terça-feira, abril 03, 2007

A Heurística Naturalista.

Uma heurística é uma regra que ajuda a encontrar algo. Procuro as chaves primeiro na mesa da cozinha. Posso ter que procurar noutro sítio, mas normalmente é lá que as deixo e poupa-me trabalho começar por aí. A ciência também procura primeiro as explicações mais comuns. Perante um resultado inesperado verificamos o equipamento, se usámos os reagentes certos, se alguém deu um encontrão na montagem. Não por excluir o inesperado, mas por ser a explicação mais frequente.

Até 1800 os meteoritos eram considerados uma superstição de ignorantes. Nada na física de Newton levava a crer que pedras e pedaços de metal andassem a voar por aí e a cair de vez em quando. Mas era uma heurística, não um axioma inquestionável, e eventualmente o acumular de evidências levou a comunidade científica a mudar de ideias.

A heurística de seguir pelo que já se conhece é muito antiga, mas a heurística de preferir uma explicação naturalista é recente. Newton postulou que a Terra atraía a Lua e a Lua atraía a Terra. Mas como explicar que um objecto inanimado conseguisse agarrar e puxar outro a uma distância tão grande? Para Newton era Deus que o fazia. Não só tratava da gravitação universal, mas também dava um jeitinho de vez em quando para evitar que todas aquelas atracções descambassem em caos. A física de Newton era assumidamente sobrenatural.

Em 1842, Darwin escreveu: «É depreciativo que o Criador de inúmeros mundos tenha criado cada um da multidão de parasitas e vermes que pululam cada dia da sua vida .. neste globo.»*. É certo que Darwin foi perdendo a sua fé, quer pela sua compreensão da evolução quer por tragédias pessoais, como a sua doença crónica e a morte da filha aos dez anos. Mas Darwin embarcou no Beagle durante a sua formação para o sacerdócio. Darwin quase foi padre, pois um naturalista era alguém que estudava a obra de Deus e ninguém melhor que um padre para isso. Não havia qualquer premissa que rejeitasse o sobrenatural.

Quando Darwin e Wallace apresentaram os seus artigos em Julho de 1858 relataram observações e propuseram hipóteses. Nenhum se lembrou de dizer «caros colegas. Deus é sobrenatural, e aqui só entra o natural, por isso as espécies evoluiram». Isto seria um disparate impensável para qualquer cientista. Só mesmo um criacionista pode julgar que a ciência funciona assim.

Hoje em dia há uma heurística naturalista. Em parte porque as evidências fizeram encolher o que ciência remetia para Deus até não sobrar nada. Não precisa de fazer gravidade, de ajeitar planetas, nem de criar os primeiros seres vivos. Não podemos garantir que não exista, mas tudo indica que, se existe, está de férias há muito tempo.

Mas foi a proliferação de patetices que tentam usurpar a legitimidade da ciência que levou tantos a adoptar a heurística naturalista. A astrologia, a medicina alternativa, a clarividência, a bruxaria, e milhares de outras que não se pode refutar devidamente por simples falta de tempo e de paciência. O carimbo «Treta Sobrenatural» serve para despachar o mestre D’atanga, o professor Al Drabo, e todas essas fontes de poluição intelectual, da biodança ao criacionismo. O mais prático é arrumá-los a um canto, e só saem de lá quando tiverem evidências sólidas que justifiquem perder tempo com estes disparates.

Mas se tiverem evidências estamos sempre prontos a reconsiderar a posição. Se as chaves não estão na mesa, claro que procuro noutro lado.

*It is derogatory that the Creator of countless systems of worlds should have created each of the myriads of creeping parasites and slimy worms which have swarmed each day of life . . . on this one globe., tirado de Darwin, the Scientific Creationist por William Phipps.

4 comentários:

  1. Procuras a chaves na mesa da cozinha... pois a primeira coisa que fazes quando chegas a casa é atacar o frigorifico, certo? Esse apetite não te vai deixar usar biquíni no verão ;-)))))

    Mas olha que eu não estou melhor.

    ResponderEliminar
  2. É... a desculpa é pôr os sapatos na marquise, mas sim, o frigorífico fica no caminho :)

    ResponderEliminar
  3. De novo e como sempre, MUITO interessante!!!

    Até 1800 os meteoritos eram considerados uma superstição de ignorantes.

    E trata-se de algo materialíssimo, note-se! Logo, quantas outras "superstições"... a astrologia, a medicina alternativa, a clarividência, a bruxaria não virão também a ser aceites amanhã?! Bem, a medicina alternativa já o é hoje, como sempre foi desde o início dos tempos, pois a medicina quimio-terapêutica é demasiado recente, uns meros 2 séculos ou pouco mais.

    Anyway, o ponto nem é esse. É mais assim deste tipo:

    Hoje em dia há uma heurística naturalista. Em parte porque as evidências fizeram encolher o que ciência remetia para Deus até não sobrar nada.

    Só esta frase é suficientemente elucidativa quanto à concepção radicalmente diferente do conceito ocidental ou oriental de Deus. Falo, obviamente, dessa oposição transcendente vs. imanente, ou melhor ainda, do teísmo vs. panteísmo.

    É que TUDO remete para Deus, já que ele se manifesta em cada ínfima partícula, vibração ou campo, dentro e fora do binómio espaço-tempo, aquém e para além das 11 ou 12 ou infinitas dimensões... you simply cannot run from IT, man! :)

    Logo, claro que não há necessidade de qualquer heurística sobrenatural, pelo menos neste plano material que é aquele de que a ciência trata, onde está a dúvida?!

    E, assim sendo, como não vemos Deus se Ele até É tudo o que experimentamos e n'Ele estamos continuamente imersos?! Ora, pelo foco da nossa consciência, claro! Deveras, estamos na mesmíssima situação do peixe que não sabia o que era o mar, já que TUDO era o mar, ele vivia no mar, afinal. E claro que soa muito impossível e místico, mas há de facto um modo... ou vários, sei lá!... de "sair" deste continuum "espaço-tempo" e contemplar essa infinita eternidade... there surely is Truth and Bliss!

    Deveras, este tipo de transcendência anda por aí descrito às carradas but... é como o tal meteoro, quem não via não o cria e se a heurística não havia... ;)

    Logo, talvez estejamos mesmo muito, muito perto daquele ponto em que as chaves não mais estão nem voltarão a estar em cima da mesa. Porque o paradigma irá mudar, e um novo salto se vai dar!

    E, como em épocas anteriores, apenas a evolução tecnológica poderá permitir a apreensão de subtilezas algo imateriais, por assim dizer, por exemplo, a relação da consciência com a matéria, o que será indispensável para validar fenómenos como a simples clarividência, que não é nada de extraordinário, claro.

    Só que, não existe ainda hoje comprovação científica possível para tais fenómenos bem corriqueiros, aliás, já que a consciência é de uma natureza material muitíssimo mais subtil do que uma partícula/onda e inapreensível por qualquer engenhoca... ou quase!

    De facto, a subtil energia dos pensamentos até já pode ser captada e utilizada mesmo em algumas aplicações práticas, mormente no campo da electrónica, por exemplo.

    Logo, estamos lá perto e eu espero ainda assistir a essa "heurística mais que natural" neste meu corpo mortal! :)

    E, no final, posso seguir para o não espacial e intemporal pan-dimensional do sempre único REAL !!!

    ResponderEliminar
  4. Leprechaun,

    O problema com o panteísmo é que se perde o deus pessoal do teísmo. Por mim, isso está óptimo, mas reduz a religião a uma trivial mudança de variável: onde está tudo, leia-se deus. Mera operação de sintaxe, sem semântica.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.