terça-feira, junho 30, 2009

Miscelânea Criacionista: “Tipo” morcego

Os criacionistas defendem que a evolução só pode ocorrer dentro de cada tipo de organismo. Não por haver algum limite molecular para a acumulação de mutações, mas porque leram na bíblia que Deus criou cada animal segundo a sua espécie e na bíblia “espécie” quer dizer “tipo”. “Tipo”, infelizmente, não se sabe bem o que quer dizer, e os criacionistas não o definem. Deve ser gaivotas dão gaivotas.

O resultado é que os criacionistas aceitam que, por exemplo, os morcegos tenham evoluído de um morcego original – talvez um casal que Noé tenha trazido para o barco – mas rejeitam que os humanos e os chimpanzés tenham um ancestral comum. Nós e os chimpanzés somos de “tipos” diferentes, enquanto que todos os morcegos são do mesmo “tipo”. E com isto separam a micro-evolução da macro-evolução. A primeira, dizem, explica a diversidade dos morcegos. Mas para as diferenças entre chimpanzés e humanos já era preciso macro-evolução. E isso Deus não deixa.

Só que o morcego é um grande tipo. Um tipão. A imagem abaixo mostra, à esquerda, o morcego abelhão, Craseonycteris thonglongyai. É o mamífero mais pequeno que se conhece*, com um peso em adulto de 2g. E, à direita, a raposa voadora da Malásia, Pteropus vampyrus, com 2 metros de envergadura e 1,5Kg de peso. A gama de tamanhos nas novecentas espécies de morcego é como a diferença entre nós e a baleia azul. Os chimpanzés, de um “tipo” diferente do nosso, pesam cerca 60Kg.

Morcegos

Na alimentação também há este contraste. Os morcegos são o “tipo” de animal em que umas espécies se especializaram em comer fruta, outras carne, outras peixe, ou insectos, néctar e algumas até sangue. Nós e os chimpanzés somos ambos omnívoros. Mas de tipos diferentes.

E a ideia comum que todos os morcegos são cegos e usam sonar é incorrecta. Em geral, só os da sub-ordem Microchiroptera se orientam pelo som e muitos morcegos usam a visão também, entre outros sentidos. Também nisto a diversidade deste “tipo” é muito maior que as diferenças entre humanos e chimpanzés.

Se os criacionistas quisessem dividir os morcegos em vários “tipos” enfrentavam um grande problema. Tinham de explicar o que é um “tipo”. E explicar, ao que parece, é outra coisa que Deus proíbe. Por isso têm de considerar que tudo a que chamamos morcego é do mesmo “tipo”, evoluído do morcego ancestral que o Sr. Jeová criou naquele fatídico quarto dia**.

Assim enfrentam um problema ainda maior. Uma em cada cinco espécies de mamífero é uma espécie de morcego. A análise filogenética desta ordem mostra que a diversidade genética dos morcegos é semelhante à diversidade genética dos primatas. A diferença entre duas espécies de morcego pode ser dez vezes maior que entre nós e os chimpanzés. Se os morcegos são todos do mesmo “tipo” então os humanos são do “tipo” dos lémures e basta a micro-evolução para ir de um babuíno a um criacionista. Ou vice-versa.

Este disparate dos “tipos” vem dos criacionistas fazerem as coisas ao contrário. Começam das palavras e martelam o mundo a fingir que encaixa no que leram. Se há palavras como “morcego”, “humano” e “chimpanzé”, então têm de ser esses os tipos de animal. Se está escrito que é assim, até é pecado duvidar que seja. E esquecem-se, ou fazem por esquecer, que as palavras são inventadas por nós e só acertam na realidade se soubermos o que estamos a dizer.

Errata:
* Como notou um leitor anónimo nos comentários, o lugar de mamífero mais pequeno é disputado com o musaranho-pigmeu Suncus etruscus, conforme se conta pelo peso (ganha o musaranho) ou pelo comprimento (ganha o morcego).

** O Jónatas Machado apontou que errei aqui. Segundo a bíblia, os animais foram criados no quinto e sexto dia. Obrigado pela correcção. O quarto dia foi quando Deus criou os corpos celestes, como o Sol e a Lua. O que já fez muitos pensar que os primeiros três dias devem ter sido estranhos...

1- E. C. Teeling, M. S. Springer, O. Madsen, P. Bates, S. J. O’Brien,W. J. Murphy, A Molecular Phylogeny for Bats Illuminates Biogeography and the Fossil Record. Science 28 January 2005: Vol. 307. no. 5709, pp. 580 – 584. O artigo não está disponível de graça mas há figuras e uma descrição do método no material suplementar.
Adenda: Um leitor anónimo, a quem agradeço, encontrou o artigo integral (em .pdf).

domingo, junho 28, 2009

Treta da semana: Protesto em branco.

Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, seis milhões de eleitores portugueses ficaram em casa e, dos quatro milhões que votaram, quase duzentos mil votaram em branco. Uma razão para não votar é considerar que o voto não compensa o trabalho de ir às urnas. É um juízo de valor subjectivo, nem certo nem errado desde que se baseie em premissas correctas. Mas suspeito que, destes seis milhões, alguns julgaram que não valia a pena votar porque se enganaram.

Na eleição onde se escolhe, uma vez, uma de várias alternativas, como nas presidenciais, o meu voto só conta se for de desempate. Caso contrário não serve de nada. E, se há muitos eleitores, a probabilidade de ser o meu voto a desempatar é tão pequena que não vale a pena votar só por isso. Neste tipo de eleição vota-se apenas para evitar que, no extremo, esta conclusão dê todo o poder de decisão a um punhado de eleitores.

Mas em eleições como as deste mês, e como as próximas, a situação é diferente. Elegem-se vários deputados em função da distribuição de votos e são eleições entre partidos que as disputam regularmente, que contabilizam as variações de votos à décima de ponto percentual e que respondem a essas variações. Não é uma decisão de tudo ou nada mas um contínuo onde, mesmo sem ganhar nem perder deputados, qualquer diferença indica aos partidos como o eleitorado está a reagir. Suspeito que muita gente se absteve por subestimar o valor do seu voto e por ignorar a sua importância como meio de comunicação entre eleitores e partidos.

Outros abstiveram-se por uma indiferença enganada. Não votaram por não ter um partido preferido e estarem indecisos entre dois ou três. E esqueceram-se dos outros partidos que não queriam ver ganhar. Talvez haja eleitores a quem nenhum partido cause preocupação. Mas duvido que sejam seis milhões. A maioria não se deve ter lembrado que votar num partido não serve apenas para aumentar a percentagem de votos desse partido. Serve também para diminuir as dos outros. O que me traz aos 164.917 que votaram em branco (1). Um protesto mudo. O Ricardo Pinho, por exemplo, escreveu assim:

«E se somarmos os votos nulos aos votos em branco, ficamos com 6,63%. Como podem ignorar estes números, se aqueles votos representam mais que a soma de todos os partidos com menos votos que o CDS? [...] Um voto em branco é um voto. E é um voto muito expressivo.»(2)

O voto nulo não é voto nenhum. É por isso que se chama nulo. E um voto em branco é só meio voto. Um voto num partido, além do voto a mais nesse partido, é também um voto a menos nos outros. Se há cem eleitores, cada um que vote em mim em vez de votar no meu oponente dá-me dois porcento de vantagem. Se vota em branco vale metade.

E a única coisa que o voto em branco exprime é “não se ralem comigo”. Não informa mais nada. Dizem que é protesto, mas contra quê? Contra a esquerda? Contra a direita? Contra o racismo, o comunismo, o governo, a monarquia? Não se sabe. Dá ideia de ser um protesto de quem não sabe contra o que há de protestar.

Quem achar que a política está podre e que nenhum partido se aproveita que proteste com o seu voto. Mas de forma que se oiça. Votando nos partidos mais pequenos ou nos que surgiram agora. Ou até ao acaso. São esses votos que os partidos se esforçam por ganhar, para tirar aos outros e guardar para si. Mas votar em branco, ou abster-se, não é protesto nenhum. É dizer “eu não conto”, deixar a decisão aos militantes e preservar o status quo. Precisamente o contrário do que se quer com um protesto.

1- RTP, Resultados das Eleições Europeias 2009. Adenda: também no Ministério da Justiça. Obrigado ao Mário Miguel pela dica.
2- Ricardo Pinho, 9-6-2009, Não branqueiem os votos em branco

sexta-feira, junho 26, 2009

Quicksort.

Se queremos ordenar um monte de peças numeradas podemos pegar numa de cada vez e ir alinhando. Pomos a primeira no chão, a segunda encostada à esquerda ou a direita, se for preciso chegamos uma para o lado para pôr a terceira e assim por diante até ter todas numa fila ordenada. Isto é um algoritmo, uma sequência de instruções simples que dá um resultado pretendido.

Uma propriedade importante de qualquer algoritmo é a sua complexidade. Não no sentido de ter instruções difíceis de seguir ou de nos perdermos a meio, mas o número esperado de operações que cada problema obriga a executar. Neste caso, temos de tirar as peça do monte uma de cada vez, tantas vezes quantas forem as peças. Chamemos n ao número de peças. E, para cada peça, temos de olhar para as peças que estão no chão e procurar o sitio certo onde pôr a nova peça. O numero de operações deste procedimento é proporcional ao número de peças que já estão ordenadas. No inicio do processo haverá poucas peças no chão mas, no final, estarão lá quase todas, A média é cerca de metade de n, que também é proporcional a n. Como temos de fazer n vezes um procedimento de complexidade proporcional a n a complexidade do algoritmo todo é C(n2). Ou seja, o trabalho que nos dá ordenar n peças desta maneira é proporcional a n2.

Em 1962, Charles Hoare inventou um algoritmo que chamou quicksort. Aplicando-o ao nosso exemplo, primeiro despejamos as peças todas em fila no chão, pela ordem que calhar. Depois escolhemos uma para pivot e pomos à sua direita todas as que tiverem um número maior e à sua esquerda as que tiverem um número menor. Não interessa que cada uma dessas partes fique desordenada, e até podemos fazer isto na mesma fila trocando as peças que estão no lado errado umas com as outras ou com o pivot. Neste passo temos de fazer n operações, acabando com o pivot algures no meio, todas as maiores à direita e todas as menores à esquerda. Agora fazemos o mesmo com cada uma dessas duas partes. Escolhemos um novo pivot e pomos as maiores de um lado e as menores de outro. Depois fazemos o mesmo com cada uma das quatro partes separadas pelos pivots. E com as oito partes seguintes, e assim por diante até ter tudo ordenado.

