segunda-feira, agosto 31, 2009

Manifesta ilicitude.

Três meses depois da minha pergunta acerca dos downloads ilegais (1) recebi uma resposta da SPA. Como a senhora explicou, não compete à SPA aconselhar quem não seja sócio, por isso não me queixo da demora e até agradeço a boa vontade. O email veio com conhecimento para “contencioso@spautores.pt”, mas espero que seja apenas o procedimento normal. E, no final da análise detalhada da legislação, concordou que «é consentida a reprodução, para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização», precisamente de acordo com o que está na lei. Mas, logo a seguir, explicou-me que «apenas será lícita a vulgarmente designada cópia privada ou cópia de segurança, ou seja, a cópia de um fonograma original efectuada pelo seu legítimo adquirente sem uma finalidade lucrativa», concluindo então «pela manifesta ilicitude do download de composições musicais que não tenha sido, previamente, autorizado pelo autor ou pelo titular de direitos autorais.»

No email que enviei a agradecer notei que esta interpretação era diferente do que a IGAC me tinha dito. Segundo a IGAC, o que está na lei é que a cópia para uso pessoal é permitida desde que não cause prejuízo nem afecte a exploração da obra e, como estes conceitos não estão explícitos na lei, compete aos tribunais decidir se é ou não é lícito (2). O que é diferente da «manifesta ilicitude». E se bem que compreenda que a SPA tenha uma posição menos neutra e prefira uma conclusão mais favorável, não deviam torcer as palavras dos legisladores para nos privar dos nossos direitos. Se a única cópia permitida fosse a «cópia de segurança [...] de um fonograma original» então era isso que estaria na lei, em vez de «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos» (Artº 75º do CDADC).

Esta ideia propagada pela SPA, mapinetas e outros vendedores de rodelas e licenças, que só podemos fazer uma cópia de segurança, é contrária ao que já se fazia muito antes da Internet. Desde que há cassetes que se grava músicas e até havia gravadores com dois decks para copiar as cassetes dos amigos. E se bem que hoje se copie muito mais, o prejuízo causado por cada cópia é muito menor. Para copiar um filme em VHS era preciso alugá-lo ao videoclube, pedir um gravador a um amigo, ligá-lo ao nosso e esperar duas horas enquanto copiava. Copiar era mais barato que comprar, mas pagava-se a cassete e comprar era muito mais prático. Hoje não. Para comprar um filme é preciso procurá-lo nas lojas ou encomendar por correio e esperar uns dias. Depois vem num DVD, que além de pouco prático obriga a gramar o Ratatouille a dizer mal da pirataria. Mas procurando no Google o nome do filme seguido de “rapidshare” basta pôr os links no Jdownloader (2) e ao jantar copia-se para um pendisk e vê-se no media player (3). Sem Ratatouille. Isto segundo me disseram, é claro...

Mesmo que o ITunes desse as músicas de graça o Rapidshare* era mais prático. Não é preciso instalar software adicional nem registar-se em lado nenhum e os ficheiros não estão “protegidos”, um eufemismo para “defeituosos” porque o que vem com DRM depois não toca onde se quer. Só nos reconhecem o direito de fazer cópias de segurança e vendem-nos tralha “protegida” contra esse direito. Por isso a motivação para a cópia mudou significativamente. Quem se dava o trabalho de alugar o filme, comprar cassete, juntar dois gravadores e copiar queria mesmo ter aquele filme e, se tivesse dinheiro, certamente comprava o original. Mas quem procura uma coisa no Google e clica no “Save As” muitas vezes não tem interesse em ir buscar o plástico à loja nem que lho ofereçam. Mais lixo em casa e ainda por cima com o Ratatuille. Por isso hoje, ainda mais que no tempo do VHS, não se pode assumir que cada cópia cause um prejuízo injustificado ao autor. É por isso que nunca houve condenações só por copiar coisas para uso pessoal, e está na altura de tornar isto explícito na lei.

Só que a facilidade de cópia é também a facilidade de comunicar. E disso muitos políticos têm medo. A pirataria a sério é raptar tripulações e levar os navios, o terrorismo é rebentar coisas e pessoas e o problema da pedofilia é maltratar as crianças. Mas a quem está no poder tudo isto serve de desculpa para registar os nossos telefonemas, controlar o acesso à Internet e a informação que partilhamos. As crianças continuam maltratadas, os navios são atacados e o pessoal trama-se à mesma quando os terroristas rebentam bombas. Mas as discográficas agradecem. O secretário britânico da industria e inovação declarou há tempos que era excessivo cortar o acesso à Internet a quem partilhasse ficheiros. Mas durante as férias passou uns tempos com David Geffen, um bilionário da industria discográfica. E mudou por completo de ideias (5). Porque tanto aos vendedores de músicas como aos políticos dá jeito um monopólio sobre a informação para melhor venderem as suas tretas. Mas se há aqui algo de manifestamente ilícito, devia ser isto e não a cópia da cançãozinha.

*O Rapidshare é um de muitos serviços gratuitos de hospedagem de ficheiros. Ao contrário das redes de partilha, quem descarrega algo destes servidores cria apenas uma cópia para si e não envia nada para terceiros. O Miguel Caetano tem aqui uma lista dos mais conhecidos: 100 File hosters para todos os gostos.

1- Ilegais? Porquê?
2- Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.
3- Gratuito e muito conveniente: jdownloader.org
4- Este da WD é muito bom: WD TV. Lê quase todos os formatos, leva-se para qualquer sítio (tem o tamanho de um livro pequeno) e liga-se a qualquer televisão. Basta ligar um disco ou pendisk por USB e escolher as fotos, músicas ou filmes para tocar. É um pouco caro, à volta de 90€, mas vale a pena.
5- Daily Mail, Mandelson goes to war on teenagers downloading their music and movies... just days after dining with anti-piracy billionaire

domingo, agosto 30, 2009

Genial



Via Skepchick.

E, já agora, a propósito da conversa da dieta, comer carne e assim:

sábado, agosto 29, 2009

Teorias e sobrenaturalices.

Confirmando que há males que vêm para bem, pelo blog do Mats encontrei um post da Priscila Rêgo sobre um problema fundamental no criacionismo. Para explicar a origem das espécies os criacionistas alegam que foi Jesus, filho de Maria, deus feito homem, criou tudo em seis dias e assim por diante. Ou, como escreveu a Priscila, «O problema dos criacionistas é que propõem uma explicação tão minuciosamente recortada que se torna impossível de avaliar pelos dados disponíveis. [...] No fundo, o que os criacionistas pedem é que da existência de arsénico no copo da vítima se deduza que o assassino foi o Joaquim Otávio, que calça 45 e é fanático pelo Oliveirense.»(1)

Este é um problema em qualquer explicação. Para explicar um conjunto de dados temos de os organizar numa estrutura conceptual – um modelo – que vá além dos dados. Porque se não for não explica nada. Mas quando vamos além dos dados ficamos livres para incluir tudo. Fadas, assassinos, deuses, o que calhar. É o que acontece no criacionismo, na psicanálise, na astrologia, na teologia, na filosofia e até na matemática. Basta pensar no problema de ajustar uma linha a um conjunto de pontos. Há infinitas linhas.

A ciência resolve este problema usando teorias, um termo enganador precisamente porque a teoria científica não tem equivalente fora da ciência. Fora da ciência, “teoria” normalmente designa aquilo a ciência chama modelo. A teoria das Formas de Platão, a teoria dos sonhos de Freud ou a teoria do design inteligente são apenas modelos. Pretendem descrever um aspecto particular do que se julga ser a realidade. A teoria científica é muito diferente em três aspectos. Primeiro, está distante de qualquer exemplo concreto. A teoria da evolução descreve populações de algo que se reproduza herdando características, seja ser vivo, robô, ideias ou programas num computador. A teoria da relatividade propõe que as leis da física, quaisquer que sejam, são iguais para todos os observadores, e descreve o espaço-tempo de uma forma tão genérica que o nosso universo é apenas um exemplo. Mais importante que isto, a teoria científica restringe drasticamente os modelos que permite. Não é uma coisa vaga e frouxa nem se encosta a mistérios obscuros. Distingue claramente, sem ambiguidade, o que é e o que não pode ser. Finalmente, cada teoria científica tem de encaixar nas outras, e os cientistas não descansam enquanto há pontas para rematar. É por isso que a ciência consegue fazer inferências ainda mais espantosas que aquela no exemplo da Priscila.

