terça-feira, agosto 28, 2007

Ao lado, parte 1: a crítica.

Um artigo do Bernardo Motta no blog Espectadores mostra bem o que eu penso da religião (1). Como num tiroteio de desenhos animados, a parede crivada de balas perdidas desenha a silhueta do personagem ileso. O artigo do Bernardo é rico em afirmações discutíveis mas não gosto de escrever posts grandes, por isso vou dividir isto em algumas partes. Quantas, logo se vê.

Conta a bíblia que os filisteus roubaram a arca aos israelitas, Jeová matou imensos filisteus com maleitas diversas, e estes finalmente devolveram a arca juntamente com ratos e hemorróidas (ou tumores) feitos de ouro. Eu considerei isto um exemplo do muito que é «ridículo e perturbante» na religião (2). Mas do meu comentário o Bernardo escreveu:

«fica-se com a ideia de que o capítulo em questão constitui, para ele, uma prova de algo de muito grave em termos da atitude religiosa de um crente»

Muito grave não. Ridículo e perturbante. Muito grave seria matar mesmo milhares de pessoas só porque alguém fanou uma arca. Mas como história é apenas ridícula. Perturba-me que a levem a sério, mas não é grave. É como andar de joelhos ou a arrastar a barriga pelo santuário de Fátima. É ridículo e perturba, mas não é nada de grave. Este exagero é o primeiro problema quando se critica a crença. Rir do crente é intolerância. Não ir na conversa é má fé. Dizer «que disparate» é perseguição. Pedir evidências é fanatismo.

Há actos muito graves que não tolero. Admito uma intransigência fanática na minha condenação de quem explodir autocarros, atirar aviões contra edifícios ou amputar o clitóris a crianças, por exemplo. Mas nesses não me importa se é por religião ou por outra coisa qualquer. É o acto em si que é muito grave. Por outro lado, não tenho nada a dizer daquela fé que é a sensação de tudo ter um propósito inteligente. Não opino acerca das sensações dos outros. Nestes extremos parece-me que estamos todos de acordo e há pouco a discutir.

O que costumo criticar aqui é o aparato da fé. O ritual, a teologia, a crença cega como método para chegar à verdade. É essa religiosidade que classifiquei de ridícula e perturbadora.

Ridícula por ser insignificante. Não vale nada. A fé como sensação terá o valor que cada um lhe der, mas a fé disfarçada de erudição profunda é só treta. Acreditar por acreditar não leva ninguém à Verdade Transcendente. O sim porque sim é uma fraca justificação até na metafísica. Uma afirmação auto-contraditória não indica um mistério importante. É apenas um disparate.

Ridícula por dar vontade de rir. Tentar tirar sentido das hemorróidas de ouro. O padre erguer a bolacha, dizer um hocus pocus, e transformá-la no corpo do deus. Que os fieis depois comem! Quem tem fantasias com a vizinha nua confessa-as ao padre e ele prescreve umas dúzias de ave-marias. O mais engraçado é a tentativa de justificar estas coisas com argumentos teológico-metafísicos. O nariz encarnado e grande representa a união do perene com o Transcendente eterno. Os sapatos compridos simbolizam as dificuldades da existência material. A buzina, o riso pintado na cara e a cabeleira verde são uma Trindade Una que manifesta a identidade do distinto na união do que é separado.

E é perturbador que tanta gente que leve isto tão a sério. Mas desde que seja só isso não é grave.

1- Bernardo Motta, 26-8-07, Materialismo em estado puro
2- De ouro?!

11 comentários:

  1. E que grande confusão entre o sentido comum que é dada à palavra materialismo (apreço pela riqueza e pelos bens materiais) e o sentido filosófico que é dado à mesma (considerar que não existe nada além do universo material).

    A confusão é especialmente problemática tanto que pelo que conheço os materialistas no sentido filosófico do termo não tendem a ser mais materialistas no sentido comum, bem pelo contrário.
    Suponho que isso aconteça porque os indívíduos mais materialistas no sentido comum do termo tendem a não se preocupar tanto a pensar sobre a escola filosófica em que encaixam ou sobre a natureza do universo - pois não lhes cheira que isso traga riqueza - e para perder o mínimo tempo com essas questões aceitam o universo como lhes dizem que ele é: na nossa sociedade tendem a ser catolicos não praticantes, apenas e só porque essa é a atitude filosofico-religiosa mais comum, e a que exige menos investimento.

