sábado, janeiro 19, 2008

Como a Europa criou a ciência.

Nos últimos séculos a Europa destacou-se do resto do mundo pelo progresso social e tecnológico. Até recentemente era comum explicarem-no pela superioridade da raça. Da raça de quem propunha a explicação, claro. Agora há quem o explique pela superioridade da religião de quem assim o explica. Eu rejeito ambas as explicações e mais ou menos pelas mesmas razões.

Durante os mil anos que seguiram o colapso do império Romano a Europa esteve atrás do Médio Oriente e de grande parte da Ásia. Foi só por volta de 1300-1500 que as coisas mudaram. A peste negra dizimou parte da população e, mais importante a longo prazo, o sistema feudal. A redescoberta dos clássicos lembrou os europeus que havia mais que um livro. A navegação, o contacto com outros povos e as riquezas trazidas de outras terras mudaram as sociedades da Europa. A religião e a raça eram as mesmas. Foi o resto que mudou. E talvez o mais importante tenha sido a combinação de três factores, dois dos quais uma ciência com aplicações tecnológicas e uma tecnologia útil à ciência. Hoje parece estranho, mas antigamente a tecnologia e a ciência não tinham nada a ver uma com a outra. Os Gregos e os Romanos são um bom exemplo.

Os Gregos tinham uma filosofia sofisticada, investigavam as coisas com o espírito crítico da ciência e acumularam imenso conhecimento teórico. Que não servia para nada. Foi essencial para o que veio mais tarde mas, naquela altura, não tinha utilidade prática. Não há tecnologia baseada nas quatro causas de Aristóteles ou nas formas de Platão. Os Romanos eram o contrário. Tinham pouco de ciência mas a sua tecnologia era extraordinária. Tudo descoberto pela prática, por tentativa e erro e passado de mestre para aprendiz sem alicerce teórico. Faz-se assim porque funciona, e durante muito tempo não houve outra forma de melhorar a tecnologia. Mas isso mudou no Renascimento.

Galileu usou tecnologia para fazer experiências cientificas e quantificar os resultados, e usou a ciência para criar nova tecnologia. Novas formas de apontar canhões, lunetas, microscópios e termómetros e até uma maneira de calcular a longitude usando as luas de Júpiter como um relógio. Enquanto a ciência era apenas filosofia especulativa e a tecnologia tentativa e erro o progresso era quase imperceptível. Dois mil anos do trirreme à caravela. Mas desde que a ciência e a tecnologia se desenvolveram o suficiente para cada uma empurrar a outra foram cinco séculos até à Lua.

O terceiro factor foi a burguesia. Durante muitos séculos o poder pertenceu ao clero e à nobreza, que queriam sempre manter o status quo. No Renascimento o comércio deu muito dinheiro, e poder, a quem se interessava por inovar. Com estes três factores em conjunto a inovação explodiu, e o Cristianismo não ajudou nada. A versão Católica até atrapalhou, deixando a Europa do Sul ficar para trás da Europa Protestante em ciência e tecnologia apesar de ter começado à frente.

Mas também não digo que o Cristianismo tenha atrapalhado muito. Até ao Renascimento seria difícil acelerar o processo. Mesmo que houvesse melhor clima para a especulação filosófica, até a tecnologia permitir uma abordagem experimental quantitativa a ciência não ia produzir muito de útil. E desde que a ciência e a tecnologia se aliaram que a escolha das religiões tem sido entre recuar, cair no ridículo ou, mais frequentemente, ambas.

Em 1992 a Igreja Católica perdoou Galileu, mostrando-se, mesmo antes de começar o século XXI, aberta à possibilidade de alguns astros não orbitarem a Terra. Mas este gesto teve pouco impacto na astronomia moderna, à parte de algumas gargalhadas.

26 comentários:

  1. Uma série de antologia.
    A ver se os teus críticos voltam à carga, para ver se a tua inspiração se mantém!

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  2. Um belo post. De facto, os gregos e os romanos não estavam motivados a desenvolver as forças de produção, porque tinham escravos.
    Antero de Quental trata do nosso atraso e atribuiu-o ao papel da Igreja... :)

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  3. Nos séculos que se seguiram ao renascismento o número de escravos na europa aumentou, e não foi por isso que deixou de existir motivação para desenvolver as forças de produção.

    Isto para já não falar na idade média... entre ser servo da gleba em pleno feudalismo e ser escravo durante o império romano, a segunda hipótese poderia ser mais apelativa...


    Creio que Antero de Quental tinha razão em algumas das suas críticas.

