quinta-feira, dezembro 07, 2006

O Estatuto Ontológico.

Tenho tido relutância em criticar directamente textos do Diário Ateísta, porque penso que ainda têm a política de não responder a criticas de outros blogs. Isto cria uma relação assimétrica e um pouco injusta para eles. Mas hoje decidi que não tenho nada a ver com isso, e vou tentar responder à pergunta que a Palmira colocou(1), com imparcialidade e tacto característicos:

«Portanto, senhores pró-prisão, um pouco de seriedade, deixem as falácias debaixo do chapéu e expliquem bem explicadinho porque razão deve ser crime interromper uma gravidez até às 10 semanas e apenas nos casos que ainda não são previstos na lei. Ou seja, porque é alterado ao sabor das conveniências o estatuto ontológico do embrião, o único ponto que deveriam estar a discutir!»

A explicação é simples. O estatuto ontológico não muda. Cada um de nós tem uma vida, e não temos vidas diferentes antes e depois das X semanas, e esta vida vale como um todo. Não tem um valor à terça e outro ao sábado. Por isso matar o feto ou embrião é sempre matar, seja a que semana fôr.

Para decidir se penalizamos a morte de um ser humano podemos considerar muitos factores: o custo do funeral; o patrão fica sem um empregado; a família e os amigos ficam tristes, e assim por diante. Mas o factor principal é a vida que esse ser vai viver se não o matarmos, o enorme custo de oportunidade para quem é morto. Esse não muda nada às 10 semanas, mas é diferente para quem tem uma doença terrível e incurável, ou para um feto com malformações graves. A eutanásia é aceitável porque é do interesse de quem é morto.

E o problema no aborto não é unilateral. É um conflito de dois direitos: a autonomia de decidir o que fazer com o nosso corpo, e o direito de não ser morto que é dado pelo valor que a nossa vida tem para nós (a vida toda, não a vida hoje). Por isso, mesmo em casos em que a malformação não é tão grave que justifique a eutanásia, o valor dessa vida pode ser suficientemente reduzido para que não se justifique penalizar o aborto. Mas é de salientar que o valor da vida não é reduzido por problemas temporários, apenas por algo permanente e irreversível que afecte a vida como um todo. Nunca se é novo demais para ter valor.

Para justificar que não se penalize o aborto em caso de violação podemos considerar o famoso exemplo (hipotético) dado por Judith Thompson (2): imaginem que eu acordo no hospital ligado por tubos a um violinista que precisa de usar o meu corpo durante nove meses para sobreviver. Ninguém o pode desligar de mim senão ele morre. O violinista é claramente uma pessoa, mas não é condenável que recuse esta situação imposta contra a minha vontade, mesmo que o violinista morra.

Mas imaginem que a situação foi consequência de um acto voluntário da minha parte. Decidi brincar com o equipamento mesmo sabendo que havia o risco alguém ficar dependente do meu corpo durante uns meses. Tomei todas as precauções, mas correu mal e lá ficou o violinista agarrado a mim. Isto é diferente. Como vítima contrariada tinha legitimidade de me livrar do violinista, mesmo que ele morresse, mas como participante voluntário e causador da situação não tenho essa legitimidade. A diferença de abortar no caso de violação e no caso de sexo consensual não está no estatuto ontológico do feto, mas sim na responsabilidade que a mãe, o pai, e todos nós, temos pelas consequências previsíveis de um acto voluntário.

Finalmente, nesta pergunta há um erro fundamental. Não sou eu que tenho que justificar que antes das 10 semanas seja errado matar um ser humano. Também não tenho que justificar que seja errado matar antes das 20 semanas, dos 3 anos, dos 25 anos, e assim por diante. Em geral, todos concordamos que é errado matar um ser humano. São os que propõem uma excepção a essa regra que a têm que justificar.

1- Palmira Silva, 7-12-06, You Can Leave Your Hat On II.

2- Judith Jarvis Thomson: A Defense of Abortion, Philosophy & Public Affairs, Vol. 1, no. 1 (Fall 1971).

