segunda-feira, dezembro 31, 2007

Desejos de um bom período arbitrário de 366 dias a começar amanhã.

Um ano sideral é o tempo que a Terra demora a dar uma volta ao Sol, em relação às estrelas. Trezentos e sessenta e cinco dias, seis horas e nove minutos. Aproximadamente. O ano tropical é o período dos solstícios e equinócios. As quatro estações. É vinte minutos mais curto que o ano sideral.

Hoje não se celebra nada disto.

Hoje à meia noite é (aproximadamente) a hora em que o observatório de Greenwich está de costas para o Sol. Como nós estamos perto desse meridiano vai ser a essa hora que vamos todos contar os segundos, abrir garrafas de champanhe e gritar Iééée! Uma contagem decrescente para o momento exacto de... bem, de coisa nenhuma.

Mas que a minha falta de vontade de cumprir a obrigação de “festejar” a entrada neste período arbitrário de tempo não vos estrague a diversão. Desejo a todos uma boa noite e que os próximos 366 dias vos corram bem.

domingo, dezembro 30, 2007

O post do ano de 2007.

Foi o sexto post da rubrica «Treta da Semana», a 28 de Maio. Com mais de meio ano ainda é a página mais visitada deste blog em muitos dias. Cerca de metade das visitas ao meu blog são via pesquisas por “kevin trudeau”, “curas naturais” e afins. Tem 74 comentários, o último colocado hoje. E apesar de não ser o mais comentado, tem muitos comentários que merecem destaque. Deixo aqui alguns excertos.

«Eu usei a água oxigenada nos pés para eleiminar odores, e realmente funcionou...» (eu uso água com sabonete e também resulta bem).

«Não vamos ser ingênuos, Papai do Céu fez tudo certinho... Quando fez a natureza, Ele sabia que nós poderíamos usufruir de toda ela para nosso prazer e saúde!!!» (certo... não vamos ser ingénuos).

«não sou médico diploamdo nem algo assim mas em certa ocasião peguei um virus ou coisa assim. Muito parecido com essa tal de Herpes, vi as fotos na internet [...]. Eu aplicava sabão neutro nas referidas partes intimas até fazer muita mas muita espuma e saia para trabalhar sem emxaguar com o sabão a secar na pele. »

«O modo que esse Kevin falou foi tão lógico que me fez calar a boca, ou melhor, o pensamento.»

«ele diz a verdade !!!!!!!!!!» (citado na íntegra...)

«PSORÍASE – [...] Alguém me sugeriu que fizesse o método amaroli (tomar a própria urina) [...] o tratamento é tão simples que eu resumo em uma frase: Evitar o excesso de carnes vermelhas que dão gosto ruim a urina e comer mais frutas e verduras, e então passar a tomar a sua própria urina (eu dispensava o primeiro jato que é o que limpa o canal da uretra).»

«Os americanos bloqueiam qualquer coisa que possa desbancar os remédios das Indústrias farmacêuticas. Uma ocasião importei um remédio chamado ESSIAC que tirou muita gente da fase terminal de câncer, mas tive que encomendar do canadá porque se viesse dos EEUU eles abrem e mexem na composição para não fazer efeito.»

Mais em Treta da Semana: Kevin Trudeau

Não o nomeio post do ano de 2007 apenas pela popularidade, mas principalmente porque, quando o escrevi, não sabia como era possível o Kevin Trudeau fazer tanto dinheiro com esta treta.

Agora já sei...

sábado, dezembro 29, 2007

Senhoras e senhores, a realidade.

Boa. Eu e o Desidério já discordamos outra vez. Mas temo que seja apenas um mal entendido. Segundo o Desidério eu penso «que a realidade se esgota no que pode ser observado» (1). Não penso isso. O que penso é que não faço ideia do que é a realidade fora daquilo que pode ser observado. Estou a discutir como podemos conhecer a realidade. O que a realidade é, e onde se esgota, tenho que deixar para depois.

Por isso não é «a própria noção de realidade que está em causa». Tão-pouco proponho que nada haja «na realidade que não tenha localização espaciotemporal.» Se alguma teoria das cordas estiver correcta isso do espaço e do tempo até pode ser pouco mais que uma convenção, como desenhar os mapas com o Norte para cima. Eu não estou a mandar no que a realidade é. Na gíria filosófica, o problema é a epistemologia. A ontologia vai ter que esperar.

O exemplo do quarto chinês (2) mostra um requisito do conhecimento*. É preciso símbolos, mas «çlkwljkfwa» não é conhecimento. É preciso regras de sintaxe, como as tabelas no quarto chinês, mas «pai_de(jor_el,kal_el)» não é conhecimento por si só. É este o nível em que os computadores (hoje) operam. Um interpretador de Prolog aceita aquele predicado mas não faz ideia do que quer dizer. Com a semântica, quando ligamos a linguagem a algo fora desta, já se pode ter conhecimento. O Jor El é pai do Kal El. Mas só é conhecimento se o Jor El for mesmo pai do Kal El. Se não for, então não é conhecimento. É fantasia ou engano.

É assim que a realidade se apresenta. A direcção até é contrária ao que eu descrevi. Os homens primitivos não começaram por inventar símbolos, depois regras para os compor em «1+1=2» e finalmente dar-lhe um significado. Primeiro a realidade deu-lhes coisas para contar, e foi isso que eventualmente os fez inventar uma linguagem que o descreva. Aristóteles não tinha feito nada com a lógica sem reparar que há proposições verdadeiras e outras falsas. Euclides afirmou que só há uma recta que passa num ponto e é paralela a outra recta. Não por dedução matemática mas porque era evidente (para ele). No principio era a observação. A palavra veio depois. Na verdade, veio muitos milhões de anos depois.

Eu e o Desidério concordamos que não há observação “pura”. Toda a observação exige um modelo prévio daquilo que se está a observar. A evolução produziu muitos destes, dos modelos mais simples nas bactérias até ao cérebro humano que inventa modelos simbólicos aos montes. O que eu proponho é que isto funciona nos dois sentidos. Não se pode criar um modelo simbólico que seja conhecimento sem depender da observação. Sem observação não se pode dar significado aos símbolos nem saber se esse significado corresponde ao que queremos que corresponda. Seja somar uma coisa a outra seja o pai do Kal El.

É arriscado afirmar que não há conhecimento que não dependa de observação. Basta um exemplo contrário para refutar esta hipótese. Por isso proponho Desidério que me dê um exemplo de conhecimento que se possa obter sem qualquer observação. Ficarei (agradavelmente) surpreendido se ele conseguir, porque só vejo duas possibilidades. Ou algo como «P», em que «P» é uma proposição verdadeira mas que não é conhecimento porque não sabemos o que «P» é. Ou algo como «nenhum número ímpar é par», que depende de observação para dar significado a estas palavras.

* O conhecimento explícito, que representamos em equações e palavras e discutimos na filosofia. Mas o fundamental aplica-se também a saber tocar viola ou digerir uma maçã, só que não posso enfiar tudo num post...

1- Desidério Murcho, 29-12-07, O que é a realidade?
2- Eu, Ciência às fatias.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Ciência às fatias.

Infelizmente, parece que eu e o Desidério discordamos cada vez menos. Mas acho que consigo esticar um pouco mais a conversa. Concordamos com uma acepção mais abrangente de ciência que não a caracteriza por um método ou tema particular, mas o Desidério escreveu:

«Não concordo com a ideia de que isto invalide distinções iluminantes entre diferentes ciências (e talvez Ludwig não queira dizer exactamente isto, apesar de o parecer). A matemática ou a lógica, assim como a filosofia, ocupam-se daquela parte (talvez irritante) da realidade que não parece poder ser estudada pela observação, pela medição, pelos métodos empíricos, enfim, que muitas pessoas identificam com a ciência.»(1)

As distinções são muito importantes. Hoje em dia. Não se pode contribuir para o avanço da ciência sem saber o que já foi feito e o que há por fazer. Não vale a pena inventar a roda todas as semanas; a partir da quarta ou quinta vez já não dá para publicar. E como o conhecimento moderno é tão vasto e avança tão rapidamente ninguém consegue manter-se a par de mais que uma pequena fracção do que a ciência produz. Mesmo quando não tem pilhas de trabalhos para corrigir. No seu tempo, Galileu estudava óptica, cinemática, astronomia, e o que mais calhasse, e era uma autoridade em todas. Mais tarde foi preciso dividir os esforços entre química, física, biologia e assim.

Hoje as fatias são muitas e muito finas. Genética de populações, bioquímica estrutural, biologia molecular, cristalografia, bioinorgânica e milhares de outras. Eu uso algumas técnicas de inteligência artificial para modelar estruturas de proteínas. Nem sequer uma fatia me calhou. É uma azeitona daqui e meia rodela de tomate dali. Mas esta divisão não é uma característica da ciência; é uma consequência das nossas limitações. Se a nossa espécie fosse muito mais inteligente eu investigava ciência e dava aulas de ciência no departamento de ciência da faculdade de ciência.

Até aqui deve ser pacífico. Agora vem a parte engraçada. Eu proponho que é contraditório afirmar que se estuda a realidade sem ser pela observação. O conhecimento exige sempre observação. Na filosofia, e até na lógica e na matemática. A filosofia é muitas vezes empírica, mesmo no sentido restrito de fazer experiências. Não chegam a atropelar os escuteiros com o combóio mas, de resto, está lá tudo. E em casos como a filosofia da mente, por exemplo, a filosofia propõe experiências e depende dos seus resultados. Na lógica e na matemática esta dependência é menos evidente porque são linguagens, esquemas para fazer afirmações e não as afirmações em si. Mas mesmo assim não são conhecimento sem observação. Vou aproveitar o “quarto chinês” de Searle para ilustrar.

Uma pessoa está fechada num quarto cheio de tabelas. Quando chega um papel escrito em chinês ela procura os símbolos nas tabelas, copia os símbolos que a tabela indica e devolve o papel pela ranhura. Lá fora todos pensam que ela sabe chinês porque responde correctamente a todas as perguntas. Mas nem sabe chinês nem pode aprender porque não consegue descobrir o que os símbolos significam. Até pode saber de cor todas as tabelas. Nesse caso sabe as tabelas (que aprendeu por observação) mas continua sem saber chinês.

Mesmo em linguagens como a lógica ou a matemática, além de manipular os símbolos é preciso saber o seu significado. É preciso saber o que quer dizer um e dois, verdadeiro e falso, senão não serve de nada. E só a observação pode conseguir isto. Não há maneira de definir o significado de um símbolo recorrendo só a outros símbolos, sem que algum aponte para fora da linguagem.

Acho inútil, e até enganador, distinguir entre ciência empírica e não empírica. Em primeiro lugar porque todo o conhecimento depende de observação. E em segundo lugar porque a filosofia, a lógica e a matemática não são actividades isoladas mas partes do processo de adquirir conhecimento. São muito prolíficas a descrever possibilidades, mas se não as confrontamos com observações acabamos com plantas para casas em 38 dimensões, barbeiros que barbeiam todos os que não se barbeiam e flechas mais lentas que tartarugas.

1- Desidério Murcho, 27-12-07, “Ciência” na acepção ampla

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Demarcações.

