sexta-feira, dezembro 01, 2006

Falácias.

Ultimamente tenho ouvido muito esta palavra. No debate sobre a IVG e em alguns comentários neste blog fui acusado de apresentar argumentos falaciosos. Por isto, e por ter leccionado esta matéria recentemente, deu-me para escrever umas coisas sobre falácias.

Uma falácia é um erro de raciocínio, uma inferência incorrecta. Não é uma opinião da qual discordamos. Não é falácia ser do Benfica ou do Sporting, nem considerar o embrião uma pessoa ou uma migalha de carne. Nem é a omissão de dados. Dizer que tenho razões para o que faço e não as enumerar enfraquece o argumento, mas não é um erro de raciocínio. Nem sequer é falácia partir de falsas premissas: “Como chove pianos acho melhor ir de Metro”. A premissa é falsa, e por isso podemos discordar da conclusão, mas o raciocínio é correcto: se de facto chover pianos é boa ideia ir de Metro. Vejamos algumas falácias comuns.

Apelo à crença ou prática comum. Nesta falácia justifica-se uma crença ou prática por ser aceite por muitos. Mas mesmo que seja verdade que é aceite por muitos não se justifica concluir que é crença verdadeira ou prática adequada. A conclusão não segue das premissas, pelo que o raciocínio é falacioso. Exemplos: Tanta gente acredita em deuses e no sobrenatural, por isso deve haver aí algo de verdade. Tantos países no Ocidente legalizaram o aborto, por isso devíamos fazer o mesmo.

Na petição de príncipio, ou raciocínio circular, as premissas dependem da conclusão. Por exemplo: Eu sei que Deus existe porque vem na Bíblia, que é a palavra inerrante de Deus. O erro não está em afirmar que algo é verdade se for verdade; essa inferência é trivialmente correcta. O erro está em concluir daqui que esse algo é mesmo verdade. Em teologia é comum ver-se esta falácia no apelo à coerência interna de um modelo. Por exemplo, dar a ausência de contradições na Bíblia como prova da sua veracidade (a Bíblia tem contradições, mas isso não é falácia, é um erro factual).

Ad hominem, o ataque à pessoa, é infelizmente muito vulgar. Consiste em rejeitar um argumento com base numa característica irrelevante de quem o defende. Por exemplo, rejeitar um argumento pela protecção do feto porque é proferido por um padre ou um crente católico. Uma variante é o ad homimem tu quoque, em que se rejeita um argumento porque as acções passadas do que o defende contrariam a conclusão. Por exemplo, rejeitar que mulheres que abortaram condenem o aborto, ou pessoas que roubaram condenem o furto, ou pessoas que já mentiram condenem a mentira. Esta falácia é especialmente comum entre crianças e dirigentes de clubes de futebol, mas aparece um pouco por todo o lado.

Há duas coisas que não são falácias mas que muitas vezes são confundidas com falácias. Uma é o argumento indutivo: a maioria dos pássaros voa, por isso concluo que o pinguim voa. A conclusão é falsa, mas o raciocínio não é falacioso: a menos que haja informação que indique que o pinguim é excepção, é razoável concluir que é como a maioria dos pássaros. Uma falácia comum associada ao argumento por indução é a generalização precipitada: como o pinguim não voa, a maioria dos pássaros não voa. A outra fonte de confusão é a explicação causal: chove porque a deusa do céu está triste. Isto pode parecer uma falácia mas é uma relação causal apresentada como facto e não uma inferência lógica.

Resumindo, falácias são erros específicos de raciocínio, e independentes das questões de facto. É útil apontar falácias nos argumentos se identificarmos a inferência errada e o erro cometido. Mas se é inútil, e incorrecto, gritar “Falácia!” só porque discordamos da conclusão. A menos que seja num debate, para interromper o outro a meio do raciocínio...

16 comentários:

  1. Tenho uma pena enorme de andar à muito tempo a querer participar de modo decente no seu blog, mas post atras de post não ter nada para dizer por concordar com o que está escrito..não ha maneira de escrever algo que eu não concorde, ou algo ridiculo para eu tambem poder colocar o pézinho?

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  2. Caro Ludwig

    É lamentável que depois de eu o informar que me afastava definitivamente dos comentários do seu blogue continue a usar o que escrevi para "postar". Temos, na verdade, conceitos de ética muito diferentes.