18 comentários:

  1. "Esse não muda nada às 10 semanas, mas é diferente para quem tem uma doença terrível e incurável, ou para um feto com malformações graves. A eutanásia é aceitável porque é do interesse de quem é morto."

    Hmmm
    Quem é que decide, no caso do feto com deformações graves, o que é do seu interesse?

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  2. Ah e já agora, dito por ti também:

    "Eu acho que o mais correcto é conferir direitos de acordo com a subjectividade daquele a quem os direitos são conferidos, e não de acordo com as opiniões de terceiros."

    No mesmo caso do tal feto com malformações, como evitar a opinião de terceiros? Pergunta-se ao feto? Espera-se que ele nasça e cresça, para depois perguntar?

    Tratei deste assunto aqui http://www.blogger.com/comment.g?blogID=29251019&postID=116533661684833181
    e estou á espera de rebate :)

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  3. A eutanásia é uma decisão difícil, especialmente se o visado não pode comunicar. Mas parece-me razoável assumir que a vida de quem tem deformações graves vale menos que a vida de uma pessoa saudável, e que a certa altura este valor seja suficientemente baixo para não justificar a penalização do aborto, tendo em conta os direitos da mãe ao seu corpo.

    Mas como isto não é um problema significativo quando comparado com os estimados 20 mil abortos por ano, e como a proposta no referendo não vai ter efeito algum neste caso, não pensei o suficiente nos detalhes para responder ao certo quem tem que decidir.

    Como pimeira aproximação, acho que a decisão deve ser dos pais sujeita a confirmação médica que a deformação justifica o aborto. Provavelmente, é o que já diz a lei...

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  4. A diferença importante é entre impor os nossos valores ou estimar honestamente o que é que o visado iria decidir pudesse fazer uma escolha informada.

    A criança pode não querer ir para a escola. Mas se temos razões para crer que decidiria ir se conhecesse bem os factos e as consequências dessa decisão. Por isso obrigamo-la a ir à escola.

    Mas se a criança não quer ir à missa, o caso é diferente. Não a podemos obrigar só porque acreditamos, ou achamos que é bom. Temos que pensar no que ela iria decidir se tivesse todos os factos à sua disposição.

    No caso do feto não temos que perguntar se nós achamos que é pessoa ou não. Temos é que considerar que ele pode vir a achar que sempre foi pessoa. É isso que temos que respeitar.

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  5. Tenho que concordar com o miguel krippahl.
    Acho que te contradizes quando tens dois pesos e duas medidas para uma vida. Eu gostaria de viver, mesmo que tivesse uma malformação ou uma doença incurável. Já agora, e mencionado por ti noutro post, também gostaria que não me desligassem a máquina caso estivesse num "coma irreversível"...
    Infelizmente teremos que ser nós e não os fetos a decidir a sua continuidade; e não creio que isto mude.
    Eu não gosto muito de ilustrar as minhas argumentações porque acho que assim perdem a sua objectividade, mas de qualquer maneira aqui vai:
    Eu sou contra o suicídio (ou eutanásia) assistido, mas a minha opinião começa e acaba em mim, ou seja, eu nunca (suponho) o faria, mas dou a liberdade a outros que o façam se quiserem.
    Em relação ao aborto é a mesma coisa. Não concordaria se fosse op meu filho, mas não limitaria a liberdade de terceiros por causa dos meus ideais e das circunstâncias em que eu me encontrasse - que não seriam iguais para outra pessoa.
    Agora acho que devíamos deixar um pouco os estatutos e os decretos de lado, e começar a pensar pela nossa cabeça: Achas mesmo que um embrião é um ser humano?
    Porquê parar por aí?
    Já agora poderíamos punir severamente os libertinos dos masturbadores que se fartam de desperdiçar potenciais seres humanos a torto e a direito.

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  6. Caro André,

    Vou por aqui a resposta que dei a Miguel no outro comentário. O problema é o peso relativo de três valores:

    1- O valor da vida que estamos a pensar eliminar (a vida toda, 70 ou 80 anos como ser humano).

    2- O valor da autonomia da mãe de poder fazer o que quer com o seu corpo.

