quarta-feira, maio 21, 2008

O culto de comunicar.

Imaginem que pegava a moda de apagar a televisão ao jantar e as famílias passavam o serão a conversar, os miúdos contavam o que tinham feito na escola, alguém lia um livro em voz alta ou simplesmente falavam do que lhes apetecia. Acabava-se o negócio do Big Brother dos Famosos e das novelas, das reportagens sobre a Maddie e sobre o futebol. É esta a tragédia que assola a Internet, segundo «O Culto do Amadorismo» de Andrew Keen e segundo o anúncio da edição portuguesa deste livro no De Rerum Natura*:

«Os mais prestigiados jornais e revistas da actualidade, a indústria musical e cinematográfica são postos em causa por uma avalanche de conteúdos amadores criados pelos utilizadores das redes digitais.[...] Quando bloggers, podcasters ou videógrafos anónimos podem publicar sem os constrangimentos de padrões profissionais ou filtros editoriais, esbatem-se as fronteiras entre o verdadeiro e o imaginário.»(1)

É realmente trágico. Milhões de pessoas preferem a Wikipedia aos “padrões profissionais” do 24 Horas e do Jornal do Incrível. Perde-se a tradicional reportagem científica escrita por um licenciado em jornalismo que, apesar de não perceber nada do que está a escrever, tem uma cartolina plastificada a dizer “Imprensa” e em vez disso restam só os blogs de investigadores que trabalham na área e que falam do que sabem sem “filtros editoriais”. Pior que tudo, agora as pessoas opinam de graça e estragam o negócio a quem opinava por elas.

Sarcasmo à parte, não vejo que isto seja mau. A maior parte do conteúdo dos jornais, TV e cinema é, e sempre foi, treta. Esta indústria cresceu graças à nossa necessidade compulsiva de comunicar aliada ao controlo dos meios de comunicação. Em poucos segundos já temos a informação que houve um incêndio em certo sítio. Os cinco minutos que se seguem de pessoas a descrever as labaredas e a chorar a perda das suas casas é só conversa. É o equivalente jornalístico do “Está? Olha, estou no supermercado mas vou já para casa, está bem?”. A nossa apetência por conversas da treta dá muito dinheiro a quem conseguir cobrar mas só enquanto precisarmos de intermediário.

A facilidade de comunicar não ameaça o jornalismo sério nem a arte. Os melhores filmes rendem milhões, os melhores músicos enriquecem e os melhores jornais fazem negócio. Com centenas de milhões de pessoas e tudo à distância de um click o que tem valor até rende mais dinheiro oferecido de graça (2). O que está ameaçado é o comércio de conversas da treta e banalidades. Não foi a cultura que mudou. Foi a concorrência que aumentou quando ficou tudo à mesma distância. Mas, por ignorância ou desonestidade, insistem na causa errada:

«Confrontado com uma cultura que enaltece o plágio e a pirataria e enfraquece os media e criadores, Andrew Keen tem a coragem de apontar soluções concretas para enfrentar a onda de arbitrariedade e narcisismo que atravessa a Internet actual.»

Esta cultura não enaltece o plágio. Quem achar que sim que experimente, a ver se recebe ovações ou apupos. “Pirataria” põe a partilha de informação no mesmo saco que a venda de bens contrafeitos e chama roubo a tudo, propositadamente confundindo coisas bem diferentes. E nada disto é novidade. A nossa cultura é, e sempre foi, a informação que partilhamos. A língua, os costumes, a arte, as anedotas, as receitas, as fotocópias, os gravadores de cassetes e os telemóveis, tudo isto nasceu da nossa vontade de partilhar. A Web e a Internet têm sucesso por facilitar aquilo que as pessoas sempre quiseram fazer. Partilhar ideias, partilhar opiniões, partilhar informação e partilhar as coisas de que gostam.

Não está em risco a cultura, nem a arte, nem a excelência nem a verdade. Pelo contrário. Estas sempre beneficiaram da partilha livre de ideias e de informação. O que está em risco é apenas o lucro dos monopólios sobre a mediocridade.

*O post está ambíguo e não sei se foi escrito por alguém do De Rerum Natura se é um comunicado da editora. O que é irónico, dada a crítica à alegada “cultura que enaltece o plágio”...

1- De Rerum Natura, 17-5-08, O Culto do Amadorismo
2- Tech.Blorge, 17-9-07, Why the New York Times Is Free

14 comentários:

  1. Fabuloso, Ludwig. Eu não teria dito melhor...

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  2. Então é tudo uma questão sobre o monopólio da mediocridade? O que serão os leitores e os comentadores? Medíocres a querer ocupar o tempo?

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  3. Caro/a Granada

    «medíocre:
    adj. 2 gén.,
    mediano;
    meão;
    que está entre o bom e o mau;
    ordinário;»


    Proponho que a maior parte do rendimento da comunicação social se deve a conteúdos nesta categoria.