    Olhe, já agora dou-lhe uma ajuda: dizer que é professor universitário e que leccionou umas coisas sobre o assunto (lógica) insere-se na categoria falaciosa do "argumento da autoridade".

    O que me irrita profundamente é que professores universitários provenientes de áreas científicas se julguem competentes para opinarem sobre filosofia ou teologia sem terem qualquer formação cultural nem científica para isso. Leram umas coisas nuns pasquins, leram um livros idiotas e helas! somos doutorados em ciências religiosas. Para isso usa-se uma expressão muito simples: soberba intelectual.

    Penso que lhe dei já uma carrada de temas para os próximos posts.

    Um abraço

    António Parente

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  3. Mas afinal para quando é mesmo o seu afastamento dos comentários do blog?

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  4. Caro Pestana,

    Obrigado pelo comentário, e fico satisfeito de o ter por aqui à espera que eu meta alguma argolada :)

    Caro António,

    Por consideração ao seu pedido, e por não ser importante para este post, não referi o seu nome. Mas penso que o António exagera quando sugere não ser ético que eu sequer mencione o que o António comenta no meu blog...

    Também não é uma falácia de argumento por autoridade porque não sugiro que o facto de lecionar esta matéria seja relevante para o argumento em si. Apenas o apresento como motivação para escrever este post. Não faço qualquer inferência que use como premissa a minha profissão ou alegada autoridade.

    Finalmente, se sou ou não competente para opinar sobre estes assuntos deve ser julgado única e exclusivamente pela opinião que apresento. E posso não saber muito de teologia, mas sou certamente um dos maiores blinólogos deste país.

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  5. Ó Ludwig!
    O que quer dizer essa do blinólogo? É um especialista em Blins? Mas o blin não é uma linguagem ali das bordas do mar vermelho ou uma espécie de panqueca russa? Ou é uma especialista em mafaguinhos?

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  6. Caro Lino,

    Foi uma referência a Blinologia. Pode ler mais neste post.

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  7. Ludwig,

    Ridicularizar a Teologia, apelando à "blinologia" em nada afasta um facto inegável: o Ludwig domina mal a matéria e prefere recorrer à sátira para tentar esconder o problema.

    Tenho concordado necessariamente com muito do que aqui se escreve com qualidade, mas faz-me confusão que o seu preconceito ateu o impeça de tentar tratar a Teologia com o respeito que tal categoria intelectual merece, mesmo de quem não lhe atribui qualquer relação com o real, como parece ser o seu caso.

    Recordo-me de um amigo meu, também ateu, que gosta de dizer que adora ler Teologia, que se diverte imenso. Ele diz que é giro, como o Xadrez, mas com zero de relação com o real.

    Este meu amigo, apesar de estar mergulhado até ao pescoço no preconceito que o impede de ver a Teologia como ela é, está ao menos numa situação privilegiada face a si, Ludwig.
    Ele também satiriza a Teologia, ao negar-lhe qualquer relação com o real, mas ao menos, aparentemente, lê-a!

    Falando agora mais a sério, não vejo vantagem nenhuma, mesmo para um ateu, em usar a sátira para tentar disfarçar pouco "à vontade" em Teologia. Já o disse no passado a outros ateus: a única forma de um ateu ser levado a sério por um crente, em termos inteletuais, seria esse ateu estudar Teologia ao ponto de a dominar, e depois, munido desse conhecimento, procurar demonstrar, usando a lógica discursiva, o presumido absurdo das teses teológicas.
    Nunca vi isso acontecer.
    Em vez disso, vejo o Sam Harris e o Richard Dawkins a fazer figuras ridículas, demonstrando os brutos ignorantes que são em matéria religiosa, e vejo-o a si a brincar aos blins...
    É pena.
    Satirizar e insultar intelectualmente o nosso adversário não vale como discurso inteligente nem vale como argumento intelectualmente maduro.

