segunda-feira, novembro 30, 2009

Sentido.

Deus dá sentido ao universo. Pelo menos, é o que dizem os crentes. Mas não é claro o que isto quer dizer porque esta palavra pode referir orientação, significado, inteligibilidade ou algo que sentimos profundamente. E parece-me que alguns dos sentidos de "sentido" vêm baralhados na religião.

Partes do universo fazem sentido. Nem todas, porque há muito que ainda não compreendemos e que talvez nunca cheguemos a compreender. E, do que compreendemos, muito faz um sentido distante, que não mexe connosco. Sentido sem se sentir. Coisas como o número de estrelas da galáxia, o tamanho do electrão e a duração do universo estão tão fora da nossa capacidade de apreender subjectivamente que só as compreendemos na forma abstracta de representações simbólicas. O universo tem 13,500,000,000 de anos. Grande número. Tão grande que alguns preferem agarrar-se a um livro que o reduza a uns milhares de anos, mais ao alcance da imaginação compreensivelmente limitada dos antigos hebreus e mais dentro daquilo que podemos sentir. Dez mil anos sentimos que é muito tempo. Treze mil milhões de anos não nos diz nada, subjectivamente.

Compreendo que esta distância entre o sentido que a ciência dá às coisas e as coisas que conseguimos sentir desiluda alguns e os leve a imaginar algo mais humano para encontrar o tal sentido. A ciência unifica muitos fenómenos em teorias elegantes e rigorosas, tem grande poder explicativo mas parece demasiado abstracta por nos dizer coisas difíceis de imaginar. A Lua está a trezentos e oitenta mil quilómetros de distância. Tem três mil e quinhentos quilómetros de diâmetro e desloca-se à volta da Terra a quase quatro mil quilómetros por hora. Mesmo para quem sabe isto, são só números. É muito difícil olhar para a Lua e sentir estas dimensões ou sequer algo que se aproxime da imensidão que é até o nosso minúsculo cantinho do universo.

Por isso uma alternativa é encontrar sentido imaginando um deus que é amor. Amor sabemos sentir e podemos imaginar facilmente um ser que ama. Umas vezes caridoso e generoso, outras vezes ciumento e violento. Que age por paixão, ora com gestos fúteis de enorme sacrifício e dedicação, dando a vida só por dar (por amor!), ora exigindo tudo em troca, dedicação total ou o castigo eterno. Enfim, o deus da bíblia. Amor à medida da pequenez humana, sentido como nós o sentimos, com o bom e o mau à mistura.

Mas esta forma de procurar sentido não faz sentido. Sente-se, é verdade, mas não dá nada a compreender. Não esclarece o que observamos nem sequer encaixa com a imensidão do universo e a indiferença com que este nos trata. Este universo, é mais que evidente, não se porta com amor nem se importa connosco ou com coisa nenhuma. A hipótese de um deus que é amor não explica nada. Além disso, é errado julgar que é o deus que dá sentido. Mesmo que existisse tal deus, essa existência seria apenas mais um facto e esse deus seria apenas mais uma coisa, como o Sol, a Lua e as galáxias. O sentido, tanto o de dar a compreender como o de sentir, está nas nossas ideias e não nas coisas em si. A fé, no fundo, não é acerca dos deuses. É acerca da ideia de haver deuses.

Eu prefiro não abdicar do sentido que as coisas fazem só para as sentir. Prefiro não me agarrar a hipóteses sem fundamento nem utilidade explicativa só para despertar alguma emoção de assombro ou conforto. Por um lado porque seria enganar-me propositadamente. Por outro, e principalmente, porque não é preciso. Com um pouco de esforço, e provavelmente não mais que aquele que a fé exige, posso sentir na realidade um sentido tão forte como os que as religiões inventam com os seus deuses. Posso olhar a Lua e as estrelas e sentir algo da magnificência do que estou a ver sem ter de inventar o que estou a ver. Posso-me maravilhar por ser feito de átomos criados dentro de estrelas que explodiram há milhares de milhões de anos e sentir assombro pelo longo processo de evolução que me deu a capacidade de perceber as minhas origens.

É verdade que nunca serei capaz de sentir mais que uma pequena fracção daquilo que devia sentir. A vertigem que sinto, numa noite límpida, ao imaginar a distância a que estão as estrelas fica muito aquém do que devia sentir se a vertigem fosse proporcional à distância. Devia explodir de vertigem. Mas isto apenas demonstra as minhas limitações. Não justifica imaginar um deus de amor só para sentir mais qualquer coisinha.

Finalmente, as perguntas últimas. Qual o sentido disto tudo? Para que serve a nossa existência? E assim por diante. São perguntas fascinantes, mas nenhuma resposta que se encontre por aí poderá ser a resposta certa. Seja num livro sagrado, nas palavras dos deuses ou nas leis da natureza, nada que nos seja dado poderá dizer qual o sentido que isto tem para nós, pois esse terá de vir de cada um. São perguntas para ir respondendo, vivendo.

Em suma, os deuses não dão sentido. As hipóteses acerca deles não explicam nada e, mesmo que seja só para sentir, a realidade é melhor que as religiões que inventamos.

sábado, novembro 28, 2009

O negócio que se foi.

Em Julho o presidente da ASSOFT queixou-se da luta «até à data desigual, entre o valor da Propriedade Intelectual e da Cultura (que tantas batalhas tem travado desde o século XIX para se impor e conseguir criar condições para que a produção cultural possa evoluir e acontecer) e a Pirataria»(1). Mas não parece que as condições para a produção cultural tenham piorado com a partilha de informação. A investigação científica – e a ciência é uma parte importante da nossa cultura – tem beneficiado muito desta tecnologia. A educação também, e não se preserva nem se fomenta a cultura sem educação. A cultura tem sido estimulada pelo acesso à informação, a troca livre de ideias e pela criação cultural amadora, não no sentido de não ser remunerada mas no sentido de ser por gosto em vez de por negócio. Se a Cultura, com maiúscula, for o conhecimento e ideias cultivados na sociedade, hoje está melhor que nunca. E mesmo restringindo o termo ao negócio da música e cinema, também está bem de saúde. Recordes de bilheteiras todos os anos, cada vez mais dinheiro em concertos e a inovação constante nas formas de ligar os autores aos seus clientes. Mas é disto que alguns se queixam.

O filme «Ink» estreou em Janeiro no festival internacional de Santa Barbara. Sendo uma produção independente, não conseguiram que fosse exibido em quase mais lado nenhum. Nem têm dinheiro para o publicitar. Segundo Kiowa Williams, um dos produtores, a dificuldade foi as grandes distribuidoras de «Hollywood alegarem não saber como comercializar o filme ou que não tem audiência». Mas este mês alguém pôs uma cópia do filme na rede BitTorrent. Em poucos dias centenas de milhares de pessoas já o tinham visto e saltou para 16º lugar em popularidade na International Movie Database (2), um empurrão enorme às vendas do DVD.

«Se isto é o melhor que podia ter acontecido ao nosso filme? Absolutamente! Era impossível que tanta gente descobrisse o filme de outra forma, ou que o nosso MovieMeter na IMDb tivesse disparado uns espantosos 81,000% depois de poucos dias de actividade em sites de torrent. O que Hollywood contabilizaria como dólares perdidos nós contamos como fãs ganhos»(2)

Se bem que este sistema seja bom para quem cria obras de qualidade, que assim chegam a quem as aprecia, não é bom para a integração vertical que domina a salsicharia a que chamam "indústria cultural". Para vender Spice Girls às rodelas de plástico é preciso controlar a distribuição, não só para cobrar a cada ouvido mas também para não perder o investimento em publicidade só por surgir algum concorrente menos financiado mas com mais talento.

Mas o pior é para os intermediários. Aqueles que não acrescentam valor ao produto e apenas lucram cobrando o acesso. Esses estão tramados. Um exemplo nacional são os clubes de vídeo. A Joana Pereira Bastos, no Expresso, escreveu «Videoclubes não param de falir devido à pirataria de filmes. Governo admite cortar acesso à Internet a cibernautas que façam downloads ilegais.»(3) É pena que a maioria dos jornalistas ainda não tenha percebido que não são os downloads que são ilegais. Nem é claro que sejam, nem se tem processado pessoas por fazer download, nem há forma prática de os impedir. Todas as medidas legais até agora têm visado os uploads, que é o contrário. Partilhar é que é ilegal. Ninguém vai preso por ver vídeos do YouTube. O que querem é cortar o acesso a quem os puser lá.

Mas apesar disto a jornalista acerta no título. «Internet arrasa clubes de vídeo». Não é a "pirataria". É a Internet mesmo. Os clubes de vídeo estão a ir à falência simplesmente porque não servem para nada. Fitas e rodelas de plástico já não são a melhor forma de distribuir filmes. A fibra óptica é que é. Seja pelo download ou pelo Vídeo on Demand (VOD), tem-se o filme em casa sem precisar andar à procura na loja. O Paulo Santos, da FEVIP, explica que o VOD não é problema por causa dos «custos de manutenção do sistema tecnológico associado ao VOD, nomeadamente à digitalização e armazenamento digital das obras»(3). Isto parece um disparate porque os "piratas" fazem exactamente o mesmo – digitalização, armazenamento e distribuição – a custo zero. Mas não é completamente disparatado porque, para cobrar o acesso, é preciso centralizar a distribuição e isso já tem custos.

Infelizmente para o Paulo Santos, clubes de vídeo e mapinetas, as pessoas não são idiotas e percebem que a distribuição em si é gratuita. É por isso que há "pirataria" na Internet. Todos os "custos" de distribuir filmes e músicas vêm de alguém meter dinheiro ao bolso. Que os autores lucrem com a obra todos concordam. Por isso cada vez se paga mais por concertos ou directamente aos criadores. E há serviços que vale a pena pagar. Daí os recordes de bilheteira nos cinemas. Mas os proprietários de clubes de vídeo e negócios afins têm de aprender com a história. Os águadeiros que conseguiram continuar a vender água puseram-na em embalagens mais atraentes ou arranjaram outras formas de convencer os clientes a comprar. Os que tentaram salvar o negócio exigindo que se proibisse a água canalizada não se safaram.