    Assim sendo, os materialistas (no sentido filósófico do termo) tendem a ser particularmente menos materialistas (no sentido comum do termo) e isso torna a confusão do Bernardo mais problemática.

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  2. «Por isso, a vida do ateu é explicada de forma simples: "Trabalho para obter dinheiro; uso o dinheiro para obter comida; como para me manter vivo; morro. Ponto final.".

    Neste sentido, os bens materiais são preciosos para o ateu: são o combustível que mantém em movimento toda a máquina existencial ateísta: o corpo humano, esse robô sofisticado que um dia, segundo eles, a Ciência não só emulará, mas melhorará infinitamente. O ateu luta arduamente para evitar a morte. Ficar vivo só porque sim, só para aproveitar a vida, os bens materiais desta vida, é isso que o ateu quer.»

    Note-se como:

    a) Ficar vivo "só porque sim" ou "só para aproveitar a vida" são considerados equivalentes.

    Acho que ficar vivo para aproveitar a vida como EU quero é melhor do que ficar vivo "porque Deus quer", que é a derradeira escravatura e indignidade. Ficar vivo porque "o meu Senhor" assim quer.


    b) Note-se como «só para aproveitar a vida» é tomado como equivalente a [aproveitar] "os bens materiais desta vida". Isto é materialismo no sentido comum do termo, e parece uma grosseira incompreensão daquilo que pode ser "aproveitar a vida".
    Viajar, brincar com os filhos, aprender e conhecer coisas novas, ajudar os outros, criar algo de novo, seja uma música, seja conhecimento, seja um jogo, tantas coisas que ultrapassam o apreço pelos bens materiais e que constituem aproveitar a vida. E sem necessidade de recorrer ao método do calendário, algumas delas os ateus têm mais disponíveis que os crentes...

    c) «O ateu luta arduamente para evitar a morte», 99.9% dos ateus, e qualquer mamífero, o que inclui 99% dos crentes.
    Os 0.1% de ateus e 1% crentes que conseguem escapar assim à sua condição animal e destruir o seu instinto de sobrevivência, em geral é porque receberam umas boas lavagens cerebrais. E muitas vezes não vem daí coisa boa...

    O islão consegue uma percentagem de mártires bem maior que o cristianismo hoje, contagiado que este último está pelos valores humanistas e seculares da tolerância/direitos humanos, etc.. Quando o cristianismo era levado tão a sério como islão é hoje, o nosso nível de barbárie (na sociedade europeia) era semelhante. E pelos mártires islâmicos é fácil de entender que o martírio não é assim tão desejável...

    d) Ficar vivo para aproveitar a vida (fim do texto citado) é diferente de comer e morrer apenas (início do texto citado). E é preciso estar muito a leste de como ela pode ser aproveitada para não entender a diferença. Acredito que isso possa ser mais uma consequência nefasta de levar a religião a sério.

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  3. É o problema de muita gente. Andam à procura de um sentido para a vida. Na religião, no ritual, nas tradições e no que mais seja.

    Pena não terem percebido que o sentido da vida não se encontra. Cria-se.

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  4. Ludwig,

    «E é perturbador que tanta gente que leve isto tão a sério. Mas desde que seja só isso não é grave.»

    De facto, isso não tem nada de grave.
    Sabe o que é que poderia ser grave? Penso que até concordará comigo: o que seria grave era a doutrina cristã ser verdadeira e você ter passado a sua existência de criatura inteligente de olhos e ouvidos fechados ao que lhe tentaram fazer ver.

    Mas a vida é feita de riscos!
    Não falo do risco de condenação: isso de condenar é decisão de Deus, e não me presumo mais "salvável" do que o Ludwig.

    Falo do risco de perder o alvo mais apetecível da nossa curta existência enquanto seres inteligentes: o Conhecimento!

    Um abraço

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  5. João Vasco,

    Atenção que as frases que citou não são equivalentes. São, na minha forma satirizada de ver o ateísmo, várias coisas em separado.