Em cada um destes passos já não mexemos nos pivots anteriores, porque esses ficaram no sitio certo. Mas o número de operações é à mesma proporcional a n, seja para a fila toda de uma vez, seja quando está partida em duas metades, quatro quartos, etc. A diferença em relação ao algoritmo anterior é que não temos de repetir isto n vezes. Em cada passo estamos a partir os pedaços aproximadamente a meio, e o número de vezes que podemos fazer isso é log2(n). Se n for cerca de mil, basta partir ao meio dez vezes que temos o trabalho terminado (210=1024). A diferença entre C( n2 ) e C( n × log2(n) ) cresce rapidamente com n. Se temos 1000 peças o quicksort é cerca de cem vezes mais rápido. Com 10.000 peças é quase um milhão de vezes mais rápido.

Além de me divertir com estas coisas (é triste, eu sei...), escrevi este post para ilustrar um aspecto importante da intuição. Para quem não lida com este tipo de problemas o quicksort parece um disparate. É uma ideia estranha, pôr umas de um lado, outras do outro e repetir para cada metade. Mas, com a prática, o poder do logaritmo, desta divisão por dois, torna-se intuitivo e uma solução óbvia para diversos problemas como indexar listas, procurar elementos, calcular correlações de matrizes e assim por diante. E esta intuição não se tem antes de compreender o problema. Desenvolve-se com o conhecimento das coisas.

Daí que seja um erro separar a intuição da ciência, como muitos querem fazer para evitar ter de justificar as hipóteses que defendem. As cartas dos tarólogos, o misticismo das medicinas tradicionais, a revelação dos crentes religiosos e tantas outras coisas apresentadas como vias alternativas para o conhecimento não são intuição de confiança. São ilusão e erro, porque a intuição sem conhecimento engana. Diz-nos que o Sol anda pelo céu e que a Terra é plana. Por isso a intuição não é um atalho cómodo para saber sem ter trabalho. É uma das recompensas do esforço metódico e deliberado de compreender as coisas. A intuição deve vir com a ciência, porque sem ciência não é de fiar.

Adenda, 27-6: Nesta página há uns applets em java que demonstram vários algoritmos de ordenação, e podemos pô-los a correr ao mesmo tempo para comparar. Os que menciono no post são o InsertionSort e QSort.

quinta-feira, junho 25, 2009

O efeito do copyright.

O propósito de conceder direitos exclusivo de reprodução ao autor – o copyright – é beneficiar toda a sociedade. Este monopólio encarece o acesso à obra para, mesmo indirectamente, aumentar o incentivo à criatividade e enriquecer a cultura. Mas este aumento de preço dificulta o acesso e, para maximizar o bem social, a legislação deve equilibrar o incentivo do autor com o desincentivo do consumidor. É importante frisar este ponto porque muitos defendem estes direitos como inerentes ao autor, o que é um erro. Por exemplo, os artistas que pedem uma extensão de vinte anos aos direitos sobre gravações argumentam que cinquenta anos é pouco porque, quando se reformarem, deixam de receber pelo que gravaram meio século antes. O sustento dos reformados é um problema de todos e não se justifica conceder aos artistas reformados mais direitos que aos outros. A menos que isso nos beneficie a todos por incentivar a criatividade.

No entanto, nos cento e poucos anos de copyright mundial, a tendência tem sido sempre para reforçar o monopólio. Isto levanta a possibilidade de se ter ultrapassado o ponto ideal de equilíbrio entre o incentivo ao artista e a facilidade de acesso à obra e estar agora o próprio copyright a inibir a criação cultural. Até 1999 isto era muito difícil de testar. Mas desde o Napster que a partilha de ficheiros nos dá uma oportunidade por retirar, na prática, muito do poder que o copyright tinha. Na semana passada, Felix Oberholzer-Gee e Koleman Strumpf disponibilizaram uma versão preliminar de uma análise empírica desta questão. Estes economistas de Harvard têm publicado sobre o conflito entre as discográficas e a partilha de ficheiro (1), e agora relatam um conjunto de indicadores que parecem confirmar a hipótese. O copyright que temos hoje na lei está muito além do ponto óptimo e está a inibir a criatividade artística. A prova disso é o que aconteceu nos últimos sete anos, durante os quais partes desta lei têm sido violadas por muita gente.

No ano de 2000 foram editados 35 mil álbuns comerciais. Em 2007 foram oitenta mil. A produção mundial de filmes passou de três mil e oitocentos em 2003 para cinco mil em 2007. Nos EUA, o aumento foi de 495 para 590. E a publicação de livros novos aumentou 66% entre 2002 e 2007. Claramente, a diminuição do poder do copyright teve um efeito benéfico na criatividade.

Em parte, isto explica-se por a criação artística não ser como a maioria dos trabalhos. Para o artista, o dinheiro não é o mais importante, e três quartos dos músicos profissionais têm outro emprego para os sustentar. O gosto pelo que fazem, a fama e a capacidade de atrair membros do sexo oposto ou, em alguns casos, do mesmo sexo, são também incentivos importantes. Outro factor relevante é que a quebra nas vendas de CD neste período, devido à concorrência de muitas outras forma de entretenimento e não apenas à partilha de ficheiros, foi acompanhada por uma subida nas vendas de bilhetes para concertos. Juntando estas duas fontes de rendimento, o mercado da música aumentou 5% de 2000 para cá – o contrário do cenário negro que os vendedores de CD apregoam. A redução drástica no poder do copyright desviou as vendas de alguns produtos, como CD e DVD, para outros como bilhetes de concerto e de cinema, e a complementaridade entre os ficheiros partilhados e estes serviços aumentou o volume de negócio. Menos copyright é bom para a produção artística.

E isto mesmo sem considerar o outro lado da equação. Menos copyright é sempre bom para o usufruto da arte, visto o copyright ser uma restrição ao acesso. Por isso reduzi-lo será uma boa ideia sempre que os benefícios do acesso mais fácil compensem os prejuízos de reduzir o incentivo dos autores. Não havendo esse efeito indesejado é evidente que se deve ter menos copyright. Até porque a divisão entre criador e consumidor é mais conceptual que real. Qualquer artista tem de ser um ávido consumidor de arte para poder contribuir algo com a sua criatividade, e facilitar o acesso é, por si, já um incentivo à criatividade.

«Descarreguei centenas e centenas de discos – porque me importaria se alguém descarregar o nosso? É tão mesquinho preocupar-se com isso. Na verdade, quanto dinheiro é que uma pessoa precisa? Pessoalmente, acho que é nojento quando se queixam disso» Robin Pecknold, vocalista dos Fleet Foxes. Bands 'better because of piracy', via Remixtures

Mais sobre isto no Sócrates (o verdadeiro), no Remixtures e no blog do Michael Geist. O artigo, em formato pdf, está aqui: File-Sharing and Copyright. Obrigado a todos os que me enviaram emails com a notícia (e desculpem a demora, mas o final de semestre é sempre assim...).

1- Por exemplo, Oberholzer-Gee, Felix and Koleman Strumpf (2007). The Effect of File Sharing on Record Sales: An Empirical Analysis. Journal of Political Economy 115(1): 1-42.

terça-feira, junho 23, 2009

O efeito do beijinho.

Quem já lidou com crianças sabe que o efeito de placebo é real. E não é só com crianças. Qualquer problema parece mais fácil de superar se tivermos apoio e se soubermos que alguém está a tratar do assunto. A religião é um exemplo extremo do enorme poder do efeito de placebo. Mas este efeito não é um medicamento. É apenas um dos muitos factores contribuem para a cura.

A cura e a doença são processos complexos. Quer o nosso organismo combata uma infecção quer se tente matar por uma alergia, muitas coisas acontecem ao mesmo tempo. E não há duas pessoas a quem aconteça exactamente o mesmo. Uma terapia é uma tentativa de empurrar estes processos para um desfecho mais favorável mas, pela sua complexidade, raramente se pode garantir um efeito e um resultado. Por isso, avaliar a eficácia de uma terapia exige considerar o seu efeito médio para além de todos os outros factores, como a fisiologia de cada pessoa, os seus hábitos de vida, estado emocional, nutrição, outras doenças e até as expectativas do doente e do médico. Isto exige ensaios clínicos com dupla ocultação.

Nestes ensaios divide-se os voluntários aleatoriamente em dois grupos, um sujeito à terapia e o outro a algo parecido mas sem o essencial. Um comprimido com a mesma cor e sabor mas sem o princípio activo, ou agulhas espetadas fora das tais linhas que se propõe essenciais à cura. Com esta distribuição aleatória dilui-se as diferenças entre pacientes. E são com dupla ocultação porque nem os pacientes nem os médicos que os avaliam sabem em que grupo está cada paciente, o que elimina distorções causadas pela expectativa de cada um. O efeito da terapia é o que sobrar, se sobrar alguma coisa.

É por isso que dizer que uma terapia actua pelo efeito placebo é um erro conceptual. Não é que o efeito placebo não exista, mas é como dizer que um medicamento actua por a pessoa fazer exercício ou ter cuidado com as correntes de ar. Esses são factores reais mas, se são externos à terapia e independentes desta, não devem contar para medir a eficácia do tratamento. Infelizmente, para cada paciente o mais saliente é se a terapia o faz sentir bem e não se melhora as probabilidades de cura em relação à média. Esta eficácia ilusória do efeito placebo é uma grande vantagem para a “medicina” alternativa.

