quarta-feira, dezembro 31, 2008

Para que serve a arte.

Em 1906, John Philip Sousa, um famoso compositor de marchas militares nos EUA (1), submeteu ao congresso uma petição para abolir as “máquinas falantes” que, temia, iriam «arruinar o desenvolvimento artístico da música» nesse país. Proibir a gravação de músicas seria um disparate mas a preocupação de Sousa tinha fundamento. «Quando eu era um rapaz... em frente a cada casa nos serões de verão os jovens cantavam as canções da época ou canções antigas. Hoje ouve-se essas máquinas infernais a tocar noite e dia.» A indústria da gravação e cópia e as leis que a protegem mudaram radicalmente a nossa forma de criar e usar a arte.

Desde o paleolítico que a arte foi uma forma particularmente humana de comunicar com os outros. No tempo do John Sousa os compositores eruditos citavam os colegas, copiando trechos conhecidos e inserindo-os numa composição. Tal como se faz nos textos escritos. Os músicos populares adaptavam letras e melodias à sua região e alguns estilos musicais, como os blues, eram notoriamente colaborativos, com cada músico aproveitando temas, frases ou mesmo músicas inteiras dos outros. A música fazia parte da cultura. Era algo partilhado, reutilizado, no qual as pessoas participavam e que alimentava a criatividade colectiva.

A industrialização da música, e em particular o copyright, acabaram com isto. Hoje em dia citar uma composição é caso para tribunal, adaptar músicas só pagando licença e, pior de tudo, criou-se a ideia que a arte não é uma coisa que a gente faça. É coisa que vem de longe em rodelas de plástico, é vendida só por agentes autorizados e a nós cabe apenas entrar com o dinheiro para nos darem licença para assistir. E só assistir, porque é ilegal partilhar, modificar, participar ou usufruir da cultura fora do esquema da “indústria cultural”.

Um argumento comum é que temos de impedir a partilha de ficheiros para proteger a arte e a cultura. Esta ideia faria muita confusão ao John Sousa. Para proteger a cultura é preciso fazer precisamente o contrário. É preciso partilhá-la, difundi-la, ensiná-la e usá-la. E se restringir o acesso permite aumentar o preço e o investimento, a fatia mais grossa vai para o distribuidor. Gasta-se milhões em rodelas de plástico e pouco mais.

Pode ser que este sistema tenha a vantagem de financiar produções dispendiosas, como filmes de centenas de milhões de dólares. Mas como é o próprio sistema que faz esses filmes custar centenas de milhões de dólares é difícil dizer se, nesse campo, ganhamos ou perdemos em inflar o preço com restrições legais. O que é certo é o custo para a arte e para a cultura. Este sistema torna a expressão artística num produto pré-fabricado para consumir como vem no pacote. Quanto mais a tecnologia permite misturar imagens e sons, combinar músicas e filmes e partilhar aquilo de que gostamos mais a lei o tenta impedir, privando-nos da função principal da arte. Comunicar.

Enquanto as empresas de distribuição tiverem o poder de decidir o que podemos fazer com a nossa cultura não vamos recuperar aquilo que se perdeu há cem anos. Arte em que participamos em vez de arte que pagamos só para ver.

Espero que ninguém esteja a ler este blog a estas horas. Mas, se estiverem, bom 2009 para todos.

1- E filho de um português, João António de Sousa. Mais na Wikipedia

terça-feira, dezembro 30, 2008

Cadastrado.

Hoje cheguei às dez da manhã à loja do cidadão, no Odivelas Parque, para renovar o BI. Tirei a senha com o número 201, onde li que o atendimento se estimava ser às onze e cinco. Foi às três e meia da tarde. Uma foto, impressões digitais com uns sensores especiais, uma assinatura com uma caneta sofisticada e deram-me outra senha para a segunda fase, com o número 159. Benditas as 42 pessoas que desistiram, senão ainda lá estava. Às sete e meia da tarde registaram novamente as impressões digitais, mostrei os cartões para copiarem o NIF, o número do BI e do SNS e pronto. No total foram doze euros, três minutos de atendimento e nove horas e meia de espera.

Daqui a um tempo indeterminado vou ter o Cartão do Cidadão («pode ser duas semanas ou até uns meses, não sabemos, às vezes vem mais rápido que outras»). A nossa constituição proíbe a atribuição de um número único a cada cidadão. Infelizmente, ninguém no tribunal constitucional percebe de bases de dados. Por isso aprovaram um cartão único que preserva os vários números diferentes mas que faz o mesmo que atribuir um número único, pois permite cruzar tudo o que o estado reúne sobre nós, das viagens que fazemos aos comprimidos que nos receitam e aos impostos que pagamos.

O Cartão do Cidadão pode ser lido por um leitor à distância*, o que vai poupar os dedinhos cansados dos funcionários que já não precisarão escrever aqueles nove algarismos quando os formos incomodar por algum papel. Basta passar perto do leitor e blip, já está. A nós é que não vai adiantar nada. Mesmo com esta tecnologia de fotografia digital, computadores e sensores para as impressões dos dedos eles demoram nove horas e meia para atender as pessoas e depois das dez da manhã não dão mais senhas. A última que deram hoje para a primeira fase foi a 211, a algum desgraçado que chegou pouco depois de mim. Mas com o trabalho que poupam podem tornar o serviço ainda menos eficientes sem que a coisa rebente de vez.

Um pequeno inconveniente da leitura à distância é que qualquer tipo com um leitor RFID pode recolher os dados do cartão de qualquer pessoa que se chegue perto do leitor. Números de BI, contribuinte e segurança social, e outros dados que lá estejam acessíveis no chip. Umas viagens pelos transportes públicos com o leitor no bolso e qualquer criminoso de meia tigela reúne centenas de identidades. Não é informação secreta, mas aquilo que dantes só revelávamos se mostrássemos o cartão agora pode ser recolhido mesmo sem sabermos.

Penso que nós, cidadãos cadastrados, devíamos ter mais consciência que nada neste sistema incentiva a que zelem pelos nossos interesses. Começa pelos funcionários das lojas dos cidadãos. Estes recebem pelas horas de trabalho sem os mecanismos que noutras profissões garantem uma qualidade mínima no serviço. Os médicos têm os doentes com marcação e os motoristas têm que fazer aquelas carreiras. Estes distribuem duzentas senhas de manhã e pronto, já chega para o dia todo, e quem chega às 10:30 que volte noutro dia. O empregado de mesa tem um patrão que o obriga a despachar-se para não perder clientes. Estes só têm clientes obrigados que não têm outro remédio senão esperar nove horas se for preciso. Tanto faz se são bem servidos ou não. E ninguém tem responsabilidades. Não é má vontade ou antipatia da pessoa que nos atende nem maldade do chefe da secção ou do supervisor. Simplesmente ninguém que lá trabalha tem necessidade de fazer com que aquilo funcione melhor. Atendem as pessoas que atenderem, o cidadão que espere o que for preciso e quando calha um deles ter que renovar o BI o colega dá um jeitinho e despacha-o em dez minutos.

E, no topo, os burocratas-mor querem açambarcar o máximo de informação e o máximo de poder para a usar porque quanto mais papelada nos obrigarem a preencher mais seguros ficam os seus empregos. Nós não ganhamos nada por terem as nossas impressões digitais ou cruzarem os impostos que pagamos com as receitas que aviamos. Mas para eles quanto mais melhor. É por isso que temos dúzias de impostos diferentes em vez de pagar tudo de uma vez e é por isso que tudo precisa de papelinho para aqui e para ali.

A informação pessoal é mais preciosa que o dinheiro. O dinheiro vale apenas pelo que fazemos com ele mas o controlo sobre os nossos dados pessoais é um bem em si. Se quando pagamos queremos saber por quê e para quê, quando damos informações acerca de nós temos que fazer o mesmo. Temos que exigir que justifiquem esses pedidos. Tanto para manter o estado fora do que não lhe compete como para agilizar a burocracia retirando-lhe tudo o que não estiver lá em nosso proveito.

