sexta-feira, junho 22, 2007

Diálogo difícil, parte 3.

Usei a teologia católica como exemplo das dificuldades de diálogo entre a fé e a descrença por causa de um post do Bernardo Motta no blog Espectadores (1). Mas o criacionismo é outro bom exemplo. Ambas as crenças partem de pressupostos que só os crentes aceitam. O católico assume a existência do seu deus trinitário, a virgindade de Maria, a infalibilidade papal. O criacionista assume que a bíblia é literalmente verdade em tudo. Nenhum está disposto a procurar um ponto de partida em que haja acordo com o descrente.

E nenhum aceita as ferramentas do diálogo. Rejeitam as observações que partilhamos, o católico alegando ser um problema «supra empírico» e o criacionista insistindo que é tudo questão de interpretação. E rejeitam a razão, o católico afirmando que a fé a «transcende» e o criacionista inventando milagres sempre que cai em contradição.

Nesta última parte proponho que quem fala da sua fé não quer o diálogo. E até compreendo porquê. Há assuntos que também não discuto. Gosto mais de chocolate que de baunilha. Não me ocorre qualquer facto que um diálogo me revele que faça a baunilha saber melhor que o chocolate. Nem consigo dialogar com quem considere bom sofrer. A premissa que sofrer é mau é tão fundamental para mim que não vou conseguir recuar até um ponto de entendimento. O melhor que posso fazer é dar uma pisadela ao meu interlocutor, para que se sinta melhor.

Por isso compreendo o crente que encara a fé como um valor pessoal e não está disposto a discuti-la. Mas isto só faz sentido em questões de valor, e nunca em questões de facto. Eu abomino maus tratos a crianças, mas a razão obriga-me a admitir que possam ocorrer. Não é por detestar algo que vou concluir que não existe. É este o erro de alguns crentes, extrapolar de um juízo de valor para uma afirmação de facto.

Deus é bom e é bom que exista e é bom acreditar nele. Seja. Gostos não se discutem. Mas isso não quer dizer que exista mesmo. Confundir o valor pessoal da fé com a sua adequação à realidade põe o crente numa situação difícil. Como matéria de facto exige abertura ao diálogo, mas sendo matéria de valor não permite ceder terreno e não deixa encontrar um ponto de consenso onde encetar esse diálogo. Um comentário anónimo revela o resultado (2):

«O Ludwig está prostrado, rendido,[...] Ele gostaria de não ter que confrontar os seus argumentos com os argumentos criacionistas. Preferiria uma separação de blogs. [...]Neste momento, o tempo é de confronto directo e os criacionistas não temem o confronto. Pelo contrário. [...] Para o Ludwig, [...] desespero de causa [...]Que festa»

E assim por diante. Oitocentas palavras de confusão entre juízos e factos, desprovido de algo que se possa discutir. É o mesmo que gritar «Viva o Benfica!» duzentas e sessenta vezes. Uns concordam, outros não, mas não é diálogo.

É esta diferença de atitude que contrasta ciência e religião. A ciência é uma actividade descrente baseada no diálogo. Valoriza a opinião discordante que prevalece por ser consequência racional de premissas aceites por todos, principalmente observações que todos podem partilhar. A religião é um monólogo a dois. O crente fala com o seu deus com ritual e repetição, dizendo sempre a mesma coisa na esperança que se torne verdade. O deus fala com o crente por decreto. O livro sagrado tem que ser levado à letra ou interpretado pelo representante oficial do deus. A dissensão é punível. É pecado.

É fácil dialogar com o crente que não discute a sua fé. Discute-se outras coisas, por vezes bem interessantes, e deixa-se a fé em paz. Mas só é diálogo se for sem fé, e só é fé se não admitir diálogo.

1- Bernardo Motta, 13-6-07, Filosofia para a sala de aula
2- O caso do criacionista anónimo.
Episódios anteriores:
Parte 1
Parte 2

8 comentários:

  1. Que estranho?!?!
    2h14m já passaram e nenhum criacionista anónimo veio comentar?

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  2. Que susto, por momentos pensei que não queria dialogar comigo Ludwig...Mas depois lembrei-me que não sou criacionista....UFA!
    Bom pelo menos não da mesma forma que certas e determinadas pessoas nomeadamente algumas.

