quinta-feira, janeiro 04, 2007

Matar ou não matar, eis a questão.

Muitos propõem que só é condenável matar um ser humano se esse já manifestar certas características. O André Cardoso chamou-me a atenção para este texto de Teresa Sá e Melo (1), republicado recentemente no Diário Ateísta, e que é exemplo desta abordagem:

«Para mim é incompreensível pretender provar que a vida, ou o direito à vida, é anterior e superior à expressão da nossa autonomia. Porque não consigo discernir a existência de um ser, definido como humano, destituído de vontade.»

O problema principal de assumir que um direito é consequência da manifestação duma característica revela-se quando consideramos a possibilidade de impedir essa manifestação. Imaginem que fazemos como em certos países e ensinamos as raparigas a considerarem-se pessoas de segunda categoria. Treinamo-las desde o nascimento a obedecer aos homens, impedindo que se tornem seres humanos capazes de conduzir a sua vida com independência.

Mesmo eliminando todas as outras formas de repressão, violência e discriminação, este tipo de educação seria (e é) por si só uma violação dos direitos fundamentais dessas raparigas. Mas se assumirmos que só tem o direito depois de manifestar essa autonomia e vontade própria, seria perfeitamente legítimo educar uma criança desta maneira. O erro está em ver o direito como recompensa por se atingir um certo estado de desenvolvimento e ignorar o direito de se desenvolver de acordo com as suas capacidades, que é o direito mais fundamental.

Proteger a vida não se justifica como um prémio, nem por ser vida. Justifica-se pelo direito a desenvolver características de valor para aquele que delas vai usufruir. A criança tem o direito de se tornar adulto. O recém nascido, mesmo sem saber pensar, tem já o direito de aprender, de desenvolver a tal vontade e autonomia. O mesmo se aplica ao feto, e pela mesma razão.

Sem essa capacidade de se desenvolver – sem futuro, no fundo – não faz sentido proteger uma vida. Uma barata, um homem de 30 anos em coma irreversível, ou um embrião humano numa placa de Petri. Mas os que têm essa possibilidade têm o direito, e é ilegítimo privá-los de se desenvolver de acordo com as suas capacidades. Seja uma rapariga recém-nascida no Irão, seja um feto em Portugal.

Aqui foquei a vontade e autonomia, apenas por exemplo, mas o problema aplica-se em geral. Se considerarem que só se justifica proteger uma vida após surgir certa característica, pensem nas implicações éticas de eliminar essa capacidade (por treino, drogas, cirurgia, o que for), e verão que a capacidade em si merece protecção, e é isso que legitima proteger a vida.

1- Teresa Sá e Melo, 20-4-06, O Irracional e o Aborto

11 comentários:

  1. Bem, se fores a um dicionário decente verás que a definição(ões) de "direito" é mais complexa e plural da que queres fazer passar.
    Uma vez que gostas de dar exemplos muito específicos - que por isso mesmo tornam a tua argumentação falaciosa -, eu vou tentar generalizar para não cair no mesmo erro.
    Como tenho a certeza que sabes (melhor do que eu) o valor da vida na Natureza não é igual ao valor que tu desejas imprimir ao homem. Na Natureza, o valor da autonomia é, na maior parte das vezes (regra geral, portanto) superior à vida - sua ou de outro.
    Podes argumentar que o homem é superior à natureza, mas isso, mais uma vez, é uma inverdade.
    O principal valor que tu dás a uma vida (humana) é caracterizada por alcançar todas as suas potencialidades: crescer, aprender, procriar, etc. No entanto, se o futuro indivíduo corromper o mesmo processo (que é inerente ao valor) da mãe, o valor da vida desta é anulado pelo valor da do filho.
    Se quiseres realmente inferir o valor correcto de uma vida humana, não podes dar igual valor a uma vida autónoma - em que o 'eu' existe - e uma que é dependente da autónoma - e que nem sequer possui 'eu'.
    De qualquer forma, respeito a tua opinião, mas não concordo com a tua aproximação argumentativa a este tópico. Tenta generalizar mais e não faças batota com a retórica.

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  2. Tão claro como a àgua:

    Se devido a um abordo clandestino feito em condições precárias, a mãe morrer, o há muitas probabilidades de o feto não sobreviver. Qual deles vale a pena salvar? O feto que é uma possibilidade de vida ou a mãe?

    De igual modo, se a mãe levar com um tiro na cabeça, o mais provável é que o feto não sobreviva. É claro que haverá sempre quem argumente que depende do estado de gestionamento. Mas se pensarmos em termos mais gerais, a mãe é sempre mais importante que o feto.

    O resto é treta ;-)

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  3. Caro André,

    Concordo que devemos propor regras gerais, e não as criar à medida do que é conviniente em cada situação. Mas temos que as testar em exemplos concretos, e temos o dever de procurar casos em que elas falhem.

    Não conheço nenhuma falácia que consista em testar uma regra com exemplo concreto.

    Esclarecendo outros pontos:

    O valor da vida na natureza é zero. A natureza não tem valores.

