domingo, dezembro 31, 2006

Ano novo. Mesma treta?

Para o ano novo quero que este blog continue a ser o blog das tretas, mas que seja menos blog da treta. Por isso convido os leitores a deixar sugestões, críticas, ou mesmo insultos, neste espaço dedicado a criticar tretas. E, já agora, bom ano novo.

O Mapa e o Território

Um mapa é um bom exemplo de um modelo que não se confunde com a realidade. Sabemos que a estrada verdadeira não é um traço encarnado. Um círculo preto representa uma vila, não é a vila que simboliza o círculo preto. Acima de tudo percebemos que o mapa que serve para representar as coisas e não é a paisagem que serve para pôr no mapa.

Noutros casos há mais confusão. Na astrologia, por exemplo, Júpiter simboliza o pai e é o “significador” dos filhos, da educação, da fama. Mas Júpiter é Júpiter. O que simboliza e significa são símbolos, como as palavras com que criamos o modelo. Os astrólogos baralham-se; olham para a paisagem e julgam que simboliza o mapa, quando é o contrário. Os criacionistas também gostam deste tipo de confusão. A metáfora do ADN como linguagem, com letras e palavras, confunde a molécula com os símbolos que usamos para a representar. Mas é o modelo que representa a realidade, e não a realidade que simboliza o modelo.

Mesmo na tradição Cristã menos fundamentalista há uma confusão semelhante. No início era o Verbo, ou seja, o modelo, e a realidade foi criada a partir deste. Colocar o modelo antes da realidade cria dificuldades desnecessárias. Primeiro, exige duas realidades diferentes: uma realidade que observamos, a criação, e outra que não podemos compreender nem observar, o criador. Mas postular algo que nem se observa nem se compreende é pura perda de tempo.

Dá também a ideia que o universo é governado por leis, quando as leis da natureza são descrições e não regras a cumprir. Na verdade, muitas descrevem a ausência de regras. A energia é conservada no tempo porque nenhuma regra especifica um momento especial para contar o tempo (simetria de translação no tempo). A entropia aumenta porque nenhuma regra distingue estados que tenham a mesma energia (são igualmente prováveis). A mecânica quântica descreve muitos fenómenos que não têm uma causa, que simplesmente acontecem com uma certa probabilidade.

Esta confusão do modelo com a realidade leva também a ver o universo como instrumental, como parte de um plano e para um propósito, tal como um cenário ou um mapa. Mas não há razão para crer isso. Os modelos e os mapas servem para compreendermos e representarmos coisas. Os modelos são concebidos com (mais ou menos) inteligência, e para um propósito. Mas o mapa não é o território, e não se pode inferir propósito e concepção inteligente naquilo que modelamos apenas por ser o modelo assim concebido.

domingo, dezembro 24, 2006

Votos de...

 A Igreja Católica está muito preocupada com o que está a acontecer ao Natal (1). Desta vez, vou dou-lhes razão. Não se admite que uma tradição tão antiga seja perdida, ou que se descure o seu significado religioso. É certo que vivemos num país laico, e que não era esta a religião original dos povos Ibéricos do neolítico, nem dos Celtas que os substituíram, nem dos Romanos que vieram depois. Mas é esta religião que está na base, na raiz mais antiga, da nossa cultura Europeia. E esta cultura é de todos, não só dos crentes.

Dizem que foi milagre o que aconteceu naquela noite de inverno, e devemos respeitar esta tradição cultural e religiosa. Celebremos por isso o deus que fez o óleo de um dia arder durante oito. Que este milagre da poupança vos sirva de exemplo nesta quadra, e um feliz Hanukkah para todos.

1- O Natal cristão ofende?


Estatísticas...

No Diário Ateísta a Palmira faz uma análise reveladora das estatísticas do aborto. Primeiro, dá o exemplo de França (1), que «demonstra inequivocamente que a legalização/despenalização não conduz, como pretendem muitos, a um aumento do número de abortos realizados». De facto, a selecção cuidada das estimativas e período representado pode reduzir o equivoco, mas o gráfico na wikipedia (2) não justifica uma conclusão tão clara:

Evolution du devenir des grossesses en France (hors fausse-couche précoce) entre 1965 et 2005.

