sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Legal, 4.

«A Origem do Mundo», pintado em 1866, é um dos quadros mais conhecidos de Gustave Courbet, mestre do realismo. Em Braga, alguém se queixou da púbis da senhora na capa de livros sobre pintura e, por «medida cautelar», os agentes da PSP apreenderam os livros (1). O tribunal depois decidirá se uma senhora despida é pornografia ou não, mas primeiro o que importa é apreender. Entretanto, a justiça usa os nossos impostos para decidir por nós que partes do corpo se pode ver em público.

Em Torres Vedras, também por queixa de um cidadão com pouco que fazer, o tribunal ordenou que a autarquia retirasse da montagem de carnaval uma imagem que presumiu pornográfica. Numa rábula ao Magalhães, o boneco do computador mostrava uma pesquisa por “mulheres” no Google (2). Além do desperdício de recursos, afinal «a queixa foi acompanhada por fotos desfocadas que terão enganado a magistrada, levando-a a pensar que eram imagens pornográficas»(3). Outro bom exemplo de justiça. Em caso de dúvida, censura-se e apreende-se. Depois logo se pede imagens focadas. É triste que a liberdade de expressão valha menos até que uma acusação infundada de pornografia.

Em Itália, um professor do ensino público foi suspenso 30 dias, sem vencimento, por retirar da parede da sala de aula uma imagem de tortura. No final da aula repunha sempre a imagem no sítio, o homem pregado a uma cruz e a morrer em agonia. Não censurou, não apreendeu e não reprimiu. Apenas considerou que a imagem não era apropriada a uma aula, nem como símbolo religioso nem como retrato da crueldade humana (4).

Se numa procissão ou livraria mostram imagens de alguém a morrer crucificado ninguém intervém. E se na sala de aula estiver um poster com alguém despido até exigem que o professor o retire. Mas se o professor não quer imagens de tortura ou a livraria mostra pessoas nuas é caso de polícia.

A Origem do Mundo

Não acho o quadro muito bonito. Parece que o ângulo não favorece a senhora. Mas percebo que não era para ser bonito e reconheço o mérito artístico. E não me incomoda, ao contrário das imagens de um tipo cheio de sangue pregado a uma cruz. Isso parece-me arte de muito mau gosto. Mas gostos não se discutem e aceito que haja quem se excite com coisas que eu não gosto. Não é esse o problema.

O problema é a polícia andar a confiscar livros de pintura ou bonecos de carnaval. O seu trabalho é proteger-nos do crime e não das imagens de mulheres nuas. Com essas posso eu bem, muito obrigado. Principalmente, o problema é esta religião deturpar os valores morais de tal forma que faz proibir a nudez enquanto enaltece a crueldade. Se Deus é amor deve haver símbolos melhores que um homem pregado a uma cruz. O quadro de Courbet, por exemplo.

1- AEIOU (Lusa), 25-2-09, Braga: Livreiro apresenta queixa em Tribunal contra apreensão pela PSP de livro considerado "pornografico"
2- Público, 19-2-09, Carnaval de Torres Vedras: câmara lamenta que PGR censure sátira que não viu
3- Correio da Manhã, 20-02-09, Censurado Carnaval de Torres Vedras
4- BBC, 18-2-09, Italy crucifix row teacher barred
A imagem foi copiada deste post no De Rerum Natura.

22 comentários:

  1. Esta imagem é especialmente interessante de se ampliar no touchscreen do iphone ; )

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  2. Mas se a bófia te vê a passar lá os dedinhos estás tramado...

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  3. Pois, por alguma razão a multa se chama coima.

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  4. Não sei porquê, tenho a sensação que vem aí alguém a dizer que os ateus são uma cambada de pornográficos. E também tenho a sensação de saber quem o vai dizer.

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  5. E deve ter alguma sigla para isso também. O gajo gosta de siglas pra xuxu.

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  6. Larry Flint, Howard Stern, Asia Carrera, Nina Hartley, Rebecca Lord e Bree Olson são ateus e uma cambada de pornográficos. Logo os ateus são uma cambada de pornográficos.