    Sempre que vejo alguém que é sapiente numa dada área, como é o seu caso naturalmente, fico perplexo ao vê-lo ridicularizar um colosso intelectual como é a Teologia.
    Quem sabe muito de uma área tem a tendência para admirar outras áreas de imenso saber. O intelecto sente-se atraído pela complexidade intelectual daquilo que ainda não conhece.
    Mesmo que, no limite, o Ludwig nunca venha a ter fé e nunca deixe de ser ateu, não lhe fica bem desprezar algo que é, claramente, um colosso intelectual. A influência de toda Teologia cristã no mundo moderno é incomparavelmente superior à influência de um qualquer punhado de físicos modernos, sem desprestígio para estes.
    O pior, ao vê-lo satirizar o que não conhece, é que isso, Ludwig, mancha as suas outras competências.
    Não fica bem a uma pessoa culta e pensante ridicularizar com a cultura de outras pessoas pensantes.
    Isso é sinal de intolerância, e bem pior, sinal de vistas curtas.
    Nunca entendi porque razão não existem mais ateus que, admirando a Teologia como grande feito intelectual, e procurando estudá-la e compreendê-la, não concluíssem, simplesmente, que não crêem, e portanto são ateus...

    Se o Ludwig procura demonstrar que a Teologia, em última análise, está tragicamente errada não pode escapar ao óbvio:

    a) tem que estudar Teologia
    b) tem que a criticar e desmontar com autoridade e conhecimento de causa

    Senão, arrisca-se a ser mais um na triste claque de tristes, a juntar aos Dawkins e Harris desta Terra, que perante a Teologia são como palhaços a tentar falar de Física atómica, sem desprestígio para a nobre arte circense.

    Um abraço,

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  8. Caro Bernardo,

    Não me considero um teólogo, mas não me considero completamente ignorante na matéria. E estou sempre disposto a aprender, por isso ficarei grato se me apontar algum erro factual na minha compreensão da teologia.

    Quanto à sátira não ficar bem, Kierkegaard dir-lhe-ia que a preocupação com o que fica bem ou mal impede que sejamos autênticos, e para a sátira e a troça ele nunca se fazia rogado (mas se calhar só contam os teólogos católicos :)

    Na Blinologia tentei satirizar duas contradições ou conflitos. Por um lado a contradição entre a tradição escolástica tomista, em que a teologia era uma filosofia natural (uma ciência de deus), com provas e tudo, e a posição moderna (que o Bernardo aqui defendeu várias vezes) do catolicismo como uma visão do mundo para além do conhecimento lógico-empírico. Por outro lado o conflito entre uma tradicão cheia de superstições e mitos e uma tentativa de os interpretar à maneira moderna inventando-lhes um significado profundo.

    Se a sátira falhou por ignorância, óptimo, pois ignorância é fácil de corrigir. O problema é se a sátira falhou porque não tenho graça -- isso é que já não devo conseguir remediar :)

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  9. Por caso resultou...mas foi por pouco;)

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  10. Ludwig,

    «Não me considero um teólogo, mas não me considero completamente ignorante na matéria. E estou sempre disposto a aprender, por isso ficarei grato se me apontar algum erro factual na minha compreensão da teologia.»

    Antes de principiar, espero que seja evidente que eu também não sou teólogo. Pelo facto de que sou um crente curioso, é natural que gaste muito tempo no estudo de questões teológicas, bem como numa tentativa de comparação entre a estrutura intelectual do catolicismo e as estruturas intelectuais de outras crenças (isso apaixona-me). Mas mesmo que eu gastasse mais tempo do que o Ludwig (algo que não sabemos porque não contabilizámos!) a ler e a estudar Teologia, isso não garantiria, obviamente, que eu saberia mais!!

    No fundo, sou um amador, e tudo o que poderei eventualmente apontar-lhe será sempre com modéstia. Por vezes, uso palavras duras, e posso mesmo chegar a ser arrogante, mas nunca me presumo mais do que sou.

    O meu comentário anterior baseava-se na minha experiência com várias sátiras costumeiras feitas por ateus para ridicularizar a Teologia. Independentemente do humor de tais sátiras (gostos não se discutem, e necessariamente sou capaz de reconhecer humor em sátiras à religião), assusto-me quando pressinto que o autor da sátira poderá julgar estar a fazer alguma demonstração. Se, por usar uma sátira que me parece superficial porque feita sobre um estereótipo superficial, eu pressinto que o autor ateu dessa sátira julga que está a "tocar na ferida", eu não posso deixar de ver essa situação como trágica, não pelo humor ou pela sátira, mas pela distorção ou visão superficial da realidade religiosa e teológica que identifico em muitas sátiras deste tipo.