Mapinetas, sec. XIX
Imagem copiada de Profissões Antigas.

1- TEK, Partilha ilegal de ficheiros na Internet: afinal onde está o negócio?
2- TorrentFreak, 10-11-2009, Indie Movie Explodes on BitTorrent, Makers Bless Piracy
3- Expresso, 25-11-09, Internet arrasa clubes de vídeo, via MAPiNET

quinta-feira, novembro 26, 2009

Treta da semana: Tamichoy.

O Pedro Choy, numa curta intervenção para o Diário de Notícias (1), explicou porque é que a medicina chinesa é mais eficaz no combate à gripe A. «Em critérios de medicina chinesa, não é muito importante qual é o vírus. O que interessa são as famílias de substâncias, no sentido em que aquilo em que a medicina chinesa difere da medicina convencional é que, em medicina convencional, é o medicamento que luta contra a doença. Em medicina chinesa é o corpo, é o organismo que luta contra a doença. O que nós fazemos é estimular o organismo a lutar contra a doença e não é muito diferente lutar contra o vírus da gripe ou lutar contra outro primo do vírus da gripe.»

Este é mais um exemplo do problema dos "níveis de realidade". Há ervas que têm efeitos medicinais ou compostos importantes para a síntese de medicamentos. O Tamiflu, por exemplo, é sintetizado a partir do ácido shikimico, normalmente extraído do anis-estrelado (Illicium verum), planta natural da China e usada também na medicina tradicional chinesa. Mas os efeitos anti-virais de uma planta ou droga não dependem da ideologia que motiva a sua aplicação. Apesar dos «critérios de medicina chinesa», na realidade o tipo de vírus importa bastante. Enquanto que a maioria das estirpes da gripe A ainda é sensível ao Tamiflu, quase todas as estirpes da gripe sazonal de 2008 que restam são resistentes a esta droga. Esta evolução de variantes resistentes ocorre, e ocorrerá sempre, mesmo apesar dos critérios do Pedro Choy.

Segundo o Pedro Choy, parece que a grande diferença entre a medicina chinesa e a medicina ocidental é que quando estamos a ser tratados por um médico do ocidente o nosso corpo deixa de combater as doenças. E parece também que o Pedro Choy nunca ouviu falar em vacinas. O que é pena, porque a vacinação é a arma mais forte que temos contra os vírus, da gripe ou quaisquer outros.

O que uma vacina faz é precisamente «estimular o organismo a lutar contra a doença». Durante séculos os chineses tentaram este efeito manipulando, com ervas e agulhas, o Chi das pessoas. Infelizmente, esta substância fictícia pouco ou nada fez pela saúde e esperança de vida, que só melhoraram significativamente com a medicina moderna. A medicina tradicional chinesa nunca se lembrou de injectar o paciente com antigénios porque não sabia que as doenças eram causadas por microorganismos em vez dos supostos desequilíbrios energéticos. O resultado foi que até 1950 a esperança média de vida na China se manteve abaixo dos 40 anos. Hoje, com vacinas e antibióticos, é de 73 anos (2).

Esta ignorância já não é desculpa e é um erro trágico julgar que estes "critérios" podem coexistir com a ciência moderna. Para estimular o corpo a lutar contra uma doença é preciso ensinar o sistema imunitário a identificar essa doença. Isto não se consegue com cházinhos nem a espetar agulhas, e de nada serve inventar critérios porque o vírus não lhes liga. O que se tem de fazer é expor o sistema imunitário aos antigénios daquele microorganismo.

Uma premissa das medicinas alternativas, bem como das astrologias, vidências, bruxarias, teologias e afins, é que a ciência pode ficar isolada, fechada numa caixa para não incomodar ninguém. Dentro dessa caixa qualquer hipótese só merece ser considerada verdadeira ao fim de um escrupuloso processo de selecção, de confronto com alternativas e dados que a favoreçam sobre todas as suas concorrentes. Mas fora da caixa é como se quiser. Ao Pedro Choy basta enunciar que, pelos critérios da sua medicina, o vírus não importa e o que ele faz ajuda o corpo a combater a doença. Se a ciência não encontrar evidências para isso, ou até tiver dados que indicam o contrário, o Pedro dirá que são critérios diferentes. Dentro da caixinha a realidade é uma. Fora é outra. Outras. Muitas. As que se quiser. E dizem que não há qualquer contradição.

1- DN, 20-11-2009, Pedro Choy: Medicina chinesa tem melhores resultados contra gripe A do que Tamiflu
2- China Profile, http://www.china-profile.com/data/ani_WPP2008_TFR-L0_1.htm

quarta-feira, novembro 25, 2009

Escala.

Uma animação interactiva que dá uma boa ideia dos tamanhos de várias coisas, desde um grão de café ao átomo de carbono:
Cell Size and Scale, Genetics Science Learning, The University of Utah.

Via Talking Squid.

terça-feira, novembro 24, 2009

A Origem das Espécies

foi publicada há 150 anos, no dia 24 de Novembro de 1859. Com hoje tenho pouco tempo, deixo apenas um post rápido acerca do problema principal que esta teoria tem enfrentado ao longo de século e meio. O receio que muita gente tem de um dia a compreender.

O Marcos Sabino diz que a teoria da evolução não pode ser refutada (apesar de estar constantemente a alegar haver evidências que a refutam), porque

«Se um dado organismo evolui ao longo dos milhões de anos, isso prova evolução, quer estejamos a falar apenas de variação quer de mudança de tipo de organismo. Se um dado organismo mantém a sua morfologia ao longo dos milhões de anos, por não ter sentido pressões selectivas do ambiente, isso prova evolução (ou não a refuta, se preferir). Se um dado organismo mantém a sua morfologia ao longo dos milhões de anos, apesar das mudanças drásticas no ambiente, isso prova evolução (ou não a refuta, se preferir)»(1)

Como é deprimente costume, isto confunde os dados que a teoria da evolução explica com os testes que fazemos a essas explicações. Que algumas características mudam de geração para geração e outras não é algo que constatamos na natureza. Faz parte do que queremos explicar. Por exemplo, observamos que em riachos sem predadores os guppies machos têm cores vivas (Poecilia reticulata), mas em riachos onde coexistam com o acará azul (Aequidens pulcher), que come guppies, os machos têm cores que se confundem muito mais com o fundo.

Ao contrário do que o Marcos sugere, uma teoria que explique ambas estas observações, tão dispares, não é uma má teoria nem necessariamente frouxa, permitindo tudo. A teoria da evolução explica isto se assumirmos duas forças selectivas pressionando os guppies machos. Por um lado, um maior sucesso reprodutivo para os machos que melhor conseguirem chamar a atenção das fêmeas. Por outro lado, menor sucesso reprodutivo para os machos que chamarem a atenção dos predadores.

Isto é a explicação. A prova vem depois, confrontando previsões com dados observados. Por exemplo, medindo directamente a preferência dos predadores por guppies mais coloridos (2). Ou criando populações de guppies em ambientes controlados, escolhendo o tipo de fundo e de predadores e medindo a evolução da coloração dos machos ao longo do tempo em função dessas condições (3). E quando com estes testes conseguimos suporte para aqueles elementos do modelo que a teoria da evolução exige, e quando isso acontece uma vez, e outra, e milhares de outras, é aí que começamos a considerar este mecanismo de evolução um facto tão fundamentado como a gravidade ou a existência da Lua.

E é claro que é refutável. Como disse Haldane, basta um fóssil de coelho num estrato Cambriano. Como este, mas a sério.

1- Comentário em O âmbito da ciência.
2- Jean-Guy J. Godin and Heather E. McDonough, Predator preference for brightly colored males in the guppy: a viability cost for a sexually selected trait, Behavioral Ecology Vol. 14 No. 2: 194-200.
3- John A. Endler, Natural Selection on Color Patterns in Poecilia reticulata, Evolution, Vol. 34, No. 1 (Jan., 1980), pp. 76-91

segunda-feira, novembro 23, 2009

Esclarecimento.

Acerca do último post, e considerando alguns comentários, queria deixar mais claro o que estava a dizer. O âmbito da ciência é aquilo acerca do qual a ciência se pronuncia. E este, proponho, inclui todas as afirmações objectivas acerca da realidade e aquelas questões acerca da realidade cujas respostas se pode conhecer. Mais sobre isto adiante. Mas primeiro quero esclarecer que a distinção entre o que está dentro e fora do âmbito da ciência não é igual à distinção entre o que é científico e o que não é científico, porque esta última pode ter um carácter normativo.

Quando dizemos que uma hipótese não é científica queremos muitas vezes dizer que é má prática científica aceitá-la como verdadeira. Por exemplo, dizer que não é científico acreditar que gatos pretos dão azar é dizer que, com o conhecimento que temos, não se justifica concluir tal coisa. E, precisamente por isso, a hipótese que os gatos pretos dão azar está no âmbito da ciência. É uma hipótese em relação à qual a ciência se pode pronunciar, declarando-a infundada por falta de dados que a suportem.

O que está fora do âmbito da ciência não é aquilo que a ciência consegue rejeitar com justificação mas aquilo em relação ao qual a ciência não se consegue pronunciar. A ciência é a procura de conhecimento, de proposições cuja correspondência à realidade podemos justificar. Por isso exclui do seu domínio afirmações que não sejam descritivas, como "não devemos mentir", porque estas não correspondem a qualquer aspecto da realidade. E exclui perguntas como "a hóstia transubstancia-se em Jesus sem mudar nada na sua aparência?" porque não se pode identificar a resposta correcta a essas perguntas e, por isso, não conduzem a qualquer conhecimento.