    3-O custo moral e social de punir um acto com prisão, tribunal, etc.


    Nos casos cinzentos (malformação, gravidez de menores ou inimputáveis, etc) é dificil comparar valores porque a margem de erro é grande.

    Por isso o que proponho é exclusivamente para o caso extremo de um feto saudável, mãe saudável, adulta e imputável de responsabilidade pelos seus actos, e sexo consensual. Todos os desvios a este caso extremo tornam muito difícil decidir. Felizmente, isto é 99%+ dos casos, e é a este que o referendo se refere.

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  7. "A diferença importante é entre impor os nossos valores ou estimar honestamente o que é que o visado iria decidir pudesse fazer uma escolha informada."

    Diferenças de semântica, não de conteúdo.

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  8. Também posso extrapolar para outros campos.
    Por exemplo, como deves saber, houve uma grande polémica sobre qual foi o factor predominante que levou a que a onda de crimes em New York, U.S.A., reduzisse drasticamente nos anos noventa. Dos vários estudos que foram feitos, houve um que me chamou a atenção: 'The Impact of Legalized Abortion on Crime', de um proeminente (na altura - e agora conceituado) economista, Steven Levitt.
    Resumidamente ele explica a redução drástica do crime porque em 1973, em Roe vs Wade, o aborto foi legalizado em N.Y.. Até à data em que o evento (redução crime) se inicia, passaram cerca de 15 a 17 anos. Isto significa que as mulheres que antes não podiam abortar (classe baixa) a partir de 1973 já o podiam fazer; os filho(a)s que nasceriam nesse meio, já não tiveram lugar; cerca de 1990, quando estes seriam pré e adolescentes, aptos para o crime, substituiriam os anteriores, já adultos e mais maduros, ou então (a maior parte) mortos. O que não aconteceu.
    Resumindo e concluindo, a despenalização do aborto será de facto uma via que permitirá o assassínio de futuros seres humanos, mas como quem o pretende fazer são, na sua maioria, mulheres de estratos sociais pouco privilegiados, neste caso o meio justifica o fim.
    Caso contrário, corremos o risco de o crime em Portugal aumentar cada vez mais e então morrerão muitos mais seres humanos.

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  9. Esqueci-me de mencionar os valores comparados de vidas humanas que podem, potencialmente, erradicar (muitas) outras vidas humanas.
    E se pensasse mais um pouco, tenho a certeza que conseguiria encontrar mais valores, relativos e absolutos. O problema é que não conseguimos pensar em todos os cenários possíveis, por isso temos que fazer o melhor que conseguirmos e utilizar o bom senso. E o bom senso diz-me que a importância de matar um feto é comparativamente menor a matar ou limitar a vida de um ser humano racional. O bom senso também me diz que o feto é de facto um ser humano, mas num estágio animal, sem raciocínio ou imaginação, ou seja, sem nada que me leve a identificar e, por isso, a criar empatia com este.

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  10. Miguel,

    Se a diferença é de semântica, então é uma diferença no significado, e por isso tem que ser uma diferença de conteudo...

    Seja como for, a diferença é grande entre dar a alguém o que nós queremos ou o que achamos que ele quer.

    Um exemplo há uns tempos foi o de um casal surdo que queria um filho surdo. Penso que não é pura demagogia apontar uma diferença entre o que o casal queria para o filho e o que o filho quereria para si mesmo se pudesse decidir.

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  11. André,

    Sim, existem outros valores e considerações. Mas possibilidades mais remotas merecem menos peso, pelo que normalmente podemos desprezá-las.

    E se bem que haja uma redução significativa no crime violento com o aumento da prática do aborto (cerca de 30% nos estados unidos, para uma duplicação da incidência de aborto), dificilmente podemos justificar a morte de dezenas de milhares de seres humanos por ano pela probabilidade de alguns deles virem a ser criminosos.

    Quanto às limitações do feto, há que notar que são temporárias, e que por isso nunca podem justificar matá-lo. Não pensa nessa altura, mas isso passa naturalmente. Também quando batemos com a cabeça com força ou estamos anestesiados temos o mesmo problema, e não é por isso que o cirurgião nos pode matar à vontade.