    «Quanto à sátira não ficar bem, Kierkegaard dir-lhe-ia que a preocupação com o que fica bem ou mal impede que sejamos autênticos»

    Ludwig, não me interprete mal. A sátira, e em geral o humor, são parte do sal da vida. Não imagino uma vida sem ironia, sem humor, sem sátira, mesmo da ácida. Simultaneamente, preocupo-me quando, sob a sátira, se pretende passar uma ideia errada. Quando estamos todos de acordo sobre uma ideia, a sátira é inofensiva. Quando há uma clivagem ateu/crente, evidentemente, a sátira pode não ser inofensiva, uma vez que existem visões contraditórias do fenómeno que se satiriza.

    «Na Blinologia tentei satirizar duas contradições ou conflitos. Por um lado a contradição entre a tradição escolástica tomista, em que a teologia era uma filosofia natural (uma ciência de deus), com provas e tudo, e a posição moderna (que o Bernardo aqui defendeu várias vezes) do catolicismo como uma visão do mundo para além do conhecimento lógico-empírico.»

    Era aqui que eu queria chegar.
    Discordo da sua visão.
    E explico-me brevemente porquê.
    Peço apenas que considere que, nas minhas observações sobre Teologia, eu seria capaz de encontrar observações análogas em muitas situações noutras crenças. Considero que o Homem crente tem reagido de forma diferente em locais e alturas diferentes a uma mesma verdade transcendente. O "revelatum", quando surge, é para todos! Grande parte da minha fé está fortalecida pela clara constatação de estruturas intelectuais comuns em várias crenças radicalmente separadas no tempo e no espaço e sem contactos históricos ou transferências de ideias que sejam conhecidas.

    A Teologia cristã assenta no "revelatum", na ideia de que Deus se revela, se manifesta. Primeiro com o Antigo Testamento, e depois, com a vida de Jesus Cristo, com o Novo Testamento (testemunho da vida de Cristo), o teólogo cristão não pode perder de vista o contacto primevo com esta informação que ele crê revelada.

    S. Tomás teve a particularidade notável de procurar uma síntese intelectual. De modo análogo aos físicos, que procuram hoje uma teoria que unifique as forças electromagnética, forte, fraca e gravítica, S. Tomás procurava justificar intelectualmente que a mesma Verdade que iluminou a patrística cristã também teria, por força, que ter iluminado o colosso intelectual que foi a Filosofia grega.
    S. Tomás procurava entender como o mesmo Espírito Santo que inspirou a revelação cristã poderia explicar o que de verdadeiro existe nas doutrinas de Aristóteles. Porquê Aristóteles? Porque foi o maior de todos. Foi o culminar de uma tríade ímpar: Sócrates, Platão e ele mesmo, o estagirita Aristóteles.
    Um pequeno "à parte", Aristóteles foi professor de Alexandre, o Grande, e há supostos "acasos" que não são assim tão fortuitos como isso...
    A admiração de S. Tomás por Aristóteles era imensa, e o aquinate queria encontrar uma base comum tanto para a Teologia como para a Filosofia e para todas as Ciências tratadas por Aristóteles, ele que foi o criador de muitas delas.
    A ideia era excelente, convenhamos, juntar o poder do "revelatum" cristão ao poder do colosso intelectual aristotélico.
    Por isso, discordo de si quando afirma que a escolástica, iniciada por S. Tomás, que a formalizou como uma "ciência de Deus", esteja em contradição com a visão do mundo de que eu falava, uma visão transcendente e supra-empírica.

    Estamos no cerne do que eu penso ser um equívoco seu.
    A "Summa Theologica" é uma obra formal, discursiva, feita para ser assimilada racionalmente. Contudo, a essência do tema tratado é supra-racional. Por necessidade comunicativa, a "Summa" é formalizada textualmente e é verbalizada. Mas S. Tomás não tinha a menor das dúvidas de que existira todo um "real" para lá da sua formalização teológica.
    A Teologia é uma ciência bem diferente de todas as outras pelo seu carácter "metafísico". A palavra "metafísica", que ganhou amplo significado com a obra homónima de Aristóteles, designa um conceito transversal a todas as culturas humanas. A metafísica hindu, por exemplo, chama-se "Vedanta", apesar de todas as diferenças formais entre o Vedanta e a metafísica cristã. Em bom rigor, estas diferenças formais obrigariam a não usar o termo "teologia" para falar sobre Vedanta, por exemplo. A palavra "metafísica" é mais neutra, pelo facto de que designa apenas o "sobrenatural", o que está acima do Mundo Natural.
    S. Tomás não discordaria da visão cristã do Mundo que o Ludwig chamou de "moderna" (não sei porquê!), pelo facto de que essa mesma visão que eu dei deve, e muito, à obra de S. Tomás, para mim o maior teólogo de sempre.