    Quem tem valores é quem é sujeito. Animais como nós, talvez os chimpanzés, golfinhos, e um punhado de outros.

    A protecção da vida é parte integrate do respeito pelos valores dos outros (não da natureza, não de valores em abstracto, mas pelos valores subjectivos daquele que vive essa vida).

    Outra parte importante é respeitar a capacidade dos outros de adquirir valores.

    O direito aplica-se por isso não só aos que já têm o valor, mas aos que são capazes de o adquirir. Daí o direito de aprender a ler, de guiar a sua vida. E de crescer e desenvolver-se.

    Caro Miguel,

    Em caso de perigo para a vida da mãe, concordo que o aborto deve ser permitido. E já o é.

    É verdade que um aborto em más condições é arriscado, mas se fôr verdadeiramente por opção (o que se pergunta no referendo) então compete à mulher não arriscar. Se não for por escolha livre então é mesmo de impedir: parece-me consensual não admitir que alguém seja obrigado a abortar. Isso deve ser completamente ilegal.

    Concordo que a mãe é mais importante que o feto. Sempre que a escolha for entre a vida, ou mesmo a saúde física ou psíquica, da mãe ou a vida do feto ganha a mãe. Mas isso já está na lei.

    O que não está na lei é que a mera vontade da mãe, seja porque razão for, é sempre mais importante que a vida do feto. Seja porque quer uma rapariga, ou porque prefer de olhos azuis, ou porque tem as férias marcadas para essa altura, ou para chatear o marido. É apenas isso que querem acrescentar, e é disso que discordo.

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  4. O animal no matadouro sofre certamente mais que o embrião. Ou que o recém nascido, que pode ser morto sem sofrimento, e que tem menos autonomia, vontade, pensamento e isso que os animais que vão para o matadouro (e provavelmente não sente nada, pois quando nascemos praticamente não temos mielina, que é fundamental para o cérebro funcionar -- o cérebro aumenta cerca de 40% nas primeiras semanas só à conta de cobrir os axónios de mielina para os pôr a trabalhar).

    Nós não ganhamos o direito de saber ler só depois de saber ler, nem o direito de saber andar só depois de andar. O direito de pensar, de ter vontade, de ser autónomo também antecede estas caracteristicas. Se o feto não tivesse já o direito de desenvolver estas capacidades seria legítimo cortar-lhe as pernas, ou os braços, ou remover partes do cérebro. Nota que só consideram que o feto não vale nada e é apenas potencial se for para o matar, o que é estranho (mais vale perder um olho que a vida...)

    Quanto ao potencial, a partir da concepção já é um organismo vivo. Não é potencial, é mesmo. O espermatozoide também está vivo, mas faz parte de um organismo. A diferença entre um espermatozoide e um embrião é a diferença entre uma célula do meu corpo e o corpo do meu filho. A autoridade que eu tenho para decidir o seus destinos é diferente.

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  5. Caro Ludwig,
    Mas parece-me que os teu exemplos são sempre demasiado convenientes e encaixam-se na perfeição no argumento que defendes.
    Daí a falácia: "no aristotelismo, qualquer enunciado ou raciocínio falso que entretanto simula a veracidade; sofisma".
    Gostava que te explicasses melhor quando dizes que o valor da vida na natureza é zero.
    Dizes isso à luz do Direito, da Filosofia, da Biologia?
    Deduzo que, como nos equiparas ao chimpazé e ao golfinho, seja pela capacidade de aprender...de raciocínio. Mas ao estares a dar valor a esta característica, creio que já estarás a entrar no campo da filosofia.
    Eu considero qualquer vida na natureza tão importante (ou talvez até mais, porque não desequilibra o ecossistema) como a nossa.

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  6. Caro André,

    Eu tento encontrar os fundamentos para decidir o que é eticamente aceitável ou não. Não atiro uma moeda ao ar nem vou pela primeira coisa que me parece melhor, por isso inevitavelmente tenho que cair no que chamas "filosofias".

    O conceito fundamental para mim é o valor, e a natureza como sistema não tem valores. O valor é gerado pelo sujeito, é a base da sua subjectividade: prefiro isto e não aquilo.

    A ética visa gerir as acções voluntárias e suas consequências para compatibilizar os valores que, sendo subjectivos, são diferentes de uns para outros.

    A vida em si não tem valor porque é meramente instrumental. Alguns seres precisam da vida para ter valores, e dão valor à sua vida, por isso para esses a vida tem valor. Outros seres (fungos e plantas, por exemplo) não têm valores, por isso a sua vida se tiver valor é para outros. Para a natureza a vida não tem valor nenhum -- a natureza não fica triste se um asteroide extermina 90% das espécies num planeta.

    Quanto aos exemplos, precisava que me desses um que demonstrasse que isto é falacioso. Posso dar exemplos estranhos, mas parece-me que a minha abordagem é suficientemente genérica para lidar com estes também. Não assumo que só os seres humanos tenham valor (por mim matar um chimpanzé era homicidio, e não compro carne de vaca, nem de porco, nem de borrego porque considero inaceitável o sofrimento destes animais na industria alimentar).

