sábado, dezembro 29, 2007

Senhoras e senhores, a realidade.

Boa. Eu e o Desidério já discordamos outra vez. Mas temo que seja apenas um mal entendido. Segundo o Desidério eu penso «que a realidade se esgota no que pode ser observado» (1). Não penso isso. O que penso é que não faço ideia do que é a realidade fora daquilo que pode ser observado. Estou a discutir como podemos conhecer a realidade. O que a realidade é, e onde se esgota, tenho que deixar para depois.

Por isso não é «a própria noção de realidade que está em causa». Tão-pouco proponho que nada haja «na realidade que não tenha localização espaciotemporal.» Se alguma teoria das cordas estiver correcta isso do espaço e do tempo até pode ser pouco mais que uma convenção, como desenhar os mapas com o Norte para cima. Eu não estou a mandar no que a realidade é. Na gíria filosófica, o problema é a epistemologia. A ontologia vai ter que esperar.

O exemplo do quarto chinês (2) mostra um requisito do conhecimento*. É preciso símbolos, mas «çlkwljkfwa» não é conhecimento. É preciso regras de sintaxe, como as tabelas no quarto chinês, mas «pai_de(jor_el,kal_el)» não é conhecimento por si só. É este o nível em que os computadores (hoje) operam. Um interpretador de Prolog aceita aquele predicado mas não faz ideia do que quer dizer. Com a semântica, quando ligamos a linguagem a algo fora desta, já se pode ter conhecimento. O Jor El é pai do Kal El. Mas só é conhecimento se o Jor El for mesmo pai do Kal El. Se não for, então não é conhecimento. É fantasia ou engano.

É assim que a realidade se apresenta. A direcção até é contrária ao que eu descrevi. Os homens primitivos não começaram por inventar símbolos, depois regras para os compor em «1+1=2» e finalmente dar-lhe um significado. Primeiro a realidade deu-lhes coisas para contar, e foi isso que eventualmente os fez inventar uma linguagem que o descreva. Aristóteles não tinha feito nada com a lógica sem reparar que há proposições verdadeiras e outras falsas. Euclides afirmou que só há uma recta que passa num ponto e é paralela a outra recta. Não por dedução matemática mas porque era evidente (para ele). No principio era a observação. A palavra veio depois. Na verdade, veio muitos milhões de anos depois.

Eu e o Desidério concordamos que não há observação “pura”. Toda a observação exige um modelo prévio daquilo que se está a observar. A evolução produziu muitos destes, dos modelos mais simples nas bactérias até ao cérebro humano que inventa modelos simbólicos aos montes. O que eu proponho é que isto funciona nos dois sentidos. Não se pode criar um modelo simbólico que seja conhecimento sem depender da observação. Sem observação não se pode dar significado aos símbolos nem saber se esse significado corresponde ao que queremos que corresponda. Seja somar uma coisa a outra seja o pai do Kal El.

É arriscado afirmar que não há conhecimento que não dependa de observação. Basta um exemplo contrário para refutar esta hipótese. Por isso proponho Desidério que me dê um exemplo de conhecimento que se possa obter sem qualquer observação. Ficarei (agradavelmente) surpreendido se ele conseguir, porque só vejo duas possibilidades. Ou algo como «P», em que «P» é uma proposição verdadeira mas que não é conhecimento porque não sabemos o que «P» é. Ou algo como «nenhum número ímpar é par», que depende de observação para dar significado a estas palavras.

* O conhecimento explícito, que representamos em equações e palavras e discutimos na filosofia. Mas o fundamental aplica-se também a saber tocar viola ou digerir uma maçã, só que não posso enfiar tudo num post...

1- Desidério Murcho, 29-12-07, O que é a realidade?
2- Eu, Ciência às fatias.

4 comentários:

  1. Excelente post.
    Incisivo e tocando o essencial.

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  2. Um exemplo de um conhecimento que não depende da observação? Independentemente do que pensa da "observação", podemos apresentar vários conhecimentos, todos aqueles que interiorizamos durante a socialização primária, para não falar daqueles que são filogeneticamente programados.
    A questão deve estar mal colocada.
    Abraço

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  3. Caro Francisco,

    É verdade que temos muito conhecimento implícito que é inato. Eu sabia digerir leite desde que nasci (e recentemente perdi esse 'conhecimento' porque fiquei sem lactase).

    Mas o contexto tem sido o conhecimento explícito, aquele que sabemos pôr em palavras ligando as palavras à coisa que conhecemos. E esse depende de observação no sentido de um exame atento e minucioso da coisa a conhecer.

    Para o conhecimento no sentido mais lato concordo com o termo «experiência» também no sentido lato. E isso inclui a evolução. Que vem mesmo a calhar -- acabei agora mesmo um post que inclui esse aspecto.

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  4. Guerras de Palavras um texto....interessante
    mas a mensagem não é só escrita, tal como não se censuram só as suas fotos de Jesus
    censuram-se atitudes por contrárias às normas....
    censuram-se os rituais dos outros
    são palavras e línguas que se extinguem por conveniência
    são culturas e modos de vida que se apagam

    A minha objecção a chamar censura ao que a Playboy fez é, em parte, uma objecção a esta falácia para induzir a conclusão que a Playboy está a interferir na nossa liberdade de expressão. É certo que “censura” também significa crítica, reprovação ou repúdio, e a Playboy americana criticou e repudiou as imagens que a editora portuguesa publicou em seu nome. Mas, como o Ricardo Alves aponta, a censura é fundamentalmente «Impedir a divulgação de uma mensagem»(1). É esse impedimento que faz da censura uma coisa má. A censura é má porque obriga a calar-se quem quer dizer algo.

    Para justificar chamar censura ao que a Playboy fez o Ricardo vai buscar outros conceitos associados à palavra, dando como exemplo que já apagou «comentários [no Esquerda Republicana]» e dizendo que a censura por parte da Playboy americana, se bem que legítima, «configura uma limitação à liberdade de expressão e de informação». Vê-se aqui o fio por se puxa a conotação negativa da palavra. Apagar comentários num blog não é censura. Se eu escrever este texto no blog do Ricardo e ele o apagar não faz mal porque fica aqui, onde ele não apaga nada. Para ser censura, a limitação à liberdade de expressão tem de impedir a mensagem. Não deixar o Ricardo escrever com a minha caneta ou publicar posts no meu blog não chega para ser censura.

    O caso da Playboy é claramente diferente da censura. A Playboy não tem o poder de impedir que se publique fotografias de senhoras despidas ao pé de Jesus. E nem sequer levanta objecções a isso. Convido o Ricardo a testar esta hipótese, se estiver na dúvida. Basta uns minutos com o Gimp*, encher o blog com imagens de Jesus com meninas, e estou convencido que não vai haver reclamações da Playboy. Porque a única objecção da Playboy americana foi que lá pusessem o seu nome sem a sua aprovação. E se é contra isso que o Ricardo protesta, então que me empreste o seu livro de cheques...

    Além da falácia de usar termos carregados para induzir uma inferência inválida, há outra coisa que me incomoda nisto. As palavras são ferramentas. Temos de as ajustar de vez em quando para as manter alinhadas com os conceitos mais úteis. Há dois mil anos “censura” era um cargo político, mas hoje já não temos os sistema de governo dos romanos e afinámos o sentido da palavra

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