Outra vantagem é não ter limite de recursos. Por um lado porque agulhas e gotas de água há que chegue para todos e, por outro, porque o praticante “holístico” tem como prioridade o bem estar daquele paciente que lhe está a pagar. Os outros que vão ao CATUS. O melhor para este “terapeuta”, tal como para o médico privado, é ter pacientes que paguem bem e fiquem satisfeitos, mesmo sendo poucos. Muitos pacientes que paguem pouco e se curem insatisfeitos dão mais trabalho que dinheiro. A sensação que muitos têm que na “medicina” alternativa são atendidos com tempo e atenção enquanto que os serviços públicos de saúde os despacham com meia dúzia de comprimidos não é ilusória. É mesmo assim. Mas tem de ser. O João Vasco deu um exemplo que ilustra porquê:

«Uma amiga da minha mãe estava com dores de cabeça lancinantes e foi despachada pela sua médica com um "tome uma aspirina"; e por mais que ela descrevesse o quão lancinantes eram as dores, mais a médica reagia como se ela estivesse a fazer fita como quem diz "próximo!". Afinal, foi a outro médico que pediu para fazerem um TAC e ela tinha um derrame. Se não tivesse ido ao segundo médico em poucos dias - descobriu-se - teria morrido.» (1)

É possível que esta médica tenha sido incompetente e tenha ignorado algum sintoma que justificasse a TAC. Mas a incompetência não se resolve com “medicinas” alternativas, e outro factor é que a TAC exige recursos limitados. Se cada médico receitasse uma TAC a cada paciente com dores de cabeça fortes, esta senhora teria sido rapidamente encaminhada para uma lista de espera de vários meses. E aí, sim, teria morrido. É por isso que quando vamos ao centro de saúde com febre e dor de garganta nos dão meia dúzia de comprimidos quase sem ver o que temos. Além de ser preciso atender todas as pessoas que lá vão, para a saúde de todos é melhor dar comprimidos que curem 95% dos pacientes, e que há para todos, do que entupir durante meses os laboratórios de análises. Os exames aprofundados ficam para os 5% que lá voltarem a queixar-se que os comprimidos não fizeram efeito.

Quando estamos doentes queremos o tratamento para começar a melhorar e o beijinho para nos sentirmos logo melhor. Mas não podemos responsabilizar os médicos por ambos porque os recursos não dão para tudo e todos. Se em vez de dez minutos a tirar a febre o médico dedica cinquenta a reconfortar cada paciente, 20% vão sentir-se melhor e 80% ficam por tratar. É este o nicho das “medicinas” alternativas. A venda de beijinhos não sofre destas restrições porque não tem de atender urgências nem casos graves, exige poucos recursos materiais e é só para quem paga e em função de quanto paga. Por isso parece um bom complemento. Infelizmente, tal como os beijinhos com que tratamos os nossos filhos, só serve se dissermos que assim já passa. E isto é perigoso para qualquer problema mais grave que um joelho esfolado.

1- Comentário em Treta da semana: Complementa o quê?

domingo, junho 21, 2009

Treta da semana: Complementa o quê?

Quer lhe chamem tradicional, alternativa ou complementar, esta suposta medicina é sempre apresentada como procurando curas por meios diferentes daqueles que a ciência usa. Enquanto os cientistas se debruçam sobre tubos de ensaio em laboratórios estéreis, uma multidão de “terapeutas” alternativos recorre à intuição, à sabedoria popular, aos espíritos, às mezinhas e a muita imaginação para inventar terapias mágicas que tratam tudo de uma vez. Holísticas. Como a banha da cobra.

Não é que a tradição esteja sempre errada. Muita é baseada na experiência. A aspirina é derivada do ácido salicílico, presente na casca de salgueiro que já Hipócrates receitava para tratar a febre. Mas os remédios tradicionais curam por actuar como os medicamentos modernos. Só que não são tão bons. Uma dose controlada de ácido acetilsalicílico sem contaminantes é melhor que a lotaria farmacêutica da casca de salgueiro. O ácido salicílico, sem a transformação que faz dele aspirina, tem efeitos secundários mais desagradáveis. A dose na casca é desconhecida. E o fármaco vem misturado com tudo o que a árvore produz de tóxico para os seus parasitas, que também não é bom para nós.

Mas há um problema mais fundamental nesta ideia de complementaridade. Samuel Hahnemann notou que tratar malária com o extracto da casca de chinchona causava uma febre semelhante à da doença. Por isso propôs que similia similibus curentur, a cura se parece com a maleita. Inventou também que as doenças eram causadas por distúrbios na força vital (mas não chegou aos midi-chlorians) e que a diluição potenciava os efeitos benéficos dos medicamentos. Esta especulação filosófica é vista pelos defensores da homeopatia como diferente da ciência mas igualmente legítima. Complementar. E, como esta, muitas outras. Espetar agulhas, estalar as vértebras, cheirar flores, ver luzes de várias cores e assim por diante.

Mas todas estas hipóteses são científicas. Não têm nada de complementar. É verdade que os cientistas preferem formular hipóteses com base no conhecimento do sistema em estudo, mas apenas para aumentar a probabilidade de acertar em hipóteses úteis. Nada impede que uma hipótese científica se baseie na intuição, no efeito do extracto de chinchona ou num livro escrito por um chinês que vendia agulhas. Num exemplo famoso, Kekulé teve a ideia da estrutura do benzeno sonhando com uma cobra a morder a cauda. Desde que a hipótese diga alguma coisa em concreto pode-se usá-la para prosseguir a investigação. Não importa de onde vem.

Mas a hipótese é só o primeiro passo, e estas formas alegadamente complementares de tratar doenças não passam de hipóteses. São o ponto de partida do processo científico. Falta-lhes o resto. Prever observações, conceber experiências controladas, obter dados e confirmação independente, explicar anomalias, rever as hipóteses e repetir. E repetir. E repetir. Há sempre coisas para melhorar ou corrigir.

E quando se continua o processo, quando se testa estas hipóteses, conclui-se que a grande maioria não serve para nada. Ao fim de dez anos de investigação, e dois mil e quinhentos milhões de dólares desperdiçados, descobriu-se que cápsulas de gengibre ajudam a combater a náusea provocada pela quimioterapia. Do resto, não se safa nada (1). O que não é de admirar. Hipóteses formuladas ao acaso, sem compreender os mecanismos, são quase sempre inúteis. É por isso que na medicina a sério ou se parte de observações significativas ou só se inventa terapias com uma boa ideia do que passa.

Infelizmente, além dos recursos que se gasta com estes disparates “complementares”, inventar medicamentos ao acaso não é inofensivo. Por um lado, quando se tem uma doença grave é perigoso perder tempo com terapias inúteis, mesmo que inócuas. E, por outro, nem todas o são. O Zicam é um exemplo entre muitos. Um descongestionante nasal que, por ser homeopático, não foi sujeito a testes de eficácia ou segurança antes de ser comercializado. Ao contrário do que acontece com medicamentos a sério. Por isso 130 pessoas perderam irreversivelmente o sentido do olfacto (2).

Como em muitos casos, ajuda compreender os termos. “Alternativa”, “tradicional” e “complementar”, neste contexto, querem dizer “ou não foi testado ou não passou os testes”. Assim, quem quiser experimentar fá-lo consciente de ser cobaia. E a única coisa que isto complementa é o rendimento de quem aproveita o “complementar” para dar consultas e vender os remédios que receita. Coisa que os médicos a sério não podem fazer.

1- MSNBC, $2.5 billion spent, no alternative cures found, via Bad Astronomy. Obrigado ao Nuvens de Fumo pela referência.
2- Associated Press, AP IMPACT: Zicam not alone in side effect reports. Obrigado pelo email com a referência.

sábado, junho 20, 2009

Arrancar o penso.

Em 2007, Jammie Thomas foi condenada a pagar $220.000 à RIAA por ter 24 músicas em partilha (1). Mas o juiz anulou o julgamento porque instruíra o juri que ter as músicas disponíveis para outros descarregarem violava a lei. Isto estava errado, pois nos EUA essa violação do copyright exige que haja distribuição. Ou seja, a acusação teria de demonstrar que alguém tinha descarregado essas músicas da Jammie Thomas sem a autorização dos detentores de direito, coisa que a RIAA não tinha fizera.

O caso foi novamente a tribunal e, esta semana, Jammie Thomas foi condenada a pagar $1.920.000. Oitenta mil dólares por música, cujo valor para as discográficas é cerca de 35 cêntimos. E isto apesar da RIAA ainda não ter comprovado que houve distribuição, apenas que a Jammie Thomas tinha as músicas em partilha o que, por si só, não viola a lei. Provavelmente haverá um terceiro julgamento porque a desproporção entre a indemnização e o valor de mercado daqueles 24 ficheiros torna o veredicto, e talvez a própria lei, inconstitucional (2). Os precedentes legais nos EUA limitam as indemnizações a duas ou três vezes o valor dos danos causados, mas não mais (3), e a constituição exige que as indemnizações sejam proporcionais aos danos. No caso da Jammie Thomas, os danos são de 35 cêntimos por música que tivessem descarregado do computador dela, e a RIAA nem tem provas que isso tenha acontecido. Em geral, a RIAA tem recorrido a uma lei que estipula indemnizações entre $750 e $150,000, mas com coisas de tão pouco valor como um ficheiro mp3 pode não ser permissível pela constituição aplicar esta lei. Se exigirem oitenta mil dólares por copiar uma canção de trinta e cinco cêntimos levar a essa conclusão, acaba-se a possibilidade de processar quem partilha músicas nos EUA(4).

Não sei se o pessoal das discográficas está mal da cabeça ou se isto é um plano para acabar de vez com o copyright, que dói de repente mas passa depressa. Porque não pode ser pelo dinheiro, que a Jammie Thomas não nada para lhes dar. E devem saber que os monopólios legais de que beneficiam só duraram até hoje por não interferir na vida das pessoas.

Ontem houve uma festa na escola dos meus filhos e as crianças deram um espectáculo para as famílias. Cantaram músicas como a “Chiclete” dos Taxi e o “Chico Fininho” do Rui Veloso*, dançaram, declamaram poemas e encenaram uma peça de teatro. Tudo baseado em material protegido por direitos de autor, organizado pelos professores que são profissionais pagos, e apresentado a centenas de pessoas num local público. Se começam a proibir estes eventos por violação do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos penso que se acaba depressa com esta lei.

Por cá, a PassMusica tem tentado, com as suas notícias de muitos processos e os formulários para se licenciar a música em casamentos e baptizados. Só que não deve haver muita gente a mandar-lhes os 109,41€ da licença para tocar os seus próprios CD no seu próprio casamento (5), por isso o efeito tem sido pequeno. Quando estas leis se restringem a quem faz negócio com a música, e os processos são só a bares e discotecas, as pessoas ligam pouco. Mas se um dia começam com providências cautelares a casamentos e baptizados muita gente vai perceber o ridículo, e a injustiça, de aplicar estas leis fora do âmbito comercial. Quando isso acontecer quem vive de licenças vai ter de arranjar trabalho.