    Em suma, o facto de a Teologia ser uma ciência lógica e argumentativa em nada diminui o facto de que o "revelatum" cristão abre as portas para uma metafísica muito, mas muito mais ampla que a pura formulação teológica, que por definição, tem que ser verbalizada e com isso perder universalidade. A experiência mística cristã, por exemplo, que encontra certas analogias em determinados aspectos do sufismo islâmico, e em menor grau, no budismo, é algo que transcende a formulação verbal do teólogo. Por necessidade, a verdadeira experiência mística não pode gerar contradição teológica, mas se o fizer, essa contradição será culpa da teologia e não do verdadeiro místico.
    Há bons exemplos desta dependência da teologia face à mística e ao "revelatum": S. Paulo formulou (não a criou, apenas lhe deu uma forma verbal) uma doutrina teológica com base na sua experiência mística e no "revelatum" crístico.
    Veja então, Ludwig, que como a Teologia é sempre posterior, em termos causais, à revelação propriamente dita, e isto porque é uma redução de uma realidade transcendente à forma verbal, então não é possível que o Ludwig acredite que S. Tomás teria ignorado este facto, e teria julgado estar a obscurecer ou fazer desaparecer o transcendente devido à sua "Summa" e à escolástica por ele iniciada.

    «Por outro lado o conflito entre uma tradicão cheia de superstições e mitos e uma tentativa de os interpretar à maneira moderna inventando-lhes um significado profundo.»

    De novo, estamos em profundo desacordo. Em qualquer época ou lugar, as diferenças intelectuais entre os homens explicam que existam pessoas intelectualmente capazes de compreender uma revelação e de a formularizar doutrinalmente, e que ao mesmo tempo existam homens vulgares e ignorantes. Ao tempo do lendário Çankara (não uma pessoa em concreto, mas uma escola), altura em que se formulou o Vedanta hindu, que é a metafisica dos hindus, existiam certamente pessoas supersticiosas na Índia!!
    Mesmo à porta do Templo, escassos metros podem separar o guru do pedinte ignorante!
    Na Europa medieval, o colosso intelectual de S. Tomás poderia estar separado de escassos metros de um camponês analfabeto e grunho!
    O primeiro seria o teólogo que foi, e o segundo seria, com grande probabilidade, cristão, mas teria grande parte da sua crença pouco intelectualizada e pouco estudada. A superstição surge quando acreditamos em algo sem compreendermos porquê.
    Por isso, é errado ter uma visão, que no limite é marxista, da História que nos faz pensar que no passado, a intelectualidade era supersticiosa, e que hoje é mais profunda e sofisticada.
    Isso é falso!
    Aliás, eu pretendo o contrário! O facto de que a "Summa Theologica" de S. Tomás era um manual para estudantes (jovens), dá que pensar, pelo facto de que hoje são bem poucos aqueles que a sabem ler e compreender!
    Em matéria de metafísica, ou se quiseremos restringir-nos ao domínio cristão, em matéria de Teologia, eu não duvido de que regredimos, pelo facto de que o século XX é um circo completo das mais díspares variedades teológicas: os teólogos cristãos do século XX (e não apenas os protestantes, mas todos em geral) nunca antes tinham sido tantas coisas menos cristãos. Tivemos e temos teólogos marxistas, teólogos hegelianos, teólogos schopenauerianos, teólogos kantianos, e a lista é interminável. S. Tomás, pela perenialidade do seu legado, bem poderia ser o ponto de partida e de chegada para qualquer teólogo moderno.

