terça-feira, outubro 17, 2006

A Fotocópia

De volta aos direitos de autor, desta vez partindo de um comentário ao meu post de Setembro Direitos, cópias e computadores:

«Curiosa argumentação. Será que podemos pela mesma ordem de ideias dizer que a fotocópia integral de "Romeu e Julieta" é uma outra forma de representação e não o original?» (Rui Meleiro)

Sim, a fotocópia não é o original, mas dá-nos um bom exemplo dos problemas de estender ao conteúdo digital o mesmo tipo de protecção conferida a bens materiais.

Em primeiro lugar, a restrição do direito de criar fotocópias visa regular a prática comercial. Uma editora não pode simplesmente fotocopiar livros de outra e vendê-los. Mas não se processa os miúdos que querem jogar jogos de role play e não têm dinheiro para comprar os manuais, ou os estudantes universitários que estudam por fotocópias dos livros da biblioteca, ou os investigadores que fotocopiam artigos porque não estão para comprar uma revista só por três ou quatro páginas. O objectivo desta restrição é regular a concorrência e dar algumas garantias de retorno para quem investe na edição de um livro, e não o de regular o que cada um faz como cidadão privado.

Em segundo lugar, esta restrição depende da noção de cópia, uma noção muito mais específica que a de representação. Uma fotocópia é uma forma de representar a informação contida num desenho do Rato Mickey. Outra forma é definir por equações as formar geométricas que compõem o Rato Mickey (elipses, e pouco mais, nem é complicado). A primeira é uma cópia, e está coberta pelos direitos de autor. Mas um conjunto de equações não é uma cópia do Rato Mickey, e não viola direitos de autor. Este tipo de codificação é muito usado em conteúdo digital. Um ficheiro WMF codifica imagens desta forma, e um ficheiro MP3 é um conjunto de parâmetros para as equações que definem o som. Qualquer ficheiro comprimido usa este tipo de codificação para transformar uma sequência de zeros e uns numa outra sequência mais curta que pode ser convertida de novo no original.

Finalmente, a questão ética, a tal ideia que o download é roubo. A fotocópia também ilustra bem este erro: fotocopiar não é o mesmo que o roubar. É certo que se fotocopio um livro em vez de o comprar estou a privar o autor e editor da remuneração pelo seu trabalho. Mas o mesmo se passa quando empresto os livros a familiares e amigos, ou quando compro livros em segunda mão. Não comprar um livro porque já o li não é de forma nenhuma o mesmo que roubar.

Este direito de exclusividade de cópia não tem fundamento ético. É apenas um incentivo ao investimento no fabrico e distribuição de bens como livros, discos ou filmes. Nem sequer incentiva a criatividade, e matemáticos, professores, ou investigadores são igualmente criativos sem depender deste tipo de protecção. Por isso temos que pesar bem os custos e os benefícios desta forma de subsidiar certas industrias. Proibir a venda não autorizada de fotocópias é uma forma razoável de proteger a remuneração do investidor. Proibir a venda de livros em segunda mão ou prender todos os estudantes universitários não seria razoável, pois o custo social é bem maior que o benefício.

Proibir a distribuição gratuita de toda e qualquer sequência de números que codifique uma obra protegida não só é transformar o direito de autor numa forma de censura, como é dar um tiro no pé. É contrário aos interesses da sociedade sacrificar uma forma de distribuição gratuita para proteger um modelo obsoleto, ineficiente e caro de fazer chegar as obras ao consumidor. Então como remunerar os artistas? Da mesma forma que os matemáticos, os professores, os investigadores, e tantos outros profissionais cuja criatividade não fica aquém dos cantores pimba e afins, e que são pagos pelo trabalho que fazem.

Maria Schneider é um bom exemplo de um modelo alternativo. Os custos de gravação e produção são pagos pelas encomendas de alguns fans que compram o disco antes de ser editado, e que assim participam no processo criativo. Eliminando as empresas discográficas como intermediários, a autora lucra em poucos milhares de exemplares o que ganharia vendendo centenas de milhares por intermédio duma discográfica. Nem sequer tem que se preocupar com protecções de cópia, pois a disseminação da sua obra por potenciais fans apenas aumenta a sua audiência e o seu sucesso.

11 comentários:

  1. O padrão de ondas sonoras é uma cópia, mas a forma como é gerado não é irrelevante. Se eu o gerar tocando um instrumento, por exemplo, não há problema desde que não o faça em público.

    O ponto principal é que não estão a processar as pessoas pelas ondas sonoras, mas por distribuir sequências de números. Isto é relevante porque qualquer sequência de numeros pode ser convertida em qualquer padrão de ondas sonoras (ou qualquer outra coisa), pois a codificação digital é totalmente arbitrária (basta ver o grande numero de formatos).