*Errata: isto está incorrecto. Em princípio, o chip só pode ser lido em contacto com o leitor. No entanto a maioria das pessoas não deve saber que para copiar os seus dados todos basta pôr o cartão no leitor.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

Saber que não existe.

A propósito da existência do seu deus, o leitor Luís Bastos apontou que «Eu enquanto estou a escrever este comentário, também não vejo pegadas de gato, não estou a ouvir miar, nem há pelos de gato, nem me cheira a gato mas não posso concluir que por tais factos, que o gato não existe. Não estar é diferente de não existir.» (1)

Parece diferente. Concluo que não há unicórnios no meu teclado porque examino o meu teclado e não encontro indícios de unicórnio. E se só uma pesquisa exaustiva permitisse concluir que algo não existe, então para concluir que não existem unicórnios na Antárctida precisava percorrer toda a Antárctida e para concluir que os unicórnios são fantasia tinha que conhecer todo o universo para garantir não haver indícios de unicórnio em lado nenhum. Se fosse assim, não estar e não existir seriam problemas muito diferentes.

Felizmente, não é assim. Podemos dizer que não existem unicórnios na Antárctida sem conhecer cada palmo desse continente. Podemos decidir que algo não existe se houver indícios contrários ao que seria de esperar se tal coisa existisse. É por isso que sei que o Pai Natal não existe mesmo sem conhecer o polo norte e que não existem cangurus marcianos sem ter ido a Marte.

A conclusão que não existe um ser omnipotente que nos ama resulta do mesmo processo. Se os meus pais fossem omnipotentes eu não seria míope porque eles me amam o suficiente para não me dar olhos defeituosos. A leucemia em crianças, o mongolismo, as doenças e desastres naturais são indícios que não existe um deus que nos ama. O Luís Bastos, como muitos outros, tenta explicar isto alegando que Deus respeita a nossa vontade. «Porque sou livre, entre as várias alternativas e possibilidades de escolha tenho a capacidade de optar.» Não me explica nada. A vítima pode “optar” com toda a vontade que o agressor tenha um ataque cardíaco, mas as coisas funcionam de tal forma que prevalece quem tem mais força, mais poder ou as armas melhores. Precisamente o contrário do que se esperaria se um deus justo respeitasse por igual a vontade de todos.

Se a hipótese em causa fosse existir um deus maldoso e incompetente ainda podíamos ficar na dúvida. Não há nada que a justifique mas também nada a contradiz. Mas basta ver o noticiário para rejeitar a hipótese de um deus omnipotente e benévolo. As desculpas vagas da liberdade do mais forte em lixar a vida ao mais fraco não resolvem o problema.

O Luís Bastos acrescenta que «para falarmos de Deus, o homem não pode ser o centro, ou seja, o homem não pode definir Deus pondo-se no centro: “porque não vejo, não existe; porque não ouço, não existe.” Parece-me de novo precipitado concluir a inexistência de Deus a partir da incapacidade humana.» Sim. Seria precipitado concluir que não existem unicórnios invisíveis só pela nossa incapacidade de os ver. Mas seria um disparate ainda maior concluir que eles existem só porque não os podemos ver. É este problema que a teologia tenta disfarçar, com pouco sucesso.

Não podemos ser o centro, não podemos definir os deuses, é precipitado concluir que não existem porque não os vemos e assim por diante. Seja. É irrelevante. Porque a questão importante é se temos evidências suficientes a para concluir que um deus específico existe. Não temos. E no caso do deus cristão há até um conjunto sólido de evidências contrárias. A hipótese cristã não explica nada e é contradiz a evidência de que dispomos. Mais ainda que o Pai Natal, os unicórnios e os cangurus marcianos, que até podiam passar despercebidos. Mas um criador omnipotente do universo que nos amasse notava-se de certeza, e teria criado um universo muito diferente deste que não se rala connosco.

Além disso, só é razoável considerar que algo existe se houver indícios que justifique conclui-lo. Na ausência de dados relevantes, é mais sensato assumir que não me está a cair um piano em cima, que não tenho um leão na cozinha, que não há um bule de loiça a orbitar Marte. Se me fosse preocupar com todos os deuses para os quais não tenho quaisquer evidências nem ganhava para as velas.

1- Comentário em Torce palavras.

sábado, dezembro 27, 2008

Treta da Semana: A bolha e variantes.

Soube de um leitor, por email, que há uma nova variante do jogo da bolha, por sua vez uma variante do jogo do avião, das oito bolas, dos tesouros e outros nomes para o mesmo tipo de esquema em pirâmide. O conceito é simples. Cada pessoa paga para entrar e arranja mais dois patos participantes. Cada um desses faz entrar mais dois, e cada um desses quatro convence mais dois. Os oito da terceira rodada pagam a entrada ao primeiro que ganha oito vezes o dinheiro com que entrou. O esquema apenas passa dinheiro de uns para os outros e só dá lucro aos que lá estão enquanto entrar mais gente. Os últimos pagam a conta. E isto contribui para a popularidade do jogo.

Quem ganhou só diz bem e quem está a perder não quer espantar as quinze vítimas que precisa para ganhar o dinheiro. E quem ganha mais é quem começa o jogo. Esse não tem que pagar para entrar, recebe o dinheiro das quinze primeiras pessoas e pode entrar várias vezes enquanto a coisa está no início. Mas quem entra quando há mil jogadores só começa a receber quando houver dez mil pessoas a jogar. Quanto mais popular for o jogo mais ganha quem o começou mas mais difícil é para os novos jogadores.

Por estas razões, em muitos países os esquemas em pirâmide são considerados fraude. São formas de ganhar dinheiro enganando os outros com a sua própria ganância. O risco é óbvio quando pensamos que se junta o dinheiro de todos os participantes e se dá tudo aos poucos que entraram primeiro. Mas a forma como o jogo é apresentado cria a ilusão de simetria, que todos têm a mesma possibilidade de ganhar. O que é falso, e quem entra fá-lo com expectativas irrealistas.

A variante que o leitor me indicou intitula-se «Plano de Investimento»(1). É a mesma coisa mas com requintes de malvadez. O participante entra com 100€. Quando chega ao centro da sua “bola” de 15 participantes recebe os 800€ da entrada dos últimos oito. Menos 500€ da entrada numa nova “bola” de nível superior. E continua assim, obrigado a entrar em “bolas” cada vez mais caras. Escusado será dizer, o espertalhão que montou o esquema está em primeiro em todas estas, recolhendo o dinheiro de todos que lá entram.

A notícia no blog dá uma boa ideia do esquema, se se ler nas entrelinhas. «O plano já tem mais de 500 investidores [...] Mais de 80 apostadores já ganharam dinheiro.» Isto parece uma coisa boa. Quinhentos “investidores”, e 80 já ganharam. Mas o que isto quer dizer é que quem entra agora só vai ganhar quando lá estiverem uns cinco mil. Se alguma vez isso acontecer. Entretanto, quem está a encher os bolsos são os mesmos 80 que já lá estão no meio por terem entrado em várias “bolas” nas primeiras rodadas.

Por cá, empresas que montem esquemas em pirâmide podem ser condenadas por prática comercial desleal ao abrigo do D.L. 57/2008, de 26 de Março. Mas, pelo que apurei, a lei ainda é omissa quanto a estas actividades por parte de particulares. Mas, assumindo que não é ilegal, se quiserem ganhar dinheiro fácil enganando familiares e amigos criem vocês o vosso jogo da bolha. Fraude por fraude, ao menos começam no meio, ganham mais e arriscam menos. E não alimentam (outros) chulos.

