sexta-feira, maio 11, 2007

De livre vontade.

Temos vontade livre? A resposta é simples. Sim. A pergunta é que é complicada...

Para muitos a pergunta é acerca de uma vontade que é livre por não haver causa que a determine, seja neurónio, gene, educação ou o que for. Se há uma causa para que a vontade seja exercida desta forma, uma causa para este acto, escolha ou decisão, então dizem que não é livre porque é apenas consequência da causa. Assim, quem procura este tipo de vontade livre não aceita que a mente seja uma actividade do cérebro. Isso reduz a vontade a uma cadeia de causa e efeito e essa, dizem, não é livre.

Mas isto não faz sentido porque algo que ocorre sem causa não é vontade. É acaso. Um acto de vontade tem causas. São causas de um tipo especial, a que chamamos razões, mas são causas. Quando decido, de livre vontade, levar o guarda chuva é por causa de prever que vai chover, por causa de não me querer molhar, por causa de não poder ficar em casa. Esta vontade livre sem causas é um conceito incoerente e disparatado. Se me der de repente para andar com o guarda chuva sem que nada cause essa decisão não é um acto de vontade. É parvoíce.

Concordo que não é vontade livre levar o guarda chuva porque um neurónio disparou sem mais nem menos. Mas levar o guarda chuva por julgar que é a melhor opção é um exercício de vontade livre, mesmo que este juízo seja uma actividade dos neurónios, e mesmo que a escolha seja causada por esta actividade. É vontade livre porque o acto é causado por uma razão.

A vontade livre só faz sentido num acto racional. Um doido não tem vontade livre, por muito que seja imprevisível ou que faça coisas sem causa nenhuma. E só faz sentido ao serviço de um objectivo que não é escolhido livremente. Um ser livre de escolher tudo o que sente, pensa, tudo o que se lembra ou prefere, acaba por não ter vontade. A vontade é livre quando há alguma liberdade de agir, mas só é vontade se houver algo que a motive. É de vontade livre que escolho o pequeno almoço porque posso escolher e porque tenho fome. Sem essa motivação não há vontade.

Em suma, a vontade livre é a capacidade de seleccionar racionalmente possibilidades de acordo com a nossa motivação. E a motivação é nossa simplesmente por provir de nós. É a minha fome, a minha paixão, a minha preocupação com tanta treta que há por aí, mesmo sem uma liberdade metafísica de escolher se me preocupo ou se sinto fome.

Esta combinação de motivos e razões é compatível com uma mente biológica. Podia ser a alminha a fazer milagres, mas não precisamos disso. Nem precisamos que tudo o que o cérebro faz seja vontade livre. Um ataque epiléptico causa uma acção que não é razão, por isso esta acção não é por vontade livre. Mas se um pensamento é razão para agir e causa um acto então é um acto de vontade livre. Foi causado pelos neurónios, mas como parte da selecção consciente e racional de alternativas.

Esta vontade livre não só é coerente como é útil ao organismo. Ajuda a sobreviver e reproduzir. À alma imortal de nada serve. Isto mostra que a vontade livre não precisa surgir por milagre nem faz sentido como milagre. É um atributo daqueles que a evolução aproveita. Além de ser útil, há uma gama contínua de vontades e liberdades entre alguns organismos que vivem agora e os seus antepassados. A complexidade das motivações, a capacidade de processar informação, a própria racionalidade, são atributos quantitativos dos quais se pode ter mais ou menos. Um longo período de pequenos incrementos gerou algumas linhagens especialistas nisto. Gostamos de destacar a nossa ao ponto de presumir que somos únicos nisto e fundamentalmente diferentes, mas não é verdade.

O processo que nos gerou foi natural e gradual, por mecanismos conhecidos da evolução. Para explicar a nossa origem não precisamos da feitiçaria dos deuses nem de plantar almas nos nossos antepassados primatas.