Obrigado ao Mário Miguel pelo link a esta notícia em português.

* E, pior, cantaram “com a mão na algibeira” em vez da versão original, criando uma obra derivada sem autorização dos gestores de direitos.




1- $9.250 por canção.
2- Ray Beckerman, 19-6-09, Jury awards plaintiffs $1,920,000.00 in Capitol Records v. Thomas-Rasset
3- Raw Story, ‘Insane’ file-sharing verdict could challenge law’s constitutionality
4- ZDNet, 'Insane' $1.9 million verdict could prove RIAA's downfall
5- PassMusica, Tarifários

Estereótipos.

Por alguma razão os temos.







Nem que seja para os quebrar.



Admito que o post é tendencioso. Mas este é o meu blog.

quarta-feira, junho 17, 2009

Ateísmo nos valores.

«A democracia exige que aqueles que são motivados pela religião traduzam as suas preocupações em valores universais em vez de particulares à sua fé. Exige que as suas propostas sejam discutidas e se sujeitem à razão. […N]uma democracia pluralista não temos alternativa.» Barack Obama (1)

Historicamente, o ateísmo enquadrou-se numa discussão sobre factos e conhecimento. Se existiam deuses e se podíamos saber como eram, se era verdade que tinham criado o universo e assim por diante. O crente, o agnóstico e o ateu distinguiam-se pela aceitação, indecisão ou rejeição destas proposições factuais. Mas hoje as prioridades devem ser outras. As questões acerca dos factos continuam pertinentes, até porque ainda há quem acredite que um deus fez um homem de barro, bafejou-lhe vida e todos descendemos dele e da sua costela. Mas além de discutir o que é ou não é, importa resolver divergências acerca do que deve ser. Nisto, hoje importa mais discutir os valores propostos que os factos supostos.

Nos últimos séculos, uma parte da religião tem tentado distanciar-se dos factos, empurrada pelo avanço da ciência. Agora, os crentes mais sofisticados consideram metafórico qualquer relato religioso susceptível de ser refutado. Alguns não largam a criação em seis dias, o Dilúvio e essas coisas, mas uma boa parte defende que a religião não descreve como as coisas são, nem como funcionam, mas apenas lhes dá sentido e governa a nossa forma de viver. Ou seja, que a religião é acerca de valores e não de factos. Por isso é que discutir a existência de Deus com um teólogo católico é como dar socos no nevoeiro. O esclarecimento é muito menor que o esforço. Deus é incompreensível, a fé é um mistério, Deus está na abertura do horizonte de possibilidades num universo inacabado, etc, e não se chega a lado nenhum.

A par desta transformação nas religiões, e não por coincidência, também muitas sociedades passaram a reconhecer a importância de valores outrora desprezados. A liberdade de opinião, crença e expressão; a liberdade de prática religiosa; os direitos das crianças; a democracia; a tolerância pelas outras culturas; a igualdade de direitos entre os sexos e assim por diante. E isto também contribuiu para tornar a divergência de valores entre ateus e crentes um problema mais relevante que quaisquer diferenças de opinião acerca de alegados factos. Pode ser interessante discutir se Jesus ressuscitou ou se a mãe dele era mesmo virgem. Mas é mais importante decidir se devemos punir quem diz mal de um ritual religioso ou se devemos negar uma fertilização in vitro a uma mulher só por ser solteira.

O deslocar deste conflito do campo dos factos para o campo dos valores teve consequências. Uma consequência menor é tornar o agnosticismo menos defensável e, na prática, mais raro. Se por um lado é aceitável ser agnóstico quanto a suposições factuais sobre a ressurreição de Jesus ou o umbigo de Adão, por outro é irresponsável abster-se de tomar posição quando estão em causa valores fundamentais da nossa sociedade. Por isso, em coisas como censurar caricaturas de Maomé ou dar direitos excepcionais a professores de religião, parece-me que os agnósticos acabam, na prática, por ser ateus. Escolhem como quem não tem deus.

Uma consequência mais importante é na ética da nossa sociedade. Neste nível a divisão entre fé e ateísmo é mais fundamental e tão radical que exclui a posição intermédia. As religiões consideram-nos seres morais, responsáveis por seguir e respeitar normas e valores que nos são dados por Alguém. Em contraste, para o ateísmo somos seres éticos, responsáveis não só por seguir normas morais mas, mais do que isso, por criar, criticar, melhorar e substituir essas normas conforme se revelarem inadequadas. Esta é, agora, a diferença mais importante entre crentes e ateus.

É a diferença entre quem questiona o fundamento das normas que o regem e quem espera que o filho de deus lhe diga que já pode comer carne de porco e que não precisa cortar o prepúcio. Entre quem se esforça por distinguir o bem e o mal e quem faz de conta que não comeu esse fruto. Entre quem se assume responsável pelos valores que defende e quem delega essa responsabilidade em seres hipotéticos ou nos seus representantes. Mais do que questões metafísicas da escolástica medieval, é esta diferença de atitude que separa o ateísmo da crença religiosa.

E isto vai ao fundamento do que é ser ateu. Do que é não ter deus. De entre as muitas formas de não ter deus, sobressai esta de assumir responsabilidade pelos nossos valores. Porque o papel principal das divindades é ser a suposta fonte de todos os valores e aliviar o crente desta responsabilidade. E hoje em dia isso é mais relevante que toda a mitologia de milagres e feitiçarias. Não quero dizer que se ignore disparates ou que se evite criticar erros factuais. Pelo contrário; sou sempre a favor disso. Mas proponho que o ateísmo tem de ser mais que discutir se os deuses existem ou não existem. Porque o fundamental para proteger e melhorar os valores da nossa sociedade é a capacidade de pôr os deuses de parte quando discutimos o que devemos fazer. A capacidade de ser ateu ou, pelo menos, de se portar como quem não tem deuses.

1- Barack Obama, 1-6-2006, Call to Renewal Keynote Address. Obrigado pelo email com o vídeo, que já não me lembrava deste discurso e veio mesmo a calhar para o post.

terça-feira, junho 16, 2009

Ateu, agnóstico, crente.

Em 2006, Dawkins afirmou-se aberto «ao mais maravilhoso leque de possibilidades futuras», mas céptico quanto a ser verdadeira «qualquer uma, em particular, de todas as religiões históricas que as pessoas inventaram». O que ele considera mais meritório que «os deuses do Olimpo ou Jesus a vir cá abaixo morrer na Cruz» é a hipótese de um deus maior e mais incompreensível que tudo o que os teólogos inventaram. Mas mesmo esta ele diz ser refutável e haver bons argumentos para a rejeitar (1).

O Alfredo Dinis surpreendeu-se com esta afirmação e questionou até se Dawkins não será agnóstico em vez de ateu (2). Parece-me que tanto a surpresa como a questão surgem de um problema recorrente no meu diálogo com o Alfredo. A confusão entre o afecto pela ideia de um deus e um juízo objectivo acerca da verdade de cada hipótese. Separando estas questões é fácil ver como um ateu pode ser agnóstico em relação a algumas hipóteses, que ainda assim rejeita.

No que toca ao afecto por uma hipótese dificilmente haverá agnósticos. Cada um sabe o que sente e, neste plano afectivo, podemos dividir as pessoas em dois grupos. Os crentes, que sentem um carinho especial pela hipótese de um certo deus e adoram essa ideia. E os ateus, indiferentes a essas hipóteses, ou a quem a ideia repugna, e que não adoram nenhum deus. É essa a principal diferença entre alguém como eu, sem afecto por qualquer ideia de deus, e alguém como o Alfredo Dinis, que se afeiçoou a certas hipóteses acerca de um suposto deus.

Mas estas atitudes pessoais não implicam nada acerca da verdade das hipóteses. A hipótese de Krishna ser um avatar de Vishnu pode ser verdadeira ou pode ser falsa mas, seja como for, a sua verdade não depende daquilo que eu, o Alfredo ou um hindu possa sentir por ela. E vice-versa. Também não é preciso que o afecto pela hipótese seja determinado pelo seu valor de verdade. No meu caso, mesmo que Krishna seja realmente um avatar de Vishnu eu continuo ateu. Não me vou tornar num hindu devoto nem adorar deuses só por causa disso.

Quando o Alfredo escreve que a posição do Dawkins é «mais racional do que a simples negação de Deus, como se esta negação fosse uma questão do género de negar a existência de sereias ou outros seres mitológicos» está a confundir a sua atitude pessoal com o problema objectivo de averiguar a verdade das hipóteses. Sei que o Alfredo sente mais afecto por hipóteses como Jesus ressuscitar, ou o deus da bíblia existir, do que sente por hipóteses como Zeus causar trovoadas ou existirem sereias. Mas todas estas sofrem dos mesmos problemas. Falta de suporte objectivo em evidências; demasiado detalhe para que possam acertar por mera especulação; indícios que sugerem ser falsas; e explicações mais sólidas por mecanismos sociais e psicológicos. É por isso que Dawkins rejeita a possibilidade de qualquer religião inventada até hoje ser a religião correcta, e nisto concordo com ele. Seja sereias seja Jesus nascer de uma virgem, são hipóteses que posso rejeitar como falsas. E isto independentemente de alguém desejar muito que sejam verdade.

A hipótese de existir um deus incompreensível e maior que tudo o que se especulou já é diferente. Discordo de Dawkins acerca desta merecer mais respeito. Pelo contrário, parece-me que merece menos, por ser tão vaga. Ao menos as outras sabemos que são falsas, um fim útil para qualquer hipótese. Esta só é refutável no sentido fraco de se tornar cada vez menos credível, e mais supérflua, conforme compreendemos melhor universo e reduzimos o espaço para os mistérios. Mas, em relação a um deus tão vago e abstracto, sou agnóstico ao mesmo tempo que sou ateu. Agnóstico porque não vejo como posso saber se esse ser existe ou não. E ateu porque esse deus hipotético, tal como os outros, não me desperta qualquer afecto ou adoração.