O Gravity Recovery and Climate Experiment (GRACE) usa dois satélites em órbita a 300km de altitude e mede a distância entre eles. A partir destes dados, os investigadores da NASA descobriram que o norte da Índia perdeu cem quilómetros cúbicos de água de reservas subterrâneas entre 2002 e 2008 (2). Extrapolando apenas das posições dos satélites isto não faria sentido. Tanto podia ser pela água na Índia como pela actividade sexual das avestruzes africanas como pela aparição de Maria em Fátima. É aí que entra a teoria. A teoria da relatividade limita rigorosamente os modelos do campo gravítico que podem explicar as trajectórias observadas. Por sua vez, estes restringem a distribuição de densidade na Terra, cuja variação só pode ser explicada pela deslocação da água de fontes subterrâneas.

Com teorias, no sentido científico, consegue-se expandir o conhecimento de uma forma sem rival em qualquer outra actividade humana. E até se pode dizer que é assim por definição, pois assim que outra área desenvolve este tipo de teorias e se encaixa nas restantes passa a ser ciência. Foi o que aconteceu a muitas questões que antigamente eram da filosofia, como o que é a vida ou como surgiu o universo, e foi o que aconteceu à alquimia e à astrologia que, aparte de alguns que ficaram para trás, se transformaram na química e na astronomia.

O que me traz finalmente ao sobrenatural. À letra, designa forçosamente um conjunto vazio porque tudo o que existe faz parte da natureza. Quando falamos em “leis da natureza” referimo-nos às tais teorias que restringem os modelos que se possa criar acerca do que quer que seja, desde flores a computadores. Não admitem excepções. Por isso, quando propõem o sobrenatural como explicação, em oposição ao que chamam de “naturalismo”, querem apenas safar-se das restrições destas teorias para poderem criar modelos a gosto. Aqui um espírito santo, ali uma transubstanciação, uma revelação divina, palavras de um livro e milagres que baste. Mas sem teorias não há onde pendurar os modelos. Os dados, por si só, não chegam. Daí o chorrilho de disparates que sai sempre desta batotice.

Aquilo que acusam de ser “naturalismo” não é excluir deuses. Nem o deus deles, nem os outros que se foi inventando, nem sequer os que estão por inventar. É aceitar que só conseguimos compreender as coisas criando na nossa mente modelos adequados. E que só o podemos fazer com teorias fiáveis que guiem a criação desses modelos. Por isso, se Deus existir só há duas possibilidades. Ou está fora das nossas teorias e não o podemos compreender nem dizer que é contra isto, que fez aquilo ou que quer que nos portemos daquela maneira. E, sem qualquer modelo de Deus, não faz sentido haver religião. Ou então conseguimos incorporá-lo nas teorias pelas quais modelamos o universo e todo o conhecimento que tivermos de deus virá da ciência. A alternativa dos crentes é uma batota, mas não tem nada a ver com a questão da existência de deuses. É batota pela presunção de julgarem obter modelos correctos só a especular no vazio.

1- Priscila Rêgo, A noção de naturalismo.
2- NASA, NASA Satellites Unlock Secret to Northern India's Vanishing Water. E também no JPL.

quarta-feira, agosto 26, 2009

Treta da semana: o maior prejudicado.

Soube pelo Bruce que a Associação Animal, e muitas pessoas que ajudaram, conseguiu que a Ford retirasse a publicidade do site Tauromania(1,2). Mas só depois de contactar com a sede nos EUA, que a Ford Portugal não lhes ligou nenhuma. Talvez porque, por cá, estas decisões sigam mais vezes o amigo do primo que custos e benefícios. Mas este post não sobre isso.

A tourada é fascinante. É a Festa do Touro, os Forcados, os Cavaleiros, a Tradição e uma data de palavras em maiúscula para parecer que é coisa de gente crescida. Tradição, especialmente, que é muito importante nisto de picar touros. Porque uma tradição é um hábito, mas não é um hábito qualquer. Já há muito tempo que temos o hábito de lavar os dentes e andar calçados na rua, mas isso é para não magoar os pés e evitar cáries. Não é por Tradição. A Tradição tem de ser um hábito inútil que se perpetua sem haver razões para isso, e normalmente à revelia do bom senso.

É neste contexto que se compreende a coragem de quem lida com o touro. Quando falamos em coragem pensamos em vencer um medo, ou correr um risco, em benefício de alguém. O que faz um bombeiro, um nadador salvador ou até quem dá sangue. Cada um à sua maneira, há muitos exemplos de coragem todos os dias. E há os que passam a ponte Vasco da Gama a duzentos à hora ou atiram garrafas num jogo de futebol para desatar tudo à pancada. Esses também arriscam, mas arriscam para nada, muitas vezes em prejuízo de terceiros. Por isso são exemplos de parvoíce e não de coragem. Mas a Tradição enaltece a teimosia fútil e, nesse contexto, espetar ferros num touro ou pôr-se à frente dele a dizer “Ha!” já se diz coragem. Só nesse contexto. Se perguntarmos para que serve, ah, e tal, é Tradição...

Parece-me que a maior parte das pessoas que se entretêm a chatear o touro – “castigar”, é o termo tauromáquico, como se a culpa fosse do bicho – fá-lo com aquela irresponsabilidade ingénua dos jovens que andam de mota sem capacete. Uns crescem, outros envelhecem, outros ficam paraplégicos mas, mais cedo ou mais tarde, a coisa passa-lhes. É triste, mas não chega a post. O que me traz a este desabafo é a tretologia criada à volta daquilo que, fora ceroulas e lantejoulas, não passa de espetar coisas num animal para depois o agarrar e matar.

Um bom exemplo é o texto do Diogo Palha, «A estupidez dos acidentes evitáveis»(3). Não se refere à estupidez de espetar coisas no touro nem a acidentes evitáveis como o da cornada em Las Ventas(4). E é provável que a ironia do título escape tanto ao Diogo como aos seus leitores habituais. O texto é sobre os acidentes causados pelos ferros espetados no animal e a necessidade de usar bandarilhas à espanhola em vez de ferros curtos, «sobretudo em benefício dos que actualmente são mais prejudicados que são os Forcados.» O Diogo explica:

«Por questões da ordem da Física os tradicionais ferros curtos, nos quais a farpa está inserida na madeira, apresentam um duplo perigo: por um lado tendem, sobretudo quando não são colocados verticalmente, a virar a farpa para fora devido ao balanço que o peso da madeira provoca e, por outro lado, quando ficam bem espetados tornam-se perigosos pelo impacto que podem provocar quer aos cavaleiros quer aos forcados.»

Ao contrário do Diogo, e tanto pela física como pela fisiologia, eu diria que o maior perigo não está em nenhum dos lados mencionados. O lado mais perigoso parece-me ser o da ponta, o lado que cravam no bicho. Se o Diogo duvidar sugiro que experimente espetar meia dúzia no lombo, a ver se tenho ou não tenho razão. E não percebo porque escreve física com maiúscula. As tretas da tauromaquia ainda compreendo, que essas precisam de toda a ajuda que lhes arranjem. Mas a física vale bem por si. Não precisa de lantejoulas nem fitas de papel de seda. Talvez, recordado só tenuemente do que aprendera na escola, o Diogo tenha receado tratar-se de um nome próprio e decidido escrever assim para não ofender a senhora. Mas divago. Voltando ao que interessa, faço minhas as palavras finais do Diogo:

«Agora é tempo dos que pegam e sobretudo dos que chefiam os Grupos de se deixarem de merdas e tomarem decisões que são importantes para quem pisa uma arena, sitio onde o perigo deve somente ser o Toiro. Esse sim deve ser perigoso, deve causar emoção, tem o direito de aleijar quem se põe diante dele. Tudo o resto são perigos estúpidos que é uma irresponsabilidade não evitar.»