Mas o melhor, para cada um e para todos, é ganharem dinheiro fazendo algo de útil.

1- plano-investimento.blogspot.com

Mais informação sobre estas aldrabices na Wikipedia: Esquema em pirâmide. E no DN uma descrição do jogo da bolha.

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Torce palavras.

A teologia safa-se pelo domínio da ambiguidade, e Anselmo Borges deu uma bela lição disto no DN de dia 20. A Associação Humanista Britânica está a organizar uma campanha publicitária a favor do ateísmo, com o slogan «Deus provavelmente não existe. Agora deixe de se preocupar e goze a vida» (1). Anselmo Borges diz que é uma ideia interessante porque obriga «as pessoas a pensar nas questões essenciais, e Deus é uma dessas questões decisivas.» (2)

Questões são perguntas. Como é que surgiu o universo? O que nos causou? Como podemos saber? O Anselmo torce o sentido de “questão” e mete uma resposta pela porta do cavalo. Porque Deus não é uma questão. O deus do Anselmo é apenas uma de muitas tentativas de responder estas perguntas. E levanta uma questão importante. Porque é que há de ser o deus dele e não um dos outros? Para responder a isto, a teologia torce as palavras conforme dá jeito.

«Afinal, também há razões para não crer, mas, quando se pensa na contingência do mundo, no dinamismo da esperança em conexão com a moral e na exigência de sentido último, não se pode negar que é razoável acreditar no Deus pessoal, criador e salvador, que dá sentido final a todas as coisas. Numa e noutra posição - crente e não crente -, entra sempre também algo de opcional.»

Crer ou não crer é uma escolha. Mas a palavra “razões” é usada aqui de duas formas subtilmente diferentes. Quando somos razoáveis baseamo-nos em razões partilhadas. Quando usamos razões só nossas não somos razoáveis aos olhos dos outros. É razoável largar o pote se está demasiado quente mas não por me dar na gana ou por medo que dê azar. As razões para não crer em Deus vêm do que observamos à nossa volta. Cada criança que fica sem pernas por pisar uma mina dá uma razão forte para rejeitar o tal ser benevolente que lhe podia ter segredado “cuidado, aí há minas”*. A imensa indiferença do universo perante o nosso sofrimento torna razoável a descrença. Mas a crença em Deus, como o próprio Anselmo admite, vem apenas de desejos pessoais como a esperança e a exigência de um sentido último, e não é por desejos que se forma uma opinião razoável acerca do que existe ou não existe.

Depois, o amor. «Agora que está aí o Natal, é ocasião para meditar no Deus que manifesta a sua benevolência e magnanimidade criadoras no rosto de uma criança. Jesus não veio senão revelar que Deus é amor, favorável a todos os homens e mulheres» (mas não às crianças que pisam minas).

Usamos a palavra “amor” para referir o que sentimos por alguém ou para referir esse alguém. Esta ambiguidade é ideal para a teologia. No primeiro sentido “Deus é amor” dá uma evidência directa que Deus existe. Todos sentimos amor e os crentes amam Deus. O sentimento existe. E torcendo a palavra para o outro lado concluem que o objecto desse amor também existe. É um disparate atraente. É disparate porque o objecto do nosso amor pode nem se parecer com aquilo que julgávamos amar. Mas é atraente porque preferimos esquecer essas experiências dolorosas e fingir que não é assim. O amor não só cega como enfraquece as ideias.

E quando torcem o amor com a ciência têm uma combinação perfeita. «A existência de Deus não é objecto de saber de ciência, à maneira das matemáticas ou das ciências verificáveis experimentalmente.» Ou seja, a existência de Deus não é ciência por não ser de cariz experimental. E Deus é amor, que sabemos não ser científico. Mas isto só encaixa torcendo as palavras. Porque o amor é experimental; é experimentando-o que o conhecemos e é pela experiência quotidiana que sabemos quem amamos e quem nos ama. E o amor só não é científico porque nos falta uma teoria detalhada. Falta-nos as palavras para modelar o amor. Falta-nos o logos do amor.

Mas isso é o que a teologia finge ser. O logos de Deus que, segundo dizem, é amor. A teologia é a teoria do amor inventada por celibatários que baralham as palavras e negam a experiência. Não admira que mesmo ao fim de tantas voltas não tenham chegado a lado nenhum.

*A desculpa para isto é a vontade livre. É um argumento válido, e aceito-o. Mas apenas nos casos em que a própria criança pôs lá a mina.

1- CNN, 23-10-08, Atheists Run Ads Saying God ‘Probably’ Doesn’t Exist
2- Anselmo Borges, DN, 20-12-08, ”Provavelmente Deus não existe”

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Treta da Semana (passada): Terapia Quântica.

Graças ao aviso do Satanucho gravei uma reportagem na SIC sobre a terapia quântica. A matéria foi introduzida explicando que esta terapia «tem como objectivo corrigir os desequilíbrios da energia no corpo», seguiu-se o testemunho de uma senhora que gosta muito da terapia, a entrevista à directora da “clínica” de tretapia quântica e, para equilibrar, o testemunho de outra senhora que diz que a maquineta lhe paralisou os maxilares. Pelo meio, em rodapé, lia-se que «especialistas garantem que alivia stress, fadiga, doenças crónicas e prolongadas». Não disseram quem eram os especialistas nem em que matéria se especializaram. Ao jornalista deixo uma dica para reportagens futuras. Google. Experimente.

Nas imagens da clínica via-se que o aparelho era o SCIO, o Scientific Consiousness Interface Operation. Foi inventado pelo «Prof William Nelson, investigador da NASA que dedicou mais de três décadas da sua vida à investigação de medicinas alternativas, física quântica, psicologia e biologia. Ao trabalhar nestas teorias trivectoriais no projecto APOLO da NASA e investigando os campos electromagnéticos aplicados à medicina, desenvolveu o tratamento energético mais avançado do mundo» (1). Tinha ficado bem mencionar na reportagem que o inventor da terapia é procurado por burla nos EUA (2), razão pela qual continua a sua “investigação” na Hungria, de onde vende estes aparelhos.

O SCIO/QXCI (de Quantum Xeroid Consciousness Interface, para quem queira saber) é um aparelho extraordinário que «detecta mais de 12000 elementos do corpo humano a uma velocidade superior a 200 transações por segundo, revelando pela reactividade electrofisiológica da pessoa os seus níveis (vitaminas, aminoacidos, enzimas, minerais, nutrientes, açucares naturais, toxinas, doenças, bactérias, fungos, alergias, parasitas, virus, factores mentais e emocionais, orgãos, músculos... etc)» (1). A desvantagem, além de estragar a série do Dr. House (doença estranha, bzzzt, caso resolvido), é que não funciona. Até diagnosticou, na mesma pessoa e ao mesmo tempo, gravidez e cancro testicular (3).

Há aqui muita treta. O aparelho é treta, o equilibrio energético é treta, o diagnóstico pelas frequências electromagnéticas é treta. Até o teledisco do genial Professor, que podem ver abaixo, é uma bela treta. Mas há muitos que defendem estas alternativas alegando que são inofensivas, que mesmo não funcionando não fazem mal a ninguém. Outra treta. Comprar gato por lebre é prejuízo, um diagnóstico errado é perigoso e perder tempo com curas a fingir pode matar. Mas há aqui mais que treta.

Este post vem atrasado porque um dos meus miúdos apanhou uma pneumonia*. Estas coisas eclipsam tudo o resto até estarem controladas. Uma doença séria absorve toda a nossa preocupação e o empenho emocional no problema dificulta a avaliação racional das opções. É por isso que o argumento do “mal não faz” é pior que treta. A “medicina” alternativa é um abuso de pessoas vulneráveis. É um mal em si, além das consequências graves que pode ter, e não merece a mesma tolerância com que permitimos outras superstições. É preocupante que façam uma reportagem na TV sobre esta “terapia” sem mencionar sequer que o inventor é procurado por fraude.