Em suma, eu sou ateu porque não me atrai o deus do Alfredo nem outros que se especula haver. E também sou ateu porque, objectivamente, considero falso muito daquilo que caracteriza cada religião. Que um tal deus faz milagres e ouve orações, que se rala com as missas e ressuscitou depois de morrer por nós e outros detalhes especulativos. Mas há hipóteses que não sei como descascar. Por exemplo, não faço ideia de como posso averiguar se Krishna é, ou não é, um avatar de Vishnu. Nestes casos sou agnóstico, mas sem que isso afecte o meu ateísmo. Não me faz adorar deus nenhum nem me dá vontade de acreditar em hipóteses que me parecem falsas.

Infelizmente, não espero que a teologia católica admita esta distinção entre a atitude pessoal e a verdade das hipóteses. Porque se assumem, como escreveu o Alfredo, que «Deus é realmente muito maior e muito mais incompreensível do que os teólogos e as religiões propõem», então nem os teólogos nem as religiões servem para nada. A menos que baralhem o afecto pelas hipóteses com a sua verdade, a fé com o conhecimento e a crença com a razão. Só com esta confusão se pode fingir que uma crença é verdade ser ter mais que o desejo que seja.

1- Time, 5-11-06, God vs. Science
2- Alfredo Dinis, Dawkins agnostico?

sexta-feira, junho 12, 2009

Treta da semana: O santo tacho.

Os professores do ensino público são colocados por concurso nacional. Quase todos. Os professores de Educação Moral e Religiosa (EMR) podem lá chegar por um atalho religioso, sendo nomeados pela organização religiosa que os apadrinha, sejam mais ou menos competentes que os candidatos excluídos. Além disso, a santa cunha permite-lhes também acumular tempo de serviço dando aulas sobre o Adão e a Eva e, com isto, passar à frente dos colegas quando concorrem a disciplinas mais sérias.

E há mais. Os professores menos abençoados dão aulas dentro do grupo de disciplinas ao qual concorrem. Mas os de EMR podem dar aulas noutros grupos também. São licenciados em história, psicologia ou filosofia, e como entraram por obra e graça do espírito santo consideram ser seu direito dar aulas pelos colegas que, sem esta ajuda divina, foram excluídos no concurso público. Isto serve não só para colmatar o parco horário desta disciplina impopular como permite acumular ainda mais horas de serviço.

Mas agora o governo quer tirar-lhes este direito divino. «"Só podem dar outra disciplina ou ter um cargo na escola quando o horário não estiver totalmente preenchido com aulas de moral." Para a [Conferência Episcopal Portuguesa], isto é uma forma de limitar os professores às aulas de moral e "impedi-los de participar na gestão activa da escola, o que não acontecia".»(1) Uma injustiça. Se o senhor Bispo os escolheu para dar aulas de religião, obviamente que são tão competentes como qualquer outro para dar outras disciplinas e para gerir a escola. Se não fossem, o senhor Bispo não os teria escolhido.

Além disso, «acusam a tutela de empurrar as aulas para horas "que levam os alunos a desistir, como antes do início das aulas ou ao final do dia".» Outra injustiça. É certo que mais de metade das crianças não frequenta esta disciplina (2). Mas não tinha mal nenhum que a maioria tivesse um furo a meio da manhã ou da tarde, evitando assim o inconveniente aos colegas com pais mais devotos. E até ficavam todos a entrar uma hora mais cedo ou sair uma hora mais tarde, melhorando o espírito de grupo. E «No ensino básico [...] "a maioria das escolas nem disponibiliza esta disciplina"»(1). É incrível. Como se as crianças dos seis aos dez anos não tivessem já bem definida a sua dedicação à religião dos pais.

O raciocínio que suporta estas reivindicações está patente nesta entrevista, no passado mês de Janeiro, ao presidente do Secretariado Nacional da Educação Cristã. «”É sensato e justo que todas as confissões religiosas tenham os mesmos direitos perante o Estado português”, refere, clarificando que “ter os mesmos direitos não significa ser tratado da mesma maneira”.»(2) Ora aí está. Todos os professores também devem ter os mesmos direitos. Mas isso não quer dizer que os professores de religião e moral tenham de comprovar o seu mérito num concurso público. Especialmente os da religião católica. «Para o responsável, tal justifica, por exemplo, que os professores de [Educação Moral e Religiosa Católica] tenham a possibilidade de aceder a lugares de quadro nas escolas públicas, ao contrário dos de outras confissões, devido ao número superior de alunos inscritos na disciplina face aos matriculados em outras confissões.»(2) Como é que se sabe qual é o deus verdadeiro? Como? Pelo número de inscritos, claro.

Resumindo. Podem ir lá parar nomeados pelo Bispo mas querem dar outras disciplinas, ter lugar no quadro, participar na gestão da escola e não querem mais direitos que os outros. Mas agora o estado quer tratá-los da mesma maneira que trata os colegas, exigindo que entrem por concurso público se querem ser como os outros. Por isso, segundo o «responsável do departamento de educação moral e religiosa católica da Conferência Episcopal Portuguesa [..., aos] professores, resta defender os seus direitos em tribunal». É estranho. O deus deles não pode resolver isso?

Isto é uma fantochada. E é mais uma razão para deixar estas coisas nas igrejas ou, se querem mesmo ensinar religião na escola pública, que o façam de forma igual para todos. Ensinem várias religiões, os seus aspectos históricos e sociais, e contratem professores que demonstrem a sua competência em concursos nacionais. Como os outros.

Via Diário Ateísta.

Editado para corrigir o link anterior (obrigado ao João Vasco pelo aviso) e deixar aqui a ligação para o Comunicado da Associação Ateísta Portuguesa sobre ERMC.


1- Professores de moral ameaçam Estado com tribunal
2- IOL diário, 25-1-09, Educação: menos de metade tem aulas de moral católica

quinta-feira, junho 11, 2009

HADOPI inconstitucional.

Foi ontem reprovada pelo Conselho Constitucional francês a lei que permitiria cortar o acesso à Internet, por mera ordem administrativa, a quem partilhasse ficheiros (1). O Conselho Constitucional invocou o artigo 11º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:

«A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.»(2)

Não é admissível negar este direito apenas por um burocrata receber três queixas do vendedor de CD. E isto revela um problema fundamental de estender ao domínio digital os direitos patrimoniais do autor, o copyright e afins. Com discos e cassetes era possível restringir a distribuição e cópia sem restringir a comunicação “dos pensamentos e das opiniões” ou, como diríamos hoje, sem restringir a troca de informação. Há trinta anos atrás ninguém seria processado por enviar a outro uma descrição matemática da intensidade de som de uma música em função do tempo. Vender cópias em cassete era ilegal mas a informação em abstracto, por muito detalhada que fosse, fazia parte da liberdade de expressão.

Mas com o conteúdo digital não vale a pena restringir algumas formas de exprimir a informação se forem permitidas outras. É trivial enviar músicas codificadas em imagens, partes de filmes em ficheiros de texto ou qualquer outra combinação. É tudo números, de interpretação arbitrária. E se o juiz declara legal partilhar qualquer parte do número π pode-se distribuir todos os filmes, músicas ou programas enviando apenas pedaços da representação binária de π. Que nem sequer é segredo nem propriedade de ninguém.

Tradicionalmente, o copyright cobria apenas certas formas de transmitir ou usar a informação, como vender uma cassete ou tirar fotocópias, e deixava livres outras como emprestar um disco, ler um livro em voz alta ou gravar um programa de televisão. Mas no domínio digital esta distinção não é possível e qualquer restrição tem de ser censura. O copyright digital tem de impedir a troca de qualquer informação, de qualquer forma que seja expressa, se esta permita recriar uma descrição detalhada da obra. Por isso proíbe-se a transmissão de todas as formas destas descrições, de qualquer parte destas descrições, como acontece nas redes de partilha, e até se condena sites como o Pirate Bay que apenas facilitam a troca de informação acerca de quem tem essa informação. Uma proibição tão abrangente não é uma forma legítima de subsidiar um negócio. É uma violação dos nossos direitos mais fundamentais, de expressão e de acesso a informação publicamente disponível.

Mesmo que fosse absolutamente necessário censurar a Internet para financiar o negócio do entretenimento, não se justificava fazê-lo. A censura justifica-se só para proteger direitos tão importantes como a liberdade de expressão. Direito à privacidade, por exemplo. Mas não a devemos admitir por menos. Felizmente, nem se põe esse problema. Um artigo no Guardian desta semana mostra a evolução na venda de entretenimento em suporte digital no Reino Unido, desde 1999. Nestes onze anos em que a partilha de ficheiros aumentou várias ordens de magnitude, a venda de música diminuiu mas o total, somando jogos, DVD e música, duplicou de quatro para oito mil milhões de libras anuais (3). Claramente, não é preciso medidas de repressão para salvar este negócio. Mas precisamos de proteger melhor os nossos direitos.

Via Blasfémias e Remixtures. Obrigado também pelos emails que me enviaram com esta notícia.

1- Décision n° 2009-580 DC du 10 juin 2009
2- Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão
3- Guardian, 9-6-09, Are downloads really killing the music industry? Or is it something else?, via Remixtures

terça-feira, junho 09, 2009

Cartão de Cidadão: Assinatura Digital.

A assinatura digital de documentos com o CC depende de um sistema de Public Key Infrastructure(PKI). Neste sistema de cifras assimétricas, cada utilizador tem uma chave privada que permite criar as assinaturas digitais. Estas são sequências de bytes calculadas a partir de outras sequências quaisquer. Por exemplo, pode-se escrever um documento de texto e assiná-lo digitalmente calculando a sequência de bytes que lhe corresponde, usando a chave privada.

Associada a cada chave privada há uma chave pública que permite verificar se a assinatura digital é legítima mas que não permite calculá-la. Assim, desde que a chave privada se mantenha secreta, tem-se um sistema seguro de validação pública de assinaturas digitais. Todos podem verificar que um certo documento foi assinado por mim porque têm acesso à minha chave pública, mas só eu posso assinar por mim porque só eu tenho a minha chave privada, sem a qual é inviável calcular essa assinatura digital.