À parte do “tudo o resto”, estou de acordo. São perigos estúpidos. É irresponsabilidade não os evitar. Sugeria, por isso, que deixassem de espetar coisas no bicho e começassem logo pela pega. Os forcados deixavam de levar com os ferros. O touro certamente não se importava. Dava mais emoção fazer a pega com o touro fresquinho, em vez de depois de meia hora a levar com ferros e a sangrar pela arena. E, acima de tudo, desta maneira só corriam perigos estúpidos os mamíferos que lá estivessem por vontade própria.

Nota: admito que o post está um pouco maldoso. Mas hoje não estou bem disposto, o tema não ajuda e apeteceu-me espetar uma farpa. Olé!

1- Associação Animal, Vitória: Ford EUA anuncia retirada de anúncio de site pró-tauromáquico.
2- http://www.tauromania.pt.
3- Diogo Palha, A estupidez dos acidentes evitáveis
4- Bruno Krippahl, Uma Cornada "en Las Ventas"

terça-feira, agosto 25, 2009

O Pirate Bay (não) fechou.

Segundo o Jornal de Notícias, «O "site" de partilha de ficheiros na Internet, The Pirate Bay, um dos mais utilizados do mundo, foi encerrado por ordem de um tribunal sueco, foi hoje, terça-feira, anunciado. […] Este site de partilha de ficheiros está "offline" depois de uma das empresas que gere o tráfego para o site, a Black Internet, lhe ter suspendido o acesso, na sequência de uma ordem do tribunal, que ameaçava multar a Black Internet em 500 mil coroas suecas (cerca de 50.000 euros) no caso de incumprimento.»(1)

Esteve offline durante três horas. Agora está de volta. E estão a fazer uma t-shirt para oferecer a algumas pessoas, dizendo «Perdi meses e milhões de dólares para fechar o Pirate Bay e só recebi esta linda t-shirt». Podem ver a imagem da t-shirt em thepiratebay.org

Nota: se não conseguirem aceder ao site é porque o vosso DNS não está ainda actualizado. Podem esperar mais algum tempo ou usar os servidores do Open DNS (via Remixtures).

1- JN, Site The Pirate Bay foi encerrado. Obrigado ao Nuvens de Fumo pela notícia.

domingo, agosto 23, 2009

Treta da semana: a mandatária para a juventude.

Simpática e prestável, fez o post por mim. Obrigado, Carolina.




Via Blasfémias.

sexta-feira, agosto 21, 2009

Legal, 6.

A Lei, o conjunto impessoal de prescrições que dizem o que fazer, não fazer e como punir quem fizer ou não fizer, é uma peça importante na sociedade moderna. Mas não é como a arte, a filosofia, a ética e a ciência, que são importantes porque têm valor por si. A Lei é importante como o esgoto e a radioterapia. É algo de que precisamos, não por ser bom, mas por evitar um mal maior. Infelizmente, muitos não percebem isto e querem resolver tudo com leis. Por exemplo, as “vagas” de crimes violentos – mais propriamente, as vagas de notícias sobre crimes violentos, sempre que não há guerras, desastres naturais nem o Mourinho muda de clube – leva muita gente a defender que precisamos de leis mais severas. Só que não temos prisões para tantos cuja vida miserável lhes torna indiferentes a estar cá fora ou lá dentro. Estes problemas não se resolvem no papel. Resolvem-se dando a essas pessoas um incentivo para prezarem a sua liberdade.

E o sistema de fazer leis também é um mal menor. Pior era um tipo a mandar em tudo, à moda antiga. Nem os monárquicos querem isso (acho... mas nem eles sabem bem o que querem). Só que ter, em vez de um, 230 explicitamente eleitos para inventar leis dá à Assembleia da República uma tal soltura legal que nunca sabemos a quantas andamos. O Código Civil tem para cima de dois mil artigos, mais uma carrada de decretos-lei. Inclui pérolas como «Quem colher prematuramente frutos naturais é obrigado a restituí-los, se vier a extinguir-se o seu direito antes da época normal das colheitas» (artº 214º, seguido do artigo que rege a restituição dos ditos), e um título inteiro dedicado ao casamento. Vai do artigo 1587º ao artigo 1795º-D. Não é só quem se vai casar que não sabe no que se mete. A maioria nunca chega a descobrir, tal é o emaranhado de normas que regem o casal.

Não digo que, em geral, as leis sejam más (mas admito que, em geral, também não as li). É razoável que devolvam a fruta. Mas uma Lei obcecada com detalhes picuinhas prejudica a sociedade. Incentiva a substituir o bom senso e a responsabilidade individual pela burocracia. E atola o sistema em tretas. Que interessa legislar a caducidade dos bens doados aos nubentes em caso de divórcio? Se deram, está dado. Agora aguentem-se, e deixem os tribunais tratar de coisas que interessem a mais alguém.

Por estas razões, por a Lei ser um mal necessário e por termos um sistema que incentiva leis em demasia, devemos estar atentos às leis que nos impingem. Especialmente quando afectam actividades diárias como navegar na Web, andar de transportes públicos, passar uma portagem ou usar um telemóvel. É um mal que as empresas de telecomunicações gravem as nossas conversas. É pior até que uma lei contra isso. Por isso justifica-se que seja proibido gravar conversas dos clientes. E também é mau que registem de onde telefonamos, para que número, quando e quantas vezes. Não é tão mau como gravar as conversas. Talvez seja coisa que não precise de leis e se resolva com um mercado competitivo, se os clientes tiverem consciência do problema. O que não se deve aceitar é uma lei que obrigue as empresas a guardar esta informação. Essa é um mal desnecessário.

Na Internet temos o mesmo problema. Recentemente a Google foi forçada a divulgar o endereço IP de um blogger que chamou skank a uma modelo (1). Compreendo que queira saber quem a insulta, mas isto não é coisa para leis ou tribunais. A menos que haja um dano objectivo, como alguém ser despedido ou prejudicado por causa de uma calúnia, é absurdo que a sociedade intervenha sempre que alguém se sente ofendido. E pioram a situação com leis que obrigam a identificar todas as ligações à Internet e reter essa informação durante meses ou anos. Mesmo antes de dizermos o que quer que seja já a lei se intrometeu. É como identificar quem anda na rua para evitar que digam palavrões ou insultem anonimamente.

E cada vez é maior a ameaça à privacidade. As operadoras registam as antenas a que se ligam os nossos telemóveis. Os transportes públicos usam cartões com números únicos que registam quem andou por onde*, e as portagens com pagamento electrónico identificam cada automóvel. Na EFF há um bom artigo sobre este problema, e como se pode usar a criptografia para pagar estes serviços com comodidade e segurança sem que ninguém use essa informação para saber por onde andamos (2). E aqui, mais uma vez, os legisladores não fazem o trabalho que deviam. Em vez de criarem leis que nos protejam de males maiores, ou pelo menos se absterem de fazer asneira, criam leis que pioram o problema. Para o ano já vai haver chips nas matrículas dos carros. Assim os polícias esforçam menos a vista para nos fiscalizar. E se nos roubarem o carro podemos facilmente descobrir onde deitaram fora a matrícula. Em troca damos ao estado um meio de nos seguir para todo o lado. Ao estado, aos técnicos que mantenham a base de dados, a quem comprar os computadores velhos quando renovarem o hardware (3) e até à senhora da limpeza se tiver um pendisk no bolso.

Mais uma palavra para procurar nos programas eleitorais: «privacidade».

* Há uns anos tirei o Lisboa Viva, mas nunca o usei porque, depois de o receber, descobri que era preciso comprar o selo à mesma. Um cartão electrónico com selo. Genial. Agora talvez já não seja preciso, mas compro os Zapping nas máquinas. Duram um ano, carrego quando quero, não precisam de selo e ninguém fica com o meu nome para saber por onde ando.

1- Exame Informática, Google forçada a dar identificação de blogger. Obrigado ao Mário Miguel pela notícia.
2- Andrew J. Blumberg and Peter Eckersley, On Locational Privacy, and How to Avoid Losing it Forever. Obrigado pelo email com o link.
3- Daily Mail, Computer hard drive sold on eBay 'had details of top secret U.S. missile defence system'.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Grande descoberta criacionista.