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  4. Agradeço as belas lições que aqui tenho aprendido. Espero que nunca desista desta salutar tarefa de esclarecer quem não sabe. Muito obrigado pela sua coragem e dedicação.

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  5. Dado que estou ser acesso à internet em casa e assim ficarei mais alguns dias os comentários a este post ficam para daqui a uma semana. Mas os argumentos são fáceis de contrariar.

    Directamente do centro comercial Dolce Vita, no Saldanha, Lisboa, António Parente despede-se do ktreta!

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  6. Francisco Saraiva comentou:

    "Antero de Quental trata do nosso atraso e atribuiu-o ao papel da Igreja..."

    ... e muitos estudiosos tratam do atraso do Brasil e atribui-o aos Portugueses.

    Independente dessas duas hipóteses serem verdadeiras ou não que elas são insuficientes para gritarmos "morte à igreja" ou "morte aos portugueses", isso elas são.

    Tiago

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  7. Disse o Tiago Luchini que «elas são insuficientes para gritarmos "morte à igreja"».

    Certamente, mas não se queria gritar isso. Queria-se apenas desconstruir o ressuscitado argumento que o Cristianismo (ou a religião em geral) não só não obstruiu o progresso civilizacional na Europa como até o teria estimulado.

    Desconstrução essa que é trivial, mas mesmo assim não imune a sofismos (dos baratos, ou mesmo do outros)…

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  8. Ludwig

    É a primeira vez que vejo escrito como explicação para o desenvolvimento científico uma pretensa superioridade religiosa. A tese é só sua ou existe alguma corrente crítico-histórica a partilhá-la?

    A única coisa que li sobre a influência da religião no desenvolvimento do capitalismo foi a doutrina calvinista.

    Parece-me que a chave do seu texto está nas referências a Galileu (parece que é a única arma de arremesso contra a Igreja, o que é muito elogioso...), na "atrapalhação" que o Cristianismo provocou (não explica como) no "recuar", no "cair no ridiculo" e nas "gargalhadas".

    Enfim, parece-me que é a sua quinta tentativa de ridicularizar o Cristianismo mas apesar dos aplausos dos seus indefectíveis apoiantes parece-me que é mais uma tentativa falhada.

    Esquece-se que muita ciência foi desenvolvida por cristãos. Por exemplo, Darwin e Newton. Não parece que o Cristianismo tivesse impedido a teoria da evolução, a revolução industrial, etc, etc. Tudo bem espremido, continuará com o episódio de Galileu... É muito pouco para 2 mil anos.

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  9. António,

    A tese não é invenção minha. Veja os exemplos do Bernardo e do João César das Neves.

    E Galileu não era um exemplo de como a Igreja Católica impediu o progresso. Pelo contrário. O que se passou foi chato para Galileu, mas fez muito pouco para impedir que se soubesse que a Terra não era o centro de tudo.

    Galileu é sim o fundador mais conhecido da ciência moderna, com o seu uso de instrumentos de medição e a sinergia com a tecnologia.

    Finalmente, se olhar para as tags no lado direito, verá que não são cinco posts a ridicularizar o cristianismo. São mais de cem.

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  10. Ludwig

    A tese do Bernardo e do João César das Neves, como eu a entendo, é que a Igreja nunca impediu o progresso da ciência. Até aqui concordamos.

    Para se defender que a Igreja impediu o progresso da ciência seria necessário muito mais do que o Ludwig escreveu.

    Aliás, o Ludwig aproxima-se do Sr. Perspectiva, meu colega comentador no De Rerum Natura, quando aborda este tipo de assuntos. O Sr. Perspectiva ficou muito aborrecido comigo quando afirmou que o design inteligente estava em toda a parte e eu expliquei-lhe que não via Deus a desenhar os novos modelos de telemóveis da Nokia. Aqui é um exemplo semelhante: a torradeira chegou ao século XXI e não me parece que a Igreja tivesse feito muita força para o impedir.

    Quanto a Galileu, há muito para dizer. Deixe-me continuar a minha investigação e depois retomaremos o assunto.

    Quanto ao ridicularizar o cristianismo, eu dizia que o Ludwig tentava, não escrevi que o conseguia. Por acaso tem razão quando fala nos tags. Deve ser frustrante mais de 100 tentativas sem êxito.

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  11. Ludwig,

    «Em 1992 a Igreja Católica perdoou Galileu, mostrando-se, mesmo antes de começar o século XXI, aberta à possibilidade de alguns astros não orbitarem a Terra. Mas este gesto teve pouco impacto na astronomia moderna, à parte de algumas gargalhadas.»

    O que é que já leste, sobre os dois processos contra Galileu?
    (sim, há dois processos)

    Que obras, que fontes em primeira mão, que documentação folheaste?
    É uma pergunta simples.

