sexta-feira, junho 09, 2006

...e o autor de direito.

Na propaganda que se faz hoje em dia aos direitos de autor, o autor é apresentado como o único responsável e “dono” da sua criação. Mas será que a criação artística é algo tão individual como querem que acreditemos?

Eu sou o autor deste texto, mas não inventei as palavras, nem a gramática, nem as expressões idiomáticas. Vendo bem, quase tudo neste texto é algo que me foi dado pela comunidade em que vivo. A lei consagra-me exclusividade de direitos sobre esta forma particular de exprimir estas ideias, mas parece-me que muito pouco disto é exclusivamente meu.

Imaginem que faço uma escultura na areia numa praia pública, com areia que é de todos, e que ponho uma vedação à volta para que quem quiser ver a escultura tenha que me pagar. É certo que na escultura está algo de exclusivamente meu, da minha criatividade, mas a areia e a praia são de todos. Não é justo eu apropriar-me do que é de todos apenas porque acrescentei um pouco de algo só meu. O mesmo se passa com toda a arte. Há um grande conjunto de obras que é de todos, e nos quais os artistas se baseiam fortemente para criar as suas obras. Daquela praia enorme onde estão todos os textos possíveis, eu apropriei-me duma zona, a que inclui este texto e todas as variantes (e traduções) suficientemente similares para a lei considerar como violações do meu direito de autor. Antes de escrever isto esse espaço era de todos, mas como acrescentei uma pitada da minha criatividade a uma enorme dose do trabalho dos outros, a lei dá-me um bocado da praia só para mim.

Justo? Treta.

Mas talvez necessário. Antes que me acusem de ser comunista, devo esclarecer que isto pode mesmo assim ser boa ideia. Se fosse do interesse de todos incentivar as esculturas na areia, podia ser vantajoso dar aos escultores vantagens legais. Por exemplo, dar-lhes temporariamente o direito exclusivo à exploração comercial da zona da praia onde fizeram a escultura. É isto que fazemos com músicas e textos, mas não com receitas e equações matemáticas, e não digo que seja sempre má ideia.

Mas esta imagem que nos querem impingir, do autor como criador ex nihilo, é treta. A matéria prima da criatividade é a cultura, um bem de todos, e a criação artística é um processo muito mais colectivo que individual (quantos compositores nunca ouviram música?). O que deveria ditar a lei dos direitos de autor é a relação entre os custos e os benefícios para a comunidade e a criatividade artística em geral, e não os benefícios económicos dos detentores de direitos (que normalmente nem são os autores).

O que se passa hoje em dia, graças à distorção destas ideias, é que a lei acaba por prejudicar não só a distribuição de arte e cultura, mas a própria inovação artística. No livro “Copyrights and Copywrongs”, Vaidhyanathan dá vários exemplos disto, um dos quais a musica blues nos EUA. Tradicionalmente, os compositores blues adaptavam as melodias uns dos outros, uma forma de homenagem e de aperfeiçoamento colectivo das obras. Com o aumento de poder das empresas discográficas, esta tradição foi reprimida, ao abrigo da lei.

Isto não é exclusivo dos blues. Outros exemplos mais recentes incluem o sampling e as compilações criadas por DJs, e parece-me que a criatividade musical popular sempre foi fortemente colectiva, com uma grande interacção entre estilos e compositores. As empresas discográficas fizeram fricassé com a galinha dos ovos de ouro quando decidiram apropriar-se de pedaços da musica popular e processar todos que tentem saltar as vedações.

terça-feira, junho 06, 2006

Os direitos do autor...

Bem, de volta a isto... Outra coisa que me chateia nisto da partilha de músicas, processos, e afins, é a forma como nos apresentam os direitos do autor. O chavão é sempre que o autor tem o direito de decidir o destino da sua obra, e este é um direito fundamental que deve ser respeitado.

Treta!

Em 1956, Werner Buchholz inventou a palavra “byte”. Hoje em dia toda a gente a usa mas quase ninguém ouviu falar de Werner Buchholz. Em 1977 Ron Rivest, Adi Shamir e Len Adleman criaram um algoritmo de encriptação, o RSA, que é hoje usado na maior parte das transacções de comércio electrónico. Isto são apenas dois exemplos entre muitos de criações extremamente úteis e populares. Newton inventou o cálculo de integrais, Turing as bases da teoria da computação, sem as equações de Einstein não havia GPS, e assim por diante.

Querem nos fazer crer que o criador duma obra tem um direito fundamental de controlar a obra, que é o dono dessa chamada “propriedade intelectual”. Mas isto é obviamente falso; se a Ágata tem um direito fundamental de cobrar pelo usufruto das músicas que compôs, certamente que criadores como os do parágrafo anterior teriam o mesmo direito. Mas quem acha boa ideia ter que pagar a Werner Buchholz cada vez que dizemos “byte”’?