*Foi uma bela prenda de Natal, estes dias de preocupação e noites sem dormir. Mas o miúdo já está a melhorar, mais graças à cefuroxima que ao menino Jesus.

1- Medicina Quântica, Terapias Quânticas
2- Seattle Times, MIRACLE MACHINES:The 21st-Century Snake Oil. Ver também este documento do tribunal (em .pdf)
3- QuackWatch, Stephen Barrett, Some Notes on the Quantum Xrroid (QXCI) and William C. Nelson

sexta-feira, dezembro 19, 2008

O falso dilema.

O dilema do prisioneiro é o problema hipotético de dois cúmplices interrogados em separado pela polícia. Havendo poucas provas, se nenhum delatar o comparsa terão ambos penas leves por um crime menor. Mas aquele que denunciar o outro terá uma redução na pena por condenar o outro a um crime mais sério. É um dilema porque cada um ganha sempre se denunciar o outro mas denunciando-se mutuamente serão ambos condenados pelo crime mais grave. Mesmo com a redução na pena isto é pior que se ficassem calados. É um problema comum a muitas situações nas quais o resultado é melhor se todos colaboram, melhor ainda para o chico-esperto que se aproveita dos outros mas pior para todos se muitos se armam em espertos.

Se limitamos o copyright à regulação comercial e legalizamos a cópia sem fins lucrativos o artista tem que cobrar pelo trabalho que faz em vez de receber pela cópia do trabalho que fez. Por exemplo, um músico propõe compor e gravar um álbum se tiver 50,000€ em encomendas antecipadas. Por 10€ pode-se encomendar o CD desta edição limitada, por 100€ recebe-se um CD autografado e fica-se registado como patrocinador do álbum. Por 1,000€, no máximo 30 pessoas são reconhecidas nos agradecimentos no CD. E por 10,000€ um fã pode ficar como produtor executivo do álbum. Ninguém dá o dinheiro adiantado mas fazem a encomenda e comprometem-se a pagar. A empresa que gere o sistema de pagamentos adianta o dinheiro ao músico e fica com 5% no final. Isto é um exemplo do tipo de coisas já começam a ser implementadas.

O João Vasco diz que isto não funciona por ser um dilema do prisioneiro. O racional é ficar à espera que os outros paguem para depois sacar a música de graça, e assim acabam todos prejudicados porque o artista não consegue gravar. Mas o João Vasco está enganado. Primeiro, o valor em jogo para a maioria dos intervenientes é irrisório. Se na festa do bairro deixamos um saco com um milhão de euros para os convivas se servirem, o primeiro leva o saco todo. Mas se é a travessa dos camarões mesmo os mais garganeiros ficam aquém de estragar a festa. Quando o valor não é grande basta uma leve pressão social para haver colaboração. E a partilha de ficheiros é evidência disto. Milhões de pessoas por todo o mundo arriscam problemas com a lei deixando os ficheiros em partilha só para ajudar os outros a sacar. Uma olhada por qualquer fórum sobre P2P mostra que a motivação é simplesmente pertencer àquela comunidade. Exactamente o que se passa com os fãs.

Em segundo lugar, há comunicação. A Autoridade da Concorrência condenou esta semana a Associação dos Industriais de Panificação de Lisboa por um «sistema de troca de informações sobre os preços de venda de pão ao público»(1). O dilema do prisioneiro impede os panificadores, que são concorrentes, de conspirar contra os nossos interesses. Mas apenas se não puderem combinar as coisas entre si, tal como os prisioneiros que estão separados. Se puderem trocar informação sobre os preços facilmente arranjam maneira de colaborar. No caso do pão isto é mau para nós mas no caso dos fãs que vão financiar o álbum a comunicação contribui para a colaboração.

Finalmente, o João Vasco confunde preço com valor. É compreensível com o sistema que temos agora. Quem compra um CD hoje não está a apoiar o artista, que recebe muito pouco daquele dinheiro. Não está a pagar a criação daquela obra que, quando a compra, já está criada. Nem a criação da próxima que, quando sair, terá que pagar à mesma. E não compra nada de especial. Paga apenas a licença para ouvir a música e, se puder, prefere pagar menos por isso. Mas isto é assim apenas porque o copyright põe a ênfase toda na cópia.

Sem o copyright o valor está no trabalho do artista e não na cópia. A primeira edição limitada, o álbum autografado, a participação no processo, todas essas coisas têm um valor que não pode ser copiado. É o que torna o quadro da Mona Lisa muito mais valioso que a cópia mais perfeita. Mesmo uma réplica exactamente igual valeria uma pequena fracção do original. Este valor é puramente subjectivo, é certo. Mas é esse o valor da arte. É o valor subjectivo que se atribui ao que o artista fez e não o valor em numerário que nos cobram pela licença.

O copyright foi necessário para levar algumas pessoas a montar fábricas de discos e cadeias de lojas. Esse nível de investimento exigia garantias sem as quais todos ficávamos a perder. Mas esse método de distribuição está ultrapassado e hoje o copyright é só um fardo na distribuição e na criação de arte.

1- TSF, Associação de Industriais de Panificação de Lisboa condenada por distorção de concorrência

Criacionismo no Sexta

No jornal Sexta de hoje o jornalista Rui Passos Rocha faz um apanhado de alguns aspectos do criacionismo em Portugal. O site do jornal é www.sexta.pt, e o artigo está na página 10 da edição de 19-12-2008. O artigo é muito curto, por necessidade, mas toca alguns dos temas que temos conversado por aqui. E conta com a participação de vários personagens conhecidos dos leitores deste blog.

Infelizmente, o Jónatas não aproveitou a deixa para definir “aumento de informação”. Talvez para a próxima...

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Ética pelo dicionário.

A ética fundamenta a avaliação dos actos. E para avaliar actos temos que considerar consequências e responsabilidades. Maltratar uma criança tem consequências indesejáveis das quais o acto é claramente a causa principal. Não levar comida a quem morre à fome tem consequências ainda mais trágicas mas a relação causal entre esta escolha e a morte pode ser muito ténue. Por isso consideramos mais imoral maltratar uma criança do que, por exemplo, não ir a África alimentar os pobres. Alimentar os pobres é moralmente louvável mas a decisão individual de não o fazer quase não tem valor moral porque nenhum de nós, individualmente, é culpável pelas consequências*.

Como normalmente viver é melhor que não viver, ter filhos felizes é uma opção com valor moral. Mas não é imoral decidir não os ter porque são tantas as possibilidades de filhos que poderíamos ter tido se as coisas fossem diferentes, e tantos os factores que fizeram com que este ou aquele nunca fosse concebido, que não há relação clara entre esta escolha e a inexistência de algum deles em particular. Sou tão culpado pelos filhos que não tive como pelas crianças esfomeadas que não salvei. E com este fundamento não é razoável condenar a contracepção. E ainda menos quando se louva a castidade. A consequência de ambas é que alguém não é concebido e, disto, quem usou preservativo tem tanta ou tão pouca culpa como quem se absteve da relação sexual.

Esta receita de consequências e responsabilidade não é uma solução para a ética. O problema é tão complexo nos detalhes que não se resolve com uma regra simples. Mas indica a natureza do problema e basta para desmascarar os preconceitos que se disfarçam de ética com truques de semântica. Antigamente era o “pecado” ou a “lei natural”. Coisas que se podia definir a gosto para pintar de legítima qualquer casmurrice. Hoje é “pessoa humana” ou “dignidade”, que parece mais profundo mas é a mesma treta.