    Fora isto, que foi um tiro ao lado, quero dizer que o meu post, como espero ser evidente, contém também muito de sátira. Foi uma experiência de sátira, e como contém várias generalizações, não deve ser tomada à letra.

    Contudo, eu acho que a generalização, e mesmo a hipérbole, têm grande poder comunicativo. Ajudam-me a expressar o que penso. Fora isso, com estes "caveats", acho que se percebe o que eu quis dizer.

    Outra achega, João Vasco. Aproveitar a vida é espectacular. Eu faço por aproveitar todos os minutos. A vida é para ser aproveitada! A grande diferença é que eu vejo a vida com V grande, ou seja, considero um absurdo indescritível pensar que a morte de todas as células do meu corpo marcará o fim da minha existência.

    Existir é um fenómeno contínuo. No plano da nossa vida corpórea, há duas descontinuidades, o nascimento e a morte. Mas não faz qualquer sentido que um ente que "é", perdoem-me o pleonasmo, deixe alguma vez de ser um "ser".

    Seguramente que não vou abdicar do bom senso (juízo, inteligência) de olhar para a minha existência como uma realidade contínua, só porque os meus sentidos me enganam, tentando convencer o meu intelecto de que as alterações formais e transitórias que o tempo e o espaço impõem às minhas células têm algum relevo ôntico.

    O simples facto de que o ser humano é capaz de cogitar sobre realidades que escapam ao espaço e ao tempo é uma evidência filosófica de que tais dimensões existenciais, tempo e espaço, sendo determinantes nesta vida, não representam toda a plenitude existencial de um ser.

    O corpo da terra veio, à terra volta. A alma é indestrutível.

    Quando eu disse que «o ateu luta arduamente para evitar a morte», não era no sentido biológico (todos os seres, como referiu, "lutam" nesse sentido), mas no sentido psicológico, existencial. O ateu, errado na ideia de que tudo acaba quando ele bater as botas, tende a viver aterrado com o "carpe diem". O crente não precisa de se preocupar com isso, porque sabe bem que tem toda a eternidade para existir, seja nesta forma corpórea ou noutra qualquer.

    Um abraço,

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  6. Bernardo,

    A doutrina Cristã não pode ser verdadeira. Em primeiro lugar, porque há dezenas, centenas de doutrinas Cristãs mutuamente exclusivas. Em segundo lugar, porque estão cheias de contradições. E em terceiro lugar porque a verdade é a relação entre a descrição e aquilo que é descrito. Ora grande parte da doutrina Cristã é acerca da doutrina Cristã. Tal como a pescada de rabo na boca, não vai a lado nenhum.

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  7. Ludwig,

    Só para ilustrar esta tua afirmação:

    «Como num tiroteio de desenhos animados, a parede crivada de balas perdidas desenha a silhueta do personagem ileso.»

    Ver aqui.

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  8. Já agora, uma achega acerca da sátira. Só funciona se o leitor conseguir distinguir a sátira da coisa satirizada. Apenas dizer coisas exageradas ou diferentes do que se quer comunicar faz mais confusão.

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  9. Ludwig,

    «A doutrina Cristã não pode ser verdadeira. Em primeiro lugar, porque há dezenas, centenas de doutrinas Cristãs mutuamente exclusivas.»

    Será que é preciso ser mais explícito?
    Doutrica católica chega?
    A doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, chega?
    A doutrina da Igreja Ortodoxa é practicamente igual à de Roma, à parte de pequenas quezílias antigas, que terão que ser resolvidas a curto prazo.
    A relação com o universo cristão protestante é mais difícil. Note-se que o protestantismo nasce com a recusa destes últimos de uma grande parte da doutrina cristã. Ou seja, os protestantes erram quando decidem riscar do património doutrinário uma série de coisas importantes acerca do sacerdócio, dos sacramentos, etc.
    Assim, o protestantismo é mais grave do que um cisma: é mesmo uma religião nova. Chama-se cristã, porque ainda partilha alguns bons fundamentos com a Igreja de Roma, mas a comunhão perdeu-se, uma vez que os protestantes optaram por seguir uma religão nova, de inspiração cristã, mas num cristianismo muito incompleto.

