quinta-feira, março 22, 2007

«Crença»

é um termo ambíguo. É a atitude de aceitar algo como verdade, como quando creio que não está a chover. Mas é também recusar que algo possa ser falso, como na fé religiosa. E além de ser ambíguo por vezes é mal aplicado. A crença é apenas a atitude de quem crê, é a forma subjectiva de se colocar perante uma hipótese. Por si só, a atitude não indica a veracidade da hipótese. Daqui resulta uma confusão entre crença e conhecimento, como exemplificou um comentador anónimo neste blog:

«deve perceber que interpretações das intenções de Jesus, feitas por alguém que não acredita na ressurreição interessam-me tanto como uma aula de português dada por um analfabeto»

É verdade que quem sabe também crê. Se sei que o teatro está a arder, necessariamente acredito que o teatro está a arder. Seria contraditório dizer que sei algo em que não acredito. A crença é parte essencial do conhecimento, e quem sabe ler acredita que sabe ler. Mas esta é a crença no sentido de aceitar algo como verdade. A outra crença, a atitude de recusar que algo possa ser falso, impede o conhecimento. Por um lado porque encurrala o crente. Por outro lado porque saber é mais que a atitude de crer. É crer em algo que é verdade (senão é engano), e pelas razões certas (senão é adivinha, e não saber). Como as razões que fundamentam uma crença são sempre falíveis nunca justificam uma crença definitiva e irrefutável. Ninguém passa a saber ler só por acreditar que sabe, por muito convicto que seja. E é melhor uma aula de Português dada por um analfabeto ciente das suas limitações que por um analfabeto convencido que sabe ler. Mas saber ler é algo que podemos testar, e podemos determinar quem sabe e quem não sabe de uma forma independente da crença de cada um.

Esta possibilidade de verificação independente é a barreira entre a crença e o conhecimento, uma barreira que a religião ultrapassa criando um domínio onde a verificação é impossível. Os mafaguinhos. Se eu disser que sei muito sobre mafaguinhos, ninguém pode testar o meu alegado conhecimento. Assim é mais fácil vender a ideia que a fé nos mafaguinhos fundamenta a sabedoria neste campo. Torno-me um mafagólogo em virtude da minha crença inabalável nos mafaguinhos. O que eu sei é a Verdade Revelada do Mistério Mafaguinhico, e outras tretas que tais.

Deuses, santos, milagres, a trindade que é três em um, as orações e outros mafaguinhos formam um domínio auto-contido de ideias vagas onde a religião vende fé como sabedoria. A sabedoria devia ser a crença na verdade, mas com mafaguinhos não se distingue o verdadeiro do falso. A sabedoria devia assentar nas razões certas, mas os mafaguinhos estão isolados de qualquer razão. Os mafaguinhos são postulados gratuitamente. A hóstia transforma-se no corpo de Cristo porque sim, não porque tenha outro gosto ou textura. O baptismo é importante porque é, não porque o bebé note alguma coisa de especial. A alma existe porque dizemos que existe, sem qualquer razão para o afirmar.

Esta técnica tem dois efeitos nefastos. Cria a ilusão que a doutrina religiosa é conhecimento. Chamam-lhe verdade, saber, Revelação. Mas por muito que os padres e teólogos saibam acerca dos livros que outros padres e teólogos escreveram, sabem tanto acerca dos deuses (ou mafaguinhos) como eu ou qualquer outra pessoa.

Pior ainda, como no exemplo que citei, dificulta aos crentes a distinção entre o que sabem e o que acreditam. E isso é perigoso para eles e para todos. Não era até recentemente, quando o conhecimento era prático, imediato, e quase inconsequente. Um lavrador medieval ou um mineiro no século XVII não tinham muito a perder por confundir conhecimento com crença. Mas nós temos. Individualmente temos mais escolhas e mais possibilidades de decidir o nosso futuro. E colectivamente as nossas escolhas criam ou resolvem problemas que afectam muitos outros. Problemas ambientais, económicos, políticos. Hoje em dia, confundir crença com conhecimento não é apenas disparate. É uma irresponsabilidade perigosa.