O investigador que cria um embrião no laboratório é responsável pelo que faz. Mas é subjectivamente indiferente ao embrião morrer ao fim de uns dias com meia dúzia de células ou morrer uns dias antes como um espermatozóide separado do óvulo. Para este ser as alternativas são equivalentes e isto não depende da definição de “dignidade da pessoa humana” ou da forma como classificamos aquelas células. Só é relevante considerar as outras consequências desta escolha, consequências essas que até podem tornar imoral e condenável a prevenção desta forma de investigação.

E este erro não se restringe aos crentes. Crentes e descrentes usam “pessoa humana” para negar direitos aos animais. Como se o rótulo de Bos taurus ou Homo sapiens fizesse alguma diferença no sofrimento do torturado ou na responsabilidade do torturador. E são principalmente os ateus que usam este truque para menosprezar a imoralidade do aborto. Definem “pessoa” para se aplicar só a partir das semanas lhes convém e dão como provado que perder 80 anos de vida por ser morto antes disso não tem qualquer problema, porque só a partir da próxima terça feira é que conta.

A ética pelo dicionário é tão conveniente como antiga. Na Bíblia a Palavra justifica tudo, da violação à escravatura e infanticídio. E hoje em dia até há quem defina “fundamento objectivo da moral” como sendo “obedece à minha interpretação destas histórias antigas”. Mas é errado tentar resolver problemas éticos aldrabando as palavras. E é mais que um mero erro de raciocínio. Pelas suas consequências e pela forma deliberada com que são cometidos, estes maus juízos chegam a ser imorais.

* O mesmo não se pode dizer da decisão colectiva das sociedades ricas em ignorar esses problemas. Essa sim é uma causa importante da miséria de muita gente e até devia ser punida.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Os Mapinetas.

Soube pelo Miguel Caetano, já recuperado de um problema informático, que foi criado um «movimento cívico anti-pirataria» em Portugal (1). O MAPiNET (2). Vem na senda dos movimentos dos anos 70, quando cidadãos protestaram contra a possibilidade de copiar cassetes de música. Ou dos anos 80, quando todos nos insurgimos contra os gravadores VHS que permitiam copiar filmes do clube de vídeo ou da TV. Pelo menos, parece ser assim no mundo fantástico dos mapinetas, onde o povo agora se move contra o terrível flagelo do livre acesso à cultura. E onde se chama “movimento cívico” à propaganda comercial em defesa de um monopólio (3).

Paulo Santos, o representante da MAPiNET, afirmou numa entrevista à SIC Notícias que se continuarmos a «não pagar a propriedade de outros, que é o direito de autor, voltamos à idade das trevas, ninguém vai produzir conteúdos culturais». O Público fala de «um cenário negro para as industrias culturais em Portugal»(4). É a confusão do costume. A cultura é o conjunto de ideias, costumes, arte e conhecimento que partilhamos. É aquilo de que todos se apropriam no bom sentido de tornar parte de si. Não é aquilo do qual alguns se apropriam no mau sentido de tornar propriedade de uso exclusivo. Estes senhores querem que se confunda o seu negócio de cópia e distribuição com a criação cultural.

Quem tem talento pode lucrar com isso. Basta combinar a remuneração antes de fazer o trabalho. Funciona com canalizadores, professores e astronautas e sempre funcionou com pintores, escritores e músicos. A cultura é criada por todos, é de todos e para todos. Uns contribuem mais que outros mas ninguém a cria sozinho e ninguém é dono dela. E e arte não depende da venda a retalho. Por isso esta aflição não é pelo futuro da cultura. É pelo fim do monopólio lucrativo sobre a obra alheia. É por isso que quem representa a MAPiNET não é Paulo Santos o pintor ou Paulo Santos o poeta. É Paulo Santos o secretário da Assembleia Geral da Federação de Editores de Videogramas. A livre partilha de informação sempre beneficiou a cultura e a arte mas é o fim do negócio obsoleto de vender direitos às rodelas.

Na entrevista o Paul Santos queixa-se que a lei portuguesa não permite processar centenas de milhares de pessoas, a custas do estado, por descarregar ficheiros mp3. Por isso propõe dispensar o incómodo processo legal e serem os vendedores de CDs a decidir quem pode aceder à Internet. Deixo aqui a entrevista completa. Não está ao nível do que faziam o Jim Henson e o Frank Oz mas os efeitos especiais estão bons. Parece mesmo que é o Paulo Soares a falar e quase não se vê a mão das multinacionais a mexer-lhe a boca.



Termino com dois exemplos do efeito desta propaganda desonesta. Faz com que muitos se esqueçam dos seus direitos e dos direitos dos outros, tornando ineficaz o sistema que defende os nossos. A Paula Simões tentou ver, sem fazer nada que possa ser ilegal, um DVD da National Geographic que ela tinha comprado. Até recorreu ao IGAC. Não dá. A história completa aqui:

As minhas aventuras no reino da IGAC
As minhas aventuras no reino da IGAC – II
O “crime” das Editoras

E uma notícia que o Mário Miguel me enviou. Nos EUA um aluno foi suspenso por distribuir o Linux. A professora disse que não permitia isso de software livre e que até estava convencida que era ilegal. Estudante castigada por distribuir software livre. Ver também o blog do Ken Starks.

1- Remixtures, Recapitulando (I): MAPINET, astroturfing à portuguesa e a remoção da emenda 138
2- www.mapinet.org
3- ACAPOR, Convocatória para o MAPiNET - Movimento Cívico Anti-Pirataria na Internet
4- Público, Movimento exige ao Governo medidas de combate à pirataria

domingo, dezembro 14, 2008

Treta da Semana: O amor ao próximo.

A homossexualidade é crime em 86 países. Nestes, o sexo consensual entre adultos, em privado, pode levar à prisão ou até à pena de morte. Nos próximos dias a França irá propor às Nações Unidas uma declaração condenando a criminalização da homossexualidade. «Exortamos os Estados para tomar todas as medidas necessárias, em particular legislativas ou administrativas, para garantir que a orientação ou identidade sexual não possam, em circunstância alguma, servir de base a acções penais, em particular execuções ou penas de prisão.» (1)

Esta declaração conta já com o apoio de toda a Europa. Toda? Não! Um pequeno estado povoado de irredutíveis católicos ainda resiste ao avanço da decência. O Monsenhor Celestino Migliore, observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, diz que apesar da Igreja Católica se opor à «discriminação injusta» dos homossexuais, uma declaração da ONU poderia pressionar os estados que não reconhecem o casamento entre homossexuais. Há que escolher, portanto, o mal menor. Mais vale deixar que metade dos países do mundo prendam e executem pessoas pela sua orientação sexual do que arriscar que outros se sintam pressionados a conceder os mesmos direitos civis a todos os casais que queiram viver uma vida em conjunto. Isso sim seria uma tragédia.

Felizmente se preservou o espírito cristão de amor ao próximo. Foi difícil, mas graças a Carlos Magno, às cruzadas, ao diálogo sempre amigável entre as várias variantes do cristianismo e à Santa Inquisição, sobreviveu até hoje esta visão do mundo que leva todos os cristãos a considerar acima de tudo a dignidade da pessoa humana em vez das politiquices e jogos de poder. Um bem haja a todos e que o vosso deus vos dê a eternidade que merecem.

1- ZNag, 12-12-08, Tell Obama, Clinton: Act Now for UN Decriminalization
Outras fontes:
Times Online, Vatican opposes de-criminalising same sex unions
Guardian, A watershed for gay rights

sábado, dezembro 13, 2008

Miscelânea criacionista: outra vez a treta do código...

Segundo o dicionário (1), um código é um «conjunto de sinais convencionais e, por vezes, secretos para comunicações» ou um «conjunto de regras que permite a combinação e a interpretação desses sinais». Por exemplo, “SOS” é reconhecido em todo o mundo como indicando um pedido de socorro e um “STOP” num octógono encarnado como obrigando o condutor a imobilizar a viatura antes de prosseguir. O fundamental no código é a correspondência entre o sinal e aquilo que o sinal refere. E qualquer código implica inteligência porque essa correspondência reside apenas na mente dos seres que convencionaram associar este sinal a um pedido de socorro, aquele à obrigatoriedade de parar e assim por diante.