No caso do CC, quando activamos a assinatura digital é emitido um certificado associando a nossa chave pública aos nossos elementos de identificação, como o nome e o número do cartão. Este certificado é assinado digitalmente por uma entidade certificadora que tem de ser aprovada pelo Sistema de Certificação Electrónica do Estado. Isto garante que aquela chave pública é mesmo de quem se diz ser. E a chave privada não sai do CC. Está guardada no chip, é teoricamente inacessível, e é o próprio chip que calcula a assinatura digital. Para gerar a assinatura digital é preciso enviar ao chip a informação acerca do ficheiro a assinar (um hash do ficheiro*), o chip exige o PIN e depois devolve a assinatura calculada. Conceptualmente, este sistema é seguro. Se for usado em ambiente seguro. E aí está o problema.

Quando assinamos com caneta no papel vemos o que estamos a assinar. Quando assinamos um documento digital carregamos num botão, escrevemos o PIN, um conjunto de dados é enviado para o CC e sai uma assinatura digital. De quê, não sabemos. Temos de confiar nos programas que usamos, e os nossos computadores não são seguros. Estão ligados à Internet, muitas vezes sem protecção adequada, e facilmente acabam a correr programas que não queremos. Um programa malicioso que corra oculto no nosso computador pode interceptar o nosso pedido de assinatura digital, guardar o PIN e, sempre que tivermos o CC no leitor, usá-lo para assinar qualquer documento em nosso nome e sem o sabermos.

A assinatura electrónica tem carácter probatório e impede o repúdio do documento assinado. É considerável o potencial criminoso de uma rede com milhares de computadores infectados, cada um capaz de assinar digitalmente documentos em nome dos detentores dos cartões mas a mando de quem controla o programa. E para implementar isto nem é preciso roubar cartões ou quebrar mensagens cifradas. Basta enganar o utilizador. Curiosamente, o manual do middleware do CC exprime uma preocupação semelhante, sem bem que num âmbito demasiado restrito:

«O parâmetro dwParam = HP_HASHVAL é implementado mas deve ser usado com cuidado. Este parâmetro foi definido de forma a dar às aplicações a possibilidade de assinar hash values, sem ter acesso à base data. Porque a aplicação (e muito menos o utilizador) não pode ter ideia do que está a ser assinado, esta operação é intrinsecamente arrisacada [sic].» (1)

O problema fundamental não é a implementação desse parâmetro na função CryptSetHashParam. O problema é ter um cartão que cada cidadão supõe ser seguro mas que vai ser usado em qualquer computador pessoal, com qualquer software que apareça e em qualquer balcão por pessoas que não conhecem as vulnerabilidades deste sistema de segurança.

* Na documentação do middleware para o CC recomendam o SHA-1, que já desde 2005 se sabe não ser tão bom quanto devia ser: Bruce Schneier, Cryptanalysis of SHA-1.

1- Este manual, escrito à pressa e até com partes em Inglês que ficaram por traduzir, pode ser descarregado na página dos manuais técnicos do Cartão de Cidadão. O trecho citado está na página 12 do pdf.

segunda-feira, junho 08, 2009

Evolução: A Eva mitocondrial e outros antepassados.

Cada um de nós tem dois progenitores e, normalmente, quatro avós, oito bisavós, e assim por diante. Eventualmente há sobreposições. Não havia gente que chegasse para duplicar os antepassados durante mais que umas dúzias de gerações. Mas conforme vamos recuando no tempo vamos encontrando, entre os nossos antepassados, indivíduos que também são antepassados de outros nossos contemporâneos. Eventualmente, encontramos um que consta em todos os grupos de antepassados de todos os seres humanos vivos hoje. Esse é o nosso antepassado comum mais recente (MRCA, de most recent comon ancestor).

O MRCA de todos nós, quando viveu, não tinha nada de especial. Era uma mulher ou um homem como tantos outros da sua tribo, e de outras tribos do neolítico ou paleolítico superior, entre os quais se contam muitos antepassados de cada um de nós. A distinção que lhe conferimos é retrospectiva, por todos os humanos vivos hoje serem seus descendentes. E nem é único nisto. Obviamente, todos os seus antepassados são também antepassados de todos nós. É apenas o mais recente. Mas é comum confundirem isto com uma certa fábula dos hebreus. O Marcos Sabino deu um exemplo há dias:

«Há alguns anos, com base na genética, os cientistas concluíram que todos os seres humanos descendem de uma única mulher – a chamada Eva mitocondrial. Com base no ADN mitocondrial que, pelo que consta, apenas é transmitido pela mãe, conseguiram afunilar todos os seres humanos até uma só mulher.»

Como só o núcleo do espermatozóide penetra no óvulo, nós herdamos os organelos celulares da nossa mãe. Entre estes, as mitocôndrias, que ela herdou da sua mãe, que as herdou da sua e assim por diante. Comparando o ADN mitocondrial das pessoas vivas hoje conseguimos estimar quando viveu o nosso MRCA por esta linhagem exclusivamente matrilineal. Ou seja, a mulher que mais recentemente foi mãe da mãe da mãe, muitas vezes, da mãe de cada um de nós. Tal como com qualquer MRCA, é disparate dizer que todos descendemos apenas desta pessoa. Entre os seus contemporâneos contaram-se muitos antepassados nossos, e não houve afunilamento nenhum nesta mulher. É apenas a primeira que encontramos onde se intersectam as linhas ancestrais de todos nós, se medidas só pelo lado materno em cada geração. Muitas mulheres que viviam com ela, há 100 a 140 mil anos atrás, são antepassados de todos os humanos vivos hoje*. O que distingue a Eva mitocondrial é ser a única que pode traçar a sua descendência até cada um de nós exclusivamente de mãe para filha, enquanto que em cada linha que nos une às suas contemporâneas houve pelo menos um filho.

O Marcos Sabino faz esta confusão a propósito da taxa de mutação nas mitocôndrias, quando medida comparando parentes próximos, ser cerca de cinco vezes maior que a taxa de fixação das mutações mitocondriais quando medida comparando populações mais distantes (2). O mecanismo responsável por esta discrepância está está ainda por elucidar em detalhe, mas também aqui não se justifica fugir para a fábula bíblica da Eva.

A taxa de mutação é a velocidade com que as mutações ocorrem. No artigo que o Marcos cita, compararam o ADN mitocondrial de várias pessoas da mesma linhagem e encontraram uma taxa de uma mutação a cada 40 gerações, muito mais rápida que uma em 300 a 600 gerações, o intervalo aceite nas análises filogenéticas. Mas há uma diferença importante. Ao comparar indivíduos que são parentes relativamente próximos estamos a medir a taxa de ocorrência das mutações. Mas ao comparar grupos distantes estamos a medir principalmente a velocidade à qual as mutações se fixam no grupo. Ou seja, o recíproco do tempo que demora uma mutação a espalhar-se por toda aquela população. E se as mutações estiverem sujeitas a pressões selectivas, estas medidas diferentes vão dar resultados diferentes.

Já agora, para completar a família, há também o Adão do cromossoma Y. Aqueles de nós que têm este cromossoma herdaram-no do pai, que o herdou do seu pai e assim por diante. Esta nossa ascendência exclusivamente de filho para pai intersecta-se no tal Adão Y, que viveu uns trinta mil anos depois da Eva mitocondrial e que, tal como esta, não tinha nada de especial quando viveu. Só tem agora a distinção póstuma de calhar ser um antepassado comum a todos nós, se medido pela herança deste cromossoma. Estes trinta mil anos de diferença devem-se a ser mais provável um homem morrer sem filhos do que uma mulher não ter descendentes. Isto faz com que os homens que têm filhos tenham, em média, mais descendentes que as mulheres que têm filhos e que, curiosamente, tenhamos menos antepassados do sexo masculino que do sexo feminino.

* Estima-se que o ponto de ancestrais idênticos para a nossa espécie tenha ocorrido há quinze mil anos ou menos. Isto quer dizer que qualquer individuo que tenha vivido antes disso ou é antepassado de todos os humanos vivos hoje ou não é antepassado de nenhum ser humano vivo.

1- Marcos Sabino, 4-6-09, 6000 anos para a Eva mitocondrial
2- Alec McAndrew, Misconceptions Around Mitochondrial Eve

domingo, junho 07, 2009

3 deputados...

...por 700 votos. Acho que o meu voto nunca contou tanto como hoje.

Na Suécia, o Partido Pirata tem pelo menos um deputado. Mas com 7.1% no resultado preliminar não deve chegar aos dois (precisava de 8%). Mesmo assim, para um partido tão jovem não está mal.

sexta-feira, junho 05, 2009

Treta da semana: “Cientistas portugueses invalidam um dos dogmas da biologia”

É o título da notícia, no Público (1), acerca de um artigo na Nature comparando vários genomas de leveduras do género Candida, algumas das quais patogénicas. O título alude ao dogma do “código genético” fazer corresponder cada códão (sequência de três bases no ADN e ARN) a um aminoácido na proteína, e sugere que os cientistas portugueses invalidaram este dogma demonstrando haver variações nesta correspondência. É um título chamativo, mas gostava de apontar três incorrecções. Não foram exactamente os “cientistas portugueses”, não invalidaram dogma nenhum, e a investigação nem sequer é sobre isso.

O artigo tem uns cinquenta autores (2). Destes, parece-me, dois são portugueses. Os autores principais são Manolis Kellis e Christina A. Cuomo do Broad Institute of MIT and Harvard. O orgulho patriótico no título, além de injustificado, é depreciativo de algo com muito mais valor científico. A colaboração de meia centena de investigadores de duas dezenas de instituições espalhadas pelo mundo. Isso é que merecia ser salientado.

E o “dogma” nunca o foi. Quando uma molécula de ARN mensageiro (ARNm) se encaixa no ribossoma, pequenas moléculas de ARN de transferência (ARNt) vão se ligando a partes do ARNm, cada uma trazendo um aminoácido que o ribossoma vai ligando para formar a proteína. Como moléculas diferentes de ARNt têm afinidade por tripletos diferentes de nucleótidos no ARNm, e como também se ligam a aminoácidos diferentes, estas reacções fazem a sequência da proteína depender da sequência do gene. É a esta correlação, determinada por reacções químicas, que se chama metaforicamente “código genético”. Mas, ao contrário do que defendem alguns, isto não é um código inteligente nem uma linguagem. São reacções químicas guiadas pela afinidade entre certas moléculas, e basta que os ARNt sejam diferentes para que a correspondência entre gene e proteína seja diferente também.