    Em suma, a superstição religiosa e a erudição religiosa podem existir em crentes ignorantes (primeiro caso) e crentes cultos (segundo caso). Sempre tem sido assim, e acho que é pouco científico, em termos puramente históricos, procurar usar sempre a maldita superstição moderna do Progresso, que teima em ver progressos em tudo. Há progressos numas áreas e retrocessos noutras. Uma elementar consideração da necessidade de equilíbrio entre forças poderia fazer-nos ver que a visão histórica de um equilíbrio entre progressos e retrocessos é bem mais sensata do que a tese marxista do Progresso imparável em todas as frentes.
    Não é correcto tratarmos os teólogos de antigamente como supersticiosos. Em bom rigor, considero que hoje em dia, há poucos intelectos tão ginasticados como o de S. Tomás, e isso para mim é mais um sinal dos tempos. Não é à toa que os Hindus chamam aos nossos tempos "Kali Yuga" ("Idade Escura"), algo análogo à divisão em idades da Antiguidade Clássica, que previa para os nossos tempos um escurecimento intelectual.

    Poderia ainda tentar explicar porque razão o cristianismo propõe uma salvação igualmente salvífica, perdoe o pleonasmo, tanto para o crente ignorante como para o crente culto, mas isso levava-nos demasiado longe. Fica para outra altura!

    «Se a sátira falhou por ignorância, óptimo, pois ignorância é fácil de corrigir.»

    É esse o espírito!

    «O problema é se a sátira falhou porque não tenho graça -- isso é que já não devo conseguir remediar :)»

    Da parte que me toca, eu achei a sátira engraçada. Em certo sentido, eu divirto-me a ridicularizar o excesso de terminologia que se encontra em qualquer área do saber. A terminologia faz falta, mas às vezes, é tão pesada e que nos faz pensar em satirizá-la!
    Mas numa coisa estamos de acordo: a falta de sentido de humor é fatal!
    Um abraço,

    Bernardo

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  11. Ludwig,

    Ao reler o meu comentário, hábito que tenho para procurar gralhas, reparei que, sem querer, poderei não ter respondido bem à sua objecção.

    Para já, queria deixar o próprio S. Tomás falar acerca da Teologia e da sua relação com as outras Ciências:
    http://www.newadvent.org/summa/1001.htm#5

    Sobre a questão das "provas"...
    De facto, a Suma Teológica traz consigo um conjunto de argumentos para a existência de Deus. Outro conjunto de argumentos surge com Santo Anselmo. Por vezes, fala-se das "provas" ontológicas de Santo Anselmo para a existência de Deus.
    Tudo bem, se procurarmos usar a palavra "prova" no sentido que lhe teria dado Santo Anselmo.
    Num comentário anterior, eu explicava, certamente mal, que temos visões diferentes do mundo. O ateu e o crente têm visões radicalmente diferentes, que trazem necessárias consequências para o significado que damos a palavras tão triviais como "prova".
    Pelo facto de que há dificuldades enormes, pelo facto de que a ciência moderna e experimental pós-cartesiana dá à palavra "prova" um significado bem diferente, eu não gosto de falar em "provas" de Santo Anselmo, ou "provas" de S. Tomás, mas em "argumentos".

    Tanto Santo Anselmo como S. Tomás não teriam quaisquer dificuldades em ver que os seus argumentos não são "provas científicas no sentido moderno", pelo facto de que eles nunca partilhariam da ideia de que o real é todo ele empírico, e que tudo o que é real deveria poder ser provado empiricamente.

    Assim, torna-se, espero eu, bastante óbvio que eu partilho da sólida argumentação de ambos para a existência de Deus.

    Gosto do argumento antrópico, que pelo facto de a realidade ser inteligível por seres inteligentes como o Homem, deduz que existirá um Intelecto que sustenta ontologicamente toda a realidade, sem o qual esta não seria inteligível.

    Aqui fica um bom texto sobre os argumentos ontológicos:

    http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/

    Um abraço,

    Bernardo

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  12. Caro Bernardo,

    Concordo que tanto Tomás de Aquinas como os teólogos cristãos modernos acreditam numa realidade para além deste mundo material. Mas há uma diferença nas razões pelas quais o fazem.

    O Bernardo sugere que Tomás fez a síntese da filosofia Aristotélica com a teologia Cristã, mas parece-me que, para Tomás, Aristóteles sempre encaixou na teologia Cristã. Não houve uma de síntese de opostos, como na dialéctica de Hegel, mas sim uma defesa de Aristóteles, interpretando-o para mostrar aos Cristãos que a “dupla verdade” dos averroistas era desnecessária. Isto porque para Tomás a existência do seu deus assentava em três sólidos pilares: a razão, a observação, e a fé. Na “Sumna contra gentiles” é evidente que não se trata apenas de uma questão de fé. Tomás propõe que a existência desse deus pode ser reconhecida pela fé, que é o que fazem os mais simples de espírito, mas também pode ser provada pela razão natural e inferida pelos efeitos que esse deus tem no mundo.