22 comentários:

  1. Ludwig,
    Quando diz:"Se há uma causa para que a vontade seja exercida desta forma, uma causa para este acto, escolha ou decisão, então dizem que não é livre porque é apenas consequência da causa. Assim, quem procura este tipo de vontade livre não aceita que a mente seja uma actividade do cérebro." Eu concordo plenamente com isto, o que me interrogo é que definição de livre vontade pode estar po detrás desse raciocinio?
    Quem rejeite a natureza biológica da consciencia, e acredite que é a alma, não está também a implicar que a alma "decide" o que passar ao cérebro, para que este por sua vez "ordene" ao corpo? Não é isso uma ausencia de vontade própria, igual à que defendem seria imposta pela origem da consciencia na biologia do cérebro?

    Esta questão surge de algumas conversas que tenho mantido/ assistido com crentes que defendem a maior liberdade do crente em relação ao ateu, parece-me que influenciada pela crença que uma consciência com origem na alma é "mais livre" que uma de origem biológica, implicita no ateísmo?

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  2. Desculpa a publicidade, Ludwig, mas acho que isto até vem a propósito desta temática:

    http://esquerda-republicana.blogspot.com/2007/05/o-estranho-caso-do-idioma-mais-simples.html

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  3. As leis da física são deterministas. Soubéssemos aposição e velocidade de cada partícula do universo, as leis da física clássica dir-nos-íam exactamente como as coisas eram ou seriam em qualquer outro momento que especificássemos. As equações são indiferentes à suposta liberdade humana.

    Somos feitos de um conjunto de partículas e por isso, se as leis da física clássica pudessem determinar tudo acerca das nossas partículas num momento qualquer, a nossa capacidade consciente de determinar as nossas próprias acções pareceria completamente posta em causa.

    Se conhecermos uma função de onda quântica, usando a equação de Schrödinger, ficamos a saber como vai ser a função de onda em qualquer outro momento que especifiquemos.

    No entanto, o acto de observação complica a história. O estado do livre arbítrio, e o seu papel nas leis a física fundamentais, continua por resolver.

    Independentemente das nossas intenções, as leis da física bloqueiam todas as tentativas de iludir a lógica.

    Se o livre arbítrio não é uma ilusão, a física quântica oferece sugestões para aquilo que poderia acontecer usando a interpretação de muitos mundos da mecânica quântica.

    A liberdade que temos para fazer esta ou aquela escolha reflecte a nossa possibilidade de entrar neste ou naquele universo paralelo num momento subsequente

    É uma visão diferente daquelas a que estamos habituados. Estamos habituados a ser livres e fazer o que queremos mas não é bem assim. Estamos confinados a um universo, com leis. Estamos presos a um "tecido" feito de partículas.

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  4. Dário,
    É verdade. Existem essas limitações, que se aplicam tanto a uma consciência da alma, ou a uma consciencia oriunda da organização biológica do cérebro.
    Mas, creio que a livre vontade, não é a mesma coisa... Eu posso escolher de um conjunto muito largo de opções, que ainda assim são possíveis apesar dessas restrições. Posso não me conseguir materializar onde me apetece, mas, se me apetece ir a algum sitio, sou livre de me tentar deslocar no mundo fisico, para lá chegar.

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  5. Acabei por não saber se o Pedro Silva concordou comigo ou não.

    Se a causalidade é sinónimo de falta de liberdade, e o acaso é liberdade aleatória, então nenhuma liberdade existe...

    A questão é que a causalidade não é sinónimo de falta de liberdade.

    Até porque a própria capacidade de decidir depende do facto de existirem constragimentos. Ou seja, um ser absolutamente livre nunca vai tomar decisões nenhumas. Um ser cuja liberdade não está constrangida de forma alguma não tem critérios de ponderabilidade para tomar qualquer tipo de decisão.

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  6. Caro Dário,

    «As leis da física são deterministas.»