Escolhendo as estimativas inferiores do aborto ilegal (a encarnado) vê-se um grande aumento com a legalização, escolhendo as superiores fica «inequivocamente» demonstrado que não se passou nada. E a escolha do país também ajuda. Por exemplo, se escolhermos os EUA (3) o resultado é o oposto (e ainda mais inequívoco):

Chart source: Alan Guttmacher Institute, 1996

Mais interessante é a comparação dos países que permitem e proíbem o aborto. A Palmira mostra que o aborto em países da América Latina como a Nicarágua e Bolívia é «francamente superior, com as excepções já referidas por anormalmente altas, à que se verifica em países onde este é permitido!» (4). E é fácil ver que é verdade porque acaba com um ponto de exclamação.

O interessante são as tais excepções «anormalmente altas», como a Europa de Leste, Vietname, e Cuba, que são excluídos pelo difícil acesso a contraceptivos fiáveis e educação sexual inadequada (5). Ou seja, que são como a Nicarágua e a Bolívia. Mas se compararmos a Nicarágua com Cuba o aborto é duas vezes mais frequente onde é legal, por isso dá mais jeito comparar com os países ricos da Europa para não estragar o resultado «francamente superior». E eu próprio quando penso na Nicarágua e na Bolívia penso logo na Bélgica e na Holanda também, por serem países tão parecidos em tudo excepto na penalização do aborto.

As estimativas do aborto ilegal são pouco fiáveis, a evolução após a legalização varia muito conforme o país, e nos países onde o aborto é legal a taxa anual varia desde as 5 mulheres por 1000 até às 90 ou mais. Factores económicos, sociais, e culturais são extremamente importantes, difíceis de quantificar, e quase impossíveis de prever. Estas estatísticas são uma mancha de Rorschach, onde cada um vê o que quer, e não são uma base fiável para uma decisão.

Eu prevejo que vai acontecer em Portugal o que aconteceu nos EUA, se ganhar o sim. Os argumentos principais do sim em Portugal são que o Estado não deve intervir e que não se pode impedir o aborto. Isto é muito mais próximo do espírito de Roe vs. Wade que da abordagem da Europa do Norte, onde o aborto é considerado um problema social a ser atacado de forma mais eficaz que com mera legislação. Mas suspeito que esta minha opinião seja mais um exemplo de belief overkill, a tendência que temos de alinhar crenças e opiniões que deviam ser independentes. Objectivamente, não posso prever o que vai acontecer se ganhar o sim, o que é mais uma razão para votar não. Na política como na medicina, o primeiro cuidado devia ser não fazer asneira.

Já é mau que se decida por maioria quem tem ou não direito à vida. Pior ainda é o voto depender duma análise complexa de dados incompletos e pouco fiáveis. Tenciono votar não porque nem todas as razões para abortar até às 10 semanas são aceitáveis, mas acima de tudo vou votar contra o referendo em si. Uma decisão tão complexa e com consequências tão sérias tem que ser tomada de uma forma mais responsável.

1- Palmira Silva, 21-12-06, O aborto em França e as práticas actuais
2- Interruption volontaire de grossesse
3- Abortion in the United States
4- Palmira Silva, 23-12-06, O aborto no Mundo e as práticas actuais - III
5- Palmira Silva, 23-12-06, O aborto no Mundo e as práticas actuais - II
6-http://www.euvotosim.org/

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Profissionalização

O Windows XP Home Edition custa à volta de €340. O Windows XP Professional custa cerca de €500, porque permite encriptar pastas, aceder remotamente ao computador, suporta sistemas com mais que um processador, entre outras vantagens.

O que a maioria dos consumidores não sabe é que são os dois a mesma coisa. A diferença está no processo de instalação: a versão profissional instala tudo, a outra, como é de esperar de um amador, esquece-se de algumas coisas.

O Raymond (1) publicou uma forma simples de converter um CD do Windows XP Home Edition em XP Professional. Com este pequeno curso de profissionalização o vosso CD fica muito mais habilitado e poupam €160. Mas notem que deve ser ilegal. Normalmente opcional, no comércio digital o barrete é obrigatório por lei.

1- Raymond, 21-12-06. Hack to turn your Windows Home Edition CD into a Professional Edition

quinta-feira, dezembro 21, 2006

A tradição já não é o que era (mas anda lá perto)

Segundo a Agência Ecclesia (1), menos de metade das crianças britânicas entre os 7 e os 11 anos sabe que o Natal é a celebração do nascimento de Jesus. A culpa parece ser do carteiro:

«Os protestos viraram-se, em boa parte, contra o Royal Mail, serviço postal britânico que este ano eliminou qualquer referência cristã dos seus selos: só há renas, árvores de Natal, bonecos de neve e pais natais. Nenhuma imagem lembra, como em ocasiões anteriores, o Nascimento de Cristo.»

