nosso país. Foi isso, e não a visita do Papa enquanto sacerdote católico, que motivou o comunicado da AAP.

Mas Carlos Azevedo, com mais tempo para exclamações que para interrogações, escreveu que «a Associação Ateísta anda indignada com o facto de Bento XVI visitar Fátima, e logo em 2010, a cem anos da “sacrossanta república”, que não devia ter desvios de atenção! Segundo este grupito a visita papal não devia alegrar os portugueses, sobretudo quando são membros de órgãos da soberania! Não percebem a figura intolerante, ridícula e marginal que assumem! A religião pesa na cultura portuguesa e na vida dos cidadãos. Respeitar essa maioria, ainda que não entendendo o sentido da vida de modo religioso, é prova de maturidade democrática.»(3)

O que temos de respeitar não é uma religião. É a liberdade de escolher qualquer religião ou religião nenhuma. E para o respeitar há que afastar o Estado de toda e qualquer religião. Pois enquanto o Estado é forçosamente de todos, cada religião é só de quem a quiser. E só durante o tempo que a queira. É claro que, para um religioso de carreira, ter por trás o peso do Estado pode ser uma vantagem. Dá mais autoridade para ditar a religião aos outros. Nunca esperaria que um bispo, mesmo auxiliar, se insurgisse contra a intromissão do Presidente da República no domínio religioso vendo aí vantagens para a sua organização. Mas os interesses do religioso profissional não são os do religioso amador, do crente ou do descrente. Para cada um destes é preferível manter o estado longe das suas opções pessoais. Mesmo que a religião oficial do Presidente da República seja também a sua, é melhor viver a fé sem pressões do Estado.

No resto do texto, Carlos Azevedo fala de aranhas e da “opressão ateia” que, por cá, e segundo ele, «teve início há 100 anos». Não sei se critica a tirania da democracia moderna, que substituiu os reis nomeados pelo Papa e deixa cada um escolher a sua religião. Ou se é uma referência a Salazar, o ditador ateu que reprimiu a Igreja Católica durante tantos anos. Ou talvez ande só às aranhas, a ver se enche os parágrafos que o CM lhe encomendou. Mas ao menos deixa clara uma inversão de valores fundamentais. Escreve o bispo que «Só quando a liberdade se une à verdade serve realmente a sociedade.»(3) Mas não faz sentido sermos livres para servir. O que faz sentido é que a sociedade nos sirva para ser livres. É por isso que não queremos um Presidente da República a oficializar a religião de ninguém. Queremos, em vez disso, órgãos de soberania que protejam o direito de todos a ter as religiões que quiserem. Uma, todas ou nenhuma.

Via Ponte Europa.

1- Diário Ateísta, Comunicado sobre a vinda do Papa a Fátima
2- Presidência da Républica, Papa Bento XVI visita Portugal no próximo ano
3- Correio da Manhã, Carlos Azevedo, Aranhas e ateístas

sexta-feira, outubro 02, 2009

Crenças e diferenças.

No sentido lato, a crença é a atitude de considerar uma proposição verdadeira. E, neste sentido, todos temos crenças. Mas a ideia que todos somos crentes só por aceitarmos algumas proposições esconde uma diferença intuitivamente evidente entre, por exemplo, crer que que um protão tem 1836 vezes a massa de um electrão e crer que Maria deu à luz ainda virgem. A posição tradicional era que havia uma grande diferença. Enquanto a crença acerca da massa do electrão deriva de capacidades humanas limitadas, a virgindade de Maria é revelada por um deus infalível e merece a nossa total confiança. Felizmente, esta posição está hoje relegada às franjas mais fundamentalistas*.

Os crentes mais moderados defendem que as crenças científicas e religiosas estão ao mesmo nível, assentando as primeiras na ideia de um universo regular e observável e as últimas num deus que revela os seus mistérios. De resto, em ambos os casos se confia em alguma fonte, seja observação seja revelação, para decidir que proposições aceitar ou rejeitar. Ou seja, somos todos igualmente crentes, apenas cremos em coisas diferentes**. Finalmente, a terceira posição, que também defendo, é que há uma diferença entre estas crenças e não é verdade que a fé seja o melhor caminho. No entanto, muitos defendem esta posição alegando que a diferença está no fundamento das crenças e confundindo a crença com a proposição em que se crê. Isto falha a diferença mais importante e é facilmente refutável. Por exemplo, eu obtive a minha crença acerca da massa relativa do protão e do electrão lendo o valor num livro. Exactamente o que fez o cristão que acredita na virgindade de Maria. E de nada serve alegar que uma proposição é mais fundamentada que outra porque isso é apenas mais uma crença. O religioso até pode achar que a sua é a mais fundamentada. O melhor é desenlear os dois conceitos.