    Cá vai um exemplo diferente: imagina que numa lua de Jupiter encontravamos uns seres feitos de silica. Não tinham nada que reconhecessemos como vivo, mas pensavam, eram conscientes de si mesmos, comunicavam conosco e com outros, e tinham valores, dando valor à sua existência.

    Mesmo sendo incapazes de sentir dor ou de sofrer, eu condenaria a destruição deliberada destes seres porque fazê-lo seria privá-los de um futuro ao qual dariam valor. Pouco me interessa que não estejam mais vivos que um CPU.

    Mais, se eles se reproduzem depositando no chão um pequeno cristal que se desenvolve até ter consciência e pensar, condeno a destruição desse cristal mesmo antes de chegar a esse estado de desenvolvimento. A escolha aqui é entre impedir ou permitir que aquele ser se torne consciente, e a primeira opção priva-o de um valor importante para si, mesmo que ainda não o tenha.

    A mesma abordagem serve-me para decidir que carne compro no supermercado, que as crianças têm direito a uma educação, que a tortura e o homicídio são condenáveis, e que o aborto por mera opção da mãe não é aceitável. A ética continua algo complexo e com problemas difíceis, mas acho isto melhor que ir inventando regras disconexas conforme preciso.

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  7. Primeiro de tudo, penso que entendeste mal. Nunca tencionei menosprezar a Filosofia, bem pelo contrário.
    Segundo, já percebi o valor que dás ao 'valor'.
    Mas segundo a corrente de pensamento (de ética contemporânea) que segues em relação aos 'valores', cais numa contradição. Porque a mesma corrente também enuncia que existe uma "(...)suposição da existência de uma pluralidade incontornável de padrões éticos e da ausência de um Bem absoluto ou universalmente válido."
    Ou seja, a avaliação que tu dás à vida segundo esses critérios, não tem que necessariamente ser de igual valor para o resto da sociedade.
    Eu por mim digo que a vida é sobreavaliada. Mas, como tu, respeito o sofrimento e defendo a velha máxima: não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem.
    Quanto aos seres de silica, deixo isso para o campo da ficção científica, que também tem grande valor.

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  8. Caro Ludwig Krippahl,

    Revejo-me na maior parte deste post, bem como nos comentários que "arrumaram" o André e o Miguel Caetano.
    No caso do André, achei caricato ele ter trazido o dicionário atrás; bem como o tique, que tenho visto em outros comentários de outros posts, de clamar "Retórica" a tudo o que lê, parece ser a sua formula mágica como argumento, sendo o seu comentário um chorrilho de incongruências com grande falta de informação relativamente a conceitos básicos, como no caso do "valor da vida na natureza", etc...

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  9. Parece que tenho um stalker.
    Sérgio Matos, ou seja lá tu quem fores, acho as tuas observações de muito mau gosto.
    Apesar de não concordar com o Ludwig Krippahl em relação a este assunto, isso não me impede de tentar perceber o seu ponto de vista e aprender algumas coisas com ele.
    Não venho a este blog para disparatar mas, como aliás já disse ao Ludwig, para aprender.
    Sinto muito que a minha argumentação e conhecimentos sobre o assunto sejam fracos, mas pelo menos estou a tentar.
    Se o Ludwig não quiser que eu participe activamente no seu blog porque sente que com a minha presença o nível está a descer, ele próprio mo dirá, e eu respeitarei a sua decisão.

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  10. Caro André,

    Nunca encontrei uma corrente ética com a qual me identificasse, pelo menos na sua forma mais "pura". Sou parcial ao utilitarismo, e não acho que nem a virtude nem o dever sejam bons fundamentos para a ética, mas não sou 100% utilitarista (e há muitos utilitarismos).

    Quanto a essa contradição, não a vejo como tal. Não é contradição nenhuma que o valor (e o bem) sejam subjectivos e por isso não haja um valor absoluto. É a vida.

    E é precisamente isso que torna a ética necessária; senão bastava-nos a epistemologia: descobria-se o bem absoluto e estava tudo resolvido. Como fazemos com a física, a química, etc.

    Felizmente, a subjectividade é universal na ética: tudo o que interessa para a ética depende da subjectividade, e o subjectivo é subjectivo para todos.

    Foi isto que tentei ilustrar com o exemplo (hipotético) dos seres de sílica: o valor da existência de um ser capaz de subjectividade não é o valor que tu ou eu lhe damos, mas o valor que esse ser deu, dá, e dará a si mesmo a longo de toda a sua existência. Essa é a consequência da tal "contradição" que apontas. Precisamente porque os valores variam de sujeito para sujeito a ética não pode ser um (nem a maioria) a decidir os valores pelos outros mas sim a procura de soluções que permitam o mais possível que cada um decida por si.

    Mas isto não quer dizer que cada um faz o que quer aos outros. Obviamente que há que intervir se uns querem privar os outros dos seus valores. Não podemos permitir que se mate por opção, por exemplo.

    Penso que Robert Kane explica bem este problema com o seu conceito de "moral sphere". Vê por exemplo o texto dele aqui

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  11. Ok! Obrigado Ludwig. Vou ler.

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