    A teologia moderna (minimamente coerente) assenta apenas no pilar da fé. Gradualmente os outros dois foram se degradando. Não há um momento histórico bem definido, mas podemos apontar a “hora da morte” do pilar da razão para William of Occam, dois séculos depois de Tomás, e a do pilar da observação com Hume, no século XXVIII. Não se pode provar esse deus pela razão, nem se pode inferir a sua existência pela observação do mundo que nos rodeia. A teologia moderna assenta apenas no tal “revelatum”, ou seja, na fé.

    E este é de longe o pilar mais fraco. É circular, auto contido, o exemplo paradigmático da falácia de petição de princípio. Ao longo de séculos o aumento gradual da compreensão, o avanço da filosofia e a origem da ciência como actividade autónoma foram deixando para trás a teologia, que esteve sempre encalhada naquelas premissas que nunca pode questionar. É esse o conflito. A razão e a observação mostram-nos um universo indiferente, de processos mecanísticos, sem propósito ou preocupação com a nossa existência. A fé Cristã exige algo de completamente diferente, e coloca-se à parte. Mas ao mesmo tempo anseia pelo conforto e legitimidade da razão e da observação.

    Só um comentário pessoal: eu tive um semestre de Kierkegaard e dois de Paul Ricoeur. Não me fez teólogo, mas deu-me uma boa ideia do contorcionismo mental a que obriga esta impossibilidade de conciliar o seu “revelatum” com a observação, a razão, ou mesmo o bom senso...

    Quanto à sua proposta que o “revelatum” é essencialmente igual para todos os crentes, penso que o Bernardo está enganado. Mas vou escrever um post sobre isso quando tiver tempo.

    Um abraço,
    Ludwig

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  13. Ludwig,

    Não quero, de forma alguma, insultar os seus conhecimentos de teologia.

    «Tomás propõe que a existência desse deus pode ser reconhecida pela fé, que é o que fazem os mais simples de espírito, mas também pode ser provada pela razão natural e inferida pelos efeitos que esse deus tem no mundo.»

    Esta frase, com a qual concordo plenamente, como não podia deixar de ser, mostra bem que o Ludwig mexe-se à vontade nestes temas.

    «A teologia moderna (minimamente coerente) assenta apenas no pilar da fé.»

    Já entendi que, para o Ludwig, isso sucede porque o pilar da razão se erodiu graças aos avanços da ciência experimental.
    Para mim, ele erodiu-se por culpa da erosão intelectual do mundo ocidental. É porque se perdeu a intelectualidade viva de São Tomás.
    O Mundo que São Tomás observava é o mesmo que observamos hoje, mas os nossos preconceitos intelectuais fazem-nos vacilar.
    A telogia de hoje, em grande medida, é mais supersticiosa que a teologia tomista.
    Basta consultar qualquer currículo de uma faculdade de Teologia... Infelizmente, até basta deixar falar um reitor de uma faculdade de Teologia para vermos esta degradação em acção.

    «Gradualmente os outros dois foram se degradando. Não há um momento histórico bem definido, mas podemos apontar a “hora da morte” do pilar da razão para William of Occam, dois séculos depois de Tomás, e a do pilar da observação com Hume, no século XXVIII. Não se pode provar esse deus pela razão, nem se pode inferir a sua existência pela observação do mundo que nos rodeia. A teologia moderna assenta apenas no tal “revelatum”, ou seja, na fé.»

    Aqui está o cerne do nosso desacordo. Eu não duvido de que se possa argumentar racionalmente acerca da existência de Deus. O debate acerca do argumento ontológico não está morto, apesar de hoje em dia estar desprezado.
    E vigora o que lhe disse atrás: apesar do conceito de "prova", hoje em dia, ter um âmbito exclusivamente empírico, tornando-se inútil para conceitos supra-empíricos, isso não invalida a sólida argumentação ontológica produzida por intelectuais crentes nos últimos séculos.
    Para além de que eu também advogo que existe uma boa dose de inteligibilidade do divino na pura observação do Mundo, apesar de eu achar que, no limite, é no nosso Intelecto e na introspecção que encontramos Deus.