Os sinais “TNT” e “2-metil-1,3,5-trinitrobenzeno”, por convenção, designam um certo explosivo. Esta relação entre sinal e explosivo implica um código e podemos dizer que “TNT” codifica o explosivo. Mas o TNT não codifica uma explosão. A relação entre o explosivo e a explosão é determinada pelas propriedades da substância e não por uma convenção entre seres inteligentes. Não é um código. A IUPAC pode regulamentar a designação do TNT mas não pode ditar o seu poder explosivo.

Os criacionistas argumentam que o ADN é um código e que, por isso, houve uma criação inteligente. Mas o código não é o ADN. A relação entre o sinal “ADN” e a molécula é um código. A designação “ácido desoxirribonucleico”, o sistema de letras ACTG para representar as sequências e as tabelas de correspondência entre codões e aminoácidos são códigos. São códigos porque os sinais correspondem a algo por convenção. E implicam inteligência porque essa correspondência só existe na mente de seres inteligentes.

Mas se o ADN fosse um código, se fosse uma correspondência meramente convencional, então bastava concordarmos todos que o genoma do HIV era inactivo e curava-se a SIDA. Ou tratávamos doenças genéticas com o equivalente a um acordo ortográfico. Só que a molécula não é um código, o seu efeito não é determinado por convenção e não exige inteligência para actuar. O TNT explode e os genes sintetizam proteínas mesmo sem perceberem nada de química.

Este post não tem nada de novo. Entre posts e comentários já explicámos muitas vezes aos criacionistas que as moléculas não são códigos. Mas por essa necessidade recorrente dá jeito ter à mão a explicação e o código HTML para colar nos comentários:

<a href="http://ktreta.blogspot.com/2008/12/miscelnea-criacionista-outra-vez-treta.html">Miscelânea criacionista: outra vez a treta do código... </a>

Infelizmente, um código actua só por convenção e os criacionistas não seguem as mesmas que nós. A fé criacionista exige-lhes que confrontem os seus erros fechando os olhos, tapando os ouvidos e dizendo “lálálánãoestouaouvirnada”. Por isso vão continuar a insistir no disparate. Mas agora quando o fantoche aparecer é só dar-lhe com o Ctrl-V e já não enganam ninguém.

1- Priberam, dicionário online, código

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Miscelânea criacionista: quem foi o inteligente?

O Mats transcreveu no seu blog as «10 perguntas a fazer ao teu Professor de Biologia Sobre Design», que são vinte e uma perguntas do William Dembski para atrapalhar professores de biologia. Os criacionistas gostam de fazer perguntas porque é fácil perguntar, porque ignorando as respostas podem repetir as mesmas perguntas sem ter que pensar no assunto e porque quando lhes fazem uma pergunta (e.g. como define “aumento de informação”?) fingem que não é com eles. Esta diferença entre ser teimoso e querer compreender as coisas encalha o diálogo num areal de repetição. Mas as perguntas até são interessantes. E a primeira, «Se a natureza ou alguns aspectos dela foram arquitectados inteligentemente, como é que nós podemos saber?», faz um rombo no criacionismo.

Dembski tem tentado vender um conceito de complexidade especificada como critério para identificar criações inteligentes considerando apenas as características dos objectos. Mas como isso é impossível o seu conceito acaba por ser inútil (1). Para concluir a criação inteligente de um objecto precisamos de hipóteses não só acerca do objecto mas também acerca de quem o criou e de como foi criado. As caras de quatro presidentes dos EUA esculpidas no monte Rushmore são obviamente de origem inteligente. Mas isto apenas é óbvio por sabermos que há pessoas capazes de as esculpir e por termos uma ideia como foram feitas. Não é a figura por si que aponta o seu criador. Se encontrarmos uma escultura de um polvo não inferimos a existência de polvos escultores. Inferimos que também foram os humanos a esculpir o polvo porque são os humanos que, à partida, sabemos serem capazes disso.

Atar um fio numa imitação de teia de aranha é uma criação inteligente. A teia da aranha não é, resultando apenas do comportamento inconsciente da aranha. No entanto, o padrão do fio é uma imitação grosseira e simplificada da teia. A teia tem filamentos com características diferentes adaptados a funções diferentes e é mais simétrica e regular que qualquer coisa que a maioria de nós conseguiria tecer. A “complexidade especificada” não permite descobrir qual foi criado com inteligência. Antecipando os criacionistas de serviço, este problema não se resolve alegando que a aranha foi criada com inteligência. Primeiro, porque quem criou cada aranha foi um par de aranhas, nenhuma delas inteligente. E porque o que está em causa é precisamente essa inferência de concluir uma origem inteligente para toda a coisa complexa. Tal como a complexidade da teia não permite concluir que a aranha é inteligente, também a complexidade da aranha não permite concluir que o processo que a criou foi guiado pela inteligência.

O argumento da complexa sequência do ADN tem o mesmo problema. A forma mais eficiente de codificar uma mensagem é aquela em que a parte da mensagem recebida não permite prever o símbolo seguinte, pois de contrário a mensagem será desnecessariamente longa. Por exemplo, se estamos a receber um texto em português, quando recebemos um “q” já sabemos que vem um “u” a seguir. Esse “u” é tão previsível que só está a ocupar espaço na mensagem. É por causa desta redundância que um ficheiro de texto pode ser comprimido a um décimo do tamanho original. E o ficheiro comprimido parece lixo porque numa mensagem sem redundância os símbolos são imprevisíveis e a sequência não se distingue de uma criada ao acaso. Por isso uma sequência contendo uma mensagem inteligente só se pode identificar tendo alguma ideia de quem a terá criado, para que propósito, por que meios e assim por diante. Só pela sequência não se vai lá.

Por isso os paleontólogos e arqueólogos identificam criações inteligentes pelas necessidades e capacidades de quem as criou. Os biólogos e psicólogos estimam a inteligência de comportamentos considerando motivações e circunstâncias em que cada acto se insere. Até os astrónomos do SETI precisam de especular acerca da tecnologia dos hipotéticos extraterrestres para procurar sinais artificiais.

Os criacionistas querem fazer batota. Querem detectar um criador inteligente das aranhas sem uma hipótese minimamente concreta acerca dessa suposta inteligência. Isso não faz sentido. Para propor um criador inteligente é preciso especificar o que é que ele tem de inteligente e de que forma é inteligente o que ele fez. É isso que distingue a teia de aranha e a rede de pesca.

1- Wikipedia, Specified complexity.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Lembra alguma coisa?

Esta forma de deturpar resultados científicos com interpretações injustificadas faz-me lembrar um certo ismo que temos por cá. O código genético prova a Bíblia e afins.



Gostei especialmente do que ele diz aos dois minutos e meio, que no cérebro do homem o outro lado está inactivo porque está atarefado a lembrar-se. Esta forma de interpretar os dados conseguiria justificar a mesma coisa até se as imagens estivessem trocadas. É assim que se justifica a fé pela ciência.

Via Blasfémias.

domingo, dezembro 07, 2008

Treta da Semana: Catolicismo terapêutico.

A ministra da saúde anunciou em Fátima um acordo com a igreja católica para regular a assistência religiosa nos hospitais. Segundo a ministra, a saúde «não é só o tratamento físico», porque a «espiritualidade entra neste campo global». E, acrescenta, é necessário defender os direitos dos doentes(1).