A realidade é que ninguém pode ser dono de ideias ou categorias. Podemos ser donos de coisas em concreto. Este carro, ou aquele par de calças. Mas não de categorias de coisas como todos os carros ou todos os pares de calças. Palavras como “byte”, músicas ou fórmulas matemáticas, não são coisas concretas. A música dos “Parabéns a você” não é uma coisa da qual se possa ser dono, mas uma categoria, um conjunto de propriedades que pode ser instanciado em muitos objectos ou situações. Pode ser gravado numa cassete, codificado em CD ou mp3, ou maltratado em inúmeras festas de anos.

Esta ideia está bem clara nas palavras dos pioneiros dos direitos de autor. Por exemplo, Thomas Jefferson, numa carta escrita em 1813:

“Se a natureza fez algo menos susceptível de tudo o resto de ser propriedade exclusiva, é a acção do poder pensante chamada ideia[...]. Aquele que recebe de mim uma ideia, recebe instrução sem reduzir a minha; como aquele que acende a sua vela na minha, recebe luz sem me trazer escuridão”.

A justificação para as regalias concedidas pela legislação de direitos de autor está bem clara na constituição dos Estados Unidos, um país pioneiro (para melhor e para pior) nesta área:

“Para promover o Progresso da Ciência e das Artes, concedendo por Tempo limitado aos Autores e Inventores o Direito exclusivo aos seus respectivos Escritos e Descobertas.”

A ideia que a legislação dos direitos de autor protege um direito fundamental dos músicos é treta. Estas leis expressam uma regalia que todos nós, sociedade, concedemos aos autores para incentivar a criação artística e para benefício da sociedade. Não é para benefício dos gestores de direitos.

E parece-me que é altura de rever estas leis. Inicialmente concediam aos autores 14 anos de exclusividade na exploração comercial da sua obra. Isto era um bom incentivo à criação e inovação artística; recompensava o autor e encorajava novas criações. Hoje em dia o prazo é 120 anos em vez de 14, os direitos são direitos sobre a reprodução das obras, quer para fins comerciais quer para outros. E estes direitos são concedidos às companhias que contratam artistas, e incluem o direito de recusar a publicação da obra (mesmo contra a vontade do autor) se tal não estiver de acordo com os interesses comerciais da companhia. Isto não incentiva a criatividade artística. Pelo contrário, parece-me que é um dos factores mais importantes para explicar a crescente crise na industria discográfica.

segunda-feira, junho 05, 2006

E eles não se importam?

Anteontem estávamos a falar dum baptizado de um primo enquanto os meus miúdos brincavam por perto. Mais tarde, um deles veio-me perguntar porque é que os meninos choram nos baptizados, e eu expliquei que se deviam assustar com a água. Os padres deitam água na cabeça dos meninos? Sim. E não se importam?

Esta é uma daquelas perguntas que só uma criança de cinco anos pode fazer. Engasguei-me um bocado, e lá dei uma resposta vaga acerca de tradições e assim, que já nem eu me lembro, e que decerto não satisfez a curiosidade do pequeno. Não queria dizer “Não, querem lá saber se assustam o miúdo ou não. E muita sorte tem o puto não ser duma daquelas que cortam o prepúcio...”. Mas fiquei a matutar. Eles não se importam?

Eles, não só os padres, mas a família, a sociedade, todos nós. Se queremos que uma criança aprenda a ser tolerante e a respeitar a fé dos outros, era boa ideia mostrar mais respeito pela sua liberdade religiosa. É certo que depressa se esquecerá do baptizado (a menos que lhe cortem o prepúcio), mas vão lembrar-lhe sempre que foi baptizada, e por decisão de outrém. E em muitos casos irá à catequese ou ter instrução religiosa desde tenra idade, antes de poder decidir se quer ter religião ou não. E vão lhe ensinar que deverá criar os seus filhos da mesma maneira, entregando os á sua religião.

E depois querem que aprenda a respeitar os que têm outras fés...

domingo, junho 04, 2006

Mas qual ladrão?

Roubar é, acima de tudo, privar alguém de algo. Talvez seja mau copiar e estragar uma venda dando ao potencial comprador um produto idêntico a melhor preço, mas isso é diferente de roubar. Eu digo que fui roubado só se me tiram algo que eu tinha e que agora deixo de ter.