Qualquer dia até ensinam às crianças que já havia um festival Romano celebrado nesta semana muito antes do Cristianismo. Dedicado ao deus Saturno, incluía um período de férias escolares, troca de presentes, muita bebida, comida, alegria, e um mercado especial da época. Até o cariz comercial do Natal antecede o Cristianismo. Eventualmente os Cristãos aproveitaram o festival para os seus propósitos. Espetaram uma missa no fim, substituíram Saturno por Jesus, e acabaram com a tradição de ir tudo cantar nu para a rua. Esta última talvez a única melhoria; para cantar nu na rua é mesmo melhor esperar pelo tempo mais quente.

Mas agora voltamos às origens. Dezasseis séculos depois da usurpação Cristã o Natal é finalmente o que era: comer, beber, gastar rodos de dinheiro, e divertir-se à brava quer se queira quer não. Jesus nasceu? Boa! Junte-se à festa, que quantos mais, melhor.

1- Católicos e muçulmanos procuram «salvar» o Natal na Inglaterra

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Agnosticismo: possível, mas difícil

Todos somos agnósticos em relação a alguma coisa. E podemos ser agnósticos em relação a tudo. O que determina o agnosticismo é a confiança que exigimos para aceitar algo como verdadeiro. Como não há certezas, e como podemos exigir o nível de confiança que quisermos, não há nada que possa escapar ao agnosticismo.

Imaginem que temos resultados que indicam que o chocolate faz bem ao coração, com uma confiança de 80%, e que o tabaco faz mal aos pulmões, com uma confiança de 95%. Se decidirmos aceitar como verdadeiro apenas aquilo em que se tenha mais que 99% de confiança, somos agnósticos em relação a ambos. Se pomos a fasquia nos 90% aceitamos apenas os malefícios do tabaco, e se somos pouco exigentes podemos acreditar em ambas as proposições.

Mas é incoerente aceitar que o chocolate faz bem e permanecer agnóstico acerca dos malefícios do tabaco, pois isso só com duas fasquias diferentes. Mesmo sem valores concretos, isto é válido: não é coerente rejeitar uma hipótese mais bem fundamentada quando aceitamos uma com menos fundamento. Esse é o problema dos que são agnósticos em relação a deuses e coisas sobrenaturais.

A teoria da relatividade é talvez a teoria mais bem fundamentada que temos hoje. Não deve haver algo que se saiba com mais confiança que ser impossível levar uma laranja da Terra a Marte em menos de um minuto (contado na Terra). Mas podemos ser agnósticos em relação a um deus omnipotente que possa pegar numa laranja e leva-la para Marte a uma velocidade superior à da luz. Basta exigir ainda mais evidência que aquela que apoia a teoria da relatividade.

O problema é a micose. Temos muita confiança que o clotrimazol ajuda a curar infecções por fungos, mas muito menos confiança na sua eficácia que temos na teoria da relatividade. Um agnóstico coerente não pode aceitar o conselho do médico se rejeita as conclusões de Einstein. Uma escapatória comum é que um ser sobrenatural não está sujeito à teoria de Einstein, mas isto revela um mal entendido. A teoria da relatividade não obriga; descreve. E o que descreve é ser impossível acelerar laranjas para além da velocidade da luz, seja quem for que as empurre. Não há excepções para seres que se intitulem sobrenaturais, nem evidências que indiquem que um ser sobrenatural seja imune à relatividade. Nem resolve a micose. O agnóstico coerente terá que considerar como pelo menos igualmente provável um fungo sobrenatural escapar ao clotrimazol. Isto não permite que se rejeite a relatividade e se aceite os antibióticos com coerência.

Regra simples para avaliar a coerência de um agnóstico: observem-no por uns momentos. Se não se coçar, ou é incoerente ou teve muita sorte.

Ciência e Sobrenatural

Por azelhice minha não reparei que o Santiago tinha criticado o meu post sobre as alegadas limitações naturalistas da ciência (1,2). Peço desculpa pela falha, e vou aqui responder às criticas, que desde já agradeço.

Eu proponho duas coisas. Primeiro, que não importa para a análise científica de um fenómeno se o chamamos de natural ou sobrenatural. Segundo, que o conhecimento científico moderno é naturalista porque não há nada de sobrenatural no universo em que vivemos.