Esta última categoria é especialmente importante pois muitos julgam que a impossibilidade da ciência identificar a resposta correcta implica que se pode dar qualquer resposta sem se contradizer a ciência. O que é um disparate. Qualquer modelo científico da missa católica tem de se reger pelas evidências, e estas em tudo indicam que a hóstia é tão hóstia no fim como no início. Por isso afirmar que a hóstia se transubstanciou em Jesus é contradizer a ciência, mesmo que a ciência não queira perder tempo com essa pergunta.

Quanto à contradição entre a teologia católica e a teoria da evolução, deixo que outros com mais autoridade falem por mim. A Comissão Teológica Internacional, presidida por Joseph Ratzinger:

«A teologia católica afirma que o aparecimento dos primeiros membros da espécie humana (indivíduos isolados ou populações) representa um evento que não se presta a uma explicação puramente natural e que se pode adequadamente atribuir à intervenção divina.»(1)

E Charles Darwin, em «The Descent of Man»

«Numa série de formas progredindo imperceptivelmente de criaturas como símios até ao homem como ele agora existe, é impossível fixar qualquer ponto definido a partir do qual o termo "homem" deva ser usado.»(2)

Se isto não é contradição o Deus Único é uns dois ou três...

1- The July 2004 Vatican Statement on Creation and Evolution, Communion and Stewardship: Human Persons Created in the Image of God
2- Darwin Online, The Descent of Man

domingo, novembro 22, 2009

O âmbito da ciência.

Há quem julgue que a ciência é um jogo com regras arbitrárias e que astrologias, religiões ou medicinas alternativas, conforme o gosto, estão para a ciência como o andebol para o xadrez. São jogos com regras diferentes mas que não interferem nem se contradizem. Isto é treta. A ciência não é um jogo com regras que possamos escolher como quisermos. É o nome que damos às formas fiáveis de obter conhecimento. Não serve para expressar o que gostaríamos que fosse verdade mas para descobrir o que é verdade. E isso não é à nossa escolha.

É certo que algumas perguntas (ainda?) estão fora do âmbito da ciência. "O que é o bem?", por exemplo. Mas isto não se deve a um limite arbitrário de jurisdições. Não é pelas regras do jogo. Deve-se apenas à falta de critérios para distinguir respostas certas e respostas erradas. Isto já aconteceu com muitas perguntas que hoje consideramos científicas, da composição do Sol à origem das espécies, e que estiveram na filosofia até se descobrir como avaliar as respostas. Se há quinhentos anos atrás disséssemos a um filósofo que o universo tem treze mil milhões de anos de idade ele ficava na mesma porque não tinha forma de testar essa hipótese. Nesse tempo só se podia discutir estas coisas com argumentos e especulação, e só mais tarde foi possível começar a testar hipóteses. Só então essas perguntas passaram a ser científicas.

Mas não há respostas fora do âmbito da ciência. A ciência não responde a algo como "o que é o bem?" por não se conseguir distinguir a resposta correcta das incorrectas. Mas, precisamente por isso, rejeita como infundada qualquer resposta a esta pergunta. Se dissermos que o bem é justiça, liberdade, amor ou um pastel de nata, a ciência vai dizer que não se justifica declarar uma destas alternativas como mais correcta que as outras. A mesma falta de critérios que põe a pergunta fora do âmbito da ciência leva a ciência a rejeitar a resposta como infundada.

Infelizmente, destas premissas correctas – que a ciência não responde a tudo e que há perguntas fora do âmbito da ciência – infere-se erradamente que se pode responder fora do âmbito da ciência sem contradizer a ciência. Este erro deve-se à confusão entre a hipótese como pergunta, por exemplo "será que o bem é justiça?", e a hipótese apresentada como uma resposta ou afirmação: "o bem é a justiça." Porque qualquer afirmação factual cai numa de três categorias. Se há evidências que a favorecem em detrimento das alternativas, justifica-se aceitá-la como verdadeira. Se as evidências suportam melhor uma alternativa, deve-se rejeitar a hipótese em favor dessa outra. E se não há dados que distingam as alternativas não se deve defender nenhuma como mais correcta que as outras. Por isso, à pergunta "será que o bem é justiça?" a ciência não pode responder nem sim nem não porque não tem um critério objectivo para avaliar estas respostas. Mas a afirmação "o bem é justiça" a ciência pode classificar: é uma afirmação para a qual não há evidências e que, enquanto afirmação sobre os factos, não deve ser considerada mais verdadeira que as alternativas*.

O Nuno Gaspar afirmou que eu estou «mais [interessado] em discutir posições religiosas do que em afirmar um discurso científico independente delas.»(1) Mas eu não estou interessado em discutir as questões religiosas. E só as questões são religiosas. Perguntar sobre as intenções de deus, a natureza da alma ou se usar o preservativo vai contra o dom-de-si-mesmo do Amor enquanto tal é pouco interessante. Tal como a pergunta "poderá ter havido alguma intervenção sobrenatural na evolução humana?", estão fora do âmbito da ciência. Podem ser discutidas por filósofos, teólogos ou qualquer pessoa à espera de vez no barbeiro mas não há forma de lhes identificar a resposta certa. Por isso não é de esperar qualquer conclusão.

Mas se, por um lado, é fácil inventar perguntas que a ciência não consegue responder, por outro lado isto não permite defender qualquer disparate alegando que está fora da ciência. A física não consegue responder à pergunta "há duendes invisíveis a manipular a interacção de partículas?" porque não tem forma de determinar se sim ou se não. Mas se afirmarmos que a física de partículas precisa de considerar os duendes invisíveis para que seja duendologicamente correcta, a física pode, e deve, rejeitar esta hipótese como infundada porque nada justifica este acréscimo aos modelos que temos. E dizer que a duendologia sai do âmbito da ciência não adianta de nada.

É isto que acontece com a teoria da evolução e a teologia católica. As perguntas por deuses e almas são teológicas e estão fora da ciência. Mas as respostas já não. Ao afirmar que «a emergência dos primeiros membros da espécie humana representa um acontecimento que não é susceptível de uma explicação puramente natural»(2), os teólogos caem no meio da ciência, que avalia todas as afirmações acerca da realidade à luz das evidências. E esta afirmação a ciência rejeita por razões perfeitamente científicas: não há nada de especial na nossa espécie que exija colar um apêndice de sobrenatural à teoria da evolução. A teoria está bem como está e a alma do Homo erectus faz tanta falta como os duendes das partículas.

* Nota: em retrospectiva, talvez este exemplo não tenha sido bom porque a ideia do bem é normativa, e isso sai do âmbito da ciência. Mas penso que basta ter em conta que estou a dar o exemplo de afirmações acerca daquilo que o bem é, tratando as como afirmações de facto, em contraste com dizer o que o bem deveria ser.

1- Comentário em Darwin na FCT: 24 de Novembro.
2- Communion and Stewardship: Human Persons Created in the Image of God

sábado, novembro 21, 2009

Darwin na FCT: 24 de Novembro.

Na próxima terça feira vai haver um debate aberto acerca da teoria da evolução, celebrando os 150 anos da edição d'A Origem das Espécies. O debate tem por título «Da ‘Origem ’ aos Nossos Dias: As Ideias Revolucionárias de Darwin Ainda Nos Perturbam?», vai ser moderado pelo Fernando Catarino, professor jubilado da FC/UL e ex-director do Jardim Botânico, e por mim. Para quem quiser aparecer, será às 14:00h no auditório da biblioteca da FCT.

O Álvaro Fonseca, um dos organizadores deste ciclo de conferências e debates sobre Darwin na FCT, pediu que enviássemos sugestões de tópicos para o debate. Abaixo vai a minha.

Para mais informações sobre estes eventos podem consultar o site: A rEvolução Darwiniana.

Considero que a mudança na forma de pensar acerca das espécies foi o contributo mais importante de Darwin. Antes de Darwin, as espécies eram vistas como tipos naturais em que cada individuo manifestava imperfeitamente a essência da sua espécie. Este essencialismo, como Ernst Mayr apontou, impedia que se compreendesse a evolução correctamente. Teorias da evolução como a de Lamarck, por exemplo, exigiam transformação. Assumiam que a forma de algo se tornava numa forma diferente, o que criava problemas para a transição entre espécies. Podemos imaginar a girafa ficando com o pescoço cada vez maior ao tentar chegar às folhas mais altas. Mas não se consegue imaginar um Morganucodon, um mamífero de 10cm que viveu no Jurássico, a transformar-se numa girafa, num leão ou numa baleia por muito que se estique e se esforce.

Infelizmente, este pensamento tipológico ainda está vivo hoje em dia. Não só no criacionismo, que conta como um certo deus criou cada organismo segundo o molde da sua espécie, mas também na popularização da evolução e em ideias religiosas menos fundamentalistas. Uma forma conhecida de representar a evolução é a animação onde um peixe ganha pernas, arrasta-se em terra como anfíbio, transforma-se num réptil, num mamífero, num primata e, finalmente se torna humano. E a igreja católica defende que, num momento impossível de identificar, uma intervenção divina transformou um animal em Homem. Esta ideia da evolução como um processo de transformação, em que algo se torna essencialmente diferente daquilo que era, é precisamente o contrário do que diz a teoria da evolução.

Na teoria que Darwin propôs não há transformação. Nenhuma coisa muda de forma ao longo da sua existência. O que acontece é que os filhos são parecidos com os pais, mas não são iguais. O que muda, com o passar das gerações, é a distribuição de características nas populações de organismos. Mudam as estatísticas, como médias, variâncias e modas. Nada disto caracteriza uma essência da espécie ou constitui um tipo, e nada precisa de se transformar para que, passados duzentos milhões de anos, os descendentes do Morganucodon sejam morcegos, baleias ou pessoas. A evolução não é um processo de transformação. É um processo de substituição de organismos pelos seus descendentes.