Neste contexto, a palavra “espiritualidade” é duplamente enganadora. Primeiro porque, mesmo sendo verdade que o bem estar dos doentes não resulta só da terapia e dos medicamentos, não é verdade que exija essa “espiritualidade” de deuses, anjos, espíritos e demais. Muitos doentes encontram todo o conforto e consolo nos seus familiares, amigos ou na simpatia de quem os trata. O padre não é componente essencial, nem do recobro nem do bem estar do doente. E em segundo lugar a espiritualidade não é o catolicismo. Só se justificaria este acordo por razões médicas se estivesse devidamente demonstrada a eficácia terapêutica do catolicismo. Não é o caso.

E o direito de receber apoio “espiritual” já está garantido. Qualquer hospital permite que os doentes recebam visitas, desde que o seu estado de saúde o permita. Nestas o doente pode receber familiares, amigos ou sacerdotes da sua religião. O que está aqui em causa não é o direito do doente mas o encargo deste apoio. Se quem paga por esta assistência espiritual são as igrejas ou se é o contribuinte (2). E aqui há que pensar nos outros direitos do doente.

Enquanto doente, tem o direito que o ministério da saúde use com eficiência os recursos de que dispõe. E não é provável que estes sejam tão abundantes que o ordenado do capelão não fosse melhor investido em equipamento, enfermeiros ou médicos. Enquanto crente, tem o direito que o estado não interfira na religião e que não favoreça nenhuma em particular. E enquanto contribuinte tem o direito que o dinheiro que dá ao estado sirva para ajudar quem mais precisa e não para dar subsidiar a religião mais rica do país.

Não conheço os detalhes do novo acordo. Tenho esperança, pouca, que sirva para acabar com as duas centenas de padres católicos que o erário sustenta. Seria um passo na direcção certa. Mas temo que seja um acordo novo conservando o tacho velho.

1- Agência Ecclesia, Acordo entre Ministério e Capelanias Hospitalares
2- Fernanda Câncio, 28-9-07, são exactamente 193 capelães a mais

sábado, dezembro 06, 2008

Há sempre alguém...

Já todos recebemos emails a dizer que nos querem enviar uma fortuna mas precisam de algum dinheiro para tratar da papelada. A burla nigeriana é provavelmente a mais conhecida da Internet. Um email de um alto dignatário cheio de erros ortográficos. Quer tirar dezenas de milhões de dólares do país e confia-mos a mim, a quem não conhece de lado nenhum. E pede-me dinheiro primeiro. É inacreditável que alguém caia nisto. Mas há sempre alguém que cai.

Janella Spears é enfermeira e sacerdote no Oregon. Levantou todas as poupanças do marido, hipotecou a casa e o carro e deu quatrocentos mil dólares aos burlões. É por causa de gente como esta que nós recebemos tanto spam. Obrigado, Sra. Spears.

This woman sent Nigerian scam artists $400,000 - a fool or a victim?, via Schneier on Security.

Editado: a quem se quiser rir dos burlões recomendo uma visita ao 419Eeater.com. Obrigado ao leitor Dee por me lembrar deste site.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Insulto e privacidade.

O Pedro Ferreira comentou que «achas que deve existir alguma punição à devassa da vida privada. Mas isso é igual a punir o insulto, visto que essa devassa só é punida porque é insultuoso para o visado.»(1) Admito que parece. Vamos supor que um meliante publica uma foto de mim no duche e outro um comentário insultuoso acerca da minha figura. Vamos ignorar a injúria à sensibilidade estética de quem visse tal imagem e considerar que o único prejuízo destes actos é o transtorno que me causam. Para se justificar punir só o primeiro e não o segundo é preciso haver uma diferença relevante entre eles.

O segundo meliante exerce a sua liberdade de expressão ao publicar a sua opinião acerca da minha figura. Por muito chateado que eu fique, é a liberdade de expressão dele contra a minha vontade que não digam mal de mim. Ganha ele (1). Em contraste, o primeiro está a violar a minha liberdade de expressão, que não se restringe apenas à liberdade de exprimir o que sou e penso mas inclui também a liberdade de decidir que partes disso ficam no foro privado. O duche, por exemplo. A nível pessoal há uma diferença moral importante entre exprimir uma opinião acerca de alguém e revelar ao público informação que essa pessoa mantinha privada. Mesmo que o transtorno seja idêntico.

Além disso a liberdade de manter privado o que nos concerne é tão importante como a liberdade de exprimir o que pensamos. Ambas são parte da defesa dos nossos direitos. É por isso que qualquer ditador que se preze precisa, além da censura, de uma polícia secreta completa com escutas, bases de dados e informadores.

Imaginem, cenário puramente hipotético, que alguém neste blog insultava o meu nome, as minhas origens, o meu direito de me expressar e as minhas convicções republicanas e ateístas. Pior, fazia-o covardemente escondido atrás de um pseudónimo. Eu podia sentir-me tentado a exigir protecção e defender que a lei o pusesse a descoberto e o punisse pelas ofensas. Mas seria um erro. Por mero melindre e capricho cedia ao estado duas importantes defesas contra os abusos daqueles a quem, por necessidade, damos poder sobre nós. A nossa liberdade de partilhar parte do que somos e a nossa liberdade de guardar para nós o resto.

1- Comentário em Do insulto

Do insulto.

Volta e meia há quem defenda que se puna o insulto. Ou alguns insultos, como à pátria ou à religião. Mas punir o insulto é moralmente injustificável e é perigoso.

O insulto pode causar sofrimento. Como uma estalada, que concordo se deva condenar. Mas enquanto que o sofrimento causado pela estalada é função da agressão, no insulto o sofrimento depende da escolha do visado em se sentir insultado. Como alvo de muitos insultos desde que tenho internet, sei que só se chateia quem quer. E sendo sobretudo do visado a responsabilidade pelo sofrimento não se justifica sancionar quem insulta. Além da arbitrariedade e subjectividade da qualidade de ofensivo, é trivial fingir-se insultado, um subterfúgio conveniente e muito usado para suprimir a opinião contrária. Por estas razões não se justifica punir quem diz algo só porque outro o declara ofensivo.

Mas há uma razão mais forte. Este conflito não é apenas entre direitos pessoais equivalentes, a liberdade de expressão e o direito de não ser insultado, porque a liberdade de expressão é também um profilático contra doenças graves da sociedade. A censura e o controlo da informação são essenciais à ditadura. Hitler e Kim Jong-il não se tinham safo se os seus conterrâneos tivessem os meios e a liberdade para trocar opiniões, organizar ideias e dizer o que pensavam. E mesmo longe desses extremos a liberdade de expressão é necessária para contrariar abusos como o monopólio do Berlusconi sobre a comunicação social ou o Macedo Vieira mandar encerrar blogs incómodos dizendo ofender-se com os bigodes (1).

Devemos impor alguns limites à liberdade de expressão. Burlas, queixas infundadas à justiça ou devassa da vida privada são actos específicos que se pode punir sem escorregar pelo declive da censura. Mas não o insulto. Só se ofende quem quer e isto é demasiado vago para punir sem arriscar abusos. Legislar o insulto é criar uma ferramenta de censura só para proteger um capricho de imaturidade.

A desigualdade no poder de comunicar é uma das maiores ameaças à democracia, uma ameaça que a tecnologia moderna permite eliminar. Se qualquer pessoa pode trocar impressões com todas as outras o controlo da comunicação social por um indivíduo ou partido deixa de ser grave. Mas é verdade que este poder de comunicar acarreta responsabilidades. É preciso exigir algo dos participantes para que o sistema funcione. Só que não se pode exigir que ninguém ofenda os outros. Há sempre ofendidinhos que chegue para matar qualquer discussão se lhes dermos esse poder. É o mesmo que deitar fora o sistema todo.

Punir só algumas ofensas, como a ofensa à religião, ao nacionalismo e ao “bom nome”, é pouco melhor. Tem a vantagem de não censurar tudo mas a desvantagem de ser censura à mesma. E assume, injustamente, que é mais legítimo ofender-se com comentários à religião ou ao país do que ao clube ou ao bairro. Sentir-se ofendido é uma escolha puramente subjectiva. Nenhuma é mais legítima que as outras.