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  12. «Cada um de nós tem uma vida, e não temos vidas diferentes antes e depois das X semanas, e esta vida vale como um todo. Não tem um valor à terça e outro ao sábado. Por isso matar o feto ou embrião é sempre matar, seja a que semana fôr.»

    Pois é, Ludi.
    Mas se à terça-feira a vida estiver na barriguinha da mãe, é crime de aborto. Se o parto for na quinta-feira, no sábado quem matar a criança comete assassínio.
    E isto é assim em qualquer sítio do mundo.
    Portanto: as leis já dão «valor» diferente à vida conforme o estado de desenvolvimento.

    Ludi,
    interpelei-te no meu blogue:
    http://esquerda-republicana.blogspot.com/2006/12/ainda-ivg-investimento-fronteiras-etc.html

    Cumprimentos,

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  13. Uma vez que não chegamos a um consenso, podemos ao menos concordar que as seguintes situações (já pensadas e previstas pelo movimento pro-choice) sirvam como parâmetros para uma regulamentação. Passo a enunciar:
    - violação;
    - a vida da mãe ou do feto está em risco;
    - a contracepção foi usada mas falhou;
    - a mulher sente que é incapaz de ser mãe.

    Especial atenção ao último ponto, que não pode ser contornado sob o risco de "ferir mortalmente" os direitos individuais do homem (sentido lato), e/ou leis anti-esclavagismo.

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  14. Não resisto a acrescentar isto:
    A mulher pode saber perfeitamente que o aborto é um acto criminoso, mas o facto de não querer (absolutamente) ser mãe deixa a sociedade com apenas duas escolhas - a)ou a obrigam a ter o filho indesejado, remetendo-o de seguida para as devidas instituições; b) ou não a obrigam e aceitam ou penalizam o acto.
    Agora tirem as ilações que quiserem.

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  15. "Mas parece-me razoável assumir que a vida de quem tem deformações graves vale menos que a vida de uma pessoa saudável, e que a certa altura este valor seja suficientemente baixo para não justificar a penalização do aborto, tendo em conta os direitos da mãe ao seu corpo."
    Pensei que o direito á vida era um valor absoluto, não relativo, do teu ponto de vista.

    "Seja como for, a diferença é grande entre dar a alguém o que nós queremos ou o que achamos que ele quer.".
    Julgo lícito assumir que muitas mulheres optarão por abortar por acharem que não têm as condições ideais para criar filhos. Logo, estão a pensar nos ditos filhos.

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  16. Ludwig:

    Quanto aos meus artigos no DA, espero que nunca te sintas constrangido em referir, citar, etc..

    Como eu não tenho sentido em citar os teus. Na verdade, tenho citado aqueles que subscrevo inteiramente.

    No que respeita a esta questão do aborto, ainda penso votar "sim", mas bem menos convicto. Não por causa destes últimos artigos, tenho valores um tanto diferentes dos teus, mais ainda não consegui estruturar verbalmente a minha opinião na totalidade - penso que já perfaz um todo coerente, só tenho de saber melhor como a explicar antes de escrever sobre isso.

    Aquilo que escreveste que tirou grande parte da convicção com que defendia esta causa foi um facto: as 8 mulheres por ano que morrem em Portugal - sempre pensei que fossem centenas de vezes mais. Tinha sido pouco céptico quanto aos dados que imprensa sugere a esse respeito, e andei a propagar o mito urbano de que era uma importante (a terceira) causa de morte não-natural entre as mulheres.

    Foi impressionante verificar que assim não era, o que destroi um fortíssimo argumento do sim.

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  17. «Julgo lícito assumir que muitas mulheres optarão por abortar por acharem que não têm as condições ideais para criar filhos. Logo, estão a pensar nos ditos filhos. »

    Na verdade suponho que esse caso deve ser muito frequente.

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  18. Caro Ludwig

    Dou-lhe novamente os parabéns pela forma inteligente, culta e exemplar como consegue defender os seus pontos de vista.

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