Vou aproveitar que o Desidério ainda não fez a jogada dele para apontar um defeito na minha caracterização de ciência. Dizer que visa descrever correctamente a realidade não ajuda a demarcá-la da muita treta que há por aí a fazer-se passar por ciência. Seria preciso determinar objectivamente se uma actividade progride nesse sentido ou não, e isso requer muito mais detalhe.

E é importante demarcar a ciência da pseudo-ciência porque essa demarcação afecta o financiamento da investigação, a educação e a forma como são recebidas certas notícias e publicações. Além disso, há cursos e serviços de astrologia, licenciaturas em medicina tradicional, teólogos a pronunciar-se acerca da legislação sobre a reprodução humana, e é importante determinar quem é que tem legitimidade de ser reconhecido como um perito, e em quê. Mas não é isso que eu quero resolver nesta discussão. Esse problema ataco-o um bocadinho por semana e uma treta de cada vez.

O que quero com esta ideia vaga da ciência é ultrapassar outras demarcações que estão a mais. Eu trabalho na «Faculdade de Ciências e Tecnologia», nome que admite haver uma tecnologia mas insiste em várias ciências. O leitor Pedro Galvão comentou que «a ciência esgota a racionalidade» é uma afirmação que «não é científica -- é uma tese filosófica sobre a racionalidade. Mas, se não é científica, então, pelo que diz, não é racional». Não vejo porque é que ser filosófica impede que seja científica, ou vice-versa. Um leitor anónimo que assina “curioso” comentou que «o método cientifico é extremamente limitado uma vez que exige um controlo absoluto de todas as variáveis que poderão influenciar um determinado fenómeno», que é mais um mal entendido, fruto do excesso de zelo em demarcar a ciência.

Isolar a ciência pelos temas ou técnicas perde o que é fundamental na ciência. Faz sentido fazer experiências quando se pode e, das outras vezes, amanhar-se de outra maneira. A matemática é uma linguagem poderosa, mas a lógica e a linguagem natural também servem quando é preciso. E é sempre preciso. Mesmo os modelos matemáticos da física têm unidades que significam coisas não matemáticas como tempo, energia, distância, etc. A ciência pode ser mais especulativa se não há dados suficientes e mais argumentativa quando há várias hipóteses suportadas pelas observações. Chama-se filosofia nesses casos, mas não deixa de ser ciência.

Por isso não faz sentido separar “ciências” em empíricas e não empíricas, em qualitativas ou quantitativas, ou mesmo separar a filosofia da ciência. Estes termos descrevem as ferramentas com as quais se aborda um tema num dado momento mas não dizem nada de fundamental acerca da ciência enquanto forma de adquirir conhecimento.

O fundamental na ciência é tentar descrever a realidade como ela é. Os detalhes, os processos, as regularidades que houver. O que quer que seja. A realidade pode ser átomos e o vazio ou pode ser deuses e demónios, mas para a descrever vamos ter que usar observação, raciocínio, e tudo o mais que vier a jeito. E é isso que é ciência.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

A ciência.

Há séculos que demarcar a ciência é um problema na filosofia. A ciência é a maior fonte de conhecimento mas ninguém sabe exactamente o que é. Eu tentei resolver o problema com uma frase, «ciência é usar informação para obter descrições correctas e detalhadas», mas segundo o Desidério ainda não foi desta (1). Os filósofos são mesmo complicados...

Vou simplificar a minha tarefa reduzindo o âmbito do problema, ignorando os aspectos sociais e psicológicos da ciência. Como este que o Desidério referiu ao escrever que a minha definição falha porque «qualquer armazém de peúgas tem nos seus inventários uma descrição correcta e detalhada das peúgas que tem em armazém, mas não dizemos que o armazenista é um peugólogo.» Não dizemos. Mas se fosse com vinho já era enólogo. Admito que a sociedade reconheça como ‘ólogo alguém que não faz nada de científico, como o teólogo, e não reconheça o peugólogo, cujo trabalho é mais científico. Sempre descreve coisas que existem, mesmo que sejam coisas que desaparecem de forma sobrenatural.

Esclareço também que por “descrição” não me referia apenas à descrição de um estado de um sistema mas aos modelos que descrevem a realidade, em oposição àqueles que exprimem desejos (os normativos). Neste sentido as explicações são também descrições, e das melhores que há. Descrevem implicitamente os estados do sistema, porque podemos deduzi-los da explicação, e descrevem explicitamente como o sistema muda de estado. Lineu fez ciência quando descreveu a organização da bicharada. Darwin foi mais longe quando descreveu o processo pelo qual a bicharada se organiza.

Concordo que não se deve confundir o produto da ciência com o processo da ciência. Não é verdade que, na forma como eu entendo ciência, a «física de Newton não seria ciência». Seria, e foi. Newton deu uma descrição mais correcta e detalhada que as anteriores e deu um passo importante no caminho para descrições ainda mais correctas e detalhadas. A ciência é este processo que visa compreender tudo em todo o detalhe e sem incorrecções. Mas não defendo que já tenha atingido esse objectivo, nem sei se alguma vez o fará. O importante, para ser ciência, é tentar.

Assim, não é útil delimitar a ciência a bisturi, zero ou um. É um contínuo. Ninguém consegue dedicar 100% do seu tempo e pensamento ao progresso científico. E ninguém passa a vida sem tentar formar ideias correctas e detalhadas acerca de algum aspecto da realidade. Nem que seja peúgas. O que temos que avaliar é quão científica é uma actividade em vez de procurar uma fronteira bem definida. Algo como, se bem entendo, propôs Lakatos. Avaliar se a investigação visa os objectivos certos.

Por estas razões sou contra que se demarque a ciência por um método ou assunto. O que caracteriza a actividade científica é visar os melhores modelos da realidade e usar as ferramentas que tiver à disposição para se aproximar desse objectivo. Não se pode fazer experiências com o Afonso Henriques, mas também não se pode fazer experiências com supernovas. E pode-se testar experimentalmente métodos de construção de pirâmides ou de fabrico de ânforas. Não vamos expulsar da ciência a história por lidar com vestígios com séculos de idade. A astronomia lida com acontecimentos muito mais antigos, e muito mais difíceis de reproduzir no laboratório.

Reconheço uma diferença importante entre disciplinas como a física e a química, por um lado, e a filosofia ou a história por outro. É praticamente impossível fazer carreira como físico sem fazer ciência, enquanto me parece relativamente fácil ser um profissional da história ou da filosofia sem dar importância aos modelos correctos e detalhados da realidade. Mas há filósofos e filósofos, e há aqueles que tentam fazer a melhor ciência possível com temas difíceis como a mente humana e a natureza da realidade ou do conhecimento.

Concluindo, faz ciência quem almeja formar ideias correctas e detalhadas da realidade e usa para isso os recursos ao seu alcance. Melhor ou pior, deixando uns fins de semana para a família ou para corrigir trabalhos e exames, em temas mais populares ou menos conhecidos, é ciência se o objectivo é esse e se o esforço é nesse sentido. Quem vira costas à realidade e se agarra a uma crença ou preconceito não está a fazer ciência. Talvez em alguma dimensão metafísica isso seja racional, mas neste cantinho parece-me um erro.


1- Desidério Murcho, 26-12-07, O que é a ciência?

A ciência esgota a racionalidade?

Perguntou o Desidério Murcho (1). A resposta é simples. A pergunta é que é complicada. O Desidério propõe que ciência pode querer dizer «procedimentos levados a cabo por ciências fortemente empíricas e fortemente matematizadas», como a física ou a química, ou então «é sinónimo de “prática académica séria”, e tanto se aplica a tais ciências como se aplica à filosofia ou à matemática, que não são disciplinas empíricas». Estas categorias fazem confusão.

Ciência é usar informação para obter descrições correctas e detalhadas. A poesia não é ciência, tal como fazer um piquenique no estádio não é jogar futebol, porque têm objectivos diferentes. Mas futebol tanto pode ser dar vinte a zero a uma equipa fraca ou levar uma cabazada dos campeões. Uns oponentes são mais fortes que outros, mas o jogo é o mesmo.

Também na ciência. Temos modelos matemáticos detalhados para a transferência de electrões nos átomos de Ferro da hemoglobina. A descrição do enrolamento e encaixe das cadeias da hemoglobina está muito pela rama. E da relação entre a sequência da proteína e o seu efeito no organismo temos apenas uma vaga ideia. Mas não se vai partir a bioquímica numas “ciências” «fortemente empíricas e fortemente matematizadas» e noutras que são ciência noutro sentido. O detalhe dos modelos matemáticos e a riqueza das observações indicam o progresso científico num campo, mas não delimitam a ciência. A diferença entre a física e a psicologia é que damos goleadas ao átomo de Hidrogénio enquanto o cérebro humano tem um guarda-redes do caraças. Mas a ciência é a mesma. É só uma. É ciência.

A ciência como «“prática académica séria”» não é uma categoria melhor. Durante séculos chamaram ciência à teologia, e, nessa altura, não havia coisa mais séria e académica. Mas a academia, a seriedade, a matemática, o rigor na linguagem, as experiências cuidadosas, as hipóteses testáveis, até a razão, não são ciência por si só. Como as balizas não são futebol. São partes que só são ciência em conjunto, e à teologia faltava muitas para poder criar descrições correctas e rigorosas. Quando o objectivo é descrever algo a ciência esgota a racionalidade porque, nisto, o mais racional é a ciência.

É claro que nem sempre é esse o objectivo. Se surge um vulto na luz dos faróis é racional prescindir de um modelo rigoroso do vulto em favor de uma decisão rápida. Mas sabemo-lo pelo modelo que temos das limitações do cérebro. Quando tiver processado a informação relevante já atropelámos o desgraçado, ou o saco de plástico, e o melhor é desviar logo o carro. Tendo os valores que classificam as alternativas, umas piores e outras melhores, a decisão reduz-se à descrição de como atingir a melhor. A decisão mais racional é a mais informada, é a que se baseia na melhor descrição da situação. A mais científica.

Como isto assume resolvido o problema dos valores levanta a possibilidade de estar aí a tal racionalidade que vai além da ciência. Nas nossas preferências. Nos problemas normativos. Mas não, aí também não está. Será racional atirar-me pela janela? Sim, se eu preferir morrer. Ou não, se preferir viver. A razão dir-me-á o que é melhor fazer se eu souber o que quero, mas nunca a razão me poderá dizer o que quero. O domínio normativo está fora da ciência apenas na medida em que está fora da razão (*). Querer uma coisa só é racional se for consequência de querer outra mas, eventualmente, terá que haver um querer que se quer por si, sem razão. Esse não é racional.

Em suma, a resposta é sim. A ciência esgota a racionalidade. Porque a razão é uma peça da ciência e é uma peça que não faz sentido fora da ciência. A ciência também depende de coisas irracionais, como inspiração ou sorte, mas a racionalidade não se dissocia da observação e descrição de algo. Dizer «P é uma proposição verdadeira» só é racional se houver um significado para estes símbolos que, em última análise, assente em alguma observação. E esse é o domínio da ciência.

Até decidir se é racional fazer ciência é um problema científico. É descrever o conjunto de acções que melhor servem o que observamos ser os nossos interesses dada a realidade que conhecemos. Até este problema se resolve tão racionalmente quanto se resolver cientificamente.

*A racionalidade é normalmente definida em função de objectivos, reduzindo o problema normativo a um problema descritivo. Há alternativas. Por exemplo, racionalidade como estratégias evolutivamente estáveis, mas acabam sempre por fazer o mesmo, e lidar com descrições assumindo os valores.