    É de notar que ninguém especifica quais as sequências de numeros protegidas e quais as que podemos usar livremente...

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  2. O problema é extender a protecção à ideia. As ideias são coisas livres, de todos. Podemos pensar no que quisermos, e podemos escrever os nossos pensamentos, e expressar ideias. Desde a origem que os direitos de autor focaram formas específicas de expressar ideias e não ideias em si. É por isso que descobertas científicas e fórmulas matemáticas nunca foram (nem são) cobertas por direitos de autor.

    Quanto à conversão de sequências de numeros, funciona exactamente assim na prática. A maioria dos protocolos p2p usa compressão e encriptação de dados, ou seja a sequências transmitida é de facto arbitrariamente diferente da sequências no emissor e receptor. Não é mera retórica, é a base de toda a transmissão segura na internet.

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  3. Ooops. Por engano apaguei o segundo comentário de kkk, que era:

    "O mesmo se aplica a outro tipo de cópias. "

    Peço desculpa pelo erro, mas não há maneira de o repôr...

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  4. Se eu tiver uma ideia que tu desconheces, posso pedir-te dinheiro em troca de revelar a minha ideia.

    Mas uma vez que te transmito a minha ideia e tu ficas com uma ideia igual à minha, não te posso proibir de pensar nela às terças feiras, nem proibir de a contares aos teus filhos, ou seja o que for.

    As minhas ideias são minhas, mas as tuas, mesmo que iguais às minhas, são tuas. Se não for assim é censura.

    Quanto à codificação, estás a confundir cópia com descrição. Um texto como "três circulos pretos, formando um triângulo, dois dos quais ligeiramente mais pequenos..." etc não é uma cópia dum desenho do rato mickey. É uma descrição, e não viola direitos de autor.

    O mesmo se deveria aplicar a um conjunto de equações trigonométricas descrevendo ondas sonoras.

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  5. O primeiro ponto está errado.

    Se a minha ideia for algo como uma demonstração matemática ou uma teoria científica, não posso restringir o seu uso de forma nenhuma. Qualquer pessoa que saiba da ideia pode fazer o que quiser com ela.

    Se a minha ideia tiver aplicação prática (for patenteável) posso impor restrições quanto a aplicações comerciais da ideia registando a patente. Mas registar a patente torna a ideia em si dominio público, e todos terão acesso a ela e poderão fazer o que quiserem com ela desde que não interfira na exploração comercial (e durante poucos anos).

    Só se a minha ideia não tiver aplicação prática e for estritamente artistica ou decorativa é que a lei me dá mais alguns direitos sobre ela, mas mesmo assim limitados. Posso impedir a reprodução e algumas formas de obra derivada, mas mesmo essas nem todas (a sátira e a critica não são consideradas violações). E não posso impor restrições que violem os direitos dos outros, como a liberdade de expressão, ou que os discriminem de forma ilicita (não posso exigir que só mulheres oiçam a minha música).

    A visão que tens desta propriedade de ideias não é correcta.

    E a codificação não é irrelevante porque ideias expressas em dominios diferentes são protegidas de formas diferentes. Uma pintura duma curva sinosoidal é protegida pelos direitos de autor, mas a equação dessa curva não é, e a equação pode ser suficiente para recriar a pintura (a pintura até pode ser feita a partir da equação -- vê por exemplo a proliferação de arte fractal).

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  6. Tu falaste de ideias:
    "Se eu IMPONHO uma condição ao vender uma ideia"

    Isto abrange mais que os direitos de autor, porque as ideias nem são cobertas por direitos de autor (os D.A. apenas cobrem formas de expressão da ideia). E ideias diferentes têm formas de protecção diferentes.

    Para proteger conteudo digital temos duas hipóteses. Uma é tornar as expressões matemáticas algo protegido por D.A., que é o que se passa na prática de momento quando se processa pessoas por partilhar parâmetros de funções (mp3, por exemplo).

    A alternativa é proibir as pessoas de reproduzir músicas se não estiverem autorizadas, mesmo que o façam na privacidade do seu lar. Vamos multar quem canta no duche?

    Qualquer uma destas tem um custo social muito superior ao valor de usar este direito de cópia como incentivo à criatividade.

    E este é outro ponto importante: o D.A. não é um direito intrinseco a quem tem uma ideia, mas um privilégio concedido pela sociedade como incentivo. É fácil de ver isto quando se compara ideias de diferentes tipos. Todo o conhecimento científico é livre. Uma cura para o cancro tem uma patente por dez ou quinze anos. Uma canção do Quim Barreiros será protegida até 70 anos após a sua morte. Claramente não se trata do mérito da ideia ou do direito de quem a teve, mas sim duma forma de subsidiar e incentivar certas criações duma forma que beneficie a sociedade.