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  7. Krippahl:
    Não confundir nem baralhar: o símbolo da cruz não pretende enaltecer a violência, mas, pelo contrário, chamar a atenção para o atentado contra a vida que ela é. Agora se a prática abastardada da instituição que a usa é outra, isso já é outra coisa. "Cravo vermelho ao peito / a todos fica bem..." e não é preciso dizer mais nada.
    Mas estou de acordo em que "Se Deus é amor deve haver símbolos melhores que um homem pregado a uma cruz. O quadro de Courbet, por exemplo." E isso leva-me a dizer-lhe que a Igreja (qualquer uma) não tem grande medo dos "pornógrafos" ateus, esses, coitados, ainda não viram a luz que ela leva às "massas" que facilmente se trazem ao "caminho" com umas assustadoras promessas de castigos eternos. De quem ela tem medo é, pelo contrário, dos que dizem que, se o divino existe, esse é o aspecto que melhor e mais absolutamente o define. É a contestação "ideológica", a discussão do conceito justificador da sua existência o que os faz tremer. Ou porque é que acha que aquele realizador dinamrquês andou mais de vinte anos a tentar fazer um filme sobre a vida sexual de Jesus Cristo sem nunca conseguir sequer financiadores, mesmo nos meios mais liberais? Ou porque é que os doutos padres se recusaram a olhar pelo telescópio de Galileu?
    Já lhe disse uma vez: não é a negar a existência de Deus que se consegue seja o que for (até porque qualquer prova de qualquer dos lados,pró ou contra, é sempre contestável e nunca definitiva), mas antes pela discussão do que Deus é ou teria ou terá que ser. Se assim não for, todas as arbitrariedades continuarão a ser possíveis.
    Já agora, se tiver pachorra, dê uma saltada ao meu cantinho e veja o que eu digo a propósito do mesmo tema.

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  8. Joaquim Simões,
    «não é a negar a existência de Deus que se consegue seja o que for » (...) «mas antes pela discussão do que Deus é ou teria ou terá que ser.»

    Pelo que já li nos comentários deste blog, noutros blogs e até no Diário de Notícias, pensa-se que quem não acredita num Deus é porque acha que Deus é assim (mau), mas devia ser assado. A crença de que um Deus não existe (ou descrença) não é para obter algo dos outros, mas sim para si mesmo como algo honestamente intelectual numa filosofia céptica. É pessoal.

    E acho que aceitamos que, por exemplo, A Paixão de Cristo seja apropriado a crianças, seja qual for a motivação.
    Parece-me que uma pintura de uma púbis não tem os mesmos efeitos.

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  9. Pedro Amaral Couto:
    A crença ou a descrença num divino é pessoal, diz. Nem mais. E é aí que a discussão, qualquer discussão sobre o assunto deve assentar, se se quiser combater os monopólios ou os açambarcamentos. A relação com o divino é tão pessoal como o é o nascimento: ninguém nasce por outro.
    A Paixão de Cristo é algo aconselhável para as crianças? Não, porque a própria mensagem cristã é, na sua essência, contrária. Que me lembre, Cristo chamou a si as crianças em vida, não depois de ter ressuscitado - os cristãos deveriam lembrar-se disso.
    Quanto ao púbis, bem... afirmam que é obra divina. E se as boas obras devem ser mostradas, o que não dizer das santas...

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  10. Joaquim Simões,

    «Não confundir nem baralhar: o símbolo da cruz não pretende enaltecer a violência, mas, pelo contrário, chamar a atenção para o atentado contra a vida que ela é.»

    Não sei ao certo o que quer dizer com isto, mas se propõe que as imagens da crucifixão têm um papel semelhante às imagens de sinistrados nos avisos para conduzir com prudência, penso que a sua visão é muito pessoal e não está em linha com o dogma cristão.

    A interpretação "oficial", e a forma como esse símbolo tem sido adorado desde o início, enaltece o sacrifício, o sofrimento, e a morte de um inocente como expiação dos pecados de todos os que acreditam que isso os redime. É moralmente ofensivo, a meu ver, mas não sou eu que o digo:

    Catholic Encyclopedia, The true cross

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  11. E uma Gillette? Fazia falta...

    Este quadro seria adequado para casa destas.