1- Desidério Murcho, 25-12-07, A ciência esgota a racionalidade?

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Treta da Semana: Ressurreições.

No espírito da quadra, queria focar um trecho do Novo Testamento. Um milagre do aniversariante, por assim dizer. A ressurreição de Jesus é a mais conhecida no folclore Cristão, mas não foi a única. Na verdade, nessa altura era até prática comum entre os defuntos mais ilustres. Mateus descreve um episódio, no capítulo 27, versículos 52 e 53. Quando Jesus morreu na cruz a cortina do templo rasgou-se, a terra tremeu, as rochas partiram se e

«os sepulcros se abriram, e muitos corpos de santos que tinham dormido foram ressuscitados; e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.»

Era tão comum que mais nenhum dos apóstolos se lembrou de o referir. Assumiram que qualquer leitor sabia que os túmulos se abriam, os mortos se erguiam e deambulavam pelas cidades. Era daquelas coisas que aconteciam e não havia nada a fazer.

Mas os tempos mudaram e passaram quase dois mil anos até termos notícia de algo semelhante. Foi em 1968. Uma sonda espacial explodiu na atmosfera e a radiação ressuscitou dezenas de pessoas na Pensilvania. Foi graças ao heroísmo de alguns habitantes locais, muitos gritos estridentes e tiros na cabeça (um por engano) que a situação ficou controlada. Houve mais uns casos em 1978, 1985 e 2005, mas apesar de mais aparatosos tiveram um impacto menor.

Isto faz-me pensar na mensagem Cristã de esperança, que a fé até a morte consegue vencer. E faz-me pensar como a religião ocidental teria sido diferente se a Maria Madalena tivesse uma caçadeira.

Feliz Natal a todos.

Razão e ciência.

O Desidério Murcho escreveu no De Rerum Natura um post interessante sobre razão e cientismo (1). Concordo com quase tudo, mas gostava de implicar com uma parte. O Desidério dá um exemplo do João concluir que a Maria o ama como algo racional mas não científico:

«É um erro reduzir a racionalidade ao mero cálculo, à prova ou à experimentação. A racionalidade é mais vasta. Vejamos um exemplo. [...] Precisa o João de provar cientificamente, ou matematicamente, ou logicamente, que a Maria o ama para ter justificação para pensar que ela o ama? Claro que não. Ele tem justificação para pensar tal coisa porque ela age de um modo que permite concluir que ela o ama»*

Se o que o João observa permite concluir que a Maria o ama então o João tem uma prova científica do amor da Maria. A prova científica é o teste pela observação que confirma umas hipóteses e infirma outras. Se o João tivesse observado algo que desse mais suporte a uma hipótese alternativa então não se justificaria racionalmente concluir que a Maria o ama. Se se justifica concluir que a Maria o ama é porque aquilo que observou dá mais suporte a essa hipótese que às alternativas.

Admito não imaginar o João de bata branca a consultar apontamentos para calcular a verosimilhança da sua hipótese. Imagino-o tomado de paixão a acreditar no amor de Maria. E se o João está a decidir impulsivamente, sem indícios que justifiquem a conclusão ou ignorando indícios contrários (a Maria só o quer pelo dinheiro), então concordo que a conclusão do João não assenta em provas científicas. Mas nesse caso também não é racional.

É verdade que a ciência, na prática, tem muito mais que isto. Mas o aparato científico é uma extensão deste princípio. A tecnologia que a ciência usa, os modelos matemáticos, a verificação independente, a revisão de publicações e tudo o resto são apenas ferramentas que servem a procura daquelas hipóteses que as observações melhor suportam. E concordo com o Desidério que não podemos concluir nada apenas pela observação (2). Precisamos sempre de algum argumento, no sentido lato de inferir uma conclusão a partir de premissas. Mas não podemos justificar uma conclusão acerca de algo sem incluir observações nas premissas. Sem uma prova científica. A ciência é o método para chegar a conclusões justificadas acerca de algo.

Conclusões que não sejam acerca de nada não precisam de observações. “2+2=4”, enquanto mera aplicação de uma regra que substitui “2+2” por “4”, pode ser uma conclusão que não depende de observações. Mas só enquanto manipulação de símbolos. Se queremos que o “2” se refira a um número e o “+” à soma, ou seja, se queremos dar significado aos símbolos e concluir acerca de alguma coisa, aí é preciso observação. A tal prova científica. Porque dois apertos de mão mais dois dias de chuva não dá quatro de coisa nenhuma.

* O exemplo do Desidério incluía dois problemas diferentes. Um descritivo, o João saber o que a Maria sente, e um normativo, o João decidir se é melhor casar com a Maria. Como não consegui encaixar os dois no mesmo post fiquei-me pelo primeiro. Por enquanto...

1- Desidério Murcho, 20-12-07, Fé, racionalidade e cientismo
2- Desidério Murcho, 21-12-07, Provas, indícios, demonstrações e argumentos

sábado, dezembro 22, 2007

Treta da Semana: Google Zero

Já recebi alguns emails de spam acerca deste site Português que redirecciona as pesquisas para o Google e apresenta uma página de fundo preto para «poupar energia» (1). Na verdade, é para fazer dinheiro com a publicidade na página.

Segundo o cálculo no site, «o Google é visto por 2.5 milhoes de utilizadores todas as semanas só em Portugal. O fundo negro pode reduzir o consumo energético até 7 W por dia por utilizador. Se todos os utilizadores converterem para o Google-Zero a poupança energética será de 30 W x 2.500.000 Utilizadores / Semana x 52 Semanas = 3.900.000 kWh».

A conta é um disparate, pois começa com uma potência, em watt, multiplica pelo numero de utilizadores num ano e acaba com uma medida de energia em kWh. Não se percebe como é que os 7 W diários passam a 30 W por semana. Nem a conta que fizeram nem como a potência se acumula com o tempo. Uma potência média diária de 7 W ao fim da semana dá uma potência média semanal de 7 W. Mas o pior é a tal redução de 7 W no consumo médio diário.

É verdade que ter o fundo preto num monitor CRT (cathode ray tube, os antigos, gordos) consome cerca de 7 W a menos (2). Mas isso é durante a pesquisa. Só se traduzia numa redução de 7 W na potência consumida diariamente se o utilizador fizesse pesquisas 24 horas por dia sem nunca sair da página do Google. Se for uma pessoa normal e usar o Google uns minutos por dia terá uma redução de consumo que, em termos técnicos, se designa por cagagésimal.

Isto com um monitor antigo. Um monitor LCD (liquid crystal display, os fininhos modernos) consome o mesmo qualquer que seja a cor do fundo. Nestes monitores as imagens são criadas alterando a transparência do cristal líquido que está à frente de uma luz. A luz está sempre ligada e, possivelmente, até consomem mais com o fundo preto (mas a diferença é mínima, ver 2). Para quem tem um monitor moderno ou usa um computador portátil, que é a maioria das pessoas, o Google Zero faz precisamente o que o nome indica.

O Luís Humberto Teixeira, no Mudar o Mundo, escreveu que «Saber ganhar dinheiro não é ilegal. Eu é que já estou farto de ver a ecologia ser usada para tal, especialmente se a vantagem ambiental do produto é dúbia» (3). Também eu. E não só por ser mais uma forma de aldrabar as pessoas. Principalmente porque dá uma sensação falsa de contribuir para resolver o problema. Quem usa o Google Zero só fica satisfeito com a poupança se não perceber que gasta mais em cinco minutos com o aquecedor ligado do que poupa em vinte horas de Googlagem. Mesmo com um monitor antigo.

1- A página de entrada é http://www.google-zero.com, mas tem publicidade. Em vez disso sigam este link para a página acerca do Google-Zero.
2- Darren Yates, 26-7-07, Black Google power saving figures are wrong (além de ser treta já é treta com meio ano...)
3- Luís Humberto Teixeira, 21-12-07, Google-Zero

O direito dos pais.

A leitora que assina «Abobrinha» comentou que «tu crias as tuas crianças de acordo com as tuas (des)crenças, enquanto que os outros criam as delas segundo as crenças [deles]. Dentro do respeito pela liberdade de expressão.» O respeito pela liberdade de expressão faz-me aceitar que os pais sejam livres de dizer aos filhos muita coisa. Mas isso não equivale a terem o direito de criar os filhos de acordo com as crenças dos pais.

Isto é evidente em situações extremas. Pais que acreditem numa interpretação literal do antigo testamento vão ter problemas com a lei se criarem os filhos de acordo com essa crença. Mas o fundamental não é a gravidade das consequências. O fundamental é que os pais têm deveres. O direito é só o de não ter filhos.

É longa tradição nas sociedades agrícolas os filhos serem propriedade dos pais e a reprodução um dever de família. Como na Bíblia, na Grécia antiga e até na prática corrente em muitos países. A ideia da criança como uma pessoa com direitos é uma modernice «ocidental», mas uma modernice no fundamento de outras como a tal liberdade de expressão. Faz parte do mesmo pacote.

A nossa sociedade reconhece direitos aos filhos e reconhece o direito de não ter filhos. Somos livres de não ter relações sexuais se não quisermos. Não há casamentos forçados. Somos livres de ter relações sexuais sem conceber. Podemos pôr o que quisermos onde quisermos (com a autorização do(s) parceiro(s), bem entendido). E mesmo que dê num filho a sociedade cuida dele se não quisermos assumir essa responsabilidade. Mas se prescindimos desse direito só nos resta o dever de zelar pelos interesses daquele ser humano até que ele o possa fazer por si.

Por isso não tenho o direito de criar os meus filhos de acordo com as minhas crenças. Tenho é o dever os preparar para decidir livremente sobre isso quando acharem melhor. Não escondo o que penso acerca dos deuses mas não tenho o direito de os privar de informação para os forçar a pensar como eu. Quando tinham uns três anos de vez em quando punham-se de joelhos com a testa no chão a rir à gargalhada e, segundo eles, a rezar, por causa de um livro sobre religiões que tinha uma fotografia de muçulmanos numa mesquita.

Os pais não têm o direito de impor a sua crença, seja aos seus filhos seja aos dos outros. Porque os seus filhos só são seus no sentido de serem responsáveis pelos interesses dessas crianças. Um problema grave das crenças religiosas é convencer que os pais têm o direito, até o dever, de manipular as crenças dos filhos. Isso é treta.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Mas religião não...

Hoje de manhã tivemos uma reunião com a professora dos miúdos (primeira classe). Ela sugeriu que os pais fossem lá falar à turma. Ao longo do ano lectivo, em cada semana o pai ou a mãe de um dos alunos vai lá falar meia hora sobre qualquer coisa. Será bom os miúdos verem os pais a participar no seu ensino, e a professora disse que podemos falar sobre o trabalho, ou valores cívicos, ou até ir lá a avó dizer como eram as coisas antigamente. Tudo. Menos religião.

Bolas. Até compreendo a professora. Se deixasse o pessoal falar de religião ia haver chatice com os pais. Os crentes, claro, porque aos ateus tanto faz. Se fosse lá um evangélico falar aos miúdos já tínhamos com que nos entreter lá em casa. Era risada até à meia noite. E eu concordo com o Daniel Dennett que a educação religiosa devia ser obrigatória desde a primeira classe. Não a fantochada que nós temos, com diferentes programas para os miúdos conforme a religião que calhou aos pais, mas uma educação religiosa igual para todos, consistindo do que é consensual acerca das religiões.