    Um abraço,

    Bernardo

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  12. Ludwig

    Pode consultar o processo contra Galileu em

    http://asv.vatican.va/download/libri/CAV_21.zip

    o download é gratuito.

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  13. António,

    Obrigado. Este link também bastante material.

    Bernardo,

    Tenho a impressão que um dos processos (1616) foi um bocado falsificado por alguém que queria tramar Galileu. Mas talvez o caso não seja consensual.

    Seja como for, parte da condenação foi que é absurdo, falso, e erroneo na fé considerar que a Terra não é o centro imóvel de todo o universo. Hoje em dia, e apesar dos esforços de Ratzinger para baralhar a questão, a Igreja parece mais aberta à possibilidade de isso não ser assim tão absurdo.

    Não sei ao certo todo o material que li sobre o assunt.... porquê? É relevante? Se há alguma informação pertinente que eu desconheça, estás à vontade para mandar o link. Mesmo que já tenha lido não me importo :)

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  14. Ludwig

    Segui o seu link e verifiquei que:

    1) A decisão da Inquisição não foi tomada por unanimidade; 3 juízes em 10 votaram a favor de Galileu;

    2) O Papa sentiu-se retratado numa das figuras do livro de Galileu, o que o enfureceu, tornando este caso numa querela pessoal;

    3) Galileu coloca em causa a visão literal da Bíblia, apoiado em Santo Agostinho (isto não é dito no texto), o que choca com a teologia da época.

    Cada vez mais fico convencido que o caso Galileu não foi uma guerra simples entre religião e ciência. É muito mais complexo do que o Ludwig fez crer.

    Obrigado pelo seu link.

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  15. António,

    «Cada vez mais fico convencido que o caso Galileu não foi uma guerra simples entre religião e ciência. É muito mais complexo do que o Ludwig fez crer.»

    Nunca disse o contrário. Foi um caso repleto de vinganças e picardias.

    Mas o mais importante do caso é que a obra de Galileu foi proibida e Galileu aprisionado e ameaçado para que não dissesse que a Terra se movia. É esta atitude repressiva que é contrária à ciência. A mera discordância de opiniõies, se está no centro ou não, é perfeitamente aceitável em ciência.

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  16. Ludwig

    Já estamos de acordo num ponto: foi um caso repleto de vinganças e picardias.

    O que é estranho em toda esta história é que Copérnico defendeu o heliocentrismo sem ter qualquer tipo de problema. Segundo diz a wikipedia, o clero católico até via com simpatia a teoria heliocêntrica e estimulavam o seu estudo.

    Porque é que 100 anos depois, Galileu teve tantos problemas ao defender essa teoria?

    Em 1610, Galileu teve êxito com o livro que escreveu. Obteve o apoio de um padre jesuíta, de Kepler e de alguns cardeais. Todavia, o êxito do seu telescópio provocou uma reacção da escola filosófica que defendia o geocentrismo de Aristóteles. E foi esse grupo que pressionou, com êxito, a Inquisição a condenar Galileu (no primeiro processo). E no segundo processo, o Papa sentiu-se pessoalmente atingido pelo livro.

    Mais do que uma condenação da Igreja à ciência foi uma guerra entre personalidades e escolas diferentes.

    Isso não diminui a gravidade da punição disciplinar aplicada a Galileu. Estamos de acordo que a devemos repudiar e condenar. Mas se fosse uma luta anti-ciência a teoria de Copérnico teria morrido à nascença.

    E hoje temos de lutar contra uma nova Inquisição: a que condena tudo o que sai do positivismo lógico. Não tem poder para proibir mas se o tivesse o que faria? Fica a pergunta.

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  17. António,

    Pelo que sei o modelo de Copérnico foi publicado (postumamente) como um truque para calcular as posições dos planetas. O editor até tinha posto um disclaimer a dizer que o livro não sugeria que fosse assim, apenas era uma outra forma para simplificar alguns cálculos.

    Como assumia órbitas circulares, acabava por ter quase tantos problemas como o modelo de Ptolemeu, e deve ter sido por isso que a Igreja o ignorou.

    Galileu tramou-se porque insistiu que a Terra se movia e não andava tudo à nossa volta. Isso é que já não podia ser.

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  18. Ludwig

    A minha fonte foi a Wikipedia. O que li foi o seguinte:

    "A teoria do modelo heliocêntrico, a maior teoria de Copérnico, foi publicada em seu livro, De revolutionibus orbium coelestium ("Da revolução de esferas celestes"), durante o ano de sua morte, 1543. [...]Copérnico acreditava que a Terra era apenas mais um planeta que concluía uma órbita em torno de um sol fixo todo ano e que girava em torno de seu eixo todo dia."