Sem compreender isto é impossível compreender a teoria da evolução. E, parece-me, muita gente tem dificuldade em ver as coisas desta maneira. Parte da culpa talvez seja do ensino da biologia nas escolas, que insiste demais, e demasiado cedo, na classificação dos organismos e de menos, e demasiado tarde, na ideia que as populações evoluem. Isto deixa a falsa impressão que as etiquetas que mentalmente colamos a cada grupo de organismos são mais reais e importantes que o processo que dá origem a essas populações. Mas a maior culpada é a evolução em si. Deu-nos um cérebro que é excelente a classificar coisas e arrumá-las de acordo com tipos e essências mas que tem muita dificuldade em compreender o longo e lento processo que, em quatro mil milhões de anos, espalhou por toda a Terra a imensidão de descendentes de um punhado de reacções químicas.

Editado às 18:28. Tinha-me esquecido da foto do Morganucodon.

Morgie

quinta-feira, novembro 19, 2009

Dois clássicos.



Via Gato com vertigens.

Treta da semana: esperteza...

Ontem, o Mário Miguel colocou aqui (1) a ligação para uma notícia no site Wintech, «Pirate Bay fecha as "Torneiras"». Essa notícia relatava que

«...nunca mais o "The Pirate Bay" será como era, ou seja, o fim chegou ! Com o "fecho" do The Pirate Bay, o maior Tracker da Internet, parece que as medidas e pressões que a RIAA e a MPAA fizeram surtiram o efeito desejado.Os milhões de utilizadores do serviço ficarão assim privados de fazerem download através deste tracker, pelo que outros, estamos certos, irão certamente "ganhar" com este encerramento...»

O que aconteceu na realidade foi que o site Pirate Bay passou a usar a DHT (2) da rede BitTorrent para substituir o tracker central. Como a "notícia" estava toda engatada, eu fui lá deixar este comentário a esclarecer:

«Uma correcção importante: o Pirate Bay não fechou torneiras. O que fizeram foi descentralizar o tracking usando a DHT da rede BitTorrent. Ou seja, agora em vez da informação acerca de quem partilha que ficheiros estar toda guardada no mesmo servidor, é distríbuida pela rede de partilhadores, o que torna a partilha imune ao fecho de qualquer site ou servidor.
E quem perceba um pouco da tecnologia compreende que isto é o contrário do que RIAA e a MPAA queriam. Porque, com este sistema, para impedir a partilha na rede é preciso desligar os computadores de todos os milhões de utilizadores em vez de desligar os poucos servidores que faziam de tracker.»


E recomendei, especialmente ao autor da notícia, a leitura da explicação no próprio Pirate Bay (3). Umas horas depois recebi outro comentário do Mário Miguel a avisar-me que tinham alterado a notícia no site e apagado o meu comentário e outros que faziam críticas semelhante. A essa hora não tive tempo de escrever nada mas fui sacar a página original à cache do Google. Já agora, deixo aqui a dica. O sistema de pesquisa do Google percorre a Web guardando um registo das páginas que encontra. Se uma página é alterada, demora algum tempo até o Google descobrir e actualizar essa informação. Se entretanto pesquisarem no Google usando "search?q=cache:" seguido do URL da página que querem podem ver a página original, antes da alteração, que está guardada no Google nesse momento. Foi isso que fiz com a página desta notícia na Wintech (4).

Abaixo podem ver os screenshots, antes:
antes

e depois da cirurgia plástica:
antes

E mais exemplos de comentários apagados, além do meu:
«O que fechou foi o tracker. Agora passaram a usar os magnet links para DHT e PEX»
«totalmente falso.. isto não foi noticia nenhuma ,mas sim desinformar o povo»

Errar calha a todos e, se bem que este fosse um caso de negligência crassa, dar uma notícia destas sem sequer ler o post no Pirate Bay, como erro honesto era fácil desculpar. E não há mal nenhum em corrigi-lo editando a notícia. Mas a honestidade obriga a admitir o erro e avisar da correcção. E manda a boa educação pelo menos reconhecer a informação dada por outros, mesmo que o "obrigado" custe muito a escrever. Esta aldrabice de alterar sem dizer nada e apagar comentários para disfarçar é que parece difícil de justificar.

O propósito deste post não é exigir um pedido de desculpas ou um agradecimento. Disso não quero saber. Gostava que a notícia se espalhasse para que o autor da esperteza percebesse que isto não se faz. A Internet dá-nos uma oportunidade ímpar de lidar com os assuntos de forma clara, aberta e honesta. É boa ideia que quem se põe com estas maroscas perceba logo que a maioria não quer perder essa oportunidade. Mas a motivação principal para este post nem é essa. É curiosidade. Gostava mesmo de perceber o que se passou (ou não passou...) na mente de quem se lembrou de fazer isto. Se teria sido um momento de pânico que o levou a apagar a borrada antes que o chefe descobrisse. Se julgou que não ficaria registo nenhum do feito e que poderia negar alguma vez ter escrito o disparate original. Ou, pior, se acha que faz parte dos direitos do jornalista ir alterando a notícia e apagando críticas conforme dá jeito, sem dever explicações a ninguém.

Apelo assim ao autor desta brilhante ideia para me deixar aqui um comentário e satisfazer esta curiosidade. Prometo que não o apagarei e até o irei agradecer.

Editado às 21:02. Agora retiraram a notícia toda. Parece que vou ficar sem perceber... Obrigado ao Helder MC pela dica.

1- Comentário em Michael Geist sobre o ACTA
2- Mais sobre isto em Distributed Hash Tables
3- The Pirate Bay, Worlds most resiliant tracking
4- Wintech, Pirate Bay "Fecha a Torneira" à Rede BitTorrent

quarta-feira, novembro 18, 2009

Mexe as orelhas.

O Marcos Sabino respondeu ao meu post sobre estruturas vestigiais. Algo deambulante, o post do Marcos insiste no apêndice como se fosse o único exemplo de estruturas vestigiais, diz que tem "funções importantes" sem explicar que falta faz e afirma que «quem baralhou tudo e alterou a definição de “órgão vestigial” foram os evolucionistas»(1) quando o próprio Darwin mencionou que estruturas vestigiais podem manter outras funções. O Mats acrescentou que «Orgãos vestigiais são aqueles cujas funções os evolucionistas não sabem qual é [sic].» Agradecendo ao Marcos «o prémio Afirmação Evolucionista Mais Estúpida da Semana», vou tentar esclarecer estes mal-entendidos que por vezes assolam até os aspirantes a jornalista mais imparciais, escrupulosos e objectivos.

À volta de cada orelha temos três músculos auriculares: superior, anterior e posterior. São estruturas vestigiais e, ao contrário do que sugere o Mats, conhecemos a sua função. Mexer as orelhas. Gatos e cães usam-nos para levantar as orelhas e virá-las para a frente e para trás e cerca de metade das pessoas consegue mexer as orelhas contraindo estes músculos (2). Consideramo-los vestigiais pela conjugação de vários factores.

Na nossa espécie, estes músculos são muito menos desenvolvidos que em espécies como o gato e o cão. Não precisamos de mexer as orelhas, ao contrário dos gatos e dos cães. Metade das pessoas não consegue mexer as orelhas, o que mostra haver uma grande variação genética nesta característica. E a outra metade só consegue contrair os três músculos em simultâneo, deslocando as orelhas ligeiramente para trás e para cima sem o controlo motor necessário para as orientar devidamente.

Nisto quero salientar duas ausências. Em lado nenhum afirmo que estes músculos não têm função ou que a sua função é desconhecida. Têm função e sabemos qual é. Mexer as orelhas. E não invoco a teoria da evolução para os identificar como estruturas vestigiais. Comparo animais, comparo músculos e a capacidade de os usar e não assumo ancestrais comuns, mutações ou degeneração. Uma estrutura vestigial identifica-se pelo que é, pelo que observamos agora, e esta identificação não inclui desconhecer a sua função ou assumir que não tem nenhuma. Aos criacionistas peço que leiam este parágrafo pelo menos três vezes. Mais, se custar a entrar.

A teoria da evolução serve para explicar porque é que temos músculos para mexer as orelhas quando não precisamos de as mexer, só alguns o conseguem e mesmo esses só ligeiramente. A hipótese criacionista da corrupção pressupõe que Adão e Eva conseguiam apontar as orelhas para onde quisessem, como os cães, o que é estranho em primatas. E deixa por explicar porque a corrupção foi estragar precisamente os músculos das orelhas deixando ilesos os dos braços, das pernas e tudo o resto que funciona bem.

A teoria da evolução explica que um antepassado nosso, de todos os primatas e de alguns outros mamíferos usava as orelhas como os cães as usam hoje, apontando-as com os tais músculos para ouvir de onde vinham os sons. Passado muito tempo, alguns dos seus descendentes tinham um pescoço mais vertical, conseguiam apontar as orelhas mexendo a cabeça toda e, além disso, usavam mais os olhos que os ouvidos. Como nós e os nossos primos mais próximos. Neste lado da família, as mutações que degradavam o desempenho dos músculos auriculares não eram grande inconveniente. Por isso iam ficando. Em contraste, o outro lado da família continuou a precisar de mexer as orelhas. Em animais como os lobos, o mesmo tipo de mutação foi rapidamente eliminado por reduzir o sucesso reprodutivo dos desgraçados a quem calhasse.

Saliento também que as premissas desta explicação – o maior impacto na sobrevivência e sucesso reprodutivo numas espécies que noutras, a ancestralidade comum, a acumulação de mutações, a sua eliminação pela selecção natural e assim por diante – são todas fundamentadas por evidências independentes. Como o registo fóssil, análises filogenéticas, observação dos animais e muitas outras. Além disso, a teoria da evolução explica muito mais do que o apêndice ou os músculos das orelhas. Não estou, de forma alguma, a apresentar as orelhas como a prova principal da teoria da evolução. Pelo contrário, estou a usar uma teoria sólida, bem assente em muitos outros dados, para explicar a degeneração destes músculos e de outras estruturas das quais já não precisamos. Como o apêndice e os dentes do siso, por exemplo.