Por isso, em 1973, seis anos antes de se descobrir variantes do “código genético”, já Crick e Orgel tinham escrito ser «surpreendente que não existam organismos com códigos diferentes»(3). Hoje conhecem-se mais de vinte variantes (4). A existência de uma correspondência única e universal entre genes e proteínas nunca foi um dogma da biologia. Foi apenas uma boa aproximação, como quase todas as afirmações gerais acerca de sistemas tão complexos.

Várias espécies do género Candida sintetizam duas variantes de ARNt diferentes daquelas que existem noutros organismos. Em geral, os ARNt que se ligam ao codão CUG ligam-se também à leucina mas, nestas espécies, os ARNt com afinidade por este codão transportam serina, um aminoácido diferente. Comparando os genomas de espécies de Candida com outra levedura, Saccharomyces, os investigadores descobriram que a mudança gradual dos ARNt de uma linhagem ancestral de Candida foi forçando a substituição do codão CUG por codões correspondentes à leucina em muitos sítios diferentes do genoma e, vice-versa, a substituição por CUG de codões que noutros organismos correspondem à serina. Isto é interessante por mostrar uma evolução concertada em todo o genoma devido a um único factor, a substituição gradual de alguns ARNt ao longo de muitas gerações.

E isto é só parte de um trabalho que revela também detalhes da evolução de várias proteínas responsáveis pela adesão das leveduras aos tecidos do hospedeiro e à invasão das células, e também da regulação da reprodução sexuada nas espécies patogénicas, que aumenta a sua diversidade genética e as ajuda a iludir o sistema imunitário.

É pena que de um trabalho tão interessante de cooperação internacional, comparando vários genomas e elucidando a evolução de diversas características de organismos patogénicos, nasça a notícia que os portugueses “invalidaram” um dogma fictício. É verdade que o texto não é tão mau como o título. Seria uma façanha, se o conseguisse. Mas era bom que quem escrevesse os títulos compreendesse um pouco a notícia.

1- Público, 4-6-09, Cientistas portugueses invalidam um dos dogmas da biologia. Obrigado ao Mário Miguel pelo link.
2- Nature, Kellis, Cuomo et. al., Evolution of pathogenicity and sexual reproduction in eight Candida genomes
3- Crick, F. H. C. and Orgel, L. E. (1973) "Directed panspermia." Icarus 19:341-346. p. 344, citado na Wikipedia
4- Andrzej Elzanowski and Jim Ostell, NCBI, The Genetic Codes

quinta-feira, junho 04, 2009

Cidadão electrónico.

Já tenho o meu Cartão de Cidadão (CC). Cheguei às 8:20, dez minutos antes da abertura, para me despachar. E fiz bem. Às 8:35, quando entrei para tirar a senha, estavam cinquenta pessoas em fila atrás de mim. Infelizmente, quando lá cheguei já estavam 150 à minha frente. Mas em pouco mais de duas horas fui atendido.

Bom dia, sentei-me, entreguei a senha e a parte da carta com o número do processo. A senhora levantou-se para ir buscar o cartão e eu pus na mesa os vários cartões que teria de entregar para invalidar e o papelinho com os códigos virados para baixo, tudo junto a mim. A senhora entregou-me o CC, pediu-me que conferisse os dados e, enquanto eu comparava o número no CC com o do BI, ela veio pescar a folha dos códigos e começou a escrever coisas no computador. Em vez de protestar decidi ver o que ela fazia. Pôs o cartão no leitor e pediu para eu pôr o indicador no quadradinho enquanto, com os meus códigos à sua frente, escrevia no computador. O monitor estava virado para ela e eu não vi o que ela fez. Perguntou se eu queria activar a assinatura digital. Disse que não, obrigado, fazia isso mais tarde. Furou os outros cartões, devolveu-me tudo e bom dia, fui-me embora.

Ser a funcionária a introduzir os meus códigos foi certamente uma violação do procedimento. Se fizer queixa é provável que a repreendam. Mas não o fez por mal, não tenho receio que tivesse o Notepad aberto para copiar os meus códigos, e com o número de pessoas que tem de atender não é prático que cada uma digite o seu código. Episódios como este, ou como pedirem à Paula para ditar o código em voz alta (1), não são o problema. São meros sintomas de uma falha fundamental muito mais preocupante.

O elemento de segurança principal do antigo BI é a presença de quem se identifica com ele. Isto cria um risco a quem se tentar passar por outrem, o que exige uma falsificação muito boa. Porque mesmo que a probabilidade de ser apanhado seja pequena, se o criminoso tem de estar lá presente quando isso acontece, deixa de compensar. Os arabescos no cartão aumentam a probabilidade de detecção, que aumenta o risco de ser apanhado e, por isso, reduz a incidência deste crime.

Mas se aquilo que se faz passar por mim é um programa num servidor ucraniano, alugado com um cartão de crédito roubado, o risco para o criminoso é nulo. Pouco lhe importa se detectam a falcatrua e vale a pena tentar mesmo com pouca probabilidade de sucesso. O Rui Meleiros mencionou «Criar uma empresa online na Estónia» como exemplo “divertido” do que se pode fazer com o CC (2). A mim não me diverte a possibilidade de o fazerem em meu nome e eu só saber quando for preso.

Como a segurança do BI assentava na presença de quem se identificava nunca nos preocupámos com a informação no cartão. Mostrávamos o BI a quem o pedisse, dávamos fotocópias e o número não era segredo nenhum. Por isso pouca gente achará estranho que a funcionária da Loja do Cidadão peça os códigos e os digite. É o costume. Mas a autenticação remota exige mais cuidado e tem de ser muito mais segura. E, além do cartão em si, depende também do segredo dos códigos e de onde usamos o cartão.

Com o Multibanco já nos habituámos. Nunca lembraria àquela senhora pedir-me este cartão e o PIN, ou os códigos que uso para aceder à conta a partir de casa. E ninguém lhe daria tal coisa. Mas quem nos fornece um cartão Multibanco ou credenciais para home banking deixa claro que os códigos são para manter secretos, e nós sabemos que quem usar esse cartão pode tirar-nos dinheiro. É o contrário do que fazemos quando usamos o BI, que é para mostrar e dar número e fotocópias a quem pedir.

Além dos problemas de agregar informação pessoal de milhões de pessoas em bases de dados que podem ser cruzadas, o erro fundamental do CC é misturar duas formas de autenticação muito diferentes. Identificarmo-nos a outra pessoa, presencialmente e mostrando o documento de identificação. E a autenticação remota, perante uma máquina e por meio de códigos secretos e encriptação. Se nem os funcionários conseguem distingui-las não é de esperar grande segurança neste sistema, porque cada vez que alguém se enganar, ou for enganado, vai facilitar a falsificação da sua identidade*.

O chip, os PIN e os dados biométricos melhorariam a segurança do CC se este fosse usado apenas como o BI, para identificar quem se apresenta com o cartão. Esta devia ser a versão atribuída a todos os cidadãos. A identificação remota devia ser independente e opcional, porque requer um cuidado diferente daquele que se associa a um documento de identificação. E nunca devia ser exigido ao utente que levasse os códigos para onde quer que fosse. Não é por razões tecnológicas. Com certeza que, no papel, o sistema do CC parece seguro. É pelos hábitos de uso e pelos problemas práticos de implementação em larga escala, que dão esta confusão e põem em causa a segurança do sistema.

*Editado: tinha "furto de identidade", mas este problema é de fraude, não de furto, se bem que a falsificação de identidade possa facilitar o furto.

1- Paula Simões, 15-1-09, Cartão do Cidadão ou porque é que eu não confio no sistema
2- Comentário em !@#&$! para o cartão de cidadão.

quarta-feira, junho 03, 2009

Indecisão 2009: a semi-final.

Já estraguei o suspense com o post anterior, mas como a decisão só será final no dia 7, aqui fica o que reuni acerca dos seis finalistas para o período de reflexão.

Pergunta BE CDU MMS MPT PCTP PH
Os programas sociais  deviam ser mantidos mesmo que isso implique o aumento dos impostos22-2222
Devia haver um esforço maior para privatizar os serviços de saúde em Portugal-2-20-1-2-2
Os subsídios estatais para infantários e cuidados à infância deviam ser substancialmente aumentados2211-2
As políticas de imigração orientadas para trabalhadores qualificados deviam ser encorajadas como meio de promover o crescimento económico-2-220--
A imigração para Portugal devia tornar-se mais restritiva-2-210--2
Devia exigir-se que os imigrantes de fora da Europa aceitem a nossa cultura e valores -2-1----2
Pergunta BE CDU MMS MPT PCTP PH
A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma coisa boa221--2
Os princípios e valores religiosos deviam ser mais respeitados pela política-2-2---2-
A descriminalização do uso pessoal de drogas leves é bem-vinda22-2-2--
A eutanásia devia ser legalizada201-2--
A despesa pública devia ser reduzida para permitir a descida dos impostos-2-22-1-2-
A UE devia passar a ter o poder de aumentar os impostos--21-1-2-
Pergunta BE CDU MMS MPT PCTP PH
Os governos deviam ajudar os bancos em falência com dinheiros públicos-1-1----1
Os governos deviam reduzir os regulamentos de protecção dos trabalhadores para combater o desemprego-2-22--2-2
A UE devia reduzir drasticamente os subsídios aos agricultores europeus-1-12-2--
As fontes de energia renováveis (tais como a energia solar ou eólica) deviam ser apoiadas mesmo que isso implique maiores custos2222-1
A utilização de transportes públicos devia ser promovida através dos chamados impostos verdes (como, por exemplo, o imposto de circulação)  11-112
As políticas de combate ao aquecimento global deviam ser encorajadas mesmo que isso tenha custos no crescimento económico ou no desemprego21-1-2
Pergunta BE CDU MMS MPT PCTP PH
Na luta contra o terrorismo deviam ser aceites restrições às liberdades civis-2-21---
Os criminosos deviam ser punidos mais severamente-202---2
Em assuntos de política externa, como por exemplo nas relações com a Rússia, a UE devia falar a uma só voz--2--1-2-
A UE devia reforçar a sua política de segurança e defesa-2-22-1-21
A integração europeia é uma coisa boa0-1---22
Portugal está muito melhor dentro da União Europeia do que fora dela0-12--22
Pergunta BE CDU MMS MPT PCTP PH
A União Europeia devia ser alargada à Turquia0----1
Deviam ser dados mais poderes ao Parlamento Europeu1-2--1-2-
Cada estado-membro da UE devia ter menos poder de veto--2---2-
Qualquer novo Tratado Europeu devia ser sujeito a aprovação através de referendo em Portugal22-222
A regionalização devia ser implementada em Portugal2222-22
Nos próximos anos, o governo português devia investir em grandes infra-estruturas, como o TGV e o novo aeroporto de Lisboa12-102-

Pela tabela, o MMS não me agrada muito, a favor de penas mais pesadas, contra a legalização das drogas leves e pela redução de programas sociais. No documento “Soluções para Portugal”(1) apelam demasiado ao nacionalismo, propõem unificar a segurança com a defesa e investir mais na defesa. Têm algumas boas intenções mas o plano de implementação parece deficitário. Por exemplo, querem acabar com as listas de espera no sistema de saúde fazendo os serviços «obrigatoriamente programados» para suprir todas as necessidades da população.