Há quem julgue que o criacionismo é estéril, um beco sem saída cognitivo onde não se aprende nada. Mas o Marcos Sabino desmente essa ideia, revelando no seu blog uma descoberta significativa que certamente abalará a geologia.

«Mesmo nos oceanos temos água suficiente para cobrir toda a Terra. A superfície terrestre não está nivelada. As bacias oceânicas são extensas e profundas e as áreas terrestres são elevadas. Se a superfície terrestre estivesse ao mesmo nível, a água que temos nos oceanos seria suficiente para cobrir o globo.»(1)

Como qualquer descoberta revolucionária, as implicações não se limitam à sua área. Fora da geologia, teve um grande impacto na minha vida pessoal ao revelar-me que tenho altura suficiente para ser o humano mais alto do mundo. É certo que há pessoas mais altas que eu, mas se todas fossem mais baixas que eu não precisava sequer de mais um centímetro para ser o mais alto.

Penso que já disse isto ao Marcos uma vez, mas vale a pena repetir:

Duh!...

Adenda: se a Terra fosse lisa e a cobríssemos de água com uma molécula de profundidade, cada molécula de água ocuparia 10-19m2 do total de 5x1014m2 de superfície. Por isso seria preciso 5x1033 moléculas de água, ou 1010 mol de água. Como 1 mol de água equivale a 18g, seria 180 mil toneladas de água. É um bocado mais que a estimativa do Pedro Ferreira (nos comentários) mas não é muito, à escala planetária. Há navios que deslocam mais que isso. O que sugere uma explicação para a arca de Noé. Não serviu para levar os animais. Serviu para guardar a água do dilúvio.

1- Marcos Sabino, As águas do Dilúvio

Sushi wa oishii desu ne.

Em celebração da silly season, interrompo a programação regular para mostrar o meu almoço. Queria dar uma imagem mais de gourmet que de glutão, mas se calhar devia ter omitido a segunda foto...

Quase sushi
Muito sushi
Vou mas é comer

Retomarei brevemente os temas do costume. Mas agora vou comer.

terça-feira, agosto 18, 2009

Miscelânea Criacionista: Os embriões de Haeckel.

Três décadas antes de “A Origem das Espécies”, Étienne Serres propôs a teoria da recapitulação, segundo a qual o desenvolvimento do embrião recapitula a evolução do organismo. Era uma variante do lamarquismo, na qual os factores ambientais transformavam os indivíduos uma geração para outra actuando sobre o desenvolvimento do embrião em vez de no organismo adulto. Quinze anos depois de Darwin publicar a sua teoria, Ernst Haeckel defendeu uma versão mais detalhada da teoria da recapitulação e apresentou desenhos de embriões mostrando como o desenvolvimento embrionário passava por fases representativas dos ancestrais de cada organismo. Haeckel era um naturalista e ilustrador famoso, tendo catalogado milhares de espécies, por isso foi um escândalo quando foi condenado por fraude uns anos mais tarde, admitindo ter alterado alguns desenhos para suportar a sua teoria.

Décadas antes, já Karl Ernst von Baer tinha oposto a teoria da recapitulação, enunciando nas suas leis da embriologia que as características mais gerais de cada grupo surgiam antes das mais específicas mas que as formas embrionárias tendiam a divergir e nunca passavam pela forma de animais adultos. As leis de Baer estão estatisticamente correctas, mas dizem algo muito diferente do que Haeckel defendia. Da teoria da evolução não se espera que o embrião de um organismo se assemelhe à forma adulta de qualquer dos seus antepassados. A evolução pela acumulação gradual de mutações aleatórias não dá razão para que assim seja. Só o Lamarckismo, ou algo semelhante, explicaria esta ligação entre desenvolvimento e evolução. Se Haeckel tivesse razão e um embrião humano passasse pela forma de peixe, anfíbio, réptil e mamífero quadrúpede, hoje os criacionistas estariam a dizer mal de Lamarck em vez de Darwin. Mas não é esse o caso.

No entanto, é verdade que características ancestrais tendem a surgir mais cedo no desenvolvimento embrionário. Foi possivelmente isto que induziu Haeckel a dar um “jeitinho” aos desenhos, convencendo-o que o embrião revivia formas ancestrais. Mas esta precedência não é uma recapitulação de formas adultas. Há uma fase do desenvolvimento do embrião humano em que aparecem estruturas semelhantes a guelras, mas não são guelras de peixe adulto nem funcionam como guelras. E o que se passa, o que Baer notou, está de acordo com a teoria da evolução.

O desenvolvimento embrionário é uma sequência complexa de reacções químicas. Genes são activados ou desactivados em função de moléculas que se distribuem de forma heterogénea pelo embrião, células diferenciam-se de forma diferente em locais diferentes e tudo isto tem de estar perfeitamente sincronizado. É muito provável que uma alteração aleatória neste processo seja letal para o organismo. Mas é tão mais provável que seja letal quanto mais cedo afectar o desenvolvimento do embrião. É esta a explicação das leis de Baer. Nos embriões de vertebrados terrestres, por exemplo, a coluna vertebral começa a formar-se antes dos membros. Porque, na evolução destes animais, mutações que afectassem o desenvolvimento antes da formação da coluna vertebral foram eliminadas com mais frequência que mutações com um impacto mais tardio. Pela mesma razão, os embriões de baleia começam a desenvolver patas para as perder mais tarde, os embriões humanos têm cauda que depois regride restando apenas o cóccix e, aos cinco meses, os fetos humanos têm uma lanugem que cai mais tarde, antes do nascimento.

Isto vem a propósito da treta criacionista que os desenhos de Haeckel mostram como «os defensores da evolução vêm forjando suas fraudes, com intuito de criar evidências que sustentem a Teoria da Evolução das Espécies, proposta por Charles Darwin, e de que maneira vergonhosa tais fraudes, bastante conhecidas, perpetuam-se em livros didáticos, com intuito de fundamentar uma teoria que não foi comprovada»(1). É treta, em primeiro lugar, porque não se perpetua a teoria Haeckel em livros didácticos. Por exemplo, no livro “Evolution”, de Douglas Futuyma, um dos mais usados no ensino da evolução ao nível universitário, Haeckel tem menos de um parágrafo. E é para dizer que a sua teoria já tinha sido desacreditada no final do século XIX. E, em segundo lugar, porque a teoria de Haeckel não é evidência da teoria da evolução como a conhecemos hoje. Era um resquício de lamarquismo, e apenas mais uma de muitas ideias que não sobreviveram à competição com a teoria que Darwin iniciou.

É pena que, apesar de o papaguearem tantas vezes, os criacionistas não aprendam com este incidente de Haeckel. Aldrabou, mas quando confrontado com as evidências admitiu que tinha forjado os desenhos. Infelizmente, não me parece que o Mats, o Ronaldo ou outros criacionistas vão admitir que erraram, que os desenhos de Haeckel nem favorecem a teoria da evolução nem são apregoados como tal nos livros modernos. E o que Haeckel fez demonstra como o nosso testemunho é influenciado pelas nossas expectativas. Por sorte, foi acerca de embriões de galinha e salamandra, que outros puderam observar e notar as aldrabices. Mas se em vez de desenhos de embriões Hackel tivesse inventado um disparate qualquer acerca da criação do mundo ainda havia gente a jurar que as palavras dele eram a Verdade Infalível.

A ciência descobre fraudes porque os cientistas estão dispostos a duvidar, testar e mudar de ideias quando as evidências o justificam. Quem se convence que tem uma fonte infalível de verdades não fica imune à fraude ou ao engano. Fica apenas incapaz de os ver.

1- Ronaldo Xavier, Fraudes Evolucionistas (Parte I), via Darwinismo, o blog do Mats.

domingo, agosto 16, 2009

Treta da semana: é proibido copiar, dizer, e até ler.

Este resumo não está disponível. Clique aqui para ver a mensagem.

quarta-feira, agosto 12, 2009

Mais um...

A propósito da treta desta semana, o Orlando Braga declara «desmontado o argumento da “não-obrigação reprodutora” defendida pelo escriba.»(1). O escriba sou eu e o Orlando, parece-me, é um optimista.