Então como é que se rouba uma música? Copiar, bom ou mau, é apenas copiar. Roubar a música ao músico é privá-lo da sua música. As pessoas que partilham ficheiros na internet não conseguem fazer isto. Quanto muito, tiram clientela ao músico, mas isso não é o mesmo que roubar a música. Mas há quem consiga. Chamam-se “gestores de direitos”, e esses de facto controlam o que o músico pode fazer com a música que cria. A forma como a lei de direitos de autor funciona dá ao empregador, por defeito, o controlo sobre a obra criada pelo artista contratado. A maior parte dos músicos não é dono da música que cria, e se decidir mudar de empregador, por exemplo indo para outra discográfica, vai ficar sem nada.

Penso que o meu trabalho de professor e investigador exige também alguma criatividade, mas tudo o que crio é verdadeiramente meu. Não posso cobrar aos alunos por usarem o que lhes ensino, nem posso proibir terceiros de disseminar os métodos que desenvolvo e publico, mas aquilo que crio é meu porque ninguém me pode proibir de lhe dar uso. Felizmente, na minha profissão não há gestores de direitos, e se algum dia for dar aulas ou fazer investigação noutra instituição não preciso deixar para trás todo o trabalho que fiz nesta.

Eu acho que os músicos estão a ser roubados, mas não pelos fãs que partilham as músicas. Estão a ser roubados por uma lei que tira os direitos ao músico e os dá aos “gestores de direitos”. E a grande treta que nos pregam é que isto tem que ser assim, porque se não fosse a lei dos direitos de autor como a temos agora não haveria música.

Que treta!

Só em 1909 é que a lei de direitos de autor passou a cobrir músicas, e isto nos Estados Unidos. Foi também na revisão de 1909 que se introduziram os direitos sobre o trabalho contratado. Antes de 1909 a música era algo tão livre como as equações matemáticas são hoje em dia: nem o público era obrigado a pagar pelo seu consumo, nem o criador se podia ver privado do usufruto da sua criação. E parece-me absurdo sugerir que sem isto não haveria música. Que tal Bach? Mozart? Beethoven? Agora temos a Britney Spears e os D’zrt... será que foi bom o negócio?

Os músicos hoje em dia têm um problema, isso é verdade. Se tentarem viver de um ordenado, como a maioria dos profissionais, perdem os direitos mais elementares à obra que criam. Mas a culpa disso é acima de tudo da lei, que em vez de recompensar os artistas recompensa os “gestores de direitos”. O que está em jogo nesta guerra contra a partilha de músicas não é o futuro da música como arte, nem tão pouco o futuro dos artistas, mas apenas o futuro da “gestão” de direitos.

Agarra que é ladrão!

Anda aí muito na berra esta coisa da pirataria, da propriedade intelectual, do roubo de canções. Parece-me que há aqui uma grande confusão de ideias. Por exemplo, o termo “pirata” designa tanto criminosos violentos que matam e roubam em alto mar como miúdos de doze anos que partilham ficheiros mp3 na internet. O que têm em comum? Será o papagaio? Também se fala da propriedade intelectual como se fosse perfeitamente natural alguém ser dono de ideias e pensamentos (Sr. guarda! Está ali um fulano a pensar o mesmo que eu!). Mais confuso ainda é dizer que oferecer cópias gratuitas é o mesmo que roubar (dar e roubar é o mesmo... quem diria?).

Parece-me que há aqui um enleado de disparates e verdades que devemos desembaraçar. Comecemos pelos primeiros (isto vai ter que ser dividido em vários posts...). No site www.pro-music.com.pt podemos ler opiniões de músicos portugueses acerca da pirataria. Não, não se pronunciam contra coisas tão irrisórias como assaltos à mão armada em alto mar, mas sim contra o terrível flagelo dos adolescentes a ouvir musica à borla.

Um bom exemplo é o do Sr. Luís Represas, que, num tom condescendente (afinal, os piratas mais perigosos têm doze anos) e com alguns erros gramaticais (não queria dizer “deixássemos”?), explica que obter músicas de graça é o mesmo que roubar carros. Citando (espero que isto ainda não seja furto...):

“Imaginem-se agora a entrar pelo dito stand e exclamar “Uau, que carro fantástico! Vou levar”. E pronto. Lá saíam porta fora com o carrinho perante o olhar incrédulo do vendedor”.

Ora aí temos uma clara violação do direito à propriedade. Mas note-se um pormenor importante: o vendedor ficou sem o carro. Agora imaginem-se a entrar pelo dito stand e cantarolar: “Toma toma, não te compro o carro porque tenho um amigo que me arranja um igual à borla”. O vendedor ficava à mesma sem poder vender, mas não me parece que isto fosse roubar.

Parece-me que o Sr. Represas e muitos dos artistas que opinam no site referido perderam de vista o fundamento da noção de propriedade. Uma coisa é minha quando não me podem privar de usufruir dela. Não há nada neste fundamento acerca dos outros terem ou não coisas iguais à minha, ou acerca de eu ter ou não a possibilidade de viver da venda de cópias das minhas coisas.