    E normalmente quem escreve, lê ou comenta um blog não julga que faz algo de extraordinário ou excepcionalmente bom. Mesmo assim, há por aí muitos posts e comentários melhores que muito do que é escrito por profissionais.

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  4. Bem, aceito essa definição mais soft...lol.
    Eu não sou nenhum génio mas a conotação de mediocridade é muito pejorativa.
    Às vezes há comentários brilhantes, bem mais interessantes que o próprio post, concordo.
    mas enfim, eu dedico-me a lê-los porque de facto prefiro a net para comunicar e ficar informada. Mesmo que isso me faça parecer um zoombie em certos meios que usam a tv como veiculo de informação passiva...enfim! há sete/oito anos que passo o meu tempo livre na net e considero que estou bem mais desperta, formada e informada. Quando ligo a tv assusto-me!
    ps: "CarA Granada"

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  5. Ludwig

    Fiquei confusa porque o início do post porque quase (atenção: quase!!!) assinei por baixo. Mas não é bem essa a tragédia que assola a internet. O que falas no primeiro parágrafo e em parte dos seguintes é diferente: é um certo embrutecimento (mais grave porque começa com criaças), uma cultura da irrelevância (o Pacheco Pereira tem um post recente sobre isso) e mediocridade junto com a necessidade de ser carneiro e ir atrás dos outros. É uma treta diferente porque muito do que há na internet é também treta, mediocre e irrelevante... o meu blogue é perfeitamente irrelevante!

    O post que referes manda uma completamente ao lado ao dizer que "os mais prestigiados jornais e revistas da actualidade [...] são postos em causa por uma avalanche de conteúdos amadores criados pelos utilizadores das redes digitais". Em termos das notícias em si (os conteúdos) não são postos em causa simplesmente porque os amadores não fazem a investigação. São postos em causa porque as pessoas não querem pagar e comem antes o que apanham à borlix na internet e em jornais de distribuição gratuita, que se baseia por vezes nestes conteúdos, mas se alimentam exclusivamente de publicidade e não de receitas de venda. Mas as pessoas comentam. E muito frequentemente com muito mais qualidade e espírito crítico que muitos "paineleiros" que para aí andam, pagos e bem pagos. Atenção que não sei se sabes que "paineleiro" foi uma piada que se usou para a opinião do "painel de comentadores" do futebol num dos milhentos programas sobre o dito na SIC (a palavra pode dar azo a mal-entendidos se não for entendida).

    Tens razão na qualidade de muitas coisas postas a circular na net e no bom que é ter pessoas a fazer circular informação de modo perfeitamente altruísta. Mas há o lado B: a maioria é porcaria e a maioria das pessoas não procura a qualidade. Mas é isso que vende e é isso que o povo quer. Só que nos meios tradicionais muitas vezes uma coisa suporta a outra e temos programas profundos como o "quadratura do círculo" que é visto por uma minoria suportado por toda a maquinaria de Floribellas e outros que tais. Mas terá que ser assim? As coisas terão que ser assim mediocres para vender ou será isso um insulto à inteligência das pessoas? Como se promove então a excelência ou pelo menos "só" a qualidade? A qualidade tem mesmo que ser um produto de elite?

    O post que referes peca ainda porque amadorismo e o plágio são parte de problemas diferentes: o amadorismo é fazer a coisa pela carolice, pelo sentido de missão (denunciar tretas, por exemplo) ou simples prazer em comunicar sem estar à espera de pagamento (eu gostava de ser paga para escrever as minhas asneiras, mas ninguém vai nessa); o plágio é fazer passar por seu um conteúdo e é falta de educação a vários níveis. Para este último caso temos um moço que deixou de comentar aqui (não me lembro do nome) e que copiou um post teu, fez inicialmente passar o texto por ser dele e ainda quando confrontado chutou para canto e disse que o teu texto não era diferente de muitos que por aí andavam. Plágio e citação não são a mesma coisa. Eu cito muito frequentemente, mas indico-o claramente.

    E amadorismo e mediocridade não são sinónimos. Antes fossem, dado que isso garantiria qualidade automaticamente quando fosse a pagantes. Um pouco como aquela ideia de que uma camisola automaticamente é boa porque foi cara... e até era boa até ganhar borboto (aqui chamamos-lhes "badalhocas") depois de usada 2 vezes.

    Há um fenómeno de amadorismo mas há que ter medo dele porque é a verdadeira democracia comunicativa e porque demonstra o que somos e o que queremos demonstrar. É um tubo de ensaio perfeito para perceber os cidadãos do outro lado do computador. E fazer algo acerca disso, para tentar torná-los melhores.

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  6. Oooops... comentário longo demais... devia tê-lo truncado... sorry...