Não há consenso acerca da ressurreição de Jesus ou da natureza divina de Siddharta Gautama. Uns acreditam, outros nem por isso. Mas é consensual que os Cristãos acreditam que Jesus ressuscitou, que os Muçulmanos veneram Allah, que os Judeus dizem ser o povo escolhido e que os Hindus chamam sagrado ao que nós chamamos gado. São factos, é útil sabê-los e devíamos ensiná-los às crianças para saberem o que é a religião antes de decidirem se faz sentido para elas. E isto choca muitos crentes.

Choca porque não é propriamente a doutrina que torna a criança num crente. O factor principal é a criança ignorar as alternativas. Os pais têm que proteger o rebento de ideias diferentes para já estar encarrilado quando tiver idade para o mistério da Trindade ou o dever da peregrinação a Meca. Nessa altura Já a religião “certa” lhe parece natural e as outras um bocado estranhas. O medo do crente é que a criança descubra que as religiões são todas um bocado estranhas.

Agora tenho que arranjar um tema inofensivo que não tenha nada a ver com religião. Evolução? Pensamento crítico?

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Feliz Christma-Hanu-Rama-Ka-Dona-Kwanzaa.



Via Pharyngula

terça-feira, dezembro 18, 2007

Que mal tem a crença?

Muitos consideram umas crenças más, outras boas e outras tanto faz. Que as mulheres têm que andar tapadas para não afectar os homens com as emanações dos seus cabelos. Que só os seres humanos têm alma. Que Deus não quer que se trabalhe ao Sábado. Que é justo cortar a mão de quem rouba. Cada crente distingue facilmente as crenças más, as boas e as inofensivas. Mas nunca concordam porque não há fundamento para a distinção. A crença pela crença não tem razões.

Tem causas, como a educação e a sociedade. Mas razões são coisas diferentes. Ter sido mordido por um cão em pequeno causa o medo de cães em adulto, mas não é uma razão. Explica porquê mas não justifica ter medo de um cão inofensivo. Em contraste, o cão ser grande e violento é uma razão para ter medo. A diferença é que as razões podem ser partilhadas e gerar consenso.

Muitas crenças têm razões. São conhecimento. Temos razões para crer que o carro não anda sem gasolina e que a Terra orbita o Sol, e podemos partilhar estas crenças partilhando as razões que as fundamentam. Outras não têm razões, mas reconhecemo-lo. Nem lhes chamamos crenças. São gostos, preferências, afectos. O gelado favorito ou o clube de futebol. São irracionais, no sentido de prescindir de razões, mas admitimos que o são e por isso dão poucas chatices.

O problema são as crenças sem razões que os crentes defendem ser fruto da razão. Aquelas que são tão legítimas como gostar de chocolate mas que os crentes exigem que se respeite, como se isso fosse de respeitar. Aquelas que não se fundamentam em nada partilhado mas que os crentes insistem corresponder à realidade que partilhamos. Essas são uma chatice.

Não são o pior problema. Os conflitos de interesses e a ignorância são piores. Cada um quer para si e para os seus mais do que é possível dar a todos, e há muitos problemas que não sabemos como resolver. Guerras, doenças e miséria devem-se principalmente a estes factores. Mas enquanto que conflitos e ignorância são problemas que temos que enfrentar, as crenças infundadas são um problema que podíamos simplesmente evitar. Bastava admitir que uma crença infundada é uma mania como qualquer outra. Cristianismo, benfiquismo ou chocolatismo, são consequências de causas pessoais e não inferências de razões partilháveis.

Nisto a fé* é especialmente culpável. Não pelo que a caracteriza como fé mas por exigir um tratamento especial. Na disciplina de pensamento crítico nunca vi um aluno benfiquista a defender o seu clube quando falo da necessidade de testar hipóteses. Alguns defendem a astrologia, as medicinas alternativas ou os OVNIs, mas sempre alegando razões. Apontam estudos e evidências e acabamos por ter discussões interessantes acerca de como avaliar esses indícios.

Mas quando falo das aparições em Fátima, dos milagres ou dos feriados religiosos os protestos são diferentes. Temos que ser humildes perante o mistério da fé. Não se deve pedir a alguém que critique as suas crenças (como se o pensamento crítico fosse só para as crenças dos outros). Até houve quem ficasse indignado por eu ter dito que a Páscoa é um feriado de excepção porque a data muda de ano para ano de acordo com o calendário da Igreja Católica. Não bastou levantar uma questão ou contrapor a afirmação. Deu imediatamente direito à indignação.

Este apego e exigência de consideração especial por certas crenças sem fundamento criam problemas que nem sempre são graves mas que são sempre impossíveis de resolver. Não se justifica o respeito pelo que não tem justificação nem se pode conciliar crenças suportadas por razões com o crer só por ter fé. O texto de Alfredo Dinis no De Rerum Natura ilustra o problema (1). Conta como o cristianismo mudou por causa da ciência, a impossibilidade de provar Deus e a experiência religiosa como algo que «aumenta o sentido». Mas não explica porque havemos de tentar conciliar a ciência com a sua crença religiosa ou porque havemos sequer de a considerar uma hipótese séria. Afinal também não tentamos conciliar a ciência com o gosto por pintura ou por uma futebolada na praia. Acreditar em Deus por sentir o Espirito Santo é como gostar de chocolate por sentir um sabor agradável. Enquanto não tiverem um Espirito Santo para mostrar aos outros não têm justificação para a crença.

* No sentido estrito de crença religiosa, de valor para o crente e que não se fundamenta em razões.

1- Alfredo Dinis, 17-12-07, Porquê Deus se tenho Ciência, Parte1, Parte 2

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Feeds na mesma.

Está concluída a votação com vitória esmagadora do «não mexas que estragas».

30 votos a favor de feeds RSS com posts completos.
4 votos a favor de feeds RSS só com o primeiro parágrafo de cada post.

O respeitinho.

O Manuel Rocha recomendou que «se actue com o respeito devido a quem tem as suas razões, mesmo quando elas nos parecem pouco razoáveis» (1). É uma boa ideia, isso de respeitar as afirmações de acordo com as razões que as fundamentam. E pomos esse princípio em prática frequentemente. Quando discutimos política, futebol, ambiente ou o preço dos legumes. Mas os supersticiosos não querem o respeito de quem exige razões para ajuizar o que há de levar a sério.

O que os supersticiosos querem é respeitinho, o medo de dizer algo que o outro não goste, o receio de ofender por questionar e a relutância de dizer que se discorda. Mas isso não é respeito.

Mas agora calo-me e deixo falar quem tem mais, e melhor, para dizer acerca destas coisas. Da esquerda para a direita, Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris.

Parte 1:


Parte 2:


Via Sandwalk

domingo, dezembro 16, 2007

Desafios.

A medicina moderna podia eliminar os piores problemas de saúde, como a subnutrição e doenças infecciosas que afectam milhares de milhões de pessoas nos países menos desenvolvidos. Há muitos obstáculos, como a pobreza, a guerra, a sede de poder e a ignorância, mas todos queremos ultrapassá-los. Todos opomos a miséria, a ignorância e a guerra. Até os ditadores se dizem contra a ditadura, alegando que a sua é para bem dos outros, por muito transparente que seja a desculpa. Não há solução óbvia para estes problemas mas é consensual que são problemas e que os queremos resolver.

Mas há um obstáculo que é diferente. Milhões de supersticiosos acham que o latex é um mal maior que a SIDA. Milhões julgam que se podem curar violando crianças (1). Milhões acreditam em curas por rezas, astrologia ou alfinetes. É um problema diferente porque os supersticiosos defendem a sua superstição. Chamam-lhe fé, «visão do mundo» ou a «sua» verdade. Exigem respeito. Invocam a tradição. Este é um problema de treta. Literalmente. Milhões de pessoas sofrem por ideias que são falsas, que se sabe serem falsas e que já lhes explicaram que são falsas.

Em questões de saúde não há tretas inofensivas. Acreditar que uma infecção é um bloqueio energético, castigo divino ou vibrações negativas pode ter consequências para o próprio e para outros. Não há espaço para conciliar a realidade com a treta, para soluções «complementares» de antibióticos e cristais coloridos. O que está em jogo é demasiado importante, e os problemas reais suficientemente difíceis, para que seja aceitável complicar as coisas com fantasias.

1- Mike Earl-TaylorHIV/AIDS, the stats, the virgin cure and infant rape

sábado, dezembro 15, 2007

Medicina Tradicional Chinesa.

É uma longa tradição de sabedoria Oriental. O Qi, o Yin e o Yang, os cinco elementos, e assim por diante. E se há milhares de anos que se faz assim é bom de certeza. Permitam-me que questione esta premissa.

Além de criarem pássaros e mamíferos todos juntos, é tradição no Oriente vender os animais vivos e matá-los em casa. Quem quiser procurar no Google por imagens de chinese animal market verá cães e gatos amontoados em gaiolas, animais selvagens, galinhas e patos, cobras, tartarugas, insectos e tudo o que é bicharada. Tudo vivo, tudo ao molho, no meio de imensa gente e em condições de pouca higiene. É a tradição milenar Chinesa. Provavelmente o Qi não se conserva no frigorífico.

O Ocidente é artificial. Os animais são abatidos, a carne lavada, embalada e refrigerada. Vende-se em pacotes. Esta forma de produção levanta problemas éticos e de saúde. Os animais são criados em ambientes pouco propícios e consomem rações com antibióticos e hormonas de crescimento. Apesar da legislação há sempre alguns problemas de higiene. Mas estamos a par dos problemas e tentamos resolvê-los exigindo formas diferentes de produção. E estes problemas são irrisórios perante os problemas da tradição Oriental.

A medicina tradicional Chinesa dá grande valor a coisas como bílis de urso. Os ursos são entalados numa jaula com um tubo espetado até à vesícula para recolher este remédio tradicional (1). O efeito é poderoso, mas só para o urso. Chifres de rinoceronte e patas de tigre são também muito procurados. Quanto mais perto da extinção mais poderoso o remédio. E vender ao público os animais vivos para abate doméstico é mais «natural» mas é uma grande asneira.

Estes mercados são caldeirões de doenças. Estirpes adaptadas a uma espécie são aqui seleccionadas pela capacidade de infectar outras espécies, e ajudadas pelas más condições e proximidade de tantas pessoas e animais. A longo prazo todas as infecções se tornam menos virulentas. Os hospedeiros mais susceptíveis morrem e os parasitas menos agressivos propagam-se mais. Mas a curto prazo dá coisas como a gripe asiática, a gripe de Hong Kong ou a gripe das aves. No início do século XX estas epidemias surgiam em qualquer parte do mundo, mas o conhecimento de medicina no Ocidente regulou a produção e comercialização de animais reduzindo este perigo.

No Oriente respeita-se a medicina tradicional, que vê no Qi a causa principal das doenças e usa remédios «naturais» para enganar pessoas, torturar animais e extinguir espécies. Mas o maior contributo da medicina tradicional Chinesa são as epidemias capazes de matar milhões de pessoas por todo o mundo.

1- Wikipedia, Bile bear

Title of the Song.

Dedicado a todos e todas que gostem de canções de amor. Depois desta já não vão precisar de ouvir mais nenhuma.



Via Sivacracy

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Relativismo? Subjectivismo? Mais ou menos...