16 comentários:

  1. "mafaguinho" ?

    Aprendo uma palavra nova todos os dias...

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  2. eu ja tentei explicar isto varias vezes a pessoas que nao eram cientistas mas essas pessoas insistiram em não compreender.
    talvez isto ajude,obrigado.

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  3. Ludwig,
    já por várias vezes vi a referência a "mafaguinhos" desta vez despertou-me a curiosidade, pois não conheço a palavra, nem consegui encontrar significado para ela em dicionários e enciclopédias.
    Concordo quando diz que que não se pode confundir crença com conhecimento, discordo quando diz que a crença é parte essencial do conhecimento, pessoalmente acho que o conhecimento é algo que certifica a crença transformando-a em sabedoria.
    Quando você se lança de costas sobre a multidão, crê que o vão apanhar, a sabedoria só é alcançada quando você se certifica que de facto o apanharam ou não.
    A religião baseia-se na capacidade de fazer a ponte entre a crença e a sabedoria sem necessidade de prova.

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  4. Caros Luís e Kota,

    Mafaguinho é mesmo uma palavra sem sentido. É essa a ideia. É como deus, milagre, sobrenatural, e tantas outras que também não referem nada.

    Quando digo que a crença é parte essencial do conhecimento é apenas no sentido em que temos (por definição) que acreditar naquilo que sabemos. Se eu disser que sei que está a chover mas que não acredito que esteja a chover estou a contradizer-me. Se sei que está a chover, obviamente acredito que está a chover.

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  5. Em relação aos mafaguinhos, eu entendi isso mesmo, só não concordo quando diz que as palavras não têm sentido, para mim todas as palavras que referiu têm sentido, referem algo, quer exista ou não, quer seja explicável ou não. Repare que muita coisa que já foi chamada de sobrenatural, hoje é perfeitamente natural e não quer dizer que antes não tivesse significado. Até mafaguinho passou a ter sentido aqui, milagre...:)

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  6. Eu já afirmei aqui nos comentários do !Que Treta!" que os blins são azuis. Pois quero aqui e agora declarar que os mafaguinhos são branco-pérola quando nascem e vão acinzentando com a idade. Ao morrerem, já cinzento-escuros, a sua bnexis junta-se às bnexis de todos os mafaguinhos já anteriormente existentes e entretanto mortos. Quando o seu número igualar o número de estrelas de Andrómeda o ideal mafaguinhico será uno e indestrutível. Assim consta no Glipre, o Grande Livro Mafaguinhico.

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  7. Já sei, estiveste em Aveiro e foste visitar a loja do Cogumelo. Hi, hi, hi.

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  8. Ludwig,

    Partindo do seu ponto de vista ateu e positivista, é evidente que a sua análise é totalmente coerente e previsível.
    O problema está em que nem sempre o nosso ponto de vista corresponde à realidade. A grande batalha intelectual do ser humano é sempre a de procurar adaptar o seu intelecto à realidade, é isso que significa "procurar a verdade".

    O meu caro Ludwig diz que a "possibilidade de verificação independente" é que separaria crença de conhecimento. Mas o Ludwig terá que explicar o que entende por "verificação".

    Urge distinguir entre a crença sem conhecimento e a crença com conhecimento. Em grego, "pistis" (fé) é um termo bem diferente de "gnosis" (conhecimento). No entanto, elas podem coexistir no intelecto de um crente conhecedor. No meu percurso pessoal, a adesão pística foi essencial para o conhecimento que dela adveio.

    Posto de outra forma, eu faço a "verificação independente" da justeza e veracidade da minha fé por intermédio de operações intelectuais.

    O Ludwig crê (outro acto de fé) que, na realidade, só existem coisas verificáveis empiricamente (sensorialmente). Isso explica-se pelo seu positivismo. Apenas o empírico seria real. Se, no seu intelecto, os "mafaguinhos" (entenda-se, o supra-empírico) não existem na realidade, então conhecimento dos ditos está-lhe vedado.