O Marcos afirma que «mesmo que existissem órgãos degenerados ou sem função isso apenas seria evidência de que eles são degenerados e sem função.» Este fragmentar do conhecimento em factos soltos, sem relação entre si, é o oposto da ciência. A ciência visa criar modelos integrados em teorias que encaixem umas nas outras. Visa criar um corpo de conhecimento coeso, unificado, sem pontas soltas, explicações ad hoc ou histórias da carochinha. E não só visa esse objectivo como o consegue.

É isso que lixa os criacionistas. Com meia dúzia de lérias inventadas há milhares de anos não conseguem explicar nada. Em desespero, resta-lhes defender que cada facto só é evidência de si próprio e usar os músculos auriculares para desviar as orelhas de tudo o que os possa contradizer.

1- Marcos Sabino, O evolucionista Ludwig e os seus argumentos vestigiais
2- Berzin F, Fortinguerra CR, 1993, EMG study of the anterior, superior and posterior auricular muscles in man.

terça-feira, novembro 17, 2009

Interpretações...

Há dois requisitos fundamentais para interpretar correctamente a Bíblia. Usar uma tradução de 1611, em Inglês antigo. E saber identificar os pontos mais importantes da revelação divina.

Eis um exemplo.



Via Pharyngula.

segunda-feira, novembro 16, 2009

Miscelânea criacionista: estruturas vestigiais.

Apesar de muitas vezes lhes chamarem "órgãos vestigiais", a maioria não são órgãos. Os dentes do siso, o apêndice e o cóccix são alguns exemplos na nossa espécie, e há muitos por toda a árvore da vida. São legados de estruturas que foram úteis no passado mas cuja importância diminuiu de tal forma que deixaram de sofrer pressões selectivas, acabando por degenerar. E isto chateia os criacionistas. É tramado explicar porque é que o seu deus nos deu músculos para mexer as orelhas quando isso não nos serve de nada, e quando a maioria de nós nem tem os nervos necessários para os usar. Estruturas vestigiais são evidências claras de antepassados comuns com outros animais e de evolução. Por isso os criacionistas têm de rejeitar que haja tal coisa. E o truque é o de sempre. Baralhar tudo e tentar distrair a audiência.

O Marcos Sabino escreve que é mentira que o apêndice seja vestigial porque «O apêndice desempenha importantes funções no crescimento do feto e faz parte do sistema imunitário de uma pessoa adulta. Em 2007, um estudo revelou que o apêndice serve de “casa de segurança” para as bactérias necessárias na digestão da comida.»(1) Vou dar ao Marcos o benefício da dúvida e assumir que foi apenas por negligência que ele se esqueceu de ver o que se quer dizer com vestigiais, neste contexto. «Estruturas vestigiais […] são geralmente degeneradas, atrofiadas ou rudimentares e tendem a ser muito mais variáveis que partes semelhantes. Se bem que as estruturas normalmente consideradas "vestigiais" sejam largamente ou inteiramente desprovidas de função, uma estrutura vestigial pode reter algumas funções menos importantes»(2). O facto é que sobrevivemos bem sem o apêndice, podemos ter problemas graves com ele e a razão pela qual se deixou de remover apêndices saudáveis durante qualquer cirurgia abdominal é ser agora possível, com cirurgia, usar o apêndice para reconstruir a uretra. O que importa para identificar uma estrutura vestigial não é pronunciá-la desprovida de qualquer função. Algum efeito há de ter, nem que seja dar negócio aos cirurgiões. O que importa é que deixou de ser importante e já faz pouco pela sua função original.

Mutações e selecção natural geralmente empurram a população em direcções opostas, quando afectam características importantes para a reprodução. Indivíduos que nasçam sem braços ou pernas terão mais dificuldade em reproduzir-se e isto eliminará essas variantes genéticas. Por isso há pouca diversidade genética para o número de polegares, tamanho relativo de pernas e braços e assim. A selecção natural mantém estas características dentro de intervalos estreitos, fora dos quais fica comprometida a capacidade reprodutora.

As estruturas vestigiais estão mais à solta por serem menos relevantes. Quem tiver dentes do siso pode usá-los para mastigar. A função até é a mesma que tinham nos nossos antepassados. Mas os dentes do siso são vestigiais porque quem não os tiver não sofre nada por isso. Não são necessários para mastigar. E isto levou a que mutações afectando os dentes do siso se fossem acumulando, sem serem eliminadas, originando uma grande variação na idade em que surgem estes dentes ou até se chegam a aparecer. Alguns infelizes até têm de os arrancar.

Com o apêndice é o mesmo. O apêndice humano é muito variável, variando normalmente de dois a vinte centímetros de comprimento (3). Algumas pessoas até nascem sem ele. A sua função original era provavelmente digestiva, como ainda é no koala, mas essa desapareceu na nossa linhagem e noutras onde o apêndice ainda persiste. Apesar dos esforços para lhe encontrar alguma função significativa, o nosso apêndice é essencialmente inútil. Sem a protecção impiedosa da selecção natural, apenas se aguenta porque, até recentemente, não tem estorvado*.

Muitas estruturas vestigiais evidenciam o disparate do criacionismo. O dente-de-leão tem flor mas reproduz-se assexuadamente, há baleias com ossos pélvicos, toupeiras com olhos sob pálpebras que não abrem e escaravelhos com asas sob élitros que não abrem (4). O próprio criacionismo é vestigial. Tem funções proselitistas, políticas e de promoção pessoal mas perdeu a sua função original, de explicar a origem dos seres vivos. Hoje já nem os criacionistas o usam para explicar seja o que for. O Marcos, por exemplo, defende que o apêndice não é vestigial mas nem sequer tenta mostrar que seja uma solução inteligente ou que problema aquela protuberância intestinal supostamente resolve. O criacionismo, atrofiado, reduz-se agora a inventar caricaturas da teoria da evolução para depois as criticar sem produzir nada de útil.

* A apendicite parece ser uma doença moderna, fruto das condições de vida em sociedades industrializadas.

1- Marcos Sabino, 28-12-2008, Mentiras que duram – “O apêndice é um órgão vestigial”
2- Wikipedia, Vestigiality
3- Wikipedia, Vermiform appendix
4- Apterocyclus honolulensis

domingo, novembro 15, 2009

Treta da semana: nem fumo nem fogo.

O Pastor Marc Grizzard e a sua congregação da Amazing Grace Baptist Church, do estado da Carolina do Norte, anunciaram que iriam queimar bíblias satânicas. Estava agendada para dia 30 de Outubro a queima das «perversões da palavra de Deus»(1) que são todas as traduções da Bíblia que não a versão do Rei Jaime I, de 1611.

Por ironia ou desígnio divino, choveu nesse dia. Além disso, a legislação do estado da Carolina do Norte impede a queima de papel, ou outro lixo doméstico, a céu aberto (2). Mas a fé sai sempre vitoriosa, pelo menos aos seus próprios olhos, e estes defensores da Palavra de Deus cumpriram assim a sua sagrada missão:



A «pior queima de livros de sempre» segundo o Right Wing Watch(3), é um exemplo extremo do ridículo de quem julga saber a interpretação correcta de cada trecho sagrado. Extremo não por ser mais ridículo, mas apenas por o ridículo ser mais óbvio.

1- Amazing Grace Baptist Church, Book Burning 2009
2- Western North Carolina Regional Air Quality Agency, Open Burning
3- RWW, Worst. Book Burning. Ever.

sábado, novembro 14, 2009

O diálogo.

Dizer que se sabe não é o mesmo que dar uma opinião ou exprimir uma crença. Se digo que acredito que há vida noutros planetas porque não quero que estejamos sós ou que gosto de ervilhas porque me sabem bem falo apenas de mim. Mas se digo que sei algo afirmo muito mais que uma crença. Porque o conhecimento não é apenas aquilo em que se acredita. É aquilo em que se acredita por ser justificado concluir que é verdade. Por isso afirmar que se sabe implica duas coisas acerca dos outros. Implica que quem discordar está enganado e implica que qualquer pessoa que compreenda a justificação deve aceitar essa hipótese como verdadeira.

Assim, se me dizem que acreditam em deuses por fé eu digo que não acredito e esgota-se aí a conversa. Não há mais nada a dizer. Se nos restringimos à opinião pessoal, cada um tem a sua e ninguém tem mais ou menos razão por isso. Mas o caso é outro se dizem saber que um deus existe. Isto não diz apenas o que crêem mas diz que eu estou enganado se discordar e que devo aceitar essa a conclusão se compreender as evidências. E isso já vale a pena discutir.

A ciência e a tecnologia mostram quanto vale a pena discutir o conhecimento. Quando procuramos verdades – afirmações que correspondem à realidade quer se queira quer não -- e quando o fazemos de forma fundamentada, podemos partilhar tanto as conclusões como o caminho para elas, convergindo nas opiniões mais correctas mesmo partindo de crenças diferentes. Todas as publicações científicas visam este objectivo incluindo, além das conclusões, também os dados e o procedimento seguido para os obter. É por isso que não há física ortodoxa nem química protestante e a ciência é a mesma em todo o lado. Porque quem diz que sabe explica como obteve esse conhecimento.

Mas isto exige estar disposto a largar crenças e mudar de opinião, que é a maior traição em qualquer religião. Por isso não se consegue consenso acerca da interpretação de livros sagrados, os deuses que existem ou como se lhes deve pedir favores. Em parte por ninguém conseguir mostrar como se determina se o deus quer aquele ritual feito assim ou assado mas, principalmente, porque não adiantava de nada mesmo que conseguissem. A virtude mais exaltada da fé religiosa é a sua inabalável teimosia, e sem a capacidade de mudar de opinião o diálogo é fútil.