O MPT tem um programa de 63 páginas com uma linguagem soporífera que só recomendo a quem sofrer de insónias (2). De salientar as recomendações (infelizmente, só na página 51... <bocejo>) para regulamentar as medicinas alternativas: «Reconhecer as instituições nacionais e estrangeiras com idoneidade para ministrar formação no âmbito das medicinas não-convencionais, bem como os títulos necessários ao exercício profissional». Pois.


A CDU é um fóssil e, das “seis razões” para votar neles, não aproveito nenhuma. A maioria nem percebo. «O voto que afirma Portugal como um país aberto à Europa e ao Mundo assente em relações diversificadas de cooperação entre os povos e pela paz.»(3) Isso, na prática, é fazer o quê?


O PCTP-MRPP é um clone impronunciável da CDU, mas com um blog em vez de um site. O manifesto parece um post de protesto (4) e não encontrei lá nada que me atraísse.


Na tabela, o Partido Humanista está alinhado comigo na maior parte das coisas. No entanto, a ênfase no pacifismo é ingénua e, se levada a sério, potencialmente perigosa. Parece-me que quem conhecer a história do século XX admitirá que o pacifismo é um fim louvável mas um meio pouco prático. E a guerra não me preocupa muito neste momento.


O BE parece-me o melhor. Não é perfeito. Sou bastante mais pró-Europa e preocupa-me o fundamento marxista do partido. Mas já sabia que não ia encontrar um partido alinhado com as minhas ideias acerca da economia (e, se calhar, ainda bem...). E também têm no programa a intenção de iniciar «um debate em torno das medicinas ditas tradicionais ou alternativas, tantas vezes omitidas e ocultadas, e abrindo espaço para a sua implementação e complementaridade»(5), que também não me agrada. Mas se for para distinguir objectivamente o que funcionam e o que é mera superstição, acho bem. E, em geral, o BE parece-me apto, a activo, para lidar com os problemas que considero mais urgentes.


Não é só porque o Francisco Louçã me respondeu, ou pelo que me esclareceu, ou pela forma amável e informal como o fez. Admito que me impressionou e que isto pesou na minha decisão, mas o BE já tinha marcado pontos antes disso. Em Abril a Ana Drago contestou a certificação das tretas Índigo pelo Ministério da Educação (6). O BE foi o partido que mais se manifestou contra as patentes de software e a favor do software livre. No seu programa eleitoral abordam explicitamente problemas da sociedade de informação, como o acesso à cultura e o uso de DRM limitar aos consumidores o exercício dos seus direitos. E têm o programa eleitoral aberto a discussão pública no site (5).


Apesar da concordância estar enfraquecida por algumas divergências importantes, pelo menos sinto que o BE está no mesmo século que eu e que nos preocupam problemas semelhantes. Mas até dia 7 estou aberto a sugestões.


1- MMS, Soluções para Portugal, em pdf.
2- MPT, Programa (pdf)
3- CDU, Seis razões para votar CDU
4- PCTP-MRPP, Manifesto Eleitoral
5- http://igualdade.bloco.org/
6- Esquerda.net, Ana Drago contesta certificação do Ministério da Educação ao embuste das "crianças Indigo"

Ilegais? Porquê? – Desta é que foi. Mais ou menos...

Para quem apanhou a história agora, isto começou quando eu quis saber porque é que dizem que os downloads são ilegais. Pedi que me indicassem o artigo violado por copiar da Internet algo para uso privado, ao Ministério da Cultura e a associações de colecta como a SPA, ACAPOR e afins(1). Recebi uma resposta da IGAC a dizer que só é licito copiar, para uso privado, aquilo que adquirimos licitamente. Mas como isto não é o que vem na lei, pedi um esclarecimento (2), e explicaram-me que, de facto, não vem na lei mas o juiz é que decide (3). Como a Lei em causa, a 50 de 2004, estava no site da Assembleia da República como proposta pelo Francisco Louçã e o Bloco de Esquerda, decidi escrever-lhe a pedir a sua opinião como legislador. Hoje recebi a resposta.

Segundo o email do Francisco Louçã, foram aprovadas na generalidade tanto a proposta do BE como a proposta do PSD e CDS, então com a maioria no Parlamento. Mas na especialidade só ficou o proposto pelo PSD e CDS. Na votação final, o PS, o PCP e o BE abstiveram-se por discordarem do resultado. Ou seja, esta não é a lei proposta pelo Francisco Louçã e o BE, e não está de acordo com o que o BE pretendia.

Em consequência disto, não parece haver quem esclareça o Artigo 75º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos. No ponto dois diz que podemos copiar a obra para uso privado, mas diz também no ponto quatro que só o podemos fazer sem «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.» Se o juiz considerar suficiente a taxa que pagamos quando compramos CD-R e DVD-R, e que não comprar uma coisa não é causar prejuízo injustificado, então podemos descarregar à vontade. Se achar que copiar uma música é o mesmo que roubar um carro, então o download dá três anos de cadeia.

Portanto, nisto fiquei na mesma. Mas duas coisas ficaram claras.

Enquanto que a IGAC e o Francisco Louçã me responderam rapidamente, e a Inspectora Geral da IGAC até teve a amabilidade de me responder a vários emails a pedir esclarecimentos, até hoje ainda não recebi resposta da FEVIP, ACAPOR, MAPiNET ou SPA. Ou estes senhores andam muito mais atarefados ou estão a ver se ninguém se lembra de pedir o fundamento legal para o que afirmam. Como, por exemplo, no site da FEVIP:

«Quem é pirata
[...]
Quem faz downloads não autorizados de filmes através de sistemas de partilha de ficheiros!
Porque fez uma cópia de um filme que foi colocado na internet, podendo ser através de P2P (Ex: Emule, Torrent, DC++), páginas de internet, caixa de correio electrónico, newsgroup ou qualquer outra forma que esteja disponível no ciberespaço, sem a respectiva autorização dos titulares de direitos.»
(4)

Até por descarregar o correio electrónico se pode ser pirata.

A outra coisa que ficou clara, graças ao Francisco Louçã, é a posição do Bloco de Esquerda nesta matéria. «O Bloco sempre recusou qualquer perseguição ao descarregamento de ficheiros na Internet.» Mais claro que isto não podia pedir. E parece que me resolveu o problema de saber o que fazer no próximo dia 7.

1- Ilegais? Porquê?
2- Ilegais? Porquê? – actualização
3- Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.
4- FEVIP, Quem é pirata

Editado às 16:27 para corrigir o último link. Obrigado ao Rui Meleiro por ter apontado o erro.

segunda-feira, junho 01, 2009

!@#&$! para o cartão de cidadão.

No dia 30 de Dezembro passei nove horas e meia para registarem as minhas impressões digitais, foto e alguns números. Cinco meses depois recebi uma carta a dizer para ir levantar o cartão fazendo-me acompanhar «da presente carta». Vinha num papel picotado juntamente com vários códigos. Na carta, «Recomenda-se, por razões de segurança, que mantenha estes códigos em local seguro, separados do cartão e que não os revele a ninguém». Sendo a recomendação razoável, rasguei cuidadosamente pelo picotado e separei a «presente carta» do resto que tinha os vários códigos.

A semana passada cheguei à loja do cidadão às 9:00 e a senha já ia no número 65. Ao fim de uma hora tinham passado dez números. Como não tinha seis horas para passear pelo Odivelas Parque decidi voltar noutro dia. Hoje fui mais cedo e só ia no número 36. Três horas depois fui atendido por um senhor que me disse não poder entregar o cartão sem os códigos de activação. Mas a carta diz para não os trazer. Pois, esclareceu, mas isso são os outros códigos. Os de activação é preciso trazer.

!@#&$!, teria ouvido ele se fosse telepata. A vontade que dá é desatar à canelada àquela gente toda mas, infelizmente, os culpados nunca estão à vista. Agradeci a informação e, amável, o senhor sugeriu que eu voltasse com os códigos ao fim do dia. Ao idiota que escreveu a carta esquecendo-se de mencionar que alguns códigos eram necessários, desejo para o resto da sua vida que todo o papel higiénico em que toque se transforme em lixa de grão 30.

Mas nem tudo foi mau. O Barba Rija perguntou no post anterior «O Ludwig vai votar no PS?» Agora posso dizer que não. Não estava particularmente inclinado a isso, mas até hoje queria seguir a análise e ver onde levava. Mas mesmo que nenhum político seja pessoalmente culpado por esta trapalhada, e outras como esta, o PS é politicamente responsável por esta burocracia ineficiente e erros desnecessários que dificultam a vida a muita gente. Fica assim a escolha reduzida a seis partidos.

Adenda: A Paula Simões relata em Cartão do Cidadão ou porque é que eu não confio no sistema a sua experiência com o sistema de segurança deste cartão e da sua potencialidade. Gostei especialmente da parte em que a senhora da repartição pediu à Paula que dissesse o PIN em voz alta, no meio de toda a gente que lá estava, para a senhora o introduzir no computador.

Adenda 2: Fui lá agora como tinham sugerido. O sistema estava "em baixo" e ainda havia 52 pessoas à espera de cartão. Mas pode ser que dê, disse a senhora, porque muitos já devem ter desistido. E eu um deles. Amanhã tento outra vez...