Vou começar pelo segundo, que o Santiago criticou desta forma:

«O meu agnosticismo militante impede-me de aceitar sem um pio a peremptória afirmação de o Universo não ter sido equipado com "acessórios" sobrenaturais (como é que ele sabe? Foi algum "ser sobrenatural" que lhe garantiu a sua própria não existência?)»

O agnosticismo é irrefutável, pois podemos decidir exigir sempre mais evidência. O que é difícil é fazê-lo com coerência, mas disso falarei noutra altura.

No século XVII o químico alemão Georg Ernst Stahl propôs que as substâncias combustíveis contém flogisto, que se libertava para o ar durante a queima e que era absorvido pelas plantas. Lavoisier acabou por demostrar que era ao contrário, que era o oxigénio que se ligava ao combustível e não o flogisto que se libertava. Mas antes da ideia do flogisto ser consensualmente rejeitada houve quem propusesse que o flogisto tinha massa negativa, para explicar porque a queima de algumas substâncias fazia aumentar a sua massa. Parece-me que já era uma hipótese bem próxima do sobrenatural. A lepra, as tempestades, a origem da vida e das espécies, e muitos outros fenómenos já foram rotulados de sobrenatural enquanto não foram compreendidos. Hoje em dia tudo o que observamos e compreendemos aparenta ser natural. O sobrenatural foi, e é, sempre o que nunca se observou (deuses e espíritos invisíveis) ou o que não se compreendeu. Não posso rebater o agnosticismo do Santiago se ele exige certezas absolutas, mas a tendência é clara e a preponderância da evidência reunida até agora favorece a hipótese de não haver acessórios sobrenaturais neste universo.

A outra questão é se a ciência como método pode avaliar hipóteses acerca do sobrenatural. Eu dei o exemplo de dois modelos para a fertilidade do solo, um baseado na química e outro na influência de espíritos ou deuses, e propus que se comparasse os modelos numa experiência controlada: fertilizantes químicos de um lado, rezas do outro, e ver o que produzia mais. A objecção do Santiago parece-me estranha:

«Não me parece particularmente feliz ir buscar o exemplo de uma actividade puramente tecnológica (a agricultura) para argumentar que devemos preferir a explicação científica por ser a mais bem sucedida.»

Não vou comentar a implicação que devemos preferir, como explicação, a explicação menos bem sucedida. O importante aqui é que a ciência, como método, consiste em compreender um fenómeno através de modelos desse fenómeno. Para cada modelo deduzimos consequências, comparamo-las com o que observamos do fenómeno, e seleccionamos os modelos mais adequados ao que observamos. É praticamente inevitável que um modelo adequado permita alguma aplicação prática, tecnológica, desse conhecimento, daí ser estranha a objecção do Santiago. Mas não preciso ficar-me pela agricultura. Qualquer modelo que faça previsões acerca dum fenómeno observável pode ser testado desta forma, seja natural ou sobrenatural. Talvez o Santiago possa dar um exemplo de um modelo sobrenatural que faça previsões concretas mas que não se possa testar.

O problema é a ideia comum que a ciência lida com a natureza. Não é verdade. A ciência lida com modelos: ideias, hipóteses, teorias, especulação. São esses que a ciência constrói, rejeita, repara, compara, aperfeiçoa. Como os modelos são sempre modelos de algo, é necessário observar algum aspecto desse algo para obter os modelos mais adequados. Mas esse algo basta que seja observável. Se é natural não natural é indiferente.

O que está para além da ciência é aquilo que não se pode observar (como criar modelos disso?) ou modelos que não se consegue ligar a nada (mas para que servem esses?). Mas talvez seja isso que quer dizer a palavra sobrenatural: modelos incompreensíveis de coisas que nunca se observa.


1- Santiago, 2-10-06, Ah! Eis um debate com graça

2- Ciência e Naturalismo

Carl Sagan

Carl Sagan influenciou-me pelo seu entusiasmo e simpatia. Aquelas tardes a ver o “Cosmos” na TV foi uma das coisas que me empurrou para a ciência; via-se o puro prazer de compreender na maneira como ele falava dos milhões e biliões de estrelas. E a sua forma de abordar o cepticismo com compaixão, consideração, e empatia, é um exemplo que tento seguir, mesmo que nem sempre com sucesso. Mas o mais importante para mim foi ter mostrado que não precisamos procurar conforto acreditando no que não compreendemos. Não precisamos de fé, de crendices, ou superstições para que a vida tenha sentido. Nem perante a morte ou a perda dos que nos são queridos. No “The Demon-Haunted World” ele escreveu:

«Probably a dozen times since their deaths, I heard my mother and father, in a conversational tone of voice, call my name. [...] I still miss them so much that it doesn’t seem at all strange that my brain will occasionally retrieve a lucid recollection of their voices.”