Conforme a ciência foi avançando, revendo opiniões e obtendo mais conhecimento, a maioria dos (muitos) religiosos que dizem saber as verdades mais profundas acerca do universo (também muitas, e todas diferentes) escolheu uma de duas alternativas. Uns, como os criacionistas, apresentam a sua ignorância dos factos como prova que os factos suportam a sua crença. Outros, como na teologia católica, exploram "verdades" tão vagas e profundas que não se percebe de onde vêm, para que servem nem, muitas vezes, sequer o que são.

O Miguel Panão deu um exemplo desta segunda categoria. Citando Bob Russell no seu blog, explica que Deus intervém na «abertura inerente nos próprios processos evolucionários onde Deus pode agir. Não é o argumento das “lacunas” uma vez que Deus não está a intervir na evolução; antes, Deus está já imanente na natureza como Trindade, agindo dentro da abertura com a qual dotou o universo quando o criou.»(1) Não é claro como sabem que Deus está imanente na natureza em vez de ter saído para tomar um café. Nem que diferença isso faria.

Mas reconheço que o Miguel por vezes tenta justificar que sabe aquilo em que crê. «O Mistério de Deus é insondável. O que sabem os Cristãos, sabem-no por revelação em Jesus Cristo», escreve o Miguel, explicando que a revelação se identifica pela conjunção de quatro critérios: «Experiência religiosa, coerência, cultura e história.»(2) Estes critérios não chegam, pois abundam contra-exemplos. Fazia parte da experiência religiosa e cultural dos egípcios que o faraó erguia o Sol todas as manhãs. Inseria-se num conjunto coerente de crenças e até era consistente com as evidências. Nenhum faraó falhou nisto. Mas não parece ser revelação divina. Ainda assim, o Miguel vai no bom caminho pois reconhece que o que afirma como conhecimento carece de uma justificação independente das suas crenças pessoais.

É este o diálogo que proponho, ao Miguel e a quem mais queira. Um diálogo racional, que parta de razões partilhadas e vise encontrar os caminhos que justificam a conclusão. Só esse é que vale a pena. Para isso não podemos partir da existência de deuses, da revelação divina ou qualquer outra hipótese que não seja consensual, pois são essas que carecem de justificação. E também não podemos exigir que a conclusão seja aquela que nós queremos. A conclusão tem de ser o resultado do processo e não o ponto de partida, senão só andamos em círculos.

1- Miguel Panão, 1-3-2009, Como pode Deus agir sem intervir?
2- Comentários em Relacionamentos e margens de erro.

quinta-feira, novembro 12, 2009

terça-feira, novembro 10, 2009

Vida depois da morte.

Não sou dualista. Não julgo haver uma alma, substância misteriosa, a habitar o corpo e a partir quando este morre. Mas também não sou materialista no sentido de julgar que a mente é matéria. Os meus pensamentos, sensações e consciência não são coisas. São acções, algo que o cérebro e o corpo fazem. Como o aplauso, a fervura e a viagem, o que eu tenho de subjectivo são substantivos sem substância.

Para um dualista esta distinção não adianta porque o propósito do dualismo é concluir que a subjectividade sobrevive ao decaimento da matéria. Como sem mãos não há aplauso, dizer que a mente é algo que o cérebro faz não lhe dá mais durabilidade que dizer que é o cérebro. Mas permite encarar o fim inevitável do corpo de uma forma diferente. A morte do corpo passa a ser apenas uma das muitas mortes do eu, especial por ser a última mas de resto igual a tantas outras que ocorrem sempre que o cérebro pára de fazer mente. Num sono sem sonhos, sob anestesia ou mesmo quando nos distraímos. Às vezes, distraído a passear, dou por mim muito mais adiante do que esperava e sem memória de um pedaço do caminho. Algo no meu corpo decidiu descansar, matar o pendura e ressuscitá-lo umas dezenas de metros adiante. Contemplando a minha morte, não vejo a perda de algo que durou décadas. Isso é só o corpo. O que é relevante é o desaparecer desta consciência que piscou, volátil e intermitente, enquanto o corpo a foi fazendo. Ao último brilho não se segue algo desconhecido e assustador mas somente um estado de distracção, diferente dos anteriores apenas por ser irreversível.

Além disso, sendo eu acções e não uma coisa, não estou circunscrito a um só lugar e tempo. Não posso sentir pelo cérebro dos outros, mas muito do que sou – aqueles actos do meu corpo que compõem a minha personalidade e pensamentos – surgiu interagindo com os outros. Muitos pensamentos não são só meus, muitas ideias são partilhadas e até vejo nos meus filhos traços claros da minha personalidade. Por isso quando este corpo morrer eu não vou desaparecer por completo. Muito do que eu sou continuará a ser feito por aí, distribuído por vários cérebros que, para bem ou para mal, apanharam tiques do meu. Para mim será fraco consolo porque esses outros cérebros não farão nada que eu possa vivenciar. Mas, precisamente por isso, também não precisarei de me consolar. Estarei tão distraído pela morte do meu corpo que nunca mais darei por nada. São os que ficarem que precisarão de consolo, e agrada-me pensar que os consolará saber que algumas das palmas deles ainda serão parte do meu aplauso.

É pouco, mas é o que há. É melhor que a ideia da alma que sai do corpo e passa uma eternidade a fazer sabe-se lá o quê. Melhor porque uma eternidade seja do que for seria sempre um martírio. Até a melhor mousse de chocolate enjoa só de saber que é para sempre. E melhor porque ao menos é credível. Muita gente tenta agarrar a ideia da alma para se consolar quando perde alguém querido. Foi para o céu. Partiu para um mundo melhor. Mas a triste realidade é que isto não consola nada porque é obviamente treta. Por muito que se esforcem e o apregoem, conta-se pelo número de sorrisos nos funerais quantos conseguem acreditar em tal coisa. Ao menos, saber que restou alguma coisa por aí sempre consola um bocadinho. Não muito, porque a maior parte foi-se para sempre. Mas um bocadinho é melhor que nada. E é preferível tentar ver o que há de bom na realidade do que imaginar fantasias absurdas e fingir que se acredita nelas.

Este post foge de temas interessantes que têm discutido nos comentários. Peço desculpa, mas este aqui é terapia e não conversa. Por defeito ou feitio, há coisas com as quais lido melhor se as tentar ver de fora.

Quando tiver melhor disposição volto ao debate.

domingo, novembro 08, 2009

Treta da semana: radioactividade criacionista.

Os criacionistas queixam-se que não os deixam publicar a sua "investigação" em revistas científicas. É por isso que precisam ter as suas próprias publicações, como a Creation Research Society Quarterly. Em Março de 1982 publicaram um artigo do Everett H. Peterson intitulado «Creation, why and how?». Não me parece misteriosa, nem indicativa de conspiração, a rejeição destas explicações por parte de revistas científicas legítimas:

«When God the Son squeezed energy into atoms, he squeezed and held the atom so tightly that there were no unstable elements and therefore no radioactivity. At the fall [of Adam and Eve], He relaxed His grip slightly ... which affected every atom and allowed some to become unstable, i.e., radioactivity!»(1)

Infelizmente, só consegui acesso ao resumo do artigo. Mas é elucidativo. Uma conclusão importante deste autor é que a origem da radioactividade é a vaidade.

«In this article the question: Creation-Why? is examined; and it is concluded, among other things, that the second law of thermodynamics was put into operation as soon as Creation was complete. The question: Creation-How? is also examined; and it is suggested that one of the results of making creation subject to vanity (Romans 8:20) at the fall was radioactivity.»(2)

Se conseguíssemos aproveitar esta relação entre vaidade e radioactividade penso que, entre a Lili Caneças e o José Castelo Branco, Portugal conseguia a independência energética. É claro que, provavelmente, ficávamos todos com cancro...

1- Evolution vs. Creationism, The Saladin-Gish II Debate (1988), Opening Statement for the Affirmative.
2- CRS Quarterly, Volume 18, Number 4, March, 1982.

Relacionamentos e margens de erro.

Quando era miúdo tive uma professora de português de quem não gostava nada. A princípio. Mas, num momento de inspiração, ocorreu-me que aquilo de que eu não gostava era apenas uma ideia. Todo esse meu desagrado tinha por objecto a opinião que eu formara acerca de alguém que mal conhecia. A epifania serviu de imediato para tornar aquelas aulas muito mais suportáveis. E, a longo prazo, além de ainda me lembrar o que é o pretérito imperfeito do conjuntivo, tem me ajudado muito recordar que, salvo raras excepções, a ideia que formo das pessoas tem uma grande margem de erro. Há muito pouca gente na nossa vida que conheçamos suficientemente bem para ignorar lacunas na informação e estimativas erradas.

No relacionamento com os outros podemos assumir que os juízos que fazemos são fiáveis e evitar desilusões julgando os outros de forma mais pessimista. Ou podemos assumir o melhor das outras pessoas, dar-lhes o benefício da dúvida dentro da margem de erro e precavermo-nos contra dissabores tendo consciência que esse juízo é muito incerto. A experiência com a professora de português levou-me a optar pela segunda alternativa. É mais agradável, e mais justo, desconfiar da minha capacidade de julgar os outros em vez de ser pessimista acerca das pessoas.

Por isso concordo, em parte, com o que me descrevem os crentes quando dizem confiar no seu deus. Dão-lhe o benefício da dúvida. Se não conhecemos alguém, podemos assumir que é boa gente. Mas só concordo em parte porque é preciso considerar que podemos formar um juízo errado. Se um estranho me toca à porta eu assumo que é boa pessoa e incapaz de maltratar crianças. Mas como posso estar enganado acerca disto não vou deixar que leve os meus filhos a passear sem mais informação que reduza a tal margem de erro. Para isso já tem de ser alguém que eu conheça o suficiente para que, além da confiar que é boa pessoa, também confie nesse juízo que fiz dele.