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  12. Ludwig Krippahl:
    Essa perspectiva será pessoal, mas não é só minha. Encontra-la-á em muitos dos que, cristãos, foram sendo escorraçados e perseguidos pela instituição. E, provavelmente, em muitos dos que se calaram e permaneceram nela. Lembre-se, por exemplo, da seita de cristãos libertinos a que se suspeita que Hyeronimus Bosch pertenceu. E não foi a única. Veja só os engulhos que a interpretação hippie provocou na altura...
    Ou, noutro plano, tem ideia de quantos altos dignatários católicos confessaram, à hora da morte, que estavam de acordo com Espinosa, por exemplo?
    Mas, para não se ser injusto, terá que se reconhecer que a própria instituição tem sido mais lúcida do que muitos dos seus "fans", ´"sócios" ou "adeptos". Veja o desagrado com que, recentemente, Roma viu o filme do Mel Gibson, "A Paixão de Cristo", exactamente porque põe a tónica no sofrimento e não no seu significado teológico.
    E esse, repito, é que é necessário pôr em discussão.
    Quanto à ideia de ter que ser um inocente a pagar pelos erros alheios, bem!, tem a humanidade cheia de rituais desses, inclusivé no Mediterrâneo contemporâneo de Cristo.
    É imbecil? É imoral? É, claro!, mas o que interessa é saber qual a raiz mais funda disso tudo. Não será de admirar que a teologia cristã o considere, como tal, a maior das imoralidades, aquela que faz a humanidade "bater no fundo", porque assassina o próprio autor da vida. O que nos choca não é isso, repare: é o "tinha que ser assim", que os teólogos lhe acrescentam.
    Não sei se o que escrevi está muito claro. Mas, por agora, não tenho tempo nem para o corrigir nem para continuar. Espero, pelo menos, ter deixado algumas pistas.
    Fique bem.

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  13. Já agora:
    Mário Miguel:
    Com ou sem gilette.

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  14. Joaquim Simões,

    A do quadro, claramente, necessitaria, a meu ver, de uma Gillette, claramente. Aparadinha como manda os regulamentos.

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  15. Para terminar por hoje
    Mário Miguel:
    Ao meu espírito explorador não desagradam as florestas. Mesmo virgens. O urbano tem as suas virtualidades, mas, por vezes, no meio da sofisticação também se perdem coisas e outras tornam-se em variações rotineiras.
    Mas o que sei eu?
    Em suma, divirta-se.
    E amanhã é segunda-feira.

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  16. Joaquim. Eu por mim concordo com tudo o que disse. Mas existe algo que deixou por dizer. É que é válido a uma pessoa pagar as dívidas de outrem. Se o desejar, e se for realmente amigo. É válido a uma pessoa dar a vida por outrem, colocando-se no lugar dela, de várias maneiras.

    Será válido no entanto alguém ficar com os nossos pecados? Será moral? Não haverá ainda uma enorme réstia de "teologia" da idade do bronze na ideia de um cordeiro de deus que se mata como a um bode expiatório, para remissão de nossos pecados?

    Deixo isto como questões a desenvolver.

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  17. Curiosamente só há aqui comentários de homens, porque será?

    Bom adiante.

    Primeiro tenho de dizer que estou completamente de acordo quando dizes "Parece que o ângulo não favorece a senhora." Claramente não a favorece de todo.

    Também tenho de concordar completamente com o Mario Miguel, uma ida à esteticista era fundamental e tornaria o "ângulo" bem mais apelativo.

    Quanto ao caso propriamente dito é tão ridiculo e tão enunciador do estado das coisas que não acho que valha a pena o esforço de teclar.

    PS: Noto que faltam aqui os comentários despropositados do DR. Será que teve medo da fotografia?

    beeijos

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  18. Ludwig

    Curiosamente os comentários centraram-se na pornografia e na religião e passaram ao lado da verdadeira treta de que falaste: a justiça a preocupar-se celeremente com porcarias que não interessam ao menino Jesus nem à vaquinha do presépio quando deixa a amadurecer/apodrecer outras mais graves e que envolvem dinheiro.

    Como aquela a que eu serei chamada a tribunal, 4 ou 5 anos depois de a coisa ter acontecido e envolve MUITO dinheiro. E desconfio que não vai ter consequências que não perder o meu tempo, o meu dinheiro, o dinheiro dos impostos e o dinheiro do patrão por ter que faltar ao trabalho para ir a julgamento, o que será gravíssimo!

    Fora isso, a censura é um problema muito grave e estamos a ver casos a mais dela. E tem que se fazer qualquer coisa acerca disto, porque não podemos voltar a tempos de que não nos queremos recordar. Sinceramente prefiro ver mais gajas nuas na televisão que juízes a dizer que isso não pode ser. Só tenho um pedido: também quero gajos nús na televisão! E aparadinhos também (isto não pode ser só para as gajas!)!

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  19. "Curiosamente só há aqui comentários de homens, porque será?"

    Joaninha,
    mas isso e claro: é porque estão muito mais capacitados do que as mulheres para a análise estético-intelectual da Arte e a defesa da liberdade de expressão. Só isso ;-)
    Cristy

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  20. Joaninha,

    «Noto que faltam aqui os comentários despropositados do DR. Será que teve medo da fotografia?»

    Dá que pensar. Se calhar vale a pena o esforço e o sacrificio de pôr em cada post uma passarinha para afugentar essa passarada :)

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