    Um abraço,

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  14. Ludwig,

    Até me envergonho de não ter dito o óbvio: para o cristão, é a observação do mundo, mais concretamente o legado apostólico acerca da vida de Jesus Cristo, que dá o fundamento para a sua fé.
    Eu acredito no testemunho fielmente transmitido pelos apóstolos.
    Eles viram a morte e ressurreição de Cristo, e eu acredito no testemunho deles. Se Cristo não ressuscitou, a nossa fé é vã.
    Por isso, note-se que apesar de eu considerar que é na pura reflexão intelectual que está o encontro com Deus, a verdade é que essa reflexão nunca é verdadeiramente pura porque parte de experiências e de vivências. Por essa razão eu e um hindu temos ideias diferentes acerca de um (necessariamente) mesmo Deus.
    Há ainda um facto curioso a notar: quando Cristo expirou, diz o Evangelho que o véu do Templo se fendeu em duas partes. Ou seja, o Santo dos Santos, outrora oculto para todos excepto para o Sumo Sacerdote que nele entrava sem vestes, na mais plena escuridão, de repente torna-se visível.
    Repare o poderoso simbolismo: a morte de Cristo rasga o véu que separa a revelação do comum dos mortais. A revelação, com a morte de Cristo, torna-se evidente para todos, mesmo para os ignorantes ou menos dotados intelectualmente.
    Tanto o ignorante como o culto podem ser salvos, apesar de seguirem caminhos de salvação diferente. Mas note, Ludwig, que o "ignorante" pode ser muito ignorante em termos humanos, mas se sabe acerca da revelação, sabe o que de mais importante há para saber!
    Estas considerações levaríam-nos a discutir a "pobreza de espírito", algo que tem mais a ver com humildade gnoseológica do que propriamente a ver com imbecilidade ou atraso mental...
    Um abraço,

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  15. Uma falácia é um erro de raciocínio, uma inferência incorrecta. Não é uma opinião da qual discordamos. Não é falácia ser do Benfica ou do Sporting, nem considerar o embrião uma pessoa ou uma migalha de carne. Nem é a omissão de dados. Dizer que tenho razões para o que faço e não as enumerar enfraquece o argumento, mas não é um erro de raciocínio. Nem sequer é falácia partir de falsas premissas: “Como chove pianos acho melhor ir de Metro”. A premissa é falsa, e por isso podemos discordar da conclusão, mas o raciocínio é correcto: se de facto chover pianos é boa ideia ir de Metro. Vejamos algumas falácias comuns.

    Apelo à crença ou prática comum. Nesta falácia justifica-se uma crença ou prática por ser aceite por muitos. Mas mesmo que seja verdade que é aceite por muitos não se justifica concluir que é crença verdadeira ou prática adequada. A conclusão não segue das premissas, pelo que o raciocínio é falacioso. Exemplos: Tanta gente acredita em deuses e no sobrenatural, por isso deve haver aí algo de verdade. Tantos países no Ocidente legalizaram o aborto, por isso devíamos fazer o mesmo.

    Na petição de príncipio, ou raciocínio circular, as premissas dependem da conclusão. Por exemplo: Eu sei que Deus existe porque

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  16. Quanto à sátira não ficar bem, Kierkegaard dir-lhe-ia que a preocupação com o que fica bem ou mal impede que sejamos autênticos, e para a sátira e a troça ele nunca se fazia rogado (mas se calhar só contam os teólogos católicos :)

    Na Blinologia tentei satirizar duas contradições ou conflitos. Por um lado a contradição entre a tradição escolástica tomista, em que a teologia era uma filosofia natural (uma ciência de deus), com provas e tudo, e a posição moderna (que o Bernardo aqui defendeu várias vezes) do catolicismo como uma visão do mundo para além do conhecimento lógico-empírico. Por outro lado o conflito entre uma tradicão cheia de superstições e mitos e uma tentativa de os interpretar à maneira moderna inventando-lhes um significado profundo.

    Se a sátira falhou por ignorância, óptimo, pois ignorância é fácil de corrigir. O problema é se a sátira falhou porque não tenho graça

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