O que se deve exigir de qualquer adulto numa sociedade democrática é que seja adulto. Que não faça birra quando dizem algo de que discorda e que não acredite em tudo o que lê só porque alguém o escreveu. Basta isto para resolver o problema do insulto. É claro que nem todos cumprirão estes requisitos. Mas isso não é coisa que a lei resolva. É não lhes ligar e esperar que cresçam.

1- Povoa-online, a póvoa de varzim é laranja!

quarta-feira, dezembro 03, 2008

A estranha democracia d’el Rei, parte II.

Um post da Abobrinha (1) motivou-me a ler a entrevista que o Sr. Duarte Pio deu ao Público (2). «Tive várias oportunidades de trabalho, mas não aceitei, porque, na minha condição, não poderia ser empregado de ninguém.» Numa sociedade democrata e igualitária não queremos que tenham que trabalhar pessoas em certas condições. As crianças, os idosos, as grávidas, os inválidos e os que julgam ser mais que os outros. E o Sr. Duarte é muito mais que os outros:

«Quando estou numa monarquia árabe sou descendente do profeta Maomé. [...] Mas quando estou em Israel digo que o D. Afonso Henriques era descendente do Rei David.»

Costumamos julgar o mérito de cada um pelo que é e pelo que faz em vez de por quem terá sido o seu treta-avô. Mas o caso do Sr. Duarte é diferente porque foi Deus quem o enviou. Mas por intermédio do povo, que o Sr. Duarte não é pretensioso.

«(Público)- Mas sente essa obrigação [de se dedicar a Portugal] em relação a quem? Aos seus antepassados?
D. Duarte- Acho que é em relação a Deus. Se nasci numa determinada família, tenho perante Deus a obrigação…
(Público)- O poder dos reis vem de Deus?
D. Duarte- [...] todo o poder tem origem em Deus, mas chega-nos através do povo, não é arbitrário. O povo é que delega no rei o poder.»


Deus passa o poder ao povo. O povo dribla, avança com o poder, o rei desmarca-se, o povo passa e... graaaaaaande aclamação.

Mais a sério, a monarquia incomoda-me. Não apenas pelo absurdo de achar que se é especial por ter 1/10,000,000,000 dos genes do Afonso Henriques ou pertencer a famílias onde o casamento consanguíneo é a norma. Isto destoa numa democracia mas não é grave por si. O que me incomoda mais na monarquice portuguesa é o provincialismo. «[P]orque ser monárquico é também defender Portugal acima de todos os interesses»(3). Não vejo que interesses poderá ter Portugal para além dos interesses dos portugueses. Nem me parece razoável defender os interesses dos portugueses acima de todos os outros. Afinal, os estrangeiros também são gente.

Os monárquicos são obcecados pela “Pátria”, um conceito anacrónico e arbitrário. Da revolução agrícola no neolítico até ao fim do feudalismo a pátria era facilmente definida pela geografia. Nos tempos dos reis o território era a riqueza da nobreza e os camponeses faziam parte do território. Tipo electrodomésticos mas com menos regalias. Com a evolução dos transportes, das comunicações e da mentalidade é mais difícil defender que as margens de cá do Guadiana e do Minho são muito melhores que as margens de lá. Até porque os espanhóis parecem cuidar melhor da parte deles. A Pátria passou a ser mais histórica e cultural do que geográfica.

Mas a Pátria histórica é tão arbitrária como a geográfica. Em vez de traçarem a linha no chão traçam-na na batalha de São Mamede. A partir daí, descontando umas tricas dos espanhóis, parece haver uma Pátria. Mas só porque descontámos também os mouros, os visigodos, os romanos, os lusitanos e uma data de gente até aos neandertais como os da Gruta da Oliveira, vítimas dos imigrantes africanos cro-magnon dos quais todos descendemos.

E a Pátria cultural é a que faz menos sentido e é mais perigosa. Claro que se deve preservar a cultura desta região e destes últimos séculos. Mas também se deve preservar a cultura anterior a 1128, a cultura de outras regiões, e abraçar a cultura de agora em toda a sua riqueza, diversidade e globalização. Circunscrever um pedaço e defendê-lo «acima de todos os interesses» e um disparate provinciano, xenófobo e que discrimina os portugueses cuja pátria cultural não inclua a tourada, procissões da nossa senhora de não sei onde e a sua alteza do que quer que seja.

1- Abobrinha, Prémio persistência
2- O Jornal, Entrevista de SAR o Senhor Dom Duarte ao Jornal “Público”
3- O Jornal, Mensagem de SAR Dom Duarte de Bragança, 1 de Dezembro de 2008

terça-feira, dezembro 02, 2008

Gestão da treta.

«A Invesfer, uma participada da Refer que tem como missão ganhar dinheiro com os terrenos e imóveis que já não têm utilidade "tendo em vista libertar meios financeiros para a melhoria da infra-estrutura ferroviária", acumulou dívidas de 48,9 milhões de euros.
[...]
a Invesfer vendeu em 2006 por um euro uma participação de 50 por cento no capital social da Espaços Seniores - Serviços de Continuidade de Cuidados de Saúde, SA, que havia sido adquirida um ano antes. O negócio traduziu-se num custo de 1,2 milhões de euros.»
(1)

Em geral, penso que não se deve assumir dolo no que se pode explicar por incompetência. Mas há limites para o que se pode explicar por incompetência...

1- Público, Empresa imobiliária da Refer em risco de sobrevivência

segunda-feira, dezembro 01, 2008

A estranha democracia d’el Rei.

No dia 1 de Dezembro de 1640, um grupo de fidalgos matou a Duquesa de Môntua*, regente de Portugal, para pôr no poder D. João IV Duque de Bragança. Pelas regras da sucessão monárquica Portugal tinha voltado a fazer parte de Espanha com a morte de D. Henrique, 60 anos antes. Mas isto da monarquia é como convém a quem está por cima, por isso volta e meia um aproveita para ficar com o tacho todo. Passados quatro séculos, a Sua Alteza Real Dom (SARD) Duarte de Bragança, herdeiro daquele vira-o-disco, fala-nos da democracia.

«Este sentimento geral de que a democracia deve ser melhorada entre nós, levou-me a apoiar o recém-criado Instituto da Democracia Portuguesa, que tem já desenvolvido múltiplas e úteis actividades em várias regiões do país, em colaboração com diversas organizações e com as autarquias locais.»(1)

SARD Duarte é “Presidente de Honra” do Instituto da Democracia Portuguesa que, pelo site, parece ser um apêndice do monárquico “Somos Portugueses” (2). E é estranho que defendam a democracia. Ao que parece, não perceberam que o mais importante na democracia é a abertura de todos os cargos do governo a todos os cidadãos. O rei não pode defender a democracia. Um cargo cujos requisitos incluam ser filho do último titular é, por si só, um atentado à democracia.

Os monárquicos lamentam o regicídio de 1910. Eu também lamento, tal como lamento que os monárquicos tenham morto a Duquesa em 1640. Se fosse numa democracia ao fim de quatro votava-se noutra pessoa e não era preciso matar ninguém, que é sempre lamentável. Falta aos monárquicos perceber este defeito dos cargos vitalícios. A natureza inevitavelmente trágica de qualquer despedimento.

*Correcção: como o leitor V.F. apontou, não mataram a Duquesa, que ainda por cima era de Mântua e não de Môntua. Só mataram o Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos. É o que dá acreditar no que se lê na net fora da Wikipédia... Obrigado pela correcção. Seja como for, o processo foi pouco democrático, para infelicidade daqueles que deixaram o cargo.

1- O Jornal, Mensagem de SAR Dom Duarte de Bragança, 1 de Dezembro de 2008
2- http://idp.somosportugueses.com/site/