O relativismo ético defende que a moral* assenta em juízos relativos ao indivíduo, cultura ou época. O absolutismo propõe que o fundamento da moral é igual para todos. O objectivismo diz que o bem e o mal são propriedades dos acontecimentos, opondo-se ao subjectivismo que os considera juízos formados pelos sujeitos. Como o Tiago Luchini, muitos associam o subjectivismo ao relativismo e o absolutismo ao objectivismo, mas são independentes.

Fundamentar a moral na vontade de Deus é um subjectivismo absolutista. É subjectivismo porque considera que o bem e o mal são atribuídos aos actos pelo juízo de um sujeito (Deus). E é absolutista porque considera este juízo igualmente válido em todos os casos. No outro extremo, fundamentar a moral na lei é um objectivismo relativista. É objectivismo por dar uma base objectiva ao bem e ao mal (a lei), e é relativista porque a lei varia conforme o sítio e a época.

Eu rejeito o relativismo porque o projecto da ética é criar um fundamento universal para a moral. Dizer que povos diferentes têm regras morais diferentes é sociologia, não é ética. E rejeito o objectivismo porque, como Hume notou, podemos dissecar qualquer objecto ou acontecimento até ao átomo que não vamos ver vestígio de bem nem de mal. O bem e o mal têm que derivar de juízos subjectivos. O que eu quero é um fundamento universal para a moral, aplicável a todas as épocas, culturas ou até espécies (não devemos ser os únicos seres éticos no universo), mas que tenha em conta que o que é bom para uns pode ser mau para outros. Pode não ser possível, mas a história sugere que vale a pena tentar.

Mas a coisa complica-se. Apesar de ser subjectivista, porque acho que os valores são subjectivos, penso que a ética deve considerar propriedades objectivas da relação entre sujeitos. Afinal, a subjectividade é uma propriedade objectiva de todos os valores. E apesar de ser absolutista no sentido de não considerar o fundamento da moral relativo à cultura ou época, não considero que haja valores absolutos. Um bem ou um mal são sempre relativos a outros bens e males. Em rigor, não devemos dizer que matar é mau. Devemos dizer que é pior que a maioria das alternativas, mas em certos casos até pode ser a melhor opção.

Com isto queria dar apenas uma ideia do problema a quem tira conclusões como «Se a "fé boa" é reconhecer que os valores são subjetivos para cada um, aceitar-se-ia que alguém viole uma crianca porque "assim são os seus valores"» (1). Categorias como subjectivismo e absolutismo são úteis para sabermos em que direcções podemos pensar mas não para escolhermos um canto onde ficar ou onde enfiar os outros.

* Por moral quero dizer o conjunto de regras e por ética a análise desse conjunto e dos seus fundamentos.

1- Tiago Luchini, em comentário a Afinal o que é fé?...

quinta-feira, dezembro 13, 2007

E afinal o que é a abobrinha?...

A Abobrinha comenta aqui regularmente e tem um blog sempre bem ilustrado (1). Durante meses tive esta imagem de uma abóbora pequenina, redondinha, um pouco refilona mas inofensiva. Hoje fui ver à Wikipedia. Afinal uma abobrinha é isto:

Imagem:Courgette.jpg

Já explica muita coisa...

1- http://aboborapequenina.blogspot.com/

Afinal o que é fé?...

O exemplo que dei de fé suscitou protestos. O Manuel Rocha disse que o pai estrangular a filha porque ela não queria usar o véu não é um exemplo de fé « porque se reporta a um acto de pura demência. Da fé sincera tenho eu a ideia de procura de um conforto interior...»(1). Concordo que é um acto demente, mas discordo do pressuposto que a fé e a demência sejam mutuamente exclusivas.

Parece-me que o Manuel e a Abobrinha querem circunscrever a fé ao politicamente correcto. Penso que aceitarão como fé a esperança que Deus leve alguns para o paraíso. Mas provavelmente dirão que já não é fé se essa esperança incluir a condenação de todos os membros de certa etnia ou raça. Isso é racismo. É fé ensinar uma criança a amar Jesus e ir à missa aos domingos ouvir o senhor padre. Mas não é fé obrigar a filha a usar véu. Isso é abuso, ou demência. E assim por diante.

Mas estas distinções não têm a ver com o que a fé é. A fé é uma crença caracterizada por uma convicção firme e pelo seu valor para o crente. Pode ser a procura de um conforto interior, como diz o Manuel Rocha. Pode ser a única esperança perante a certeza da morte, como dizia Paulo nas suas epístolas. Pode ser a entrega inquestionável aos desígnios de Deus, como em Abraão e Jób. E pode ser ir de joelhos até Fátima, rebentar autocarros ou condenar pessoas à morte por blasfémia. Pode ser pura demência sem deixar de ser fé.

Normalmente subentende-se a fé como religiosa, mas pode não ser, e posso responder ao Manuel Rocha que sei o que é ter fé. Tenho a certeza que violar crianças é uma maldade e, além desta certeza, incomoda-me a possibilidade de mudar de opinião acerca disto. Acho que sem esta certeza eu seria uma pessoa pior do que sou agora. Por isso é uma fé. É uma convicção firme que eu não só tenho como me acho na obrigação de ter. Mas este tipo de fé dá valor a uma convicção acerca de valores e vez de factos. Condeno a violação de crianças porque condeno o desrespeito pelos seus valores. Se um tipo de 16 anos vai para a cama com a namorada de 18 não é violação. É sorte. Não condeno o acto pelo facto do sexo mas pelo valor deste para os envolvidos.

A fé religiosa muitas vezes dá valor a uma convicção acerca de factos. A ressurreição de Jesus, a inerrância da Bíblia, ou a exigência divina que o pai mate a sua filha que desrespeita o Corão. Esta é a maior diferença entre a fé boa e a fé má. A fé boa dá valor a convicções acerca de valores reconhecendo que os valores são subjectivos e cada um terá os seus. A fé má dá valor a convicções acerca de supostos factos que serão iguais para toda a gente. Isto dá asneira, mas é fé à mesma.

1-Ciência não é fé.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Bugger...

Foi diagnosticada ao Terry Pratchett uma forma rara de doença de Alzheimer. Aqui a notícia dada pelo próprio.

Via Pharyngula.

Ciência não é fé.

Em Novembro o físico Paul Davies publicou um artigo no New York Times onde reafirma que a ciência se baseia na fé (1). O Massimo Pigliucci explicou o erro (2). Faith pode querer dizer aceitar algo incondicionalmente, sem exigir evidências, ou ter confiança porque há evidências. Davies simplesmente confunde dois significados diferentes. Como em Português a fé é o oposto do ver para crer pensei que ninguém ia confundir as duas coisas. Enganei-me.

Ontem o António Parente chamou-me a atenção para o seu resumo deste artigo de Davies, onde o António escreveu que «a distinção entre fé e ciência acaba por não ser tão líquida porque a própria ciência tem o seu próprio sistema de crenças baseado na fé. Com efeito, Paul Davies diz que toda a ciência assenta na hipótese de que a natureza é ordenada numa maneira racional e inteligível» (3). É interessante a tradução do António, de assumption por hipótese, porque até está mais correcta que o original. É de facto uma hipótese, como qualquer outra, só válida conforme for testada com sucesso. E tem tido bastante sucesso. Mas ser hipótese demonstra que a base da ciência não é a fé.

A fé não considera hipóteses e evidências. A fé é certeza antes de qualquer evidência. É verdade que todos temos certezas, mas nem todos desta forma. Temos a certeza que o carro não anda sem gasolina ou que estamos doentes se temos febre, mas são certezas apenas no sentido de não perdermos tempo a considerar que podem ser falsas. A menos que as evidências o obriguem. Neste aspecto, a fé distingue-se pela confiança absoluta sem evidências e pela rejeição total de evidências contrárias. Nem a ciência nem o bom senso aceitam isto. Mesmo assim, podemos ver este aspecto da fé como o extremo de um continuo em que se exige cada vez menos evidências a favor e se rejeita cada vez mais evidências contra. Está muito longe, mas poderia chegar-se lá daqui. No entanto, há outro aspecto da fé que é radicalmente diferente. A esse só se chega com um salto de fé.

Enquanto as crenças científicas são descritivas, a fé é normativa. É um valor e tem valor para o crente. Além de dizer o que é bom e mau a fé diz que é mau não ter fé. Eu acredito na teoria da evolução porque acho que está correcta, mas não me apoquenta mudar de ideias, até porque esta teoria já mudou muitas vezes. Mas quem acredita na salvação por Jesus Cristo encara-a de forma diferente. Mudar de ideias acerca disso é terrível. É condenar-se ao inferno, perder a esperança. É perder a fé.

E isto afecta a relação com os outros. Eu acho que quem rejeita a teoria da evolução está enganado. Acho mal que engane os outros, mas não acho que estar enganado, por si só, seja pecado ou maldade ou mereça castigo. Mas isto é porque eu não tenho fé. Quem tem fé acha maldade rejeitá-la e que quem o fizer merece castigo. Eterno, se for preciso. Penso que é por isso que o ateu chama intolerância ao crente estrangular a filha porque ela não quer usar véu (4), enquanto a intolerância para o crente é não o deixarem estrangular a filha que não quer usar o véu...

1- Paul Davies, 24-11-07, Taking Science on Faith. Dica: usem o BugMeNot se não se quiserem registar.
2- Massimo Pigliucci, 2-12-07, The latest silly stuff from Paul Davies
3- António Parente, 11-12-07, A fé da ciência.
4- Toronto News, 12-12-07. Muslim father strangles daughter in Canada for refusing to wear a veil, via Diário Ateísta

terça-feira, dezembro 11, 2007

Treta da Semana: Paulo Cardoso na Praça da Alegria.

Ontem, na RTP1, o programa Praça da Alegria dedicou pelo menos meia hora ao Paulo Cardoso. A “entrevista” visou publicitar o seu livro de previsões astrológicas para 2008. Às nossas custas. Não me incomoda que façam publicidade a obras de ficção, mas ninguém compra as previsões para o ano se perceber que é ficção. Só compra quem for enganado, e é um mau serviço público enganar as pessoas.

A astrologia tem tanta treta que vou ter que me limitar a uma parte desta meia hora. Mais precisamente, a um minuto e vinte e oito segundos. É mesmo muita treta. O Paulo Cardoso (PC) mostrou uma carta astral e disse que com um estudo detalhado deste tipo «já podemos fazer com tranquilidade projecções, previsões. Além de descobrir como a pessoa é podemos descobrir que periodos mais ou menos positivos vai viver ao longo da existência». O Jorge Gabriel (JG) perguntou se os astrólogos concluíram isso por observação de exemplos no passado, ao que o PC respondeu que

«provavelmente [...] os primeiros astrólogos descobriram que quando Mercúrio [...] estava a passar num dado signo, as pessoas que nasciam naquele momento (Mercúrio é a comunicação, a inteligência, a capacidade de raciocinar [...]), uma pessoa mais racionalista ou menos racionalista depende essencialmente da sua posição de Mercúrio porque Mercúrio é o deus da inteligência, da comunicação e do raciocínio lógico...»

Desta forma confusa, PC diz que «provavelmente» os astrólogos antigos terão notado alguma correlação entre a inteligência e a posição de Mercúrio. Ou seja, não faz ideia se notaram ou não. E como não tem registo de tais estudos pelos Babilónios, Sumérios, Egipcios ou Gregos, se o fizeram ele também desconhece os resultados. O que é óbvio pela explicação que dá: «Mercúrio é a comunicação, a inteligência».

