terça-feira, fevereiro 27, 2007

Incentivar: o quê, e como.

Tenho desabafado regularmente sobre piratas e partilhas, mas vejo pelos comentários que a minha posição acerca deste sistema de incentivo não é clara. O que é que se quer incentivar, como o fazer, e se ainda é necessário fazê-lo com a tecnologia que temos. Consideremos então as duas formas principais do que se chama «propriedade intelectual»: patentes e copyright.

As patentes aplicam-se à exploração comercial de inovações tecnológicas, o que geralmente exige uma infra-estrutura dispendiosa. Não se pode patentear teoremas, fórmulas matemáticas, ou descobertas científicas, e a patente é um documento público, pelo que a ideia se torna «propriedade» de todos. Por isso a patente não recompensa ideias; o seu papel é proteger o investimento necessário para se tirar proveito da ideia. É para incentivar fábricas e não invenções.

O copyright cobre expressões materiais de uma ideia, também não cobre a ideia em si. Ninguém é dono de uma música ou de um poema. O copyright apenas restringe o direito de criar certas representações da ideia. Restringe o direito de distribuir fotografias do Rato Mickey mas não o direito de desenhar o Rato Mickey. Restringe o direito de vender CDs mas não o direito de cantar no duche. Também aqui o propósito não é proteger a ideia, que se assume ser de todos, mas proteger o investimento necessário à sua divulgação.

As empresas de distribuição vendem o copyright como incentivo à criatividade, mas este sistema tem pouco mais de cem anos e já havia criatividade antes. O copyright não foi inventado para remediar uma falta de inspiração de músicos e escritores do final do século XIX, mas para regular a concorrência entre as editoras que imprimiam e vendiam livros e pautas. Este serviço era importante para todos e era preciso que a sociedade o protegesse.

A coisa começou a dar para o torto nos anos 1910-20 quando os estúdios de cinema aproveitaram a lei de 1909 sobre o trabalho contratado, uma lei que dava ao empregador o direito de autoria sobre a obra do empregado. Tinha sido criada para simplificar a gestão dos direitos sobre jornais e revistas, mas teve um impacto imprevisto ao mudar por completo a noção de «autor». Os estúdios passaram a contratar argumentistas e a ficar com os direitos sobre as suas obras. E a enriquecer. E a pagar aos políticos para dar uns jeitinhos na lei. Hoje em dia os artistas têm muito poucos direitos sobre a arte que criam, o período de exclusividade cresceu de catorze para cento e vinte anos, e a arte parece mais uma competição de vendas que uma expressão de criatividade.

Os direitos de «propriedade intelectual» são restrições que a sociedade se impõe para proteger o investimento que a exploração da criatividade exige. Isto concedeu aos distribuidores o poder de distorcer gradualmente o sistema a seu favor, e em prejuízo da criatividade artística e do consumidor. Mas agora esse modelo de distribuição é obsoleto, e podemos fazer com as músicas e histórias o que fazemos com a matemática, as receitas, ou o design de roupas. Deixemos que os artistas se entendam com o seu público como se entendem professores e alunos, cozinheiros e gourmets, desportistas e adeptos, e tantos outros que criam e apreciam as mais diversas coisas. Porque nenhum poeta deixa de escrever, nenhum pintor deixa de pintar, e nenhum músico deixa de compor só por medo que os fãs partilhem essas obras.

2 comentários:

  1. Espero não estar a confundir o propósito do post mas fiquei com dúvidas.

    Restringe o direito de distribuir fotografias do Rato Mickey mas não o direito de desenhar o Rato Mickey.

    In 1989, Disney sued three daycare centers in Hallandale, Florida for having Mickey Mouse and other Disney characters painted on their walls. The characters were removed, and rival Universal Studios replaced them with Universal cartoon characters. - aqui

    A protecção neste caso não é só copyright, mas também trademark.

    Também aqui o propósito não é proteger a ideia, que se assume ser de todos, mas proteger o investimento necessário à sua divulgação.

    Ok. E o investimento necessário à produção de um filme? Ou seja, a concretização da ideia.

    Em relação aos filmes não há grande problema, as salas de cinema oferecem condições que a partilha de Internet não oferece. E isso vê-se nas receitas de bilheteira.

    Mas e o caso conceptual em que o custo da concepção de uma obra envolve um risco suficientemente elevado? Um exemplo: no fundo da página da Agência Lusa está escrito o seguinte:

    Copyright © Agência LUSA. A redistribuição ou a difusão, parcial ou integral, das notícias deste site é proibida, sem prévio e expresso consentimento da Agência LUSA, S.A..

    Como é que a Agência Lusa lucraria se não pudesse vender os seus serviços? Ou melhor, devemos proteger a Agência Lusa de partilha das suas notícias?

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  2. O caso do trademark é um pouco diferente, e menos problemático porque normalmente não interfere com a vida privada. Mas esse incidente de processar um infantário só mesmo nos EUA, onde estas leis vão muito para além do seu propósito inicial. A extensão regular dos prazos de copyright até é conhecida como o efeito Rato Mickey porque aumenta o lobbying sempre que se aproxima a data de o Mickey passar a domínio público.

    Quanto à agência Lusa, a lei Portuguesa não dá direitos de autor sobre noticias ou relatos de acontecimentos. Se eles lucram concerteza não é pelo direito de processar bloggers que citem notícias deles ou coisa do género.

    Mas a questão fundamental não é se o copyright não beneficia ninguém. Claro que alguém beneficia com isso, senão não existia. A questão é se o benefício compensa os custos. Mas isso virá no próximo episódio :)

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