Segundo o próprio, desde 2003 contribui «para que os ataques culturais gayzistas no nosso país não fossem imprevisíveis.» Deve ter sido por isso que não nos apanharam de surpresa opoondo uma lei que os discrimina. O Orlando enuncia alguns «níveis de aprovação» do “gayzismo”, e coloca-me logo no primeiro, «na teologia secularista, que conglomera os ateístas, os naturalistas, a maçonaria e os marxistas; estes são os homófilos por conveniência política, usam os gays como carne para canhão;»

Curiosa estratégia, esta de atacar com a bandeira branca. Apontar a teologia como ponto fraco não favorece a causa religiosa. Mas o Orlando revela mais dificuldades semânticas. Por exemplo, sugere que opor a discriminação legal é sacrificar os gays como “carne para canhão”. E, mais adiante, acusa-me de não «reconhecer a diferença entre “obrigação” e “dever”. Um casal não tem a obrigação de ter filhos, mas tem o dever de os ter. […] A obrigação pode ou não existir na lei; o dever existe na ética que a lei respeita e deve sempre respeitar e incluir.» Nem o dicionário me safou desta confusão: «obrigação, s. f., 1. Dever.» Suspeito que, apesar das aparências, o Orlando não escreve na mesma língua que eu. E.g.: «Os casais que ou porque passaram a idade da fertilidade ou porque são inférteis, estão isentos desse dever por razões biológicas e não por razões naturais.» E ainda, «A lei garante o direito à não-obrigação de procriar ao mesmo tempo que consagra o dever da procriação;» E assim por diante. Por isso deixo esta parte do texto para quando encontrar um dicionário Tretoguês-Português.

Mais interessante, porque se entende, é alegar que eu minto ao dizer que a lei prejudica os casais homossexuais. «A lei 7/2001, revista este ano pela AR, permite a todas as pessoas que vivam em união-de-facto os direitos de visita ao hospital ou a qualquer instituição , heranças, decisões médicas, etc. Portanto, o escriba mente.» Mas a união de facto só se aplica aos casais que vivam em conjunto há mais de dois anos, enquanto que o casamento tem efeitos assim que se assina o papel. E a união de facto não confere o estatuto de herdeiro, reservado apenas ao cônjuge. Em união de facto só se pode ser legatário do companheiro, o que tem de estar expresso no testamento e pode ser considerado nulo em certos casos. Além disso, legatário qualquer um pode ser. E provar que se está casado com alguém é muito mais simples que provar que vivem juntos há mais de dois anos. Principalmente numa emergência médica, por exemplo. Por isso devo dizer que, nisto, não me parece que o mentiroso seja eu.

De resto, o Orlando corre em círculos à volta do que importa. O que está em causa é uma lei que proíbe ou permite em função do sexo das pessoas envolvidas. Os casamentos, os homossexuais, os Orlandos e essas tretas são meros detalhes. O que importa é que a lei não tem legitimidade de nos discriminar pelo sexo. Defender o casamento homossexual é apenas uma consequência de respeitar cada pessoa. E quem defende esta lei absurda fá-lo porque põe tradições e ideologias abstractas acima das pessoas. O que é aparente quando o Orlando me acusa de ser contra a tradição, como se isso tivesse algum mal por si. E quando defende que a cada direito que alguém tenha deve corresponder «um dever recíproco e biunívoco», um princípio tão apregoado quanto disparatado.

A cada direito corresponde um dever, é certo, mas apenas porque o direito e o dever são os dois sentidos daquela relação. A cada direito que os meus filhos têm por serem filhos corresponde um dever meu por ser pai. E em relações simétricas, como num casal, direitos e deveres são recíprocos. Mas isto não é verdade em relações assimétricas. Os meus filhos não têm para comigo deveres equivalentes aos seus direitos, por exemplo. E a relação entre o individuo e a lei é ainda mais assimétrica. Não só porque a lei é muito mais poderosa mas, especialmente, porque a lei só tem valor por servir aos indivíduos. Muitos se esquecem que leis e tradições não são pessoas, não valem por si e só faz sentido protegê-las enquanto nos forem úteis.

É a fraqueza de carácter que faz esquecer isto. Não no sentido meramente depreciativo, e metafórico, com que designamos alguém que é mau. Mas no sentido literal, mais neutro, de alguém a quem a dificuldade em se reconhecer como indivíduo obriga a identificar-se por uma tradição ou ideologia. Alguém que em vez de ser ele próprio tem de ser «português, portuense, portista, nacionalista, monárquico, conservador, cristão»(2), por exemplo. Quem é assim teme os que se afirmam como individuos diferentes dos outros, prejudica pessoas em prol de conceitos abstractos e defende a “tradição” como se uma estupidez velha fosse menos estúpida por isso. Mas não é por maldade nem de propósito. É apenas porque, quando se olha ao espelho, não consegue ver eu. Só vê mais um daqueles.

1- O argumento da “não-obrigação” da reprodução no casamento. No blog “Perspectivas”. É verdade. Há com cada coisa...
2- Perspectivas, Autor

terça-feira, agosto 11, 2009

Bom e barato, X

A propósito do Gmail e da segurança da informação na “nuvem” (1), aqui ficam umas sugestões para a alternativa. Eu tento proteger os computadores contra infecções e ataques, levo a informação que preciso comigo em vez de a confiar a servidores online e tenho várias cópias actualizadas dos meus documentos para quando o hardware falhar.

Para proteger o computador uso o antivirus Avast! e a firewall Outpost da Agnitum. São ambos gratuitos, e apesar do Avast! exigir um registo anual, com o Mailinator não é preciso dar o nosso email. Gosto destes porque são leves, estáveis e versáteis. Pode-se instalar e esquecer ou, quem quiser, pode afinar uma data de opções. O Avast! tem módulos independentes de monitorização para email, chat e assim por diante. Eu desactivo todos menos a protecção da rede e da Web e, de vez em quando, ligo a protecção de acesso aos ficheiros.

O Outpost também é fácil de usar. Uma firewall protege o computador de maroscas remotas e, talvez mais importante, controla os programas que acedem à rede. Ao instalar é preciso avisar que o Avast! está instalado, para não haver conflitos, e quando algum programa acede à rede o Outpost avisa e pergunta se há de autorizar. Mas sugere regras adequadas para os programas mais comuns e, uma vez autorizados os programas que usamos, como browsers ou clientes de email, já só deverão aparecer novos avisos se instalarmos versões diferentes. Caso contrário, é porque algum programa está a tentar ligar-se às escondidas.

Com firewall, antivirus, e evitando abrir anexos de emails “CHEKC IT OUT!!!” enviados por algum “spamm2255”, é fácil manter os dados seguros contra ataques electrónicos. Ataques físicos exigem outro tipo de protecção mas, além de cadeados e portas, também nisto o software livre ajuda. Para guardar a maioria das passwords uso o Password Safe, que cria uma base de dados encriptada com os nomes de utilizador, palavras passe e endereços dos sítios onde nos autenticamos. Tem também um gerador aleatório de passwords, útil para resistir à tentação de usar a mesma em todo o lado. Com o Password Safe posso levar as passwords sem problemas.

E para proteger documentos, emails e outros ficheiros uso o TrueCrypt. A forma mais simples de o usar é para criar um ficheiro encriptado que pode ser montado como se fosse um disco ou partição. Quando montado, podemos copiar para lá quaisquer ficheiros ou abrir e editar os documentos lá guardados. Mas para montar o ficheiro encriptado é preciso introduzir a frase secreta que escolhemos para o criar, sem a qual não é possível decifrar o conteúdo. No portátil e discos que transporto fora de casa tenho estes contentores encriptados para os documentos privados. Quem quer mais segurança deve encriptar toda a partição do sistema operativo, porque este guarda informação acerca dos ficheiros que abrimos e pode guardar partes da memória dos programas que usamos. Mas quando a coisa mais secreta são emails e enunciados de exames não é preciso tanto. E se perder um pendisk ou me roubarem o portátil sempre fica a garantia que não conseguem ler os meus emails ou gozar com as fotos que tirei nas férias.