E é nisto que os crentes se espalham. A religião, dizem-me, é uma relação com Deus. Ou com um deus, pelo menos. É confiar nesse deus. Mas o que quer que sintam por esse deus será sempre função da ideia que formaram dele. Ou dela. E o problema é não terem qualquer informação onde basear essa ideia. Eu, ao menos, tinha aulas com a professora de português. Não era suficiente para saber se era boa ou má pessoa, mas sempre sabia alguma coisa acerca dela. E neste universo não se vê vestígio de qualquer divindade. Tudo o que se pensava indicar intervenção divina tem vindo a desaparecer, como a magia do ilusionismo quando se explica o truque. Acerca do deus, da deusa ou dos deuses, nenhum religioso tem informação. Só especulação.

Por isso não me convencem quando dizem que se tem de interpretar o Antigo Testamento de uma maneira especial por esse deus não ser como os hebreus julgavam. Concordo que o Antigo Testamento relata o relacionamento dos hebreus com o seu deus, e que o relacionamento dos católicos com o deus católico é diferente daquele que os hebreus tinham com o seu. O dos católicos é chatinho mas é menos ameaçador, se descontarmos a tortura eterna com que castiga quem discorde dele. Mas ninguém, nem católicos, nem hebreus, nem seja quem for, faz ideia de como Deus é. Não se sabe sequer se existe tal coisa, quanto mais saber o que quer, o que manda, de que gosta ou desgosta ou como se deve interpretar o que se escreve acerca dele.

Em suma, até compreendo que queiram confiar num deus. Quando não tenho informação em contrário acerca de alguém também prefiro pensar que é boa pessoa. Mas neste caso é um exagero. A ideia que fazem do respectivo deus – e, no fundo, é sempre com a ideia que nos relacionamos – é fruto unicamente da imaginação dos crentes. Nem sequer é alguém que encontrem de vez em quando, nas aulas de português ou assim, porque na missa só está lá o padre e o cenário. Se estivesse lá um deus notava-se bem.

E este exagero nem é o pior. Na verdade, se é exagero ou não é um juízo subjectivo, e admito podermos discordar disto por divergências de valor. É legítimo alguém querer confiar tanto num ser que até confia, sem evidências, que esse ser existe. É estranho, mas está no seu direito. O que é objectivamente incorrecto é ignorar a margem de erro. Que é enorme. Infinita. Todas as religiões que há, que houve e que algum dia inventem cabem nessa margem de erro, porque não há quaisquer dados que a reduzam.

Daí que as minhas críticas não sejam por crerem, ou quererem confiar, naquilo que nem sabem se existe. O que critico é dizerem que sabem. Que sabem que deus é assim e assado, que aquele trecho deve ser interpretado daquela maneira, que condena o preservativo, transubstancia a hóstia, engravidou Maria e milhentos outros pontos tirados ao acaso do grande chapéu das margens de erro. O que critico é venderem erro como se fosse conhecimento.

sexta-feira, novembro 06, 2009

Miscelânea criacionista: o sexo.

O Mats comentou assim este boneco: «Palavras para quê? É a teoria da evolução.»(1)

sapo

Por esta altura o Mats com certeza já sabe que a teoria da evolução descreve como variam as características de populações de geração em geração, e que é disparate falar da evolução de indivíduos. Mas se bem que este comentário do Mats seja mais decepção que ignorância*, a confusão que o sexo faz aos criacionistas deve-se, principalmente, à falta de conhecimento. Os criacionistas imaginam que a reprodução ou é assexuada ou há macho e fêmea que precisam um do outro para se reproduzir. Sem olhar para a natureza, são incapazes de imaginar como a evolução gradual pode ir de um sistema ao outro. Felizmente, nem todos estamos limitados àquele livrinho.

As bactérias não fazem sexo mas têm partes do mecanismo molecular da reprodução sexuada. Conseguem incorporar ADN do meio onde se encontram (transformação), partilhá-lo com outras bactérias (conjugação) ou receber ADN transportado por vírus (transdução). Na verdade, o difícil é impedir esta promiscuidade pois, sendo todos os organismos aparentados, o ADN de um organismo normalmente funciona nos outros. Por isso é que as bactérias também têm enzimas de restrição, para destruir ADN indesejado.

As bactérias têm também enzimas para recombinar o ADN(2). A recombinação é um passo crucial na reprodução sexuada, trocando partes dos cromossomas que o organismo herdou dos pais. Este baralhar dos genes torna os filhos diferentes entre si e diferentes dos pais, com um número astronómico de combinações possíveis. Mas nas bactérias, que não têm sexo, a recombinação já há muito tempo serve para integrar genes "importados" e reparar trechos danificados de ADN substituindo-os por cópias funcionais. Numa jogada típica da evolução, a reprodução sexuada aproveitou para os seus fins mecanismos que já desempenhavam outras funções.

Os criacionistas também imaginam que a reprodução sexuada exige que um indivíduo nasça com o sexo determinado nos genes, talvez por Deus, e só se possa reproduzir com um indivíduo do sexo oposto. Mas há muitas alternativas. O sexo dos crocodilos é determinado pela temperatura de incubação do ovo (3). Em muitas espécies de plantas e de peixes, os indivíduos mudam de sexo ao longo da vida (4), e nos invertebrados é comum não haver distinção entre machos e fêmeas, sendo todos hermafroditas. Na verdade, a reprodução sexuada depende apenas de dois processos fundamentais: a fusão de duas células, cada uma com uma cópia de cada cromossoma (fertilização), e a posterior divisão de células com duas cópias de cada cromossoma em células só com uma cópia (meiose). De resto vale tudo, dando à evolução uma grande margem de manobra para inventar e reinventar o sexo. Ou desistir dele.

Maria ficou famosa porque a partenogénese é muito rara nos mamíferos. Mas, fora deste pequeno grupo, muitos animais abandonaram esse pecado (pouco) original: várias espécies de lagarto, insectos, aracnídeos (5) e até alguns tubarões (6). Os protozoários do filo Rotifera fizeram-no em massa, com 2200 espécies conhecidas sem pingo de malandrice.

A evolução da reprodução sexual é um mistério intrigante. Mas não por esta caricatura criacionista, do primeiro macho à espera que a fêmea evolua. Nem por falta de oportunidades para um processo gradual transformar em sexo os mecanismos de reparação e partilha de genes de seres assexuados primitivos. O que intriga é que vantagens possam compensar o custo, para cada progenitor, de transmitir às gerações seguintes apenas metade dos seus genes em vez de todos como faz quem se reproduz sem sexo. Há várias hipóteses, desde compensar mutações nefastas a reparar o ADN até a protecção contra parasitas (7). Mas há ainda muito para fazer até se ter uma ideia concreta e devidamente fundamentada dos factores que levaram à origem e, especialmente, à preservação desta forma de reprodução.

No entanto, esta é mais uma de muitas questões que não se responde satisfatoriamente com um "porque Deus quis". E a mais que isso a bíblia dos criacionistas já não chega.

* O Mats até foi buscar o desenho a um post de um criacionista, Ray Comfort, a negar ter dito precisamente aquilo que o Mats insinua: Here we go again...

1- Mats, Macho e Fêmea
2- Robert Winning, Bacterial Recombination
3- Wikipedia, Temperature-dependent sex determination
4- Wikipedia, Hermaphrodite, Sequential hermaphrodites
5- Wikipedia, Parthenogenesis
6- Washington Post, Female Sharks Can Reproduce Alone, Researchers Find
7- Wikipedia, Evolution of sexual reproduction

quarta-feira, novembro 04, 2009

Democracia.

Em 2007 os EUA, a Comunidade Europeia, a Suíça e o Japão começaram a negociar o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA)(1). O projecto foi iniciado pela Global Business Leaders' Alliance Against Counterfeiting, uma associação representando os interesses de várias empresas multinacionais (2), e todas as negociações têm decorrido em segredo. Os parceiros agora incluem a União Europeia e vários outros países, como a Austrália, o Canadá e a Coreia do Sul, onde decorre este mês a sexta ronda de negociações.

Só por fugas não autorizadas é que tem saído informação acerca do ACTA, pois os governos envolvidos recusam revelar o que estão a negociar em nosso nome. Segundo as últimas, a ronda de negociações que agora decorre inclui medidas como criminalizar a violação de copyright mesmo sem fins lucrativos, responsabilizar os provedores de acesso ou hospedagem de conteúdos pela violação de copyright por parte dos seus clientes, obrigar o corte de acesso à Internet no caso de queixas pelos detentores de copyright e proibições obrigatórias a qualquer forma de contornar sistemas de protecção de cópia (DRM).

Se isto for para a frente, usar uma câmara de vídeo para gravar um filme no cinema será um crime, com pena de prisão. Serviços como o YouTube ou o Blogger desaparecerão, pois nenhuma empresa poderá comportar os custos de se responsabilizar por todas as violações de copyright que ocorram nestes meios. Muitas pessoas ficarão com um acesso restrito à cultura, informação e sociedade – incluindo serviços públicos – só porque o filho ou neto descarregou um mp3. E a legislação dos direitos de cópia irá ser ainda menos um sistema de incentivo à criatividade e cada vez mais uma marreta para bater em tudo o que possa fazer concorrência às editoras. Precisamente como as empresas querem.

É provável que estejam a tentar levar isto longe demais e acabe por não ir a lado nenhum. Há limites para as alterações à lei que se pode obrigar com um acordo secreto entre interesses económicos e governos, sem um processo aberto de discussão e aprovação por representantes eleitos. Mas também é possível que consigam criar com isto um processo legislativo à margem da democracia, onde empresas multinacionais escolhem as leis que querem, meia dúzia de tipos de fatinho assinam à porta fechada e nós só sabemos o que se passou quando recebemos a notificação do tribunal.