Isto não é literalmente verdade. Mercúrio é uma rocha, com a capacidade de comunicação e inteligência inerente a esses seres. Admito que pelos critérios astrológicos até pode não ser pouco, mas quando o PC diz que Mercúrio é estas coisas quer dizer apenas que havia religiões antigas que associavam Mercúrio à inteligência. Vamos imaginar então a explicação se o PC tivesse nascido sob uma conjunção planetária mais favorável à honestidade e clareza de discurso. O JG perguntava se tinham concluído isto por observação, e o PC esclarecia:

«Não. Inventaram, porque pensavam que os planetas eram deuses. Os Romanos, por exemplo, consideravam Mercúrio o deus do comércio e do lucro. Mas é chato dizer a alguém que vai ser um merceeiro ganancioso, por isso dizemos que Mercúrio governa o aspecto da racionalidade. O que é duplamente vantajoso. A quem tem um Mercúrio forte dizemos que é inteligente e racional, e a quem está mal de Mercúrio dizemos que é intuitivo e criativo. Fica tudo contente porque ninguém acha que se enganam a falar de si quando dizem coisas boas.»

Muita treta mais à frente, o PC avisa os Carneiros nascidos entre 21 e 23 de Março para terem especial cuidado com a influência nefasta de Plutão. Segundo PC, este é um dos cinco planetas mais importantes do sistema solar. É mais pequeno que a Lua, está tão longe que até nos melhores telescópios é uma pinta desfocada e já nem sequer é considerado um planeta. Mas PC explica que é importante porque «tem uma órbita abrangente». Ah. Pois...

Estes Carneiros estão tramados porque Plutão é o deus dos infernos. Este planeta só foi descoberto em 1930, pelo que é duvidoso que os antigos astrólogos tenham notado fosse o que fosse acerca dele. O mais o engraçado é que o nome foi sugerido por uma rapariga de 11 anos, Venetia Burney (1). As alternativas eram Minerva, rejeitado por ser já o nome de um asteróide, e Cronus, que foi rejeitado porque ninguém gostava do astrónomo que o propusera (2). Por causa disto a jovem Venetia recebeu cinco libras do seu avô e uma data de gente tem o deus dos infernos a governar a sua vida. Mas vejam o lado positivo. Ao menos não foi o deus das hemorróidas ou coisa assim.

1- Wikipedia, Venetia Phair
2- Wikipedia, Pluto

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Pensamento Crítico.

A convite do Desidério Murcho, escrevi este post para o De Rerum Natura.

domingo, dezembro 09, 2007

Mensagem às crianças

nesta quadra natalícia. Um dia, quando forem mais crescidos, vão vos contar a verdade acerca do Pai Natal. Nesse dia, lembrem-se do que vos disseram acerca de Jesus.

Via Pharyngula

John Stossel contra Kevin Trudeau.

Os posts sobre o Kevin Trudeau têm tido muitos comentários, e há muitas pessoas que vêm parar a este blog por pesquisas acerca do Kevin Trudeau. Não acrescenta muito ao que já mencionei em posts anteriores (1), mas penso que revela melhor a treta das curas do Kevin e pode interessar aos leitores que ainda estejam indecisos. É uma reportagem do jornalista John Stossel no programa 20/20 da ABC.



1- Kevin Trudeau: curas entre os bestsellers., Treta da Semana: Kevin Trudeau.

sábado, dezembro 08, 2007

A vida da célula e a treta criacionista.

Este vídeo foi criado pela XVIVO para o departamento de biologia celular e molecular da universidade de Harvard. Não gosto da forma como fizeram a polimerização. Dá a impressão que cada proteína vai deliberadamente para o sítio onde tem que ficar. Na realidade, as proteínas são empurradas ao acaso pela agitação térmica da água e os polímeros formam-se porque todas as “peças” que tocam no sítio certo ficam lá presas. O que regula o crescimento ou destruição do polímero é o equilíbrio entre a probabilidade de uma proteína colidir no sitio certo e o tempo que lá permanece. Mas de resto acho que está muito bom. Dá uma boa ideia da complexidade orgânica de uma célula.



Os criacionistas pegaram nisto e retiraram qualquer referência a quem criou o vídeo. Se calhar o desígnio inteligente inclui o plágio. Pior que isso, deturparam completamente a mensagem. O vídeo original mostra uma célula viva, orgânica, «natural» no sentido aristotélico de uma coisa que tem em si o princípio da sua origem. Os peixes nascem de peixes, as aranhas nascem de aranhas, mas máquinas e cidades têm que ser feitas por outros seres. Por criadores.

A adaptação muda o título para «A Célula como uma Cidade Automática», com «fábricas de robôs», sistemas de transporte com «código postal» e outros termos que dão uma ideia completamente errada do que é uma célula. A célula não é fabricada. Nasce de outras células.



O criacionismo é desonesto na sua actuação. Roubam, mentem e ameaçam sem escrúpulos. Chris Comer, há nove anos directora do currículo científico no departamento de educação do Texas, foi agora forçada a demitir-se por enviar um email a anunciar uma palestra da Barbara Forrest. Esta conhecida filósofa da ciência é uma opositora do criacionismo e parece que a directora do currículo científico tem que ser «neutra» em relação ao criacionismo e não pode anunciar palestras relacionadas com ciência (1).

É desonesto na ciência. O criacionismo distorce factos e substitui explicações por superstição. E é desonesto como teologia, uma façanha impressionante. Nem os criacionistas propõem que o seu deus cria manualmente cada célula de cada organismo. É óbvio que a natureza é capaz de gerar organismos sem ajuda de um Criador. Mas os criacionistas não permitem que um deus omnipotente tenha criado uma natureza capaz de evolução.

Isto revela o que o criacionismo realmente é. Política. Não é fé nem ciência nem teologia. É simplesmente um meio de uns conseguirem poder sobre outros.

1- State science curriculum director resigns

Votação para quem subscreve o blog.

Como há cerca de 90 subscritores por RSS decidi fazer uma votação (inspirado na sondagem da Abobrinha). Pedia aos interessados que se pronunciassem se preferem que publique os posts completos ou só o primeiro parágrafo com o link para a página do post.

Quem lê os posts aqui não ligue que isto não vai fazer diferença aos posts nestas páginas.

Kevin Trudeau: curas entre os bestsellers.

O livro «Curas Naturais Que Eles Não Querem Que Você Saiba» tem estado no topo da lista de mais vendidos do New York Times, apesar do grande número de compradores insatisfeitos. O segredo está nos cerca de dois milhões de dólares que Trudeau gasta por semana em publicidade. O seu infomercial é o programa desta categoria que mais vezes passa na televisão.

Trudeau tem muita experiência em vender treta. Vendeu o «Sable Hair Farming System», uma combinação de ervas que limpa por baixo do escalpe removendo os detritos que impedem o cabelo de crescer (1). O «Mega Memory System», criado pelo próprio, e que alegadamente melhorou de 15% para 90% a capacidade de memória de deficientes mentais (2). O «Eden's Secret Nature's Purifying Product» que purifica o corpo de toxinas curando, entre outras coisas, o síndroma pré menstrual, e várias outras tretas do género (2). Finalmente, por vender cálcio de coral como cura para o cancro, foi proibido de anunciar mais produtos ou serviços nos EUA (3). Por isso veio vender a banha da cobra para países como o nosso (4). E livros. Protegido pela liberdade de expressão pode dizer a treta que quiser.

E aqui vê-se o verdadeiro génio de Kevin Trudeau. Em mais de uma década de problemas com a lei pagou um total de dois milhões e meio de dólares em multas e indemnizações. Que é o que ele gasta por semana em publicidade. Podem multá-lo à vontade. E não se limita a vender um livro da treta com um infomercial da treta. Isso é de amadores. O livro serve para vender o seu site da treta (5), onde podem consultar as curas da treta (o livro nem dessas tem) por $9.95 ao mês.

Aproveitando o sucesso começa a publicar outros com mais curas naturais, curas para emagrecer e a reeditar a treta que vendia antes, agora em forma de livro para não o chatearem. Reno Rollé, o editor, diz que isto vai revolucionar a indústria de publicação. Espero bem que não.

Mais detalhes neste artigo no Salon:

What Kevin Trudeau doesn't want you to know.

(Se forem rápidos com o botão podem parar a transferência assim que a página carrega e antes de serem reenviados para a publicidade.)


1- FTC, FTC v Jacqueline Sable
2- FTC, Infomercial Marketers Settle FTC Charges
3- FTC, Kevin Trudeau Banned from Infomercials
4- Gigashopping TV, Coral Calcium
5- http://www.naturalcures.com/>Natural Cures.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Treta da Semana: Energias.

Energia é um conceito físico rigoroso e muito útil. Adaptando uma explicação de Feynman, imaginem uma caixa com peças para construir brinquedos. Se não se acrescenta ou retira nenhuma, o número total de peças é uma característica constante qualquer que seja o brinquedo na caixa, seja barco, avião ou comboio. A energia é um conceito análogo. É mais complexa, mas é uma quantidade característica de um sistema isolado e é independente do estado do sistema. Ter isto em mente ajuda a ver vários disparates.

Dizer que há uma lei que obriga a energia a manter-se constante é absurdo e injusto. É absurdo porque é como dizer que há uma lei que obriga a velocidade a aumentar quando se anda mais depressa. Não é obrigação; é parte da definição. Um requisito da energia é que meça algo que é constante num sistema isolado. E é injusto porque menospreza o grande trabalho de encontrar uma formalização para a energia de um sistema. Que nem se consegue para todos os sistemas. O universo como um todo, por exemplo, não tem uma energia total. Não é que viole a lei. Simplesmente não se encontrou um formalismo para definir este conceito.

Outro problema é julgar que a energia é um fluído que escorre e circula. Em tempos pensou-se que o calor era assim, mas já sabemos que é um modelo errado. E ninguém pensa que a velocidade de uma bola de bilhar escorre para a outra quando colidem. Pois a variação de energia cinética, neste caso, deve-se à variação na velocidade. Uma bola trava, a outra acelera, e a energia em cada bola varia conforme a velocidade. Fala-se de uma “transferência” de energia só no sentido que a variação de energia de uma bola tem a mesma magnitude que a da outra. O valor conserva-se como se passasse de uma para a outra. Mas é apenas uma medida que se mantém constante, não é uma substância que se transfere.

Finalmente, o disparate das energias, no plural. A energia espiritual, positiva, negativa, sexual, do amor e assim por diante. Quando os físicos falam de energia cinética, potencial, química ou outras unificam vários aspectos do sistema numa única medida. É tudo somado em joule. É tudo contabilizado como energia, no singular. Dividir a energia em inúmeros sabores e espécies é o contrário do que a ciência faz. O que não é problema quando se usa o termo «energia» como metáfora. Ir de férias para ganhar energias, ou ter uma personalidade energética. Mas é problema quando o usam para pincelar uma aparência científica numa superstição qualquer. A “energia vital”, a “energia espiritual” e tretas afins são o oposto da energia. São vagas, são impossíveis de quantificar e são coisas diferentes entre si. A energia é uma quantidade bem definida.