Protegido contra ataques pela rede e assegurada a privacidade dos documentos, resta estar preparado para quando o hardware falhar. Chamo a atenção para o erro de julgar que este “quando” é um “se”. É mesmo quando. Contem com isso. E para saber se está na altura de criar uma cópia de segurança pensem que é agora que o computador pifa e perdem tudo. Se isto assustar não adiem mais.

Um sistema RAID* é muito prático. Mas como os documentos que criamos tendem a ser uma fracção pequena do espaço total de disco, isto é mais para quem trabalha com vídeos, imagens ou outras coisas com ficheiros muito grandes. Para a maioria, é mais rentável trabalhar com os documentos num disco e manter uma cópia actualizada noutro disco**, que pode ser um disco externo, se bem que a transferência por USB seja mais lenta que entre dois discos internos.

Para isto pode dar jeito o WinMerge. Compara duas pastas, indica que ficheiros são diferentes e permite, com um click do rato, actualizar uma pasta com os ficheiros da outra. Com isto é só preciso ter alguns discos externos ou internos (ambos, de preferência) para manter cópias actualizadas e, de vez em quando, ir gravando para DVD para ter um historial das várias versões. A frequência e outros detalhes dependem das preferências e exigências de cada um e do tipo de trabalho que se faz. Mas a bitola é sempre a chatice que seria perder esses ficheiros.

* O redundant array of inexpensive disks usa vários discos como um só, ou distribuindo os dados para reduzir o tempo de acesso ou duplicando-os para resistir à falha de um dos discos, que até pode ser substituído sem interromper a utilização do sistema em implementações mais sofisticadas. Hoje em dia muitas motherboards permitem criar sistemas RAID, e há placas dedicadas por cerca de 20 ou 30 euros. O custo principal, num sistema RAID 1, é ter dois discos para usar só o espaço de um, pois toda a informação é duplicada.
** Dois discos diferentes e não duas partições do mesmo disco, que não adianta de nada se o disco tiver uma morte súbita.


1- Porque não uso o Gmail e Nas nuvens

domingo, agosto 09, 2009

Treta da semana: casar é para ter filhos.

O Tribunal Constitucional (TC) decidiu, com dois votos contra e três a favor, que proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é inconstitucional. Isto levou vários jornais a anunciar a inconstitucionalidade do casamento homossexual. Como notaram no Pente Fino, declarar constitucional a lei que temos não torna inconstitucional todas as alternativas. «O CM diz TC chumba casamento gay, o Público diz Tribunal Constitucional diz não ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o Diário Económico diz Tribunal Constitucional chumba casamento entre homossexuais, etc. Tudo disparates» (1). Mas essa é a treta do costume na comunicação social. Este post é sobre a decisão.

Foi posta em causa a constitucionalidade do artigo 1577º do Código Civil (CC), «Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida», fundamentando-se no número 2 do artigo 13º da Constituição (CRP), «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual», e no número 1 do artigo 36º, «Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade».

Um dos fundamentos para a decisão do TC é que «nada obsta a que as recorrentes, mesmo sem a celebração jurídica do casamento, pudessem ou possam constituir "família".»(2) As aspas varrem o essencial para debaixo do tapete, pois é pelo casamento que duas pessoas constituem uma família. O problema da Teresa Pires e da Helena Paixão é ser-lhes vedado o reconhecimento legal da família que elas, as duas, querem constituir. O que não é meramente simbólico. Assim que casei, a minha esposa passou a ser o meu familiar mais próximo, uma relação reconhecida formalmente e legalmente em muitos contextos como direitos de visita no hospital, heranças, decisões médicas se eu estiver incapacitado e assim por diante. Ao contrário do que o TC afirmou, a lei vigente obsta a que ás recorrentes seja reconhecida essa relação.

O outro argumento do TC é a tradição, social e jurídica, do casamento como sendo entre sexos diferentes. Mais uma deflexão, pois o que está em causa é precisamente a constitucionalidade de legislar de acordo com essa tradição. Uma das funções da CRP é proteger-nos de tradições ou outras tendências que violem os nossos direitos fundamentais. E, nisto, o acordão do TC até se contradiz. Por um lado justifica a sua decisão dizendo que o legislador optou por «entender o casamento como uma instituição social […] enquanto união entre homem e mulher, designadamente assente na função que lhe cabe na reprodução da sociedade». Mas isto poucos parágrafos depois de reconhecer como «inaceitável à luz da Constituição, que o estabelecimento de uma qualquer conexão entre o casamento e a procriação passasse pela imposição desta última aos cônjuges.» Se admitem ser inconstitucional que a lei exija uma “função reprodutora” deviam também reconhecer ser inconstitucional que a lei exija a diferença de sexo como um fantoche dessa função à qual a lei devia ser alheia.

Há que reconhecer que esta treta só veio de três dos cinco membros do TC. As declarações de voto dos dois vencidos são bastante menos demagógicas e mais consistentes. Mas é triste que os outros três tenham conseguido impor à leitura da Constituição os seus preconceitos pessoais. E é preocupante que subordinem a Constituição às tradições viciadas da nossa sociedade, quando o papel principal da Constituição é proteger-nos daquele mal que se faz com a desculpa que sempre assim se fez.

1- A Pente Fino, P implica Q não é a mesma coisa que não-P implica não-Q. Obrigado ao Mário Miguel pelo link.
2- O Advogado do Diabo, O Acórdão do Tribunal Constitucional

sexta-feira, agosto 07, 2009

Vale a pena.

Vários religiosos, tanto amadores como profissionais, me têm dito que as minhas críticas às suas respectivas religiões são fúteis. Que não vale a pena criticar a religião da forma como eu critico. O que me parece estranho logo à partida. Se eu andasse a distribuir revistas sobre o ateísmo de porta em porta compreendia que dissessem não valer a pena estar a incomodar as pessoas e a estragar papel. Ou se o governo pagasse salários a ateus só para falarem de ateísmo em hospitais até concordava que era dinheiro mal gasto. Isso é coisa para cada um fazer por sua conta e não um serviço prestado ao estado. Mas eu não faço nada disso. Escrevo num blog, só lê quem quer, e se falo destas coisas em público é porque me convidam para o fazer. Parece-me estranho que se comente um post que não vale a pena só para dizer que não vale a pena.

E discordo da justificação. Dizem que as minhas criticas são fúteis porque só critico caricaturas da religião. Mas isto ignora a diversidade de crenças e a diversidade de maneiras de se aproveitarem delas. Há muita gente que se arrasta de joelhos julgando que isso convence Maria a ajudá-los. Há quem gaste dinheiro em velas e pernas de cera, quem reze aos santinhos, quem acredite que a Terra foi criada há umas dúzias de séculos e assim por diante. Para cada religioso há muita coisa que é caricatura – todas as outras religiões, por exemplo – mas também há muita coisa que não é. E os profissionais de cada religião tendem a opor as “caricaturas” mais por conveniência que por princípio. Por exemplo, os sacerdotes católicos opõem o criacionismo evangélico mas não a idolatria em Fátima. É inescapável a suspeita que o que distingue estes casos é um fazer perder clientes enquanto o outro dá lucro.

Além disso, as “caricaturas” são apenas exemplos. Sintomas. Não são o problema em si. Se alguém acredita que Jesus nasceu de uma virgem ou que Noé levou aquela bicharada toda no barco, é lá consigo. O problema começa ao afirmá-lo como verdade, o que acarreta a responsabilidade de aplicar critérios coerentes na distinção entre o que se considera verdadeiro e o que se considera falso. Esta diferença importante entre crença e verdade é deliberadamente ignorada pelas religiões.

A crença é um estado pessoal que só diz respeito ao crente. Mas a verdade é algo partilhado, supostamente objectivo e igualmente válido para todos. Uma crença verdadeira supõe-se mais legítima que outras que não se saiba sê-lo. E daí vem uma responsabilidade adicional. Quando um crente afirma que crê, pouco me importa. Mas quando afirma que aquilo em que crê é verdade fico curioso em saber como chegou a essa conclusão. E se me diz que sabe que é verdade só porque acredita então vale a pena apontar que a mera crença não chega para que uma hipótese corresponda à realidade.