    Há, na verdade, dois percursos:

    Percurso A: Crente conhecedor.
    Adere pisticamente à realidade do transcendente. Deste modo, tem as portas abertas ao conhecimento do real, seja empírico ou supra-empírico

    Percurso B: Ateu positivista.
    Adere pisticamente à irrealidade do transcendente. Deste modo, tem as portas fechadas ao conhecimento do real total (físico e metafísico), apenas consegue apreender o real físico/empírico.

    Termino apenas com isto: para si, "verificação independente" é sempre uma verificação empírica. Eu defendo que é possível demonstrar e verificar intelectualmente todos os postulados da minha fé.

    Você acredita piamente que apenas existem "coisas materiais", enquanto que eu acredito, como Platão (por exemplo), que acima das "coisas materiais" há "coisas imateriais" (ideias), e que estas precedem ontologicamente as primeiras.

    Pergunta: como se verifica empiricamente a existência, a realidade, de uma ideia?

    Ludwig: imagine que perguntava a Platão como fazer a "verificação independente" do conceito de Justiça. Como se verifica que este conceito, Justiça, é real? Como provo empiricamente que existe o conceito de Justiça?

    Para si, as ideias são meros epifenómenos neuronais, ou seja, correntes eléctricas geradas por processos bioquímicos.

    Para mim, e para Platão, as ideias têm uma existência real, que se pode verificar intelectualmente (o intelecto verifica a coisa intelectual). Já as coisas materiais podem ser verificadas pelos sentidos.

    Outro grave e grande problema com a sua sátira dos "mafaguinhos" é que o Ludwig dá a entender que, ao nível metafísico, se pode inventar o que se quiser. Recorda-me um debate infrutífero que tive com o João Vasco, do Diário Ateista, no qual ele me apontava a crença em unicórnios cor-de-rosa. Os seus "mafaguinhos" fazem-me lembrar este recorrente erro intelectual, o de pensar que as ideias metafísicas são todas irreais e equivalentes, que tanto vale acreditar na Santíssima Trindade como no unicórnio cor-de-rosa. Tal ideia abjecta é um insulto à intelectualidade, uma vez que o intelecto humano é perfeitamente capaz de operar sobre ideias puras, abstraindo-se do empírico, e ajuizar acerca da veracidade ou não de uma determinada ideia. O conhecimento metafísico só é verdadeiro quando é adequado ao real.

    Um abraço,

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  9. Kota, fui à loja hoje e acabei de perceber o Helder ;)

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  10. "Pergunta: como se verifica empiricamente a existência, a realidade, de uma ideia? "

    As ideias não estão erradas nem certas. No entanto, se a ideia preconizar um objectivo, se a ideia for uma aplicação prática sobre o domínio do real, querendo-se, por intermédio dela, modelar a realidade, neste caso já faz sentido falar em ideias erradas.

    Eu posso ter a ideia que quero matar o maior número de pessoas que conseguir. Esta ideia não é certa nem errada.

    Posso, no entanto, dizer que quero matar o maior número de pessoas que conseguir, pois assim serei mais feliz. A ideia já pode estar errada, embora seja difícil verificar.

    Posso dizer que quero matar o maior número de pessoas porque quero fazer por reduzir o número de pessoas. A ideia está certa.

    Posso pensar que a minha sanita tem super-poderes. Acho até que ela tem propriedades tais, que toda a minha essência no plano metafísico provém dela. Como é que alguém desmente isto? Justifico a grandiosidade daquela sanita por a conhecer e ela ter falado comigo num plano metafísico. Que tudo o que é existir é devido a ela, que tudo o que é como é (seja o que for) se deve ao poder criativo da sanita. Dirão, mas uma sanita como aquela, há tantas. Contraponho: eu conheço aquela sanita, até onde ela me permitiu conhecê-la, mas tenho evidências de fé que me dizem que ela é uma personificação de Deus. Aliás, Deus e a sanita são surrealistas, por isso é que Deus escolheu a sanita para se manifestar.