    Isso não é verdade. Há fenómenos físicos não determinísticos, como a desintegração radioactiva.

    É impossível saber ao certo quando um isótopo vai decair para outro, senão a probabilidade de isso vir a acontecer no intervalo de tempo seguinte. Não há nenhuma lei que diga quando é que isso acontece.

    O próprio vácuo quântico dá origem a pares de partículas/anti-partículas sem que haj alguma causa aparente por detrás disso. É um fenómeno estatístico e não determinista.

    Fora a mecânica quântica, mesmo um sistema composto por partes determinísticas pode ser não determinista. Por exemplo, um sistema tão complexo que a única maneira de prever o seu estado futuro é deixá-lo evoluir. Ou seja, a única calculadora capaz de prever o futuro desse sistema é o próprio sistema.

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  7. "Mas, creio que a livre vontade, não é a mesma coisa... Eu posso escolher de um conjunto muito largo de opções, que ainda assim são possíveis apesar dessas restrições. Posso não me conseguir materializar onde me apetece, mas, se me apetece ir a algum sitio, sou livre de me tentar deslocar no mundo fisico, para lá chegar."

    São essas "restrições" que ao mesmo tempo definem os graus de liberdade nos quais nos podemos deslocar. Quanto mais conhecimento científico tivermos melhor conhecemos as restrições e melhor conhecemos os graus de liberdade do que é possivel fazermos, temos mais liberdade de escolher. E sabemos mais acerca dessas possibilidades.

    Penso que as duas coisas são indissociáveis.

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  8. Em relação ao meu último comentário, passo as adjectivações algo acriteriosas:

    Onde se lê determinista/as leia-se determinísticos/as.

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  9. "Ou seja, um ser absolutamente livre nunca vai tomar decisões nenhumas. Um ser cuja liberdade não está constrangida de forma alguma não tem critérios de ponderabilidade para tomar qualquer tipo de decisão."

    Concordo plenamente!

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Acho que as leis da física são deterministas. O sistema é que pode não ser previsível.

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  12. alguns esclarecimentos: propriedades quânticas de sobreposição são irrelevantes nesta discussão: a decoerência actua tão depressa que, para todos os efeitos, a actividade cerebral é clássica. mas ainda neste aspecto o determinismo é irrelevante. sendo o cérebro um sistema complexo, a sensibilidade às condições iniciais é absoluta (é um sistema que pode exibir caos) e logo não faz qualquer sentido falar de determinismo...

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  13. francisco e dário: de facto a equação de schrodinger é determinista (sendo linear, a solução, pelo menos no que diz respeito à evolução temporal, é trivial). o problema do decaímento está associado a um tempo de vida médio que não se pode dissociar de um sistema de muitos corpos.

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  14. Mas eu não disse que a equação de Schrödinger não era determinista.

    A questão é o determinismo das leis da Física. Se o mundo é determinista ou não, não sei. Sei que há fenómenos para os quais a Física apresenta descrições deterministas e descrições estatísticas. Importa saber se a descrição estatística é-o porque existem fenómenos com muitas variáveis, sem causa ou se existem variáveis escondidas.

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  15. Quando mudamos de opinião (livre arbítrio) estamos a ser autênticos? O que nos leva a alterar o nosso caminho? Electrões a viajar pelos nossos axónios. Somos comandados pelos electrões, quarks... cordas. Somos feitos de um material igual ao do Universo. Fazemos parte dele e aumentamos a entropia com ele.
    Uma acção nossa é um reflexo de partículas cada vez mais pequenas, num gradualismo que nos leva do maior ao mais pequeno.

    Penso que não podemos ter livre arbítrio.

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  16. Ludwig,

    "Se me der de repente para andar com o guarda chuva sem que nada cause essa decisão não é um acto de vontade. É parvoíce."

    A parvoíce não é um acto de vontade, por mais parvo que seja? Há ainda o facto de que a parvoíce é subjectivo.