    Não ponho em causa as sobre observações sobre o conteúdo do livro nem o detalhe sobre a data de publicação.

    A questão é que o livro circulou, não foi proibido, e há autores (é a wikipedia que o diz) a defender que a teoria de Copérnico era revolucionária para a época apesar das suas limitações.

    Galileu tramou-se porque tinha inimigos com poder e usaram esse poder para fazer vencer as suas teses. Continuo a acreditar que não foi uma questão simples entre religião e ciência.

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  19. António,

    Que não é simples estamos de acordo. Penso que também estamos de acordo que mandar prender alguém só por uma diferença de opinião é condenável.

    É por isso que não concordo com o tom dos discursos deste Papa que tenta por de lado este problema pintando o incidente como uma questão meramente intelectual. A diferença de opinião era aceitável, mas o problema está no que a Igreja fez disso.

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  20. Ludwig

    Estamos de acordo que a Igreja errou. Mas estamos a avaliar o que aconteceu há quase 400 anos com os nossos critérios actuais.

    Não podemos alterar o passado mas temos de ser vigilantes quanto ao presente e ao futuro, na medida das nossas possibilidades, para que não aconteçam situações semelhantes. No campo da Igreja e da laicidade.

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  21. António,

    Essa desculpa não pega. Isso é como dizer que os muçulmanos tratam bem as mulheres porque as tratam da forma como eles acham melhor. É treta. O relativismo moral é incoerente, e quando os que o rejeitam por principio o usam por dar jeito além de incoerência é hipocrisia.

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  22. Ludwig

    Não é desculpa e o seu exemplo é falacioso. Nem vale a pena tentar explicar-lhe porque a partir do momento é que entre no "diálogo" a palavra "hipocrisia" eu saio fora. Quando se deixam argumentos para se entrarem em ataques pessoais, a racionalidade acaba. E eu quero conservar o respeito que tenho por si.

    Adeus.

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  23. António Parente,

    Se não gosta da palavra, seja. Eu não gosto de «propedêutico» nem de «tubérculo». Acho palavras feias. Mas se tiver que ser, uso-as, com certeza. Mas gostos não se discutem.

    Agora se rejeitamos o relativismo moral e depois, quando se trata da nossa religião favorita, dizemos que não se pode condenar isto ou aquilo porque naquele tempo os valores eram outros, então alguma parte disto foi finjimento. Dissimulação. Teatro.

    Se quiser, proponho então retirar a palavra «hipocrisia». Peço desculpa por ter usado essa palavra, e peço a todo os leitores que substituam o termo por «impostura, fingimento;
    manifestação de virtudes ou sentimentos que realmente se não tem.»

    Melhor?

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  24. Ludwig

    Eu diria que está perfeito.

    Se não tem capacidade para perceber o outro ponto de vista nem para discutir sem insultar então não vale a pena conversar consigo.

    Já que não entendeu o "adeus" aqui fica: acabou o nosso "diálogo".

    Recuso-me a entrar numa de insultas tu, insulto eu.

    Passe bem.

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  25. António,

    Se alguém me diz que a escravatura é inadmissível, mas depois diz que não podemos achar mal o avô ter tido escravos porque naquele tempo pensava-se de outra forma, eu digo que é hipocrisia.

    A situação aqui parece-me a mesma. Alguém protestar contra a intolerância e a censura, e depois dizer que não podemos avaliar a intolerância e a censura da Igreja porque os critérios eram outros. Isto não é para insultar, mas para apontar uma falha grave no raciocínio e no juízo de valores.

    Seja como for, qualquer coisa pode insultar e não há nada que seja forçosamente insultuoso. O insulto está sempre na mente do insultado.

    Por isso apenas me responsabilizo por mim. Eu não me sinto insultado.

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  26. Ainda a propósito da tese aqui lida, de que o problema da igreja com o Galileu era de ordem meramente pessoal, e que, no fundo, no fundo, até estava de acordo com o cientista Galileu, fica aqui a transcrição da sentença de 22 de Junho 1633: "... dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, Galileu, acima mencionado, pelas coisas deduzidas em processo e por ti confessadas como acima referido, te tornanste perante este Santo Ofício veemente suepeito de hesresiam isto é, de teres mantido e acreditado doutrina falsa e contrárias às Divinas Escrituras: que o Sol seja o centro da terra e que não se mova de Oriente para Ocidente e que a Terra se mova e não seja o centro do mundo».
    Cristy

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