    E tal e tal. Isto do absurdo funciona sempre muito bem. Porque o absurdo é tão absurdo como as outras crenças, os crentes é que não tem sensibilidade nem desafogo intelectual para o perceberem.

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  11. «Para mim, e para Platão, as ideias têm uma existência real, que se pode verificar intelectualmente (o intelecto verifica a coisa intelectual). Já as coisas materiais podem ser verificadas pelos sentidos.»

    As ideias têm existência real? Como uma cadeira ou uma pedra? Como uma acção? Como um símbolo? Como quê? As ideias não existem se não houver ninguém para pensar nelas.

    O Bernardo insiste na ideia de que as ideias existem independentemente dos objectos/acções/fenómenos que designam. Isso é uma afirmação muito forte porque pode ser confrontada com o conhecimento que temos da neurologia, da percepção e da linguagem.

    O Bernardo diz que as coisas materiais podem ser verificadas pelos sentidos mas isso também não é bem verdade - as cores, por exemplo, não existem. São uma criação do meu cérebro.

    Neste exemplo, a realidade e a forma como eu a sinto são coisas distintas - existem frequências e existe a interpretação cerebral dessas frequências. Algo de semelhante se passa com as ideias.

    É falso que exista conhecimento sem confrontação empírica.

    A única coisa que se pode fazer usando somente a lógica e o intelecto é Matemática. E a Matemática não nos diz nada sobre a realidade. Nem sobre objectos de fé.

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  12. Este artigo é de antologia.

    Parabéns!

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  13. Para que não seja mal interpretado, o que eu queria dizer quando disse que "algo de semelhante acontece com as ideias" era que existem ondas cerebrais e memórias, padrões, e existem respostas a esses padrões. Uma ideia seria uma expressão de uma determinada linguagem que é interpretada pelo cérebro. O processo a que chamamos raciocinar seria o articular de respostas e simulações a determinados padrões.

    Isto para dizer que Platão está a anos-luz daquilo que é a realidade do pensamento e da articulação das ideias. O que não é uma surpresa.

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  14. sinceramente tive muitas dificuldades em preceber o que o Ludwig quer afirmar. e achei ainda mais confuso o comment do "espectador". mas sobre o post, a minha opinião é diversa do ludwig,´na minha leitura pessoal, o que a religião nos propoem é crença sem conheçimento. acreditar sem conheçer. "feliz aquele que acredita sem ver". o perigo a meu ver deriva daí, (ja que acredito que todo o conheçimento é bom, mesmo o conheçimento do tolo)

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  15. pensarcusta:

    É verdade que a religião propõe acreditar sem ver, mas é falso que eles reconheçam que isso corresponde a acreditar sem conhecer, pois consideram, por tolo que possa parecer, que não precisam de ver para SABER.

    E é esse disparate que o Ludwig denuncia no artigo, esclarecendo que não basta acreditar para saber algo: são necessárias boas razões, as quais se podem encontrar no confronto com aquilo que é observado.
    Nunca na alegada beleza ou coerência interna dos modelos, que é aquilo que o Bernardo (espectadores)propõe.

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  16. p/ espectadores

    que eu saiba platão nao fazia ciencia, se nao me engano era filosofo ;).

    "Eu defendo que é possível demonstrar e verificar intelectualmente todos os postulados da minha fé" claro. o que nao prova que tenham exitencia real. Na ciencia só o real é que interessa, só o real é o universo. no exemplo utilizado, o da justiça, se nao me engano a justiça não é parte do universo real. (extra-humano) se defende o contrario, (que considero legitimo)então o "espectaores" vive realmente na caverna. um mundo construido para baixar as espectivas e dar uma visão transcendal do universo. É muito esclareçedor a metafora das sombras (e um parelelismo com a visão de Kamt das ciencias)e aceito como verdade. mas nao se esqueça do contexto de Platão. a sua alegoria da caverna está morte.

    CS

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