    Sobre as restantes religiões, penso já ter dado a minha opinião. São unânimes da defesa de um princípio transcendente absoluto, possuem metafísicas semelhantes em muitos aspectos, mas não são equivalentes. Obviamente, em debate com um hindu, um muçulmano, um judeu, um budista, eu tentaria sempre explicar-lhes que a religião católica é a que mais verdadeiramente descreve a realidade como um todo. Não obstante, é fácil, para quem tem os olhos abertos, reconhecer que há inúmeros ensinamentos noutras religiões que só podem ter origem divina.

    «Em segundo lugar, porque estão cheias de contradições.»

    Sim, mas essas contradições não destroem todas as igrejas cristãs! Que raio de lógica é essa, Ludwig?

    É certo que eu afirmo que a Igreja Católica é quem está plenamente certa (por isso, não defendo qualquer cedência no campo doutrinal - o diálogo ecuménico não é feito de cedências mas sim de compreensão, para que se perceba quem errou, e se reparem os erros).
    O facto de os protestantes defenderem que eles é que estão certos não atira para o lixo a minha pretensão.

    Há, então, o problema de saber quem estará certo. O Ludwig dirá: "nenhuma está certa", mas não pode negar a possibilidade de uma delas estar certa.

    No tempo de Einstein, este físico afirmava certas ideias que eram terminantemente rejeitas por outros físicos. Seria lógico deduzir que estavam os dois errados?

    Parece que, para a religião, o Ludwig se esquece de noções básicas como estas. A sua afirmação de que as disputas entre religiões provam que estão TODAS erradas é um puro disparate.

    «E em terceiro lugar porque a verdade é a relação entre a descrição e aquilo que é descrito. Ora grande parte da doutrina Cristã é acerca da doutrina Cristã.»

    Hã?
    A doutrina Cristã é acerca da Humanidade, da Criação, do Mundo, da Existência, do Infinito, da Vida. O seu âmbito é o âmbito de qualquer religião digna desse nome. Descrever a realidade como um todo, dando especial ênfase ao domínio da Metafísica.

    Um abraço,

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  10. «Sim, mas essas contradições não destroem todas as igrejas cristãs! Que raio de lógica é essa, Ludwig?»

    A lógica é simples: se é verdade não pode ser auto-contraditório. Ou é um, ou é três. Um e três ao mesmo tempo não pode ser verdade.

    «Há, então, o problema de saber quem estará certo. O Ludwig dirá: "nenhuma está certa", mas não pode negar a possibilidade de uma delas estar certa.»

    Não nego a possibilidade. Mas todos gritam «sou eu que tenho razão!» e nenhum apresenta quaisquer evidências. Por exemplo, que evidências concretas há para decidir se a salvação é obtida apenas pelo que se faz, pela escritura, ou pelo que se crê? Na verdade, nem sequer há evidências de qualquer salvação ou de qualquer condenação ao sofrimento eterno, por isso é tudo discutir anjos e alfinetes...

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  11. "A grande diferença é que eu vejo a vida com V grande, ou seja, considero um absurdo indescritível pensar que a morte de todas as células do meu corpo marcará o fim da minha existência."

    Que giro, eu vivo a vida com V grande porque sei que quando as minhas células morrerem não sobra nada de mim.
    É fantástico o medo que os católicos têm de desaparecer para sempre. Mentalizem-se: O que nasce, morre!

    O que é giro, é que chegaram à conclusão que tal não vai acontecer porque ..... Porque? Sabe-se lá... lembraram-se!

    Terá sido porque uns moços, que sabiam menos do universo que qualquer criança da primária, escreveram um livro a dizer que sim, quando se morre vai-se para um sitio melhor? Será possivel que hoje em dia alguêm ainda ache que quem escreveu esse livro sabia o que dizia? Será dificil de perceber que a biblia não passa de ensaio sobre a vida e a morte como elas eram entendidas na altura, e não um compêndio de Verdade?

    Querem saber um segredo? A vida eterna está em passar algo de nós a outros e esperar que eles façam o mesmo. Dar um bom exemplo, ser um bom ser humano e influenciar os que nos rodeiam.

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