A proposição é uma descrição abstracta e impessoal de um aspecto da realidade. “O protão tem 1836 vezes a massa do electrão” ou “Maria é virgem", por exemplo. Enquanto a crença é a atitude pessoal de aceitar uma proposição. Não devemos confundir o hipotético fundamento da proposição, que possa existir algures na mente de um deus ou na comunidade científica, com o fundamento da crença que terá de ser aquilo que a pessoa tem à sua disposição no momento em que decide acreditar. Fazendo esta distinção, percebe-se que a minha crença acerca da massa do electrão não é mais fundamentada que a crença do cristão acerca da virgindade de Maria, pois ambos formámos as nossas crenças com base no que lemos algures e nenhum de nós dispõe dos dados necessários para fundamentar qualquer uma destas proposições.

A diferença não está nem no fundamento que possa haver para a proposição, visto que não o usámos para formar a crença, nem no fundamento das crenças, que é análogo em ambos os casos. A diferença está na crença em si. Não há só uma forma de aceitar algo como verdadeiro. É possível crer de maneiras diferentes. E eu creio que o protão tem uma massa 1836 vezes maior que a do electrão, reconhecendo que não sei substanciar devidamente essa hipótese mas na condição de poder fazê-lo se o quiser. Ou seja, na condição de haver resultados que suportam a proposição, de eu poder ter acesso a esses resultados e que, se me der ao trabalho de os compreender, de concordar que a proposição tem fundamento. Estas premissas são uma condição necessária para a minha crença. Se suspeitar que alguma destas é falsa deixo de confiar na proposição que o protão tem 1836 vezes a massa do electrão. Deixo de crer.

A crença do cristão é diferente. O cristão que crê que Maria era virgem não está a assumir que, algures, existem os exames ginecológicos necessários para substanciar esta proposição, que pode ter acesso a esses registos e que, se os analisar cuidadosamente, concluirá que Maria era mesmo virgem. Esta sua crença não é condicional. Não depende de assumir que há fundamento objectivo para a proposição. É uma crença categórica. O cristão crê. Ponto final.

Esta é uma razão importante para a incompatibilidade entre a ciência e as religiões. Como as crenças científicas são todas condicionadas à premissa de haver fundamento objectivo, acessível e compreensível, para as proposições em que se crê, os cientistas têm uma exigência quase paranóica de registos de resultados, descrições detalhadas dos procedimentos, conclusões cautelosas, crítica aberta, verificação independente e todo esse aparato que nos dá confiança que, quando chegam a acordo acerca de algo, há por trás um forte fundamento para o que defendem. As religiões fazem o contrário. A crença incondicional e dogmática vira as religiões para dentro, para as suas figuras de autoridade ou escritos sagrados onde o fundamento último de tudo é o mistério insondável da fé.

Esta diferença está na atitude. Na crença em si. Nem sequer depende da proposição em que se crê. Um podia acreditar que Maria era virgem por julgar haver registos médicos que o confirmassem e outro acreditar categoricamente, por fé, que o protão tem 1836 vezes a massa do electrão. Não há garantia que a crença condicional nunca falhe, porque temos sempre informação incompleta. Nem é certo que a crença incondicional só leve a aceitar proposições falsas. Até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Mas há uma grande diferença entre estas atitudes, tanto na probabilidade de acertar mais perto da realidade como, e principalmente, na capacidade de corrigir erros e melhorar a qualidade das crenças que se tem.

* Mas, infelizmente, as franjas são enormes, quando consideramos o mundo todo...
** Com cada religião a defender, nem que seja em nota de rodapé, que as suas crenças são as mais verdadeiras.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Evolução: Função sem desígnio.