A crença preponderante é que a sensação de “eu” é uma coisa aqui na cabeça. Uma alma ou espírito que, quando o corpo morre, vai para outro lado. Mas pelo que sabemos o eu não é uma coisa. É uma acção do cérebro. Eu sou como um bocejo, um passo, um gesto. Algo que aparece, dura enquanto se faz, e depois volta para lado nenhum. O corpo é uma coisa, com uma existência contínua, com um principio e um fim, que vive e morre, mas a consciência é uma acção intermitente, episódica. Existo acordado, desapareço quando adormeço, e de manhã o cérebro faz outro eu.

Pessoas como Carl Sagan mostraram que compreender a realidade é muito mais reconfortante que qualquer crença ou fantasia. Não só porque a compreensão dá mais segurança que a crença, mas porque a realidade é muito mais rica e profunda que a nossa pobre imaginação. Muitos procuram conforto na fé numa alma imortal, mas qualquer funeral revela a falta de convicção nesta crença. E é um fraco consolo. Consolam-se perante a morte desvalorizando a vida, tentando-se convencer contra todas as evidências que é a próxima que conta.

Não há que temer a nossa morte. Ao fim de cada dia desligamos a consciência, e no dia a seguir o cérebro faz outra. Parece que é a mesma porque temos memórias e o mesmo corpo, mas a consciência é uma acção, e não faz sentido dizer que é a mesma. Um passo pode parecer igual ao anterior mas é outro passo, não é o mesmo passo ressuscitado. Eu vou morrer esta noite como muitos eus já morreram antes. Um dia vai morrer o último eu, quando o meu cérebro deixar de fazer eus, mas paciência; acontecerá a esse o que aconteceu a todos os outros.

A morte dos que nos são queridos é sempre algo triste, mesmo para quem acredita em almas. Mas também aqui a realidade é superior à nossa imaginação. A morte não é uma alma que parte ou uma coisa que se desfaz. Quando o corpo morre deixa de fazer essas consciências, mas as que fez ainda se fazem sentir noutras consciências. Partes dos actos de consciência de outros cérebros vivem nos nossos, nas nossas memórias e no que somos. Faz hoje dez anos que o cérebro de Carl Sagan deixou de fazer Carl Sagans, mas as consciências que aquele cérebro fez ainda têm efeitos em muitos cérebros.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

“Blogatona” em homenagem a Carl Sagan

O próximo dia 20 será o décimo aniversário da morte de Carl Sagan. Joel Schlosberg teve a ideia de o comemorar com uma maratona de blogs. Escrevam qualquer coisa a ver se temos milhões – biliões – de posts nesse dia a celebrar um dos cépticos mais simpáticos de sempre.

O que dizem os cozinheiros

(Nota: qualquer semelhança entre este post e esta página do site Pro-Music pode ser mais que mera coincidência).

Cozinheiros e chefes culinários definem uma posição sobre a utilização não autorizada das suas receitas:

«As batedeiras e novas tecnologias de cozinha parecem funcionar a favor dos consumidores, permitindo-lhes gozar, a custo zero, de refeições que deveriam ser remuneradas. Os supermercados, com um crescimento exponencial vertiginoso, geram danos irreparáveis na industria de restauração. Grandes restaurantes vêm-se obrigados a fechar as portas porque, subitamente, em casa de cada um pode, sem grandes custos, preparar o jantar.»

«Uma vez disseram-me que das coisas mais justas é um artista ser recompensado pelo seu trabalho. Temos então que parar e tentar reinterpretar a questão da preparação de cozinhados em casa, que veio arrombar o mercado da restauração, deixando não só a industria como também os cozinheiros e chefes sem controlo algum sobre o seu próprio trabalho.»