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  7. Li há algum tempo um artigo de opinião num dos nossos jornais de referência sobre o fenomeno Harry Potter. O sr. admitia que nunca tinha lido uma linha dum livro ou visto um filme, mas sentia-se capaz de dicorrer sobre o tema. E pagaram-lhe por isso.

    on

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  8. Claro que tens razão. E na net pelo menos ainda conseguímos encontrar qualidade e informação, quanto nos media...
    Notícias típicas da TV: "grande manifestação de estudantes nas Filipinas. A polícia inerveio com gás lacrimogénio e mangueiras de água. Os manifestantes atiraram pedras e vandalizaram viaturas".E falta sempre o porquê. As causas são menos importantes do que a opinião dos labregos que andam na rua, e chamar jornalismo a isto é como chamar ciência ao criacionismo.
    Bjs Karin

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  9. Karin,
    aqui tenho que puxar a brasa à minha sardinha e realçar, como o fez o Ludi, que há média sérios. Claro que a tv portuguesa não entra nessa equação (nenhuma delas), mas, por sorte, há alternativas.
    E os meios de comunicação sérios informam a sério. A vantagem que têm em relação à internet (sem desfazer a importância deste meio de comunicação), é que a qualidade da informação não é um acaso. Quanto à análise, isso é outro assunto completamente diferente. Não é preciso ser jornalista para analisar os factos, é preciso ter dois dedos de testa e perceber da poda. Outra vantagem em relação à net: os meios de comunicação sérios escolhem os seus analistas de acordo com esses critérios. Na internet o que mais há é opinião não qualificada (e ainda bem, senão eu e o Leperchaun nunca poderiamos dar a nossa :-)
    Cristy

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  10. Cristy
    tens razão, mas opinião não qualificada há igualmente aos montes em qualquer media. Por isso não há diferença nenhuma entre o suporte informático, o audio, o video ou o papel. A questão é saber escolher, o problema é saber separar o trigo do joio.
    Bjs Karin

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  11. Karin,
    exactamente. Por isso é bom saber que se tem um meio de inormação à mão no qual se pode confiar. Sem nunca excluír a possibilidade de erros, claro. Mas isso é igual em todo o lado: na ciência, no ensino, etc. Básicamente estou mais diposta a seguir uma discussão política,científica, social ou económica em meios onde os editores e os contribuintes são pessoas com formação específica para o que estão a fazer, do que na Internet, onde qualquer um que não entende pevas dá duas para a caixa. E acho mais sensato mandar as crianças para a escola, para serem ensinados por quem aprendeu como se ensina, do que a colocá-los em frente do computador e dizer-lhes: agora amanhem-se. É claro que também neste contexto haverá situações onde seria preferível adoptar essa atitude, mas estou a falar de um modo geral.
    Cristy

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  12. Karin e Cristy

    O problema da informação não é o meio: as notícias podem ser de qualidade e credibilidade na net e em papel. O problema PODE ser as borlas porque trabalhar informação (colhê-la e analisá-la) é muito mais que um trabalho a tempo inteiro e exige mais que muito dinheiro. Neste sentido é que o post que o Ludwig referenciou é extremamente desconexo porque aborda muita coisa, que não cabe no mesmo saco (amadorismo, copyright, vício de comunicar).

    Se não há dinheiro pago por quem gera informação, pode não haver informação suficiente. Mais: tem que haver pelo menos pequeno excesso de fornecedores de informação, senão não há diversidade, o que pode por sua vez não gerar isenção. Monopólio na informação (e seja no que for) dá normalmente mau resultado, pelo que o mercado tem regras contra ele (e vice-versa: cartelização).

    As análises de notícias devem ser feitas por peritos e estes devem ser pagos para isso. Não pode ser tudo feito por amadores porque pode não haver tempo nem profundidade, o que gera só lugares comuns. Não é o mesmo que dizer que a opinião dos amadores não tenha validade. Lá está: deviam ser por vezes a pedrada no charco e o verdadeiro exercício de democracia. As pessoas deviam ser tidas em conta e não irem só beber o que dizem os famosos “paineleiros”.

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  13. Na internet o que mais há é opinião não qualificada (e ainda bem, senão eu e o Leprechaun nunca poderíamos dar a nossa :-)


    LOL !!!

    Exactamente, ó Maninha... espertinha! ;)

    Mas olha que a minha opinião é maioritariamente muito de "advogado do diabo"... bem, que aqui é até um pouco mais angélico, really!

    Anyway... vou reservar o fôlego para o novo tema do ID, a ver se a Granada também resolve dizer alguma coisa, que aí a opinião dela é qualificada, atenção! :)

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  14. Leprechaun,

    Que se passa contigo? Diz... Podes contar comigo! Esse comentário tão curto revela algo perturbante, tetrico até:)

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