Sempre que vemos algo com uma função assumimos que foi criado para isso. Esta heurística é tão útil que facilmente confundimos função com desígnio. Se um relógio indica as horas é porque foi feito para indicar as horas. Se a faca corta é porque a feita para isso. E de uma imagem como a da esquerda inferimos alguém entretido com o Photoshop (1). Mas de um bicho como a ténia, à direita (2), não se vislumbra qualquer propósito que um criador inteligente possa ter tido em mente. Certamente não foi criado por quem a tem no intestino. Também não deve ter sido a ténia que escolheu essa forma tão desagradável de existência. E é pouco credível que um deus não arranje melhor coisa para fazer que parasitas intestinais.

Holy cow!Bleargh!


Este mistério desvenda-se considerando a função da ténia. Aquilo que ela faz melhor que ninguém. Mais ténias. O relógio dá horas e não relógios, a faca corta mas não faz facas e a imagem da vaca com continentes não pinta imagens de vacas com continentes. Em muitos casos a função faz suspeitar um desígnio (mais ou menos) inteligente por não explicar a existência do objecto. É isto que motiva a hipótese de algo o ter criado para desempenhar essa função. Mas a função da ténia é fazer ténias. Cada ténia é criada pelo desempenho da ténia anterior sem ser necessário invocar qualquer outro objectivo. Cada ténia só “serve” para fazer a ténia seguinte e só lá está porque foi feita pela anterior. Esta função é especial. Não exige desígnio.

Qualquer característica perpetua-se e propaga-se ao promover ao contribuir para gerar mais seres com essa característica. E, com isto, cria na população condições para que surjam outras características mais capazes de desempenhar essa função reprodutora que depois a substituem. É um ciclo sem fim que produziu, e constantemente produz, esta enorme variedade de seres vivos, e que explica tanto as penas do pavão como o veneno da vespa ou os haplotipos t dos ratos.

Os haplotipos t de rato são variantes do cromossoma 17 que afectam a meiose e o desenvolvimento embrionário. Um rato com uma cópia deste cromossoma (heterozigótico) transmite-o a todos os seus gâmetas em vez de apenas a metade como acontece normalmente nos heterozigotos. Isto faz com que estas variantes do cromossoma 17 se propaguem rapidamente pela população. Mas ter dois cromossomas destes, um herdado do pai e outro da mãe, é letal ou torna o rato estéril. A propagação destes haplotipos é tão eficiente que muitas vezes resulta na extinção das populações onde se propagam. Se isto fosse por desígnio seria tudo menos inteligente, mas é fácil ver que é só mais uma de muitas coisas que acontecem na natureza sem qualquer propósito nem consideração por consequências a longo prazo.

A teoria da evolução explica a origem de seres capazes de desempenhar esta função. Para explicar de onde vem o relógio precisamos de encontrar o relojoeiro. Mas para explicar como é que a mosca é tão boa a fazer moscas basta apontar que os seus antepassados também eram exímios a fazer coisas parecidas com eles. O lento alastrar da descendência com modificação explica como a função de reprodução se mantém, se aperfeiçoa e toma formas tão diversas, complexas e surpreendentes. Esta teoria unifica a diversidade da vida neste planeta numa explicação coerente e elegante. A função de reprodução não requer desígnio, criando-se e modificando-se por si.

Mas uma boa teoria não se limita a colar o que sabemos. Tem também de restringir o que pode ser, seja ou não seja já conhecido. E também nisto a teoria da evolução é um sucesso porque só admite que a natureza, sem desígnio, consiga aperfeiçoar gradualmente aquilo que contribui para a reprodução. Mais nenhuma outra função ou propósito pode ser explicada desta maneira. Se encontramos vacas que dão demasiado leite, bananeiras com frutos enormes e sem sementes ou ovelhas com tanta lã que têm de ser tosquiadas sabemos que isso não surgiu pelo mesmo processo. Essas funções exigem um desígnio inteligente por trás, se bem que nesses casos a culpa seja dos humanos e não dos deuses.

De resto, tudo o que contribui para a reprodução, desde o nosso cérebro às ventosas da ténia, e que é herdado de antepassados parecidos (mas não exactamente iguais) pode ser explicado por este processo sem fim em vista. Por um escorregar constante na direcção que, em cada ponto, a reprodução for mais eficiente, sem qualquer inteligência nem antevisão do que virá a seguir.

1- Copiei a imagem deste post do Mats: Rebeldia versus inferência para o design

2- E esta do CienciasBlog, Parasitismo