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  3. o antónio tem a escolaridade obrigatória?

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  4. Se a Biblia é a verdade de tudo, a verdade está desatualizadas a milênios!

    COM CERTEZA chocolate é melhor que baunilha, isso eu acho indiscutivel =P.

    Otimo texto, Sr. Diplomata!

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  5. O problema não reside só nos crentes, tens que reconhecer que os ateus também são tortinhos. O diálogo entre crentes e não crentes é possível e recomendável, agora, chegar a um consenso sobre uma matéria tão sensível como esta é praticamente impossível. Só por milagre. Como só uma das partes "acredita" em milagres não estou a ver um final em que todos vivem felizes para sempre. Apesar de tudo há uma ilação que retiro deste diálogo de surdos, é a única altura em que os crentes duma forma ou de outra se unem para (tentarem) rebater as afirmações dos ateus, por que no resto do tempo e em nome de Deus é só lambada.
    Que mal vem ao mundo de sermos todos criacionistas? Basta conhecermos os teus filhotes para perceber até que ponto tu, Ludi, o és. ;)
    Prefiro a baunia ao chocoate e biba o Sporting. ;)

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  6. Isto não é sarcasmo nem brincadeira:

    http://www.talkorigins.org/faqs/flatearth.html

    (isto põe os meus sarcasmos a um canto!! Ainda estou em choque!!)

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  7. JPV,

    «chegar a um consenso sobre uma matéria tão sensível como esta é praticamente impossível»

    Não peço tanto. Também não há consenso acerca de como juntar a relatividade geral e a mecânica quântica, mas há diálogo. Os físicos encontram pontos de partida consensuais, concordam nos resultados de experiências, discutem ideias, etc.

    Com os crentes (e entre os crentes) nem sequer se consegue começar o diálogo. Um diz que Jesus é deus, outro que era um profeta, outro que nem isso, e lá vão andando de cruzada em holocausto.

    «Que mal vem ao mundo de sermos todos criacionistas?»

    É um juízo de valor, mas para muitos a verdade é um bem, e andar enganado é mau. Só por isso já é boa ideia não sermos todos criacionistas. Mas além disso há também todas as desvantagens de não perceber peva de biologia, genética, bioquímica, medicina, etc.

    Uma boa ideia. Os criacionistas só podem usar tecnologia derivada da bíblia. Muros de barro, barcos de madeira, essas coisas. Uma vantagem logo à partida: acabava-se o copy-paste na caixa de comentários :)

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  8. O Ludwig ignora que também tem uma fé naturalista que o faz fazer afirmações totalmente desprovidas de observação científica como:

    1) A natureza é tudo o que existe.
    2) O universo surgiu por acaso a partir do nada
    3) a vida surgiu por acaso a partir de químicos onorgânicos
    4) as mutações aleatórias são capazes de criar máquinas moleculares extremamente complexas
    5) Os dinossauros transformaram-se em aves há cerca de 60 milhões de anos

    Quem observou isso?

    Quem tirou notas?

    Onde estão as experiências laboratorais a atestar essas afirmações?

    Afirmações grandiloquentes necessitam de confirmação empírica! Onde é que ela está?



    As observações propriamente ditas mostram, designadamente:

    1)que a vida nunca surgiu por acaso de uma forma que pudesse ser observada por alguém;

    2) que nem a inteligência e a informação de todos os cientistas juntos (passados e presentes) conseguiram ou conseguem criar vida a partir de químicos inorgânicos em laboratório;


    Ora, isso ambas as observações são inteiramente compatíveis com a noção de que a vida não surgiu por acaso, antes se deve a alguém que dispõe de mais inteligência e de mais informação do que todos cientistas passados e presentes juntos.

    Esse alguém é, naturalmente, Deus.

    O Ludwig pode fazer o favor de dizer que observações científicas é que os criacionistas negam?

    Que eu saiba, ainda não neguei nenhuma observação científica.



    P.S. Posso demorar a responder, por falta de tempo. Mas mais tarde ou mais cedo, virei com mais respostas.

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