Este problema agrava-se quando o erro é cometido por uma autoridade, como um padre, ou por quem quer propagar a sua fé, como os evangélicos costumam fazer. Porque, neste caso, deixa de ser apenas um erro do crente e passa a enganar os outros. A crença pode ser sincera, mas crença não é conhecimento e, ao afirmá-la como verdade, está a fingir saber aquilo que não sabe. Isto é óbvio no literalismo bíblico dos evangélicos, por exemplo. Dizem que a sua interpretação da bíblia é infalível quando as evidências sugerem o contrário. Mas a teologia dos católicos sofre do mesmo problema, mesmo que mais disfarçado. Por um lado dizem que Deus é incompreensível, para além do tempo e do espaço e da imaginação humana. E, por outro, dizem saber que veio à Terra, que nasceu de uma virgem, que quer isto, manda aquilo, reprova o outro e faz trinta por uma linha. E tudo apenas porque acreditam.

É isto que vale a pena apontar. Não a crença em si que, desde que não incomode ninguém, também não me preocupa. Mas o erro, logro ou desonestidade de afirmar ter conhecimento de um facto quando só se tem crença, sem qualquer evidência relevante. Não peço dinheiro para ir dizer isto aos doentes nos hospitais nem vou de porta em porta com revistinhas na mão. Mas acho que vale a pena chamar a atenção, a quem se interessar, que aquilo que as religiões afirmam como verdade são coisas que os religiosos não sabem. Especulam, crêem, julgam que é verdade mas não sabem, e nem têm nada que justifique concluir que a sua religião é mais verdadeira que as outras.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Filtragem de comentários.

Actualizado a 16-4-2012: Agora há uma lista adicional para apagar por completo os comentários dos comentadores listados. Por omissão está vazia, mas basta acrescentar lá os nomes que se quiser (variável Remove): daqui descarregar nova versão.

Actualizado a 14-4-2012: Já funciona com os novos comentários do Blogger. Obrigado ao JC pelas sugestões para o código. É só descarregar daqui e substituir.

Actualizado a 13-9-09: Alterei o script para funcionar com os comentários incluidos na página de cada post. Quem já instalou a versão anterior pode descarregar novamente daqui e substituir.

O spam de alguns comentadores, mais no singular que no plural, tem dificultado o debate neste blog. Por causa deste problema, no De Rerum Natura decidiram suspender os comentários (1). Como aqui não quero tratar a constipação decapitando o paciente, proponho uma alternativa.

Alguns browsers permitem usar scripts que formatam as páginas que estamos a ver. A alteração é apenas local, no computador de quem instalou o script, não alterando nada no servidor que fornece a página. Aproveitando isto criei um script para filtrar comentários aqui no Que Treta!

Esta versão filtra apenas um comentador (para efeitos meramente ilustrativos, claro) e está restrita a este blog. Mas quem quiser pode alterar facilmente o script para funcionar com todos os blogs que usem o sistema de comentários do Blogger, e acrescentar ou alterar os nomes no filtro. As instruções estão no código do script, que está nesta página do Userscripts.org. As instruções de instalação dependem do browser.

Nota: por questões de segurança, nunca devem instalar scripts em que não tenham confiança. Basta um conhecimento básico de JavaScript para ver que este é inofensivo, mas quem não conseguir ver o que o script faz olhando para o código deve esperar pela opinião de outros utilizadores que o possam avaliar. Não é que eu desconfie dos meus scripts, mas a regra é suficientemente importante para desaconselhar excepções.

Firefox
Antes de instalar o script é preciso instalar o Greasemonkey. Se já tiverem o Firefox com o Greasemonkey, basta clicar o botão “Install” na página do script e depois confirmar a instalação na janela que aparece.
Obrigado ao comentador anónimo que me ajudou a pôr isto no Firefox

Opera
Carreguem com o botão da direita no “Install” da página do script, escolham a opção de gravar o ficheiro e gravem-no na vossa pasta de scripts. Se nunca tiverem usado scripts no Opera, criem uma pasta nova. Por exemplo, My Documents\UserScripts. Tanto faz qual é a pasta desde que se lembrem onde está. Em Tools – Options – Advanced – JavaScript Options, com o botão “Choose” escolham a pasta onde guardaram o script. Precisam também activar a opção User Javascript on HTTPS. Basta seguir o link anterior (este link só funciona no Opera), marcar a caixa e premir o botão “Save” no fim da página antes de a fechar. A primeira vez que virem comentários no blog o Opera vai pedir que confirmem que querem executar o script numa ligação segura. Basta escolher “Yes”, e a partir daí corre tudo em automático.

Editado a 18-11-2010: No Opera 10 o JavaScript Options está em Tools, Preferences, Advanced, Content.

Internet Explorer
O melhor é instalar o Opera ou o Firefox e seguir as instruções acima...

Safari (não testado)
Segundo esta página é possível correr estes scripts no Safari usando o Greasekit:
How to run Greasemonkey scripts in Safari

Chrome (acrescentado a 18-11-2010)
Segundo o Barba Rija, o script funciona no Chrome sem problemas. Obrigado pelo teste.

Alterações
Podem editar o script com um editor de texto como o Notepad, e convido os leitores interessados a melhorar o código, enviar instruções para outros browsers, sugerir alterações e assim por diante. Como tudo neste blog, o script é para todos. Estejam à vontade se o quiserem adaptar para os vossos blogs.

Este post fica em aberto para ir actualizando conforme surgirem novidades.

Post-scriptum
Para evitar as queixinhas do costume, saliento que isto não é censura da minha parte. Não estou a apagar comentários nem a bloquear comentadores. Mas defendo que quem lê este blog, ou qualquer outro, tem direito de decidir onde quer perder o seu tempo. Se há comentários que sistematicamente incomodam, é legítimo que os filtre. Estou apenas a dar a cada leitor uma ferramenta que facilite o exercício desse direito.

Dito isto, aviso também que não vou aceitar tentativas de privar os leitores desse direito. Apagarei, sempre que tiver disponibilidade, comentários sob pseudónimos deliberadamente alterados para fugir aos filtros e, se este sistema levar a um aumento significativo de comentários anónimos, passarei a aceitar apenas comentários de contas registadas no Google.


1- De Rerum Natura, Interrupção de comentários.

terça-feira, agosto 04, 2009

Uma “filosofia” diferente.

Aos vendedores de terapias alternativas é útil a ideia que os seus remédios e mezinhas não podem ser comparados com a medicina. Mas normalmente defendem-no de forma subtil, disfarçadamente. Por exemplo, o “Dr” Pedro Choy explica que «Não é possível a um médico formado na Medicina do Ocidente fazer um diagnóstico ou um tratamento de Medicina Chinesa, pois a diferença entre as formações é abissal»(1). Ou seja, se eu me queixar de alguma maleita e for a um médico posso pedir a outro uma segunda opinião. Afinal, a maleita é a mesma. Mas se vou a um acupunctor fico já avisado que nenhum médico vai sequer perceber o que o acupunctor recomenda. Coitados dos médicos. Anos a estudar o que pensavam ser medicina e afinal era só medicina do ocidente, válida apenas para meio mundo.

Recentemente, num diálogo com um leitor que alegou ser acupunctor e a quem pedi referências demonstrando a eficácia da sua arte, a afirmação foi mais explícita, talvez encorajada pelo anonimato: «nem eu nem colega meu algum tem que lhe provar o que quer que seja. Só exigem bases científicas unicamente com o propósito de tentar achincalhar quem honestamente trata e respeita os doentes como seres humanos que são.»(2) Se querem tratar os doentes com respeito, o mínimo que se exige é alguma evidência que essas terapias funcionam. A convicção que podem prescrever tratamentos sem ter de justificar nada a ninguém é desonesta e potencialmente perigosa. E assenta numa premissa errada.

Não é verdade que a acupunctura, por exemplo, seja fundamentalmente diferente da medicina a que chamam “ocidental”. É certo que assume coisas que a medicina moderna rejeita, como haver um fluxo de Qi pelo organismo e os seus bloqueios provocarem doenças. Mas a história da medicina está pejada de hipóteses como essa, de resto muito semelhante à teoria dos humores. Tal como hoje muita gente leva picadelas para harmonizar o fluxo de Qi, também há uns séculos muitos eram sangrados para harmonizar o sangue com a bílis e a fleuma. O negócio das terapias alternativas assenta na repescagem de hipóteses que a medicina já rejeitou, com algumas alterações cosméticas para vender melhor nesta nova era (as agulhas são esterilizadas, não vá uma bactéria infectar o Qi).