Se algo flui pelo corpo e fica bloqueado por uma doença então não é energia. A energia nem flui nem entope. É o sangue numa trombose ou ranho no nariz do engripado. Talvez espetar agulhas no nariz traga tantas lágrimas aos olhos que acabe por desbloqueá-lo, mas eu prefiro a medicina ocidental. Dou-me melhor com umas gotinhas de soro fisiológico e um lenço.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Concurso de beleza.

Vejam aqui. Eu gosto especialmente da Pale Blue Orb. Não é muito bonita, mas uma fotografia da Terra a mil e quinhentos milhões de quilómetros é impressionante. Pela cara bonita dava o meu voto a Enceladus, mas se for daqueles concursos com perguntas para ver a personalidade é este que ganha.

Enquanto uns andam a apregoar misticismos com três mil anos, a «ciênciazinha»(1) dos testes controlados manda (mais) uma sonda a Saturno. Qual qi, qual carapuça.

1- Comentário do Mário da Silva em Mais uma picadela.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A solha e a raia.

O Luís Azevedo Rodrigues escreveu no Ciência ao Natural um post interessante sobre os Pleuronectiformes, a ordem de peixes a que pertence a solha, o linguado e alguns políticos (1). Durante o seu desenvolvimento estes seres sofrem uma rotação, uns à esquerda e outros à direita. O filme abaixo, tirado do artigo do Luís, mostra o que acontece ao crânio dos desgraçados.



Estes peixes vivem no fundo, escondidos na areia. Como são achatados na direcção errada têm que se deitar de lado. A evolução, incapaz de planear isto de origem, limitou-se a favorecer aquelas mutações que tornavam esta posição menos incómoda. Quanto mais torcido o crânio menos o peixe teria que se inclinar para espreitar com o outro olho.

Em contraste, os Rajiformes como as raias e os ratões são peixes mais afortunados. Parentes próximos dos tubarões, o seu desenvolvimento diferente permitiu acumular as mutações necessárias a viver no fundo sem torcer a cara toda.

Ocorreu-me que seria interessante ver a explicação criacionista para isto. Que raio de inteligência terá criado a solha?

1- Luís Azevedo Rodrigues, 29-11-07, Rodar à Esquerda.

terça-feira, dezembro 04, 2007

E onde é que pára?

A discussão acerca da acupunctura está a ficar algo cómica. Ou trágica. Acupunctura para cães, acupunctura que se «pode fazer em bebés, não com agulhas, mas com sementes aplicadas nas orelhas» e mestres de quigong que «demonstraram a capacidade para transmitir calor através das palmas das suas mãos acima dos valores considerados possível pela "ciência ocidental"»(1). E no meio disto muita tacada na ciência, que agora até vem com aspas e é ocidental. Se calhar no Oriente o carbono não faz polímeros, a física é menos quântica e a relatividade só funciona às segundas, quartas e sextas, por isso precisam de uma ciência diferente da nossa.

A ciência é imperfeita, não explica tudo, falha muitas vezes e, por isso, temos que desconfiar sempre do que nos diz. Mas é a única forma de saber onde acaba a realidade e começa o disparate. Estes comentários, e a imensidão de crendices, curandices e aldrabices que há por todo o lado, demonstram o que acontece a quem se fia em alternativas. Nunca mais pára. Se não confrontamos as nossas hipóteses com a realidade acabamos a enfiar sementes nas orelhas.

1- Comentários de um anónimo e do Joaquim Amado Lopes, ao post Treta da Semana: Acupunctura.

Talvez funcione em alguns casos...

A propósito deste argumento, recomendo este chapéu aos que consideram a verificação controlada um fundamentalismo de cientista. Segundo vários testemunhos, funciona mesmo:

«A woman with many abduction experiences was selected by Scott Voight of Kentucky MUFON. She was interviewed by an established investigator several times and MUFON investigators as well. She said that before she was abducted, the aliens announced her presence by actually saying, "we are here." She reported that prototype #2 worked. In May of 2000 the woman had dental surgery. Her swollen jaw prevented her from wearing the helmet so she put it in a box in a closet. She reported that the aliens took the helmet along with correspondence from me.»(1)

Como se vê, a investigação foi cuidadosa, incidindo sobre pessoas que tinham sido raptadas várias vezes. Pode ter efeitos secundários, «This abductee died in January, 2001 when her house burned down.», por isso usem com cuidado, mas não sejam demasiado cépticos. Não neguem à partida uma ciência que desconhecem...

(Via JREF)

1- Stop Alien Abductions, Case Histories

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Está patente...

O leitor que assina «Zarolho»(1) chamou-me a atenção para o post «The virus sharing puzzle» no blog Effect Measure (2).A Indonésia tem o maior número de infecções humanas pelo vírus H5N1, o da gripe das aves, mas recusa-se a ceder amostras deste vírus à Organização Mundial de Saúde (OMS). A razão é que a lei de patentes cobre a propriedade intelectual de vacinas criadas a partir de estirpes cedidas pela OMS. Se uma empresa farmacêutica cria uma vacina contra este vírus muito poucos na Indonésia vão poder comprá-la.

Os países asiáticos são a fonte principal de gripes, não só desta mas também das viroses sazonais que percorrem o mundo todos os anos. Milhões de camponeses a criar porcos, patos e outra bicharada em conjunto criam as condições ideias para evoluir vírus que infectam várias espécies. A recusa da Indonésia em partilhar amostras de vírus põe em risco não só o desenvolvimento de uma vacina para a gripe das aves mas também das vacinas anuais contra a gripe comum. Mas, no fundo, estão a fazer o mesmo que as empresas farmacêuticas que exigem estas leis proteccionistas. Se não recebem nada em troca não deixam que se use o que eles têm.

É mais um exemplo do que está mal com esta coisa da propriedade intelectual. Temos que abandonar a ideia que as ideias têm dono e considerar estas leis como incentivos a aplicar somente onde vale a pena. Se querem mais um exemplo, fica aqui uma patente que, felizmente para alguns, já caducou:

«Method of concealing partial baldness
A method of styling hair to cover partial baldness using only the hair on a person's head. The hair styling requires dividing a person's hair into three sections and carefully folding one section over another.
(3)
Via Sivacracy

1- Olho e Meio
2- 20-11-07, The virus sharing puzzle
3- Method of concealing partial baldness

domingo, dezembro 02, 2007

Mais uma picadela.

Os comentários ao último post (1) levam-me a esclarecer melhor o que acho treta na acupunctura. Há indícios de algumas aplicações promissoras, como reduzir o desconforto pós operatório. Não me oponho a que dêem ao paciente a possibilidade de escolher a acupunctura para aliviar dores e náuseas depois de uma intervenção cirúrgica. Desde que avisem que é um procedimento experimental. Mas isto não tem nada a ver com a acupunctura que se vende por aí. A APAMTC até critica quem considera a acupunctura «uma utilização rudimentar empírica de punctura que provocaria endorfinas que levaria ao alívio da dor.»(2)

A acupunctura que vendem nos consultórios tem diagnóstico energético, trata tudo e mais alguma coisa, vem com ervinhas queimadas por cima dos pontos mágicos e uma boa dose de tretologia oriental. Tudo isso sem qualquer validação. Muitos, como o Joaquim Amado Lopes, alegam que a acupunctura funciona «Nem que seja apenas em alguns casos». Felizmente não dão o mesmo benefício às empresas farmacêuticas. Com estas coisas temos que ser mais exigentes.

Há regras rigorosas para testar medicamentos e terapias. Os ensaios clínicos têm que ser registados antecipadamente para evitar que se façam vinte ensaios sem resultados favoráveis e depois se publique o vigésimo primeiro que, por acaso, pareceu indicar qualquer coisa. Têm que ser bem concebidos e executados e os procedimento detalhados e abertos à crítica. E a eficácia e segurança da terapia têm que ficar demonstradas por evidências sólidas. Uns estudos indicarem uma coisa e outros outra não serve.

Mas as agulhas de acupunctura foram aprovadas pela FDA como «medical devices». O fabricante tem apenas que garantir a esterilidade, qualidade do material e que o rótulo está de acordo com as exigências legais. Não diz nada acerca da sua eficácia terapêutica nem há grande motivação para fazer testes clínicos controlados porque não é preciso. É só espetar e passar factura.

E essa é a questão importante. Não estou a pôr em causa se a estimulação eléctrica de um ponto no pulso alivia as dores após uma operação ou algo do género. Não acho os resultados convincentes mas também não me surpreendia se funcionasse. Aguardo evidências menos ambíguas. O que oponho é que vendam este pacote de terapias, do “diagnóstico energético” ao desbloqueio do Chi, sem que tenham ou que lhes exijam uma validação adequada dos pontos, meridianos, fluxos de energia, eficácia e segurança de espetar agulhas. Os acupunctures estão a ganhar o seu como qualquer accionista de uma empresa farmacêutica, e deve-se exigir-lhes exactamente o mesmo.

1- Treta da Semana: Acupunctura.
2- APAMTC, Um pouco de história.

sábado, dezembro 01, 2007

Treta da Semana: Acupunctura.

Espetar agulhas pode ter algum efeito e talvez haja uma maleita que se cure com isto. Mas ainda não se descobriu tal maleita. Se não tivesse ocorrido aos chineses espetar agulhas em ponto “especiais” (um para cada dia do ano) ninguém usava isto. Ninguém confiava na empresa farmacêutica que vendesse este tratamento alegando que «para além do corpo visível, dos órgãos e dos vários sistemas, existem canais subtis por onde circula a energia (o Chi) e que as perturbações na forma como o Chi circula são a causa primeira dos principais desequilíbrios a que chamamos doença.»(1). A popularidade da acupunctura deve-se ao fascínio prla superstição associada.

E esta associação é evidente entre os proponentes da acupunctura. A Associação Profissional de Acupunctura e Medicina Tradicional Chinesa (APAMTC) diz que «A Medicina Moderna Ocidental não consegue explicar como funciona a Acupunctura. A Acupunctura Tradicional baseia-se nas antigas teorias Chinesas acerca do fluxo de Qi (Energia) e Xue (Sangue), através de meridianos ou canais específicos que cobrem o corpo de forma semelhante aos nervos, veias e artérias.» (2). A Associação Portuguesa de Acupunctura e Disciplinas Associadas (APA-DA) explica que « Os pontos de Acupunctura são locais de poucos milímetros quadrados, ao longo dos meridianos, que através de determinada técnica de punctura podem influenciar o fluxo de energia no organismo, de acordo com o efeito terapêutico pretendido, resultado do diagnóstico energético.»(3).

E isto é uma grande treta. Hoje em dia sabemos mais acerca do funcionamento do corpo, sobre o que causa doenças e sobre a concepção e teste de terapias. E não há qualquer razão para julgar que «as perturbações patológicas são energéticas»(4). Alguns concordam em rejeitar o misticismo mas defendem que, mesmo assim, a acupunctura talvez funcione. “Talvez” não chega. Não se vai espetar agulhas num doente só porque “talvez” lhe cure a úlcera (5), e não há até agora demonstração da acupunctura como tratamento seguro e eficaz seja para o que for. Há indícios, suspeitas, resultados promissores ou afins, mas quando testados de forma controlada – da mesma forma que exigimos que se teste qualquer comprimido ou cirurgia – o efeito desaparece. Os defensores dizem que é por ser uma filosofia diferente, mas se é tratamento tem que tratar e passar nos mesmos testes por que passam os outros.