O melhor é fazer já barulho, a ver se é possível travar o ACTA antes que nos trame a todos.

Mais sobre isto:
Cory Doctorow, no BoingBoing, Secret copyright treaty leaks. It's bad. Very bad.
Michael Geist, The ACTA Internet Chapter: Putting the Pieces Together, e ACTA Negotiations, Day Two: What's On Tap.
EFF, Leaked ACTA Internet Provisions: Three Strikes and a Global DMCA

1- Wikipedia, ACTA
2- Mark Harris, Submission on the Proposed Anti Counterfeiting Trade Agreement

terça-feira, novembro 03, 2009

Distributed Hash Tables.

Para guardar registos de pessoas podemos usar 26 pastas, separando as folhas pela primeira letra do apelido, por exemplo. Isto facilita a tarefa de encontrar um registo porque só precisamos procurar entre os que começam pela mesma letra. Mas isto é pouco eficiente porque há letras muito mais frequentes que outras. Algumas pastas vão ficar mais grossas, dar mais trabalho a percorrer e, porque é mais comum que os apelidos comecem com essas letras, será nessas pastas que vamos encontrar a maior parte dos nomes que tivermos de procurar.

A pesquisa é mais eficiente se distribuirmos melhor os registos. É aqui que entram as funções hash, para fazer batata-palha das regularidades que desequilibram o arquivo. Por exemplo, podemos converter cada letra num número, com o A correspondendo a 1, o B a 2 e assim por diante, somar os valores de todo o nome e calcular o resto da divisão por 26. O número resultante, de 0 a 25, indica em que pasta guardar aquele registo*. Assim a distribuição pelas pastas será mais uniforme, poupando trabalho na pesquisa. É claro que, para nós, fazer estas contas dá mais trabalho que procurar folhas nas pastas. Para o computador já não e, por isso, as tabelas de dispersão (hash tables) servem principalmente para organizar informação digital. Mas, para este post, o que interessa é a ideia.

E uma coisa boa nesta ideia é que a tabela pode ser distribuída. Em vez de uma pessoa ter as pastas todas podemos dá-las a um grupo de pessoas. Cada uma tem um número aleatório de 0 a 25 e guarda as pastas que ficam mais próximas do seu número que do número de qualquer outro participante. Além disso, cada participante sabe o telefone da pessoa com o número mais próximo acima do seu e da pessoa com o número mais próximo abaixo do seu, imaginando que o circulo dá a volta no 25, recomeçando do zero. Assim temos um anel telefónico de várias pessoas, cada uma com o contacto dos seus dois vizinhos.

Para consultar um registo nesta tabela distribuída calculamos o valor do hash do nome. O tal número de 0 a 25. Depois telefonamos a qualquer uma destas pessoas. Essa vê se o valor corresponde a uma das suas pastas. Se corresponder, dá-nos a informação que queremos. Se não corresponder, passa a chamada para o vizinho cujo número estiver mais próximo do hash que lhe demos. Este fará o mesmo até a chamada chegar a quem tem a pasta certa.

Se em vez de pessoas usarmos computadores, ainda melhor. Podemos ter uma função de hash com números maiores. Tipicamente, em vez de 26 valores são números com cinquenta dígitos. Assim cada valor corresponde a uma única entrada na tabela, em vez de uma pasta inteira. O reencaminhamento das mensagens é automático e praticamente instantâneo, pela Internet. Cada computador pode guardar não só os contactos dos seus vizinhos mais próximos mas também vários outros, acelerando a pesquisa. Com informação redundante, tendo vários computadores guardando os mesmos dados, sempre que um desaparece da rede a falha pode ser colmatada pelos vizinhos, trocando os dados necessários para manter toda a tabela disponível. E quando entra um participante novo, procura um cantinho onde se meter e os seus vizinhos dão-lhe uma parte da tabela para guardar.

É isto que está a tramar as editoras de discos e filmes. Quando alguém quer partilhar um ficheiro, o seu programa calcula o hash e gera uma ligação que pode ser publicada em qualquer sítio. Por exemplo, este é o URI ed2k de um ficheiro do filme District 9:

ed2k://|file|District_9_(2009).R5.avi|1474425934|F13EBED7C5C94A19D7872680A20BAD10|/

A primeira parte é o nome do ficheiro, que pouco importa porque o hash é calculado pelo ficheiro em si. Em seguida o tamanho em bytes e, no fim, o hash identificando este ficheiro na rede ed2k. Quem tiver este ficheiro em partilha – com a devida autorização dos detentores de direito e a bênção dos mapinetas, é claro – envia para a rede uma mensagem com o seu endereço e o hash do ficheiro. Esta é reencaminhada até ao computador que, naquele momento, tiver a seu cargo a gama de valores que inclui este hash. É esse computador que vai também receber todos os pedidos de quem quiser o ficheiro, pondo-os assim em contacto com quem o tem.

O Napster morreu quando encerraram os seus servidores, mas com uma DHT a rede deixa de depender de um computador central que registe quem tem quais ficheiros em partilha. Graças aos esforços da indústria discográfica, que motivaram o trabalho gratuito de muitos programadores, agora a RIAA pode fechar os servidores e trackers que quiserem. Já não são necessários.

Para os poucos leitores que tiveram paciência de ler este post até aqui, deixo uma modesta recompensa. Agora quando carregarem no botão Kad do eMule ou repararem no plugin Distributed DB do Vuze já sabem o que é. O que é mais que a grande maioria dos mapinetas que ainda andam a tentar fechar servidores e páginas da Internet, julgando que isso faz alguma coisa às redes de partilha.

* Este é um hash muito pobrezinho, só para explicar a ideia. Se quiserem ver como é um mais a sério, a Wikipedia tem artigos sobre os Secure hash algorithms e os Message digest algorithms, por exemplo.

domingo, novembro 01, 2009

Treta da semana: Centro Lusitano de Unificação Cultural

O Centro Lusitano de Unificação Cultural (CLUC) é uma associação que tem por objectivo nada menos que «estabelecer em bases sólidas e correctas uma Biosofia - Sabedoria da Vida - abarcando todos os campos de pensamento, de actividade e de esforço humano, nomeadamente filosóficos, científicos, religiosos, políticos, sociais, pedagógicos, artísticos e éticos.» Com um objectivo tão ambicioso, não admira que estas pessoas estejam a sondar o insondável e a responder ao irrespondível. Sabem, por exemplo, que de Deus «ciclicamente promana um raio (um fragmento da sua inesgotável e perpétua Essência) que dá origem a todos os Universos em manifestação» e que «existem universos físicos com matéria mais velha, digamos assim, com maior número de anos de evolução, e que possuem elementos químicos ainda não gerados nesta». Sabem também interpretar correctamente os textos sagrados. Ao contrário de muitos que, por ignorância, acham que a Bíblia foi inspirada por Deus, no CLUC sabe-se que «Jeová é um nome atribuído ao Espírito de Raça do povo judeu, isto é, a uma entidade suprafísica, do Reino Dévico (um deus mas, não, Deus), que tutela (e, ao mesmo tempo, se alimenta com) as energias do referido povo.»(2) Fica assim corrigida mais uma leitura demasiado literalista do Antigo Testamento.

Aos que não foram iniciados no esoterismo pode ocorrer perguntar como sabem estes senhores tanta coisa acerca do que promana de Deus, dos outros universos, de quem é quem no Reino Dévico e assim. Mas aos iniciados não ocorre perguntar. Os estudiosos estudam e, como estudam, logo sabem. É assim que isto funciona e quem disser o contrário é ignorante. O presidente do CLUC explica bem isto. Ou, ainda melhor que explicar, não explica. Interpreta. Num texto intitulado «Esoterismo?», José Manuel Anacleto afirma que o verdadeiro esoterismo, como o verdadeiro escocês, não é superstição nem crendice, negócio, sensacionalismo, charlatanice, puerilidades, alienação ou autocentramento. Não fica claro o que é. Mas deve ser bom:

«um conjunto sistemático e coerente de princípios e de valores mais abarcantes; uma Sabedoria Universal que integra, fundamenta e sintetiza as múltiplas expressões científicas, filosóficas, religiosas, éticas e, mesmo, estéticas...[etc]»(3)

Além da investigação, o CLUC ministra cursos de ciência esotérica, como «A Árvore da Vida e as 10 Sephiroth Cabalísticas» e «O Cristianismo à Luz da Sabedoria Esotérica» (4). E, em Junho de cada ano, celebram o Ritual da Circulação de Luz, «uma cerimónia ritualística e um trabalho de irradiação espiritual, que constituem um evento mundial único e de capital importância nesta época.»(5)

Isto demonstra cabalmente como o estudo legítimo do espiritual e do divino se distingue da superstição, crendice e charlatanice. Primeiro, é um estudo. Não é apenas por crença que nos falam de outros elementos químicos em universos mais antigos e que os universos são criados por raios que saem regularmente de Deus. Dizem-no porque sabem. Porque estudam estas coisas. É a sério.

Depois, afirmam claramente que isto não é superstição nem charlatanice. Ora, se fosse, claro está, não iam dizer que não era. E há que tratar de forma diferente aquilo que (dizem que) é diferente.

Finalmente, dizem defender um conjunto coerente e sistemático de princípios. Ainda por cima, segundo eles, mais sofisticado que os outros. Certamente que tudo o que é coerente, sistemático e sofisticado tem mesmo de ser verdade. Se não fosse assim andava por aí muita gente a acreditar em tretas...

1- CLUC, Acerca do Centro Lusitano
2- CLUC, Perguntas com Resposta
3- CLUC, Esoterismo?
4- CLUC, Cursos de Ciência Esotérica
5- CLUC, Ritual da Circulação de Luz

Ken Lee

O grande êxito do Ídolos búlgaro. Sem dúvida, tulibu dibu douchoo.