A grande diferença está na abordagem do problema. A patologia humana é muito complexa e, à falta de uma banha de cobra que trate tudo, os médicos têm de se especializar. Mas especializam-se no que é constante. Os pulmões, coração, nervos, ossos e assim por diante, que serão aproximadamente o mesmo ao longo da carreira do médico. Em contraste, um médico que se forme hoje não está à espera de usar exactamente as mesmas técnicas e medicamentos daqui a trinta anos. A medicina progride com o aprofundar do conhecimento e o melhorar da tecnologia. Por isso vamos ao pneumologista e ao cardiologista em vez de irmos ao comprimidologista, estetoscopista ou seringuista.

Nas “medicinas” alternativas passa-se o oposto. Cada praticante especializa-se na sua técnica e essa serve para tudo. O iridologista diagnostica tudo olhando para a íris, o quiroprata trata tudo alinhando as vértebras e o acupunctor livra-nos de qualquer maleita com meia dúzia de picadelas. Nem é preciso acabar a licenciatura em medicina. Tira-se um curso de medicina tradicional em Marselha e pronto, cura-se mais coisas que qualquer dúzia de especialistas com décadas de estudo e experiência. E não é preciso provar nada. Basta convencer os clientes a pagar pelo serviço.

Há muito a dizer das seguradoras. O que querem é o nosso dinheiro, é preciso atenção às letras miudinhas nos contractos e quando chega a altura de pagar tentam sempre esquivar-se. Mas, mesmo assim, quem se quiser acautelar contra um imprevisto faz melhor investir num seguro que num astrólogo. Com a medicina é o mesmo. Os médicos não são anjos, as farmacêuticas são negócios e há que ter cuidado com asneiras e trafulhices. Mas é melhor recorrer a quem estuda os problemas a fundo e presta contas pelo que faz do que àqueles que se convenceram que conseguem resolver tudo e que julgam não dever explicações a ninguém.

1- Clínicas Dr Pedro Choy Medicina Chinesa
2- Comentário em Treta da Semana: Kevin Trudeau

segunda-feira, agosto 03, 2009

Nas nuvens.

Esta rede de milhões de computadores tem um enorme potencial, uma nuvem de recursos de armazenamento, distribuição e computação onde podemos guardar informação, pesquisá-la, organizá-la e colocá-la ao alcance de todos. E é isso que devemos fazer. É uma tragédia que a lei o proíba, em muitos casos, concedendo monopólios legais sobre cópia e distribuição mesmo quando é para uso pessoal e sem fins comerciais. Não tem efeitos tão dramáticos como a guerra, a fome ou os muitos problemas da economia, mas é trágico por ter uma solução trivial. Basta que a legislação isente de copyright o uso não comercial para tornar a Internet numa biblioteca global onde tudo o que esteja publicado fique à disposição de todos.

Por isso sou a favor que se partilhe. Em blogs, P2P, YouTube e Twitter, tudo o que sirva para comunicar o que criamos e partilhar o que pensamos, temos, sabemos ou gostamos. Informação, ficheiros, o uso do nosso processador em redes de computação distribuída ou simplesmente o nosso espaço em disco em redes de partilha de ficheiros. Para tudo o que queremos partilhar esta “nuvem” é excelente, e devemos pressionar os legisladores para que se possa tirar o máximo partido deste meio de comunicação.

Mas não serve para o que queremos guardar para nós ou para o que seja privado, e muitos cometem o erro de confiar à nuvem os seus documentos pessoais, vídeos, fotos, email ou até as suas compras electrónicas. Recentemente a Amazon surpreendeu alguns clientes retirando-lhes do Kindle cópias do 1984 e Animal Farm. Estas pessoas confiaram num sistema em que aquilo que compram não fica seu, como acontece normalmente. O que lhes é vendido é uma licença de utilização e um ficheiro que ainda fica sob o controlo do vendedor. Os livros comprados para o Kindle não podem ser vendidos em segunda mão, emprestados, trocados por outros e, pelos vistos, a Amazon até pode revogar a venda, reembolsando os compradores e apagando os livros sem os clientes terem qualquer escolha (1).

A Paris Hilton e muitos na sua lista de contactos descobriram outro problema de guardar informação online. Nem foi tanto por ter passwords mal escolhidas ou pelos defeitos técnicos do sistema de segurança, se bem que podia ter sido. Neste caso, o problema foi que confiar os dados pessoais a uma empresa deixa-os à mercê de empregados aborrecidos, mal informados e desmotivados. O ordenado dos empregados da T-Mobile não chega para que se importem com a privacidade dos clientes do patrão ou a segurança do sistema (2).

A ideia de aproveitar a “nuvem” é evitar o investimento em infraestrutura, pagando apenas pelo serviço de armazenamento, largura de banda ou poder de computação. A Paris Hilton tinha fotos, vídeos e listas de contactos nos servidores da T-Mobile. Quem tem o Kindle pode guardar os seus livros nos servidores da Amazon e lê-los de onde quiser.Com o Gmail não é preciso guardar as mensagens antigas no disco nem fazer cópias de segurança. É cómodo e barato usar a infraestrutura que já existe na nuvem. E quando se trata de algo partilhado por todos e cuja preservação interesse a muitos, guardá-lo na nuvem é claramente a melhor solução. Seria um disparate cada utilizador da Wikipedia ter a sua cópia pessoal no disco. Ou na prateleira, como se fazia com as enciclopédias antigas.

Mas com informação pessoal esta comodidade acarreta riscos. O mais óbvio é o de alguém adivinhar a password, um risco que muita gente subestima. Mas há outros. Falhas no sistema de segurança, acesso indevido por parte de quem mantém o sistema ou conseguiu enganar quem mantém o sistema, venda da infraestrutura a outras empresas e assim por diante. Não quero dizer que nunca se deva usar algo o Gmail. o iTunes ou o Kindle, ou que nunca se deva guardar coisas em servidores online. Mas os riscos são difíceis de avaliar, e decidir se a comodidade compensa o risco parece-me muito mais difícil do que a maioria julga ser. Por exemplo, eu sei que o correio electrónico que tenho no meu PC só pode ser lido por agentes do estado com a autorização de um juiz. A polícia não pode vir aqui bisbilhotar só porque quer. Mas não faço ideia que protecção legal teriam as mensagens que eu guardasse nos servidores do Gmail, nem sei que direitos eu tenho, se é que tenho alguns, nessa jurisdição. E suspeito que a maioria das pessoas que usa esse serviço nem sequer pensou no problema.

E a informação na nuvem pode durar mais do que queremos. Há muitos blogs onde pais babados mostram fotos e relatam cada passo, doença, gracinha ou infortúnio dos seus rebentos. Como pai, compreendo a obsessão. Mas há que pensar que esse bebé sorridente vai ser um adolescente inseguro e, mais tarde, um adulto à procura de emprego, a exercer uma profissão, a pagar seguro de saúde e assim por diante. Alguém a quem talvez já não pareça boa ideia ter, ao alcance de todos, um relato tão detalhado da sua infância. E a facilidade com que se põe informação na nuvem esconde a grande dificuldade de a retirar de lá.

Não quero dar a impressão que sou contra a tecnologia. Pelo contrário. Viva a tecnologia. Mas a 'net é uma ferramenta poderosa e qualquer ferramenta poderosa exige cuidados. Como um berbequim. Dá imenso jeito quando sabemos o que fazemos mas não é uma coisa boa para se ir aprendendo com os erros.


Dois bons artigos sobre cloud computing:
Jonathan Zittrain no New York Times, Lost in the Cloud
E Bruce Schneier, no seu blog, Cloud Computing


1- The Register, Amazon vanishes 1984 from citizen Kindles. Obrigado ao Francisco Burnay pela notícia.
2- The Washington Post, Paris Hilton Hack Started With Old-Fashioned Con