domingo, dezembro 24, 2006

Estatísticas...

No Diário Ateísta a Palmira faz uma análise reveladora das estatísticas do aborto. Primeiro, dá o exemplo de França (1), que «demonstra inequivocamente que a legalização/despenalização não conduz, como pretendem muitos, a um aumento do número de abortos realizados». De facto, a selecção cuidada das estimativas e período representado pode reduzir o equivoco, mas o gráfico na wikipedia (2) não justifica uma conclusão tão clara:

Evolution du devenir des grossesses en France (hors fausse-couche précoce) entre 1965 et 2005.

Escolhendo as estimativas inferiores do aborto ilegal (a encarnado) vê-se um grande aumento com a legalização, escolhendo as superiores fica «inequivocamente» demonstrado que não se passou nada. E a escolha do país também ajuda. Por exemplo, se escolhermos os EUA (3) o resultado é o oposto (e ainda mais inequívoco):

Chart source: Alan Guttmacher Institute, 1996

Mais interessante é a comparação dos países que permitem e proíbem o aborto. A Palmira mostra que o aborto em países da América Latina como a Nicarágua e Bolívia é «francamente superior, com as excepções já referidas por anormalmente altas, à que se verifica em países onde este é permitido!» (4). E é fácil ver que é verdade porque acaba com um ponto de exclamação.

O interessante são as tais excepções «anormalmente altas», como a Europa de Leste, Vietname, e Cuba, que são excluídos pelo difícil acesso a contraceptivos fiáveis e educação sexual inadequada (5). Ou seja, que são como a Nicarágua e a Bolívia. Mas se compararmos a Nicarágua com Cuba o aborto é duas vezes mais frequente onde é legal, por isso dá mais jeito comparar com os países ricos da Europa para não estragar o resultado «francamente superior». E eu próprio quando penso na Nicarágua e na Bolívia penso logo na Bélgica e na Holanda também, por serem países tão parecidos em tudo excepto na penalização do aborto.

As estimativas do aborto ilegal são pouco fiáveis, a evolução após a legalização varia muito conforme o país, e nos países onde o aborto é legal a taxa anual varia desde as 5 mulheres por 1000 até às 90 ou mais. Factores económicos, sociais, e culturais são extremamente importantes, difíceis de quantificar, e quase impossíveis de prever. Estas estatísticas são uma mancha de Rorschach, onde cada um vê o que quer, e não são uma base fiável para uma decisão.

Eu prevejo que vai acontecer em Portugal o que aconteceu nos EUA, se ganhar o sim. Os argumentos principais do sim em Portugal são que o Estado não deve intervir e que não se pode impedir o aborto. Isto é muito mais próximo do espírito de Roe vs. Wade que da abordagem da Europa do Norte, onde o aborto é considerado um problema social a ser atacado de forma mais eficaz que com mera legislação. Mas suspeito que esta minha opinião seja mais um exemplo de belief overkill, a tendência que temos de alinhar crenças e opiniões que deviam ser independentes. Objectivamente, não posso prever o que vai acontecer se ganhar o sim, o que é mais uma razão para votar não. Na política como na medicina, o primeiro cuidado devia ser não fazer asneira.

Já é mau que se decida por maioria quem tem ou não direito à vida. Pior ainda é o voto depender duma análise complexa de dados incompletos e pouco fiáveis. Tenciono votar não porque nem todas as razões para abortar até às 10 semanas são aceitáveis, mas acima de tudo vou votar contra o referendo em si. Uma decisão tão complexa e com consequências tão sérias tem que ser tomada de uma forma mais responsável.

1- Palmira Silva, 21-12-06, O aborto em França e as práticas actuais
2- Interruption volontaire de grossesse
3- Abortion in the United States
4- Palmira Silva, 23-12-06, O aborto no Mundo e as práticas actuais - III
5- Palmira Silva, 23-12-06, O aborto no Mundo e as práticas actuais - II
6-http://www.euvotosim.org/

4 comentários:

  1. Ludwig,

    Não quero exagerar com as palavras que gasto com a Palmira, mas a cada dia que passa mais me convenço de que a fúria enorme que ela tem lhe tolda muitas vezes o raciocínio.
    Eu não quero pensar que ela é desonesta conscientemente.
    Quero apenas pensar que ela deixa muitas vezes que a emoção se apodere de uma mente que deveria estar habituada a pensar de forma racional.
    Posto isto, e deixando a Palmira de lado, o que de mais interessante noto no seu texto é a comparação que faz com o caso Roe vs. Wade.
    É, para mim, muito evidente que estamos a viver 1973 outra vez, mas agora aqui em Portugal. Os portugueses são lentos a importar as burradas dos outros.
    Roe vs. Wade está hoje a ser francamente questionado nos EUA, esse caso que foi afinal a base legal para a tendência liberal em matérias de aborto, não só nos EUA como em vários outros países.
    O que mais me choca é que já se passaram 30 anos dessa grande asneira jurídica, e ainda vemos o mesmo argumentário caduco a ser esgrimido pelos adeptos do sim!
    E eles vendem-nos essa experiência norte-americana falhada, velha de 30 anos, como se fosse "progresso" e "modernidade"...