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  7. A legislação Portuguesa sobre direitos de autor diz:


    «ARTIGO 1º
    Definição

    1- Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores.
    2- As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas não são, por si só e enquanto tais, protegidos nos termos deste Código.»

    As ideias não são protegidas pelos direitos de autor. O que é protegido, como leste na wikipédia, é a obra, e obra é uma expressão material específica duma ideia, e não a ideia em si.

    É esta diferença que está a ser eliminada no dominio digital, em que se controla a ideia (a informação) sob toda e qualquer forma de expressão em vez de se aplicar a lei, como se devia, a uma expressão concreta.

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  8. Continuas a não considerar os problema principais.

    Um é que a codificação digital é completamente arbitrária. Para copiar ou traduzir um texto temos um conjunto limitado de alternativas. Há muitos textos que não são cópias uns dos outros.

    Mas uma sequência de números pode ser descodificada de qualquer maneira que se quiser, e pode ser convertida em qualquer outra sequência. "Banana" não é uma cópia de "Pera", mas 23 é uma possível codificação de 48.

    Assim temos o primeiro problema: é impossível (nem faz sentidi) especificar quais ficheiros é que codificam qual informação, ou que ficheiros reproduzem a informação dum outro ficheiro. Todos os ficheiros codificam músicas do Quim Barreiros -- basta aplicar o algoritmo certo.

    O outro problema é que os números e as operações algébricas já são de domínio público. Tal como asas obras de Shakespeare, a matemática já é de todos.

    A ideia não é protegida, nem há um direito intrinseco do autor de proteger as suas ideias. Protegemos algumas formas de exprimir uma ideia (a obra artistica, por exemplo) para incentivar a criatividade, mas apenas quando o custo para a sociedade é modesto.

    Proteger o conteudo digital implica censurar a transmissão de ideias sob toda e qualquer forma, e considerar proprietário aquilo que já é de domínio público. Isso é um preço inaceitável só para preservar um modelo de negócio desnecessário e obsoleto.

    Se achas que isto é só demagogia, proponho um problema concreto. Imagina que queremos proteger os teus direitos sobre o primeiro comentário que fizeste aqui ("O método é irrelevante..."). Diz-me exactamente como determinar se uma sequência de bits é ou não uma cópia desse comentário, e como consegues proteger a sua descodificação ou transmissão sem restringires informação de domínio público.

    É um caso simples e específico. Se o resolveres, reconhecerei que tens razão.

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  9. Não podes pensar numa marca no ficheiro que diz qual a codificação sem ter, a priori, uma forma de descodificar essa marca. O ficheiro é só 1010011010010....

    Aí é que está a grande diferença entre o meio digital e o resto. Para textos, quadros, sons, e assim há formas naturais, habituais, de os interpretar. Mas para sequências de bits a interpretação é arbitrária e convencional.

    O teu sistema da marca implica que posso transmitir o teu texto sem violar direitos de autor se omitir a tal marca, ou se usar uma marca diferente. Por exemplo, transmito os códigos ascii do teu texto, mas ponho a marca a dizer que é um mp3. Assim não é cópia do teu texto, mas qualquer pessoa pode trivialmente extrair de lá o teu texto.

    Finalmente, temos no domínio público sequências infinitas não periódicas que contém todas as sequências que quisrmos. Uma representação binária de um número irracional, por exemplo.

    Para veres o problema com esse teu método de marcar a codificação, dá uma olhada aqui no que se pode fazer para ultrapassar a proibição de divulgar o algoritmo DeCSS

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  10. Esse sistema é simples mas impraticável. Exigiria um repositório central de códigos com identificadores únicos para todos os formatos de ficheiro...

    Mas ilustra bem o problema que eu estava a referir. Para proteger as canções do Quim Barreiros todos os dados armazenados digitalmente e todas as transmissões digitais terão que se submeter a um standard fixo e a um policiamento do seu conteúdo. E continuamos com o problema de ter que proibir a transmissão de certos números, ou de certas operações algébricas -- pois nota que não só tens que proibir a transmissão de certas sequências, mas de todos os procediementos que permitam calcular essas sequências.

    Exactamente como eu disse, o preço é alto demais para que se justifique.

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  11. Nasceu o Partido Pirata em Espanha

    http://exameinformatica.clix.pt/noticias/mercados/214648.html



    Maior base de dados científica do país na net

    http://exameinformatica.clix.pt/noticias/internet/214651.html

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