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  17. Ludwig,

    "Se me der de repente para andar com o guarda chuva sem que nada cause essa decisão não é um acto de vontade. É parvoíce."

    A parvoíce não é um acto de vontade, por mais parvo que seja? Há ainda o facto de que a parvoíce é subjectivo.

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  18. Caro Dário,

    «Quando mudamos de opinião (livre arbítrio) estamos a ser autênticos?»

    Isso vai depender da nossa definição de autenticidade. Por isso é que «a pergunta é que é complicada».

    O que é que é a autenticidade?

    Estamos a partir do pressuposto de que, por exemplo, um cuco de um relógio não é autêntico - ele é um reflexo mecânico de algo que ele não controla. Será que somos tão autênticos como esse autómato? Claramente somos mais autênticos do que isso. Se somos tanto quanto julgávamos que éramos, isso é que eu já duvido

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  19. Caro Francisco Burnay
    De facto temos mais escolhas que um cuco. A meu ver, uma máquina é feita de peças mais pequenas. O conjunto dessas peças a funcionar faz a máquina escolher se anda ou fica parada. As escolhas aumentam com a complexidade. Nós somos como máquinas, em que as peças mais pequenas são as peças de todo o Universo. A vibração específica de uma corda forma um quark, a junção de dois ou três quaks específicos forma um protão. Protão + netrão forma o hidrogénio. Seguindo este exemplo podemos "criar" o resto da tabela. Vejo isto como um comboio de peças de dominó. É um ponto de vista físico, sem cenários metafísicos.

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  20. Emendo a bacorada que escrevi há pouco. um protão mais um electrão é que é um hidrogénio.

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  21. Olá a todos,


    Há aqui muitos pontos interessantes, mas parece-me que o mais importante é que essa tal liberdade "autêntica" não tem hipótese.

    Se o acto tem causa não é livre porque é uma consequência. Por isso o Dário e outros refugiam-se no indeterminismo para que possa haver um acto sem causa.

    Mas sem causa também não é um acto de vontade. Algo que acontece sem causa é como o decaimento de um átomo radioactivo. Só acontece, e mais nada.

    E é contrário à nossa percepção de vontade livre. Sempre que tomamos uma decisão destas fazêmo-lo por causas.

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  22. Ou seja, um ser absolutamente livre nunca vai tomar decisões nenhumas. Um ser cuja liberdade não está constrangida de forma alguma não tem critérios de ponderabilidade para tomar qualquer tipo de decisão.


    Hummm... não percebi isto muito bem. Está visto que é demasiado filosófico para mim... ;)

    Ou melhor, talvez a afirmação acima até se adeque a esse importantíssimo conceito da "acção sem acção" ou "não-acção" (wu-wei) das filosofias orientais. Esse tipo de agir não condicionado, ou para além do determinismo kármico, é de facto considerado o recto agir. E só um ser livre do tal karma, ou que assim o superou, pode agir sem agir, ou seja, sem ser afectado pelo resultado da acção, inteiramente desapegado desta.

    Já agora, e ainda num plano filosófico, esta é talvez a explicação para essa metafísica indiferença divina perante o universo. Mas isso é ver só a coisa pela metade...

    No Taoísmo, bem como no Budismo e Hinduísmo, esta acção espontânea ou sem esforço significam um perfeito equilíbrio e um estado de liberdade plena (moksha), ou união interior com o Tao ou Brahman... whatever!

    Significa isto, e retomando a citação acima, que agir espontaneamente e fora de qualquer condicionalismo mental - é essa a liberdade! - implica não decidir?! Yeah, parece lógico, sim, se pensarmos que há uma transcendência da mente racional para esse puro saber fazer que emana da própria essência do Ser!!!

    Puxa vida! o que eu aqui vou aprender...

    Rui leprechaun

    (...falar com sábios é mesmo um prazer!!! :))

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