quinta-feira, janeiro 18, 2007

Comprimidos e penhascos.

Parece-me que há duas confusões que contribuem muito para a longa barafunda do aborto. Uma é confundir o direito à vida com o dever de não matar. A outra é confundir o moralmente condenável com o que, além de imoral, deve ser punido. Por causa destas confusões muitos argumentos saltam de um lado para outro com inferências absurdas.

Vou começar por um exemplo para ilustrar estas diferenças. Saliento que é um exemplo, e não uma analogia; não me acusem depois que no aborto a pressão atmosférica é maior ou o que raio seja. Estou á beira de um penhasco com outra pessoa. Não há mais ninguém num raio de quilómetros. Eu estou firmemente seguro, e nunca em risco de cair. A outra pessoa escorrega e cai. Consideremos três cenários.

No primeiro, ela agarra o meu pé e eu borrifo-lhe na cara um veneno que mata instantaneamente e sem dor. No segundo cenário eu desvio o pé quando ela se tenta agarrar, e ela cai. No terceiro eu vejo que a mulher não está muito boa da cabeça e ainda vai cair, por isso afasto-me à cautela. Algum tempo depois ela cai, mas eu estou longe demais para que se possa agarrar.

No primeiro cenário posso alegar que eu é que mando no meu corpo. Ninguém mais a pode ajudar, por isso a sua vida depende exclusivamente do uso do meu corpo. A minha autonomia é uma questão de consciência, e assim por diante. Já conhecem os argumentos todos, provavelmente. O problema é que acima disto tudo está o meu dever de não matar. Ou, se preferirem um direito (o dever de um é sempre o direito de outro, e vice versa), o direito dela de não ser morta. Este acto deliberado de a matar é imoral e deve ser punível, mesmo se ela usa o meu corpo para sobreviver e mesmo não podendo eu passar essa responsabilidade a outrem.

No segundo cenário eu nego-lhe assistência quando ela precisa, sabendo que assim vai morrer. Mas isto não é o mesmo que matar. O seu direito ao auxílio é muito mais fraco que o direito de não ser morta. A minha atitude neste caso também é imoral, mas é difícil dizer se devia ser punível. Podemos obrigar o auxilio em certas circunstâncias (pais para filhos, médicos para pacientes, etc), mas temos sempre que considerar vários factores, entre os quais o aspecto prático de aplicar a lei. Isto porque obrigar a auxiliar pode ser mais imoral que não auxiliar.

No terceiro cenário eu simplesmente decido distanciar-me da situação. A mulher é maluca, não tenho nada a ver com isso. Mesmo a moralidade ou imoralidade deste caso é discutível.

O aborto, a pílula do dia seguinte, e a abstinência ou contracepção cobrem também esta gama de possibilidades. O aborto mata com intenção, violando o mais fundamental destes direitos e deveres que temos uns para com os outros: não matar e não ser morto. A pílula do dia seguinte altera o útero impedindo a implantação do embrião. Ele morre, e é imoral que a mãe «desvie o pé» desta maneira, mas o dever/direito que é violado é o de assistir o necessitado, mais fraco que o dever de não matar. Há por isso outras considerações importantes que levem a que, mesmo que imoral, não deva ser punível. A contracepção previne a situação que possa levar a uma escolha imoral ou punível. Não mata nem nega assistência porque nessa altura não vai morrer ninguém nem há alguém que precise de assistência.

A maior parte dos argumentos pelo «sim» é treta por causa disto (a maior parte dos argumentos do «não» também é treta, mas por outras razões). Uns argumentam que se o aborto for crime, então tudo desde o preservativo tem que ser punido como homicídio. Outros que a impossibilidade de retirar o feto da mãe com segurança lhe dá o direito de matar o filho. Isto por confundir o dever de não matar com o dever de auxiliar, e de assumir que se deve punir tudo o que é imoral.

5 comentários:

  1. A primeira situação anula, e bem, o slogan de 1998 aqui mando eu, escrito na barriga das manifestantes.

    O aborto mata com intenção, violando o mais fundamental destes direitos e deveres que temos uns para com os outros: não matar e não ser morto. A pílula do dia seguinte altera o útero impedindo a implantação do embrião. Ele morre, e é imoral que a mãe «desvie o pé» desta maneira, mas o dever/direito que é violado é o de assistir o necessitado, mais fraco que o dever de não matar.

    Portanto, se numa intervenção, o médico, em vez de retirar o feto, simplesmente cortar o cordão umbilical, estamos nesta situação. Certo?

    Não mata nem nega assistência porque nessa altura não vai morrer ninguém nem há alguém que precise de assistência.

    Não percebi.


    Outros que a impossibilidade de retirar o feto da mãe com segurança lhe dá o direito de matar o filho.

    Sim, e quanto aos que defendem que os danos psicológicos causados à mulher por ser obrigada a ter o filho são mais valiosos que a vida deste? Isto assumindo, claro, que a pessoa em melhor posição para decidir se deve abortar, é a própria mulher.

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  2. Cortar o cordão umbilical não faz diferença, porque o cordão é parte do feto (bem como a placenta e o saco amniotico). Seria matar o feto cortando-lhe um bocado do corpo.

    Se for simplesmente removê-lo seria um pouco diferente, mas não muito. Seria o equivalente a tirar à força a mão da mulher pendurada para que ela caisse.

    No caso da contracepção não há nenhum organismo que é morto ou que precisa de ajuda para continuar a viver. A acção é tomada antes de haver necessidade de auxílio para viver ou possibilidade de matar.

    No caso de sofrimento físico ou psicológico tanto o caso do penhasco como o do aborto pode ser justificado. Se a pessoa que está agarrada à minha perna me está a dar facadas ou me violou e quer violar de novo, ou se me põe em perigo a saude psíquica, não serei culpado se lhe der um pontapé para ela cair. Mas isto não é uma coisa que cada um decida por si, por mera opção, sem que se exiga justificação adicional.

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  3. A questão, a meu ver, é falar de pessoas, quando um feto o não é até à independência fisiológica, o que, de acordo com os conhecimentos e técnicas médicas actuais, nunca acontece antes das 20 semanas. Até aí, portanto, o feto é parte integrante e dependente da mulher, e não é uma pessoa. É esta a minha visão.

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  4. dreixel,

    Isso deixa dois problemas em aberto. Primeiro, porque não se pode ser pessoa quando se depende de outros?

    Segundo, e principal, que legitimidade tem um ser humano para decidir que outro ser humano não é uma pessoa?

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  5. Eu ainda não conheci nenhum pai ou mãe que ao olhar para uma ecografia do seu filho e ver uma silhueta com forma humana, não a tenha considerado como pessoa. Actualmente está-se a relegar para segundo plano o aspecto Humano da questão o que eu acho um erro. Não me cabe a mim formular a Lei, mas sim dar indicações ao legislador. De um momento para o outro, parece que todos querem redigir Leis. Para alguns, um feto é menos importante do que as pinturas rupestres, para mim não obrigado.

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