    Será que vamos demorar mais 34 anos para nos apercebermos da asneira que iremos cometer a 11 de Fevereiro se vencer o "sim"?

    Em 1973, o caso Roe vs. Wade abriu uma brecha na muralha do bom senso que a fez colapsar.
    34 anos depois, Portugal prepara-se para imitar essa decisão norte-americana numa altura em que os próprios procuram corrigi-la.

    Se em 2007, os portugueses aprovarem o aborto, o que planeiam fazer em 2041? Imitar o que os norte-americanos estão a fazer agora?

    Mas, Ludwig, se perguntar à Palmira porque é que muitos norte-americanos estão arrependidos de Roe vs. Wade, sabe o que é que ela vai responder? Vai dizer que a culpa é do Bush e da sua fanática trupe metodista, é claro!
    Bush consegue fazer lavagens cerebrais através de ondas rádio espalhadas pela CIA para fazer os norte-americanos começar a contestar, em vários Estados, as leis liberais acerca do aborto.

    Um abraço,

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  2. Por muita gente, porque não é um problema. São uma data deles. E nem têm muito a ver com a lei.

    Como distribuir os recursos limitados do sistema de saúde entre as mulheres que querem ter filhos e as que querem abortar. Como educar melhor os jovens para evitar a gravidez indesejada. Como apoiar quem quer abortar por falta de dinheiro (ver-se obrigada a abortar por ser pobre não é um problema que se resolva legalizando o aborto...). O que fazer com as mulheres que já vão no 10º aborto. Como reduzir a discriminação no emprego. E assim por diante.

    O aborto não é propriamente o problema, mas um sintoma de muitos problemas diferentes, nenhum dos quais precisa desta alteração à lei para se resolver. A única excepção pode ser a das condições médicas do aborto, mas a lei vigente dá bastante margem para ajustar os critérios conforme necessário:

    «1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em
    estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher
    grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

    a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo
    ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

    b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou
    para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de
    gravidez;»

    Especificando adequadamente os critérios para uma "lesão grave e duradoura" da saúde psíquica pode-se canalizar recursos médicos para ajudar as que precisam sem ter que oferecer uma interevenção cirurgica por opção do paciente. E se for preciso alterar a lei para se poder implmententar um programa concreto, altera-se -- como se faz normalmente.

    Este referendo é o contrário. É como nos EUA: primeiro altera-se a lei, depois logo se vê o que se faz com isso. Como jogada política parece bom, mas para resolver os problemas por trás do aborto é asneira.

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  3. Neste mundo o corpo de cada ser humano (e tudo o que ele encerra) é o único 'bem' de cada pessoa. É o nosso reino e é o único que é garantido aconteça o que aoontecer (até certo ponto, obviamente).
    Por isso pergunto: como é que alguém, ainda que em grupo, pode ter o direito de decidir sobre o que é outra pessoa??

    Não consigo perceber se não vive neste país (leia-se mundo) ou se é desprovido também de capacidade lógica. Até foi capaz de levantar algumas questões interessantes, mas que raio de argumento é "Tenciono votar não porque nem todas as razões para abortar até às 10 semanas são aceitáveis," - mas quem é você para decidir o que é ou não aceitável na vida das outras pessoas?!? E pior: "acima de tudo vou votar contra o referendo em si" - que curioso, no país onde vivo e onde votei sobre DESPENALIZAÇÃO do aborto, não houve nenhum tipo de votação a favor/contra referendo nenhum! No máximo podia argumentar que votaria em branco por ser contra o referendo, mas não...
    Felizmente existe número suficiente de pessoas realistas e humildes para que Portugal não seja mais a vergonha hipócrita e fascista na Europa.

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  4. Cara Dona,

    é precisamente por não podermos decidir pela vida e pelo corpo de outras pessoas que não podemos despenalizar a morte deliberada de fetos com a desculpa que decidimos não serem pessoas.

    E votar contra um referendo não era votar em branco, mas votar de forma a que o referendo não alterasse a lei.

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