Um exemplo são estudos usando agulhas especiais que dão a ilusão de penetrar a pele (6). Em 2004, um teste à acupunctura como tratamento de náusea pós-operatória, uma das aplicações mais promissoras da acupunctura, revelou que não havia diferença entre o grupo que tinha recebido o tratamento real e o que recebera o tratamento com as agulhas falsas pela medida de eficácia preestabelecida, que combinava a incidência dos sintomas e o recurso a medicação para a náusea (7). Houve uma diferença significativa quando consideraram apenas os vómitos (p=0.03), mas para determinar com fiabilidade este efeito seria necessário outro estudo, pois o número de factores que se pode considerar a posteriori garante que se encontre diferenças significativas mesmo sem qualquer efeito.

No entanto, os defensores da acupunctura consideram-no um resultado a seu favor. Não são muito exigentes naquilo que consideram validar a banha da cobra que vendem. No site da APAMTC podemos ler que

«A Organização Mundial de Saúde estabeleceu que a Acupunctura é adequada para tratar as seguintes perturbações:
Ouvidos, Nariz a Garganta
Dores de dentes, dores pós extracções dentárias, dores de ouvidos, inflamações nos seios perinasais, inflamação ou secura nasal [...]»


Isto fundamenta-se num documento publicado pela OMS por ocasião de um seminário organizado em Pequim, em 1979, por praticantes de medicinas tradicionais. Deste encontro saiu uma lista provisória «based on clinical experience, and not necessarily on controlled clinical research: furthermore, the inclusion of specific diseases are not meant to indicate the extent of acupuncture's efficacy in treating them.»(8) Mas para vender, chega-lhes bem...

Para mais informação, incluindo alguns dos perigos de espetar agulhas pelo corpo, vejam este artigo do Stephen Barrett na QuackWatch:«Be Wary of Acupuncture, Qigong, and "Chinese Medicine"».

1- Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa Acupunctura e Moxabustão
2- APAMTC, Acupunctura

3- APA-DA, Acupunctura
4- APA-DA, Mecanismos de Acção da MTC
5- How to Use Acupuncture to Treat an Ulcer
6- Streitberger K, Kleinhenz J., Introducing a placebo needle into acupuncture research., Lancet. 1998 Sep 19;352(9132):992.
7- Streitberger K, Diefenbacher M, Bauer A, Conradi R, Bardenheuer H, Martin E, Schneider A, Unnebrink K.,Acupuncture compared to placebo-acupuncture for postoperative nausea and vomiting prophylaxis: a randomised placebo-controlled patient and observer blind trial.Anaesthesia. 2004 Jul;59(7):730; author reply 730-1.
8-The World Health Organization Viewpoint on Acupuncture

The Spanish Inquisition

O António Parente inspirou muitos posts neste blog, e é com prazer que lhe dou as boas vindas de volta à Internet com o seu novo blog Razão Crítica (1), desta vez com um formato radical e inovador (permite comentários). Num post recente o António escreveu:

«Uma [Uma...] das caractertísticas mais marcantes do ateísmo português é o seu fanatismo agressivo e a sua indigência cultural. [Duas!...] Sem pensamento próprio [Três! Três características...] , limita-se a copiar, de uma forma totalmente incompetente, o modo anglo-saxónico de atacar a religião [Quatro!...]. Cria-se, desse modo, uma dissonância entre aquilo em que um crente português se revê e o que um ateu gostaria de ver.»(2)

Eu diria que a dissonância vem logo de um ser crente e outro ateu. Mas isso será tema para posts futuros; estou certo que o António continuará a contribuir para o debate. Neste queria deixar apenas as boas vindas e esta pequena homenagem.




1- Razão Crítica.
2- António Parente, 30-11-07, Ateísmo português: fanatismo agressivo?

sexta-feira, novembro 30, 2007

Inferências

Há uns posts escrevi que inferimos a existência do electrão pelo que essa hipótese explica (1). A propósito disto, o Tiago Luchini escreveu «Deus existe pelo próprio fato que consigo inferir sua existência observando os efeitos de suas acões em minha vida - sem contar na de outros ao meu redor! Não preciso acrescentar nem mudar nada ao ponto-de-vista 100% ateu!» (2). Isto é um erro.

Uma inferência é um passo lógico num raciocínio. A inferência mais segura é a dedução: Sócrates é um homem, todos os homens são mortais, por isso Sócrates é mortal. Não tem nada que enganar mas adianta pouco. No fundo, conclui-se o que já se sabia. A indução é menos segura mas mais útil pois infere uma generalização. Se vi cem corvos pretos posso induzir que são todos pretos e pronto. Agora sei algo sobre milhões de corvos. Posso-me enganar, mas dá jeito.

A mais útil de todas é a abdução, a inferência de uma explicação. Chego a casa e tenho a porta arrombada, falta o televisor e o computador. Infiro que fui assaltado. Não é uma dedução, pois não há uma implicação lógica entre as premissas e a conclusão. Também não é uma indução. Não estou a generalizar a partir de um conjunto de observações semelhantes. Estou a procurar a melhor explicação para o que observo.

Esta explicação tem que ter duas propriedades. Tem que ser compatível com o que sei e observo. Seria um erro inferir que o porquinho da índia tinha partido a porta e comido os electrodomésticos. E tem que explicar o que observo. Ou seja, tem que ser uma hipótese tal que, se for verdade, implica logicamente esta observação. A hipótese do assalto cumpre este requisito. Se, antes de eu ver a casa, um polícia me diz que foi assaltada eu posso deduzir muito do que vou observar quando lá chegar.

Hipóteses mágicas cumprem automaticamente o primeiro requisito. Qualquer coisa que aconteça é compatível com deuses, milagres e outras bruxarias. Mas é precisamente por isso que nunca cumprem o segundo. Se o polícia me disser que houve um milagre em minha casa eu fico na mesma. Não faço ideia que vou ver quando lá chegar.

A abdução é a inferência mais arriscada e por isso as explicações estão muitas vezes erradas. Têm que ser testadas, corrigidas, testadas novamente e substituídas num processo interminável. A história da ciência está cheia de exemplos. Mas abduzir explicações vale a pena porque é a inferência que dá mais informação. Newton estava enganado, mas a explicação dele ainda hoje é extremamente útil e informativa.

O Tiago faz uma inferência arriscada para nada. Observa pássaros, árvores, e a vida das pessoas e infere que há um deus por trás disto tudo. É arriscado porque há infinitas alternativas (zero deuses, dois, três, quatro...). E não explica nada porque assumir um ser omnipotente não diz nada acerca de nada. Uma explicação tem que delimitar as possibilidades, tem que distinguir o que é do que não pode ser. Finalmente, fica entalado numa hipótese incorrigível. Se está enganado nunca poderá sabê-lo. Isto não é uma inferência justificável.

Para que um deus seja uma explicação tem que ser uma hipótese concreta da qual possamos deduzir o que podemos observar e o que nunca observaremos. E para ser melhor que as explicações que temos (sem deuses) tem que separar com mais rigor e detalhe o que a realidade pode ser daquilo que não pode. A abdução é a inferência à melhor explicação, e se algum deus se revelar a melhor explicação devemos inferir a sua existência. Tal como inferimos a existência do electrão.

Mas o Tiago quer inferir algo que não é consequência lógica, nem generalização, nem explicação. Isso não é inferência. É o tal preconceito a que chamam fé.

1- Quantas Realidades?
2- Tiago Luchini, 29-11-07, Inferindo a existência de Deus

quinta-feira, novembro 29, 2007

Como Tudo Começou. 3- A Origem do Universo.

O terceiro capítulo do livro de Adauto Lourenço (AL) é sobre «A Origem do Universo». Neste AL recorre às duas primeiras leis da termodinâmica, cálculos complicados, e às técnicas de argumentação favoritas do criacionismo: a omissão e a mentira descarada.

AL calcula que há mil e duzentos milhões de anos a Lua teria que estar a tocar na Terra, a julgar pelo ritmo com que se afasta. Em apêndice mostra os cálculos detalhados (podem ver um exemplo semelhante na referência 1), com contas complicadas, mas tudo assenta na premissa que a dissipação da rotação da Terra pelas marés (pelo atrito da crosta com os oceanos) foi sempre igual aquela que é hoje. E as evidências desmentem esta hipótese.

Quando a Lua estava mais próxima a Terra rodava mais rapidamente e as marés eram maiores. AL afirma que «Marés com valores oito vezes maiores que os actuais teriam deixado marcas visíveis nas regiões costeiras. Tais marcas não foram detectadas». Até foram. E são essas que refutam o modelo simplificado dos criacionistas.

As marés junto ao estuário de grandes rios levam à formação de rochas pela acumulação alternada de sedimentos do rio e areia do mar, e nestas rochas é possível medir o período e intensidade das marés. A Lua está a afastar-se da Terra a 3.8 cm por ano, mas a evidência é que no passado o fez mais lentamente, em média a cerca de 1.3 cm por ano nos últimos dois mil e quinhentos milhões de anos (2). O atrito dos oceanos na crosta terrestre foi menor no passado e é por isso que as contas do modelo criacionista não dão certo. Isto demonstra mais uma vez que é preferível considerar a evidência toda do que fazer uma data de contas só com o bocadinho que pensamos dar mais jeito.

AL invoca a segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia de um sistema isolado aumenta até ao equilíbrio, para defender que Alguém tem que ter «dado corda» ao universo, organizando as coisas no princípio para se poder depois ir desorganizando gradualmente. Mas omitiu a expansão do universo. O universo começou desorganizado, mas a expansão aumentou rapidamente o máximo de entropia. É como duplicar o tamanho de um quarto todo desarrumado. Estava o mais desarrumado possível mas agora pode-se desarrumar ainda mais. Apesar do universo ter começado desordenado a desordem aumentou. E graças à expansão do universo, ainda há muito para a aumentar.

Finalmente, AL aponta que a primeira lei da termodinâmica, a lei da conservação de energia, está a ser violada porque a expansão do universo aumenta o comprimento de onda da luz. «Uma vez que a energia da luz é proporcional à sua frequência, isto pode implicar numa perda de energia. Até o momento, a teoria do big bang não oferece explicações para esta possível perda de energia». Refere como fonte o Principles of Physical Cosmology do P.J.E. Peebles. Edição de 1993, e página 138. Eu tenho este livro, e é o de 1993. Na página 138 não está nada relevante, mas está na 139:

«The resolution of this apparent paradox is that while energy conservation is a good local concept […] and can be defined more generally in the special case of an isolated system in an asymptotically flat space, there is not a general global energy conservation law in general relativity theory.»

O que AL considera ser uma lei que manda o universo conservar a energia dê lá por onde der é apenas uma generalização válida em certas condições. Hoje sabemos que não se aplica dessa forma ao universo como um todo. Mas o pior é dar a entender que o livro suporta a posição dele quando diz exactamente o contrário do que ele defende. Talvez tenha papagueado uma alegação de outro criacionista, mas se leu o livro sabia que estava a mentir.

O método criacionista é claro. Ignora-se factos, baralha-se as coisas e, de vez em quando, mete-se uma mentira a ver se ninguém nota.

1- Center for Scientific Creation, How Long Would It Take the Moon to Recede from Earth to Its Present Position?
2- Tim Tompson, TalkOrigins, The Recession of the Moon and the Age of the Earth-Moon System