«Falemos então de carros, já que parece que para muita (mas muita mesmo) gente há que fazer comparações destas para que as coisas fiquem mais claras. Muito bem. Imaginem o desenhador que concebe um carro. Imaginem uns mânfios a virar-se para ele e a dizer “Pá, tás aqui tás a levar!”, e ele a dizer “Ah é?”, e eles pimba! Agora imaginem uma grande onda a submergir Lisboa, e extraterrestres a destruir o palácio de Belém.
Agora experimentem em vez de carros…receitas. Em vez de desenhador, o cozinheiro. Em vez de extraterrestres, pode ser a Lili Caneças, que fica lá perto. E imaginem toda a gente que vive de, com e para a comida. E se se deixasse de fazer comida? E se comesse-mos tudo cru? Roubar é crime. Mesmo que seja fazer o jantar.»

domingo, dezembro 17, 2006

Pass-aram-se!

Soube pelo Remixtures (1) da última burrada dos artistas e distribuidores de música Portuguesa: a Passmúsica. O site é horrível, a condizer com a ideia (2). Vão tentar aplicar a lei de direitos conexos e cobrar pela música ambiente em tudo o que é restaurante, bar, sala de espera, linhas telefónicas, parques de diversões, feiras, transportes etc. (estou a tirar da página dos formulários... é mesmo isto).

Cada vez duvido mais da sanidade desta gente. Vendem um bem supérfluo duma forma antiquada. Quando começam a perder dinheiro pela concorrência com os jogos e consolas, telemóveis e DVDs decidem processar os clientes. Ficam admirados por isso não aumentar as vendas, então tentam acabar com os sítios onde muita gente ouve música e se torna cliente deles. Brilhante.

É quase compreensível que os advogados das empresas discográficas vejam nisto uma forma de justificar o seu salário. Mas é espantoso que os artistas vão na cantiga. Sim, senhor distribuidor. Processe os meus fãs e dificulte a vida a quem divulgar a minha música. Dê-me é qualquer coisinha pela meia dúzia de discos que vender, se não se importa...

1- Miguel Caetano, 11-12-06, Músicos portugueses querem cobrar a quem passa a sua música

2- http://www.passmusica.pt/

Criacionistas contra Dawkins

No passado dia 1 surgiu no site criacionista «Creation Ministries» um artigo intitulado «Dawkins and Eugenics, a leading high priest of evolution reveals its ugly side» (1). Este artigo acusa o «ateu fanático» Dawkins de defender que não há bem nem mal, de concordar com Hitler, e promover a eugenia, citando o que Dawkins escreveu no Sunday Herald do dia 19 de Novembro (2):

«I wonder whether, some 60 years after Hitler’s death, we might at least venture to ask what the moral difference is between breeding for musical ability and forcing a child to take music lessons. Or why it is acceptable to train fast runners and high jumpers but not to breed them.»

Terrível. Estes ateus são piores que o bicho papão. É claro, não parece tão terrível se lermos o resto do parágrafo, que os criacionistas não citaram. Dawkins continua:

«I can think of some answers, and they are good ones, which would probably end up persuading me. But hasn’t the time come when we should stop being frightened even to put the question?»

Afinal parece que Dawkins não considera a eugenia uma boa ideia. O que ele propõe é que se ponha de parte o terror inspirado pelo nazismo e não se tenha medo da pergunta: se pudermos influenciar o património genético dos nossos filhos, devemos fazê-lo ou deixá-lo à sorte?

Numa crítica cinco vezes maior que o artigo criticado, os criacionistas acusam Dawkins e os ateus de não terem valores, de defender a eugenia, e tiram uma citação do contexto para dar uma ideia completamente diferente do que o autor pretendia. Isto revela um atributo curioso dos criacionistas. Apresentam-se como defensores da Verdade, mas têm muito pouco respeito pela verdade.

(1) Carl Wieland, 1-12-06, Dawkins and Eugenics, a leading high priest of evolution reveals its ugly side

(2) Richard Dawkins, 19-11-06, Eugenics may not be bad

Lá se vão as férias..

Pelo menos consegui meter aqui uns do criacionismo antes de voltar ao aborto. Shyznogud, no Womenage A Trois, apresentou uns cálculos (1) que foram reproduzidos em vários blogs: mulheres responsáveis que usem sempre contraceptivos em todas as relações sexuais terão em média 1,5 gravidezes não desejadas. As contas estão mal feitas. Assumiu uma taxa de falha do contraceptivo de 0.5% por acto sexual, mas a taxa de falha da pílula combinada ronda os 0.3% por ano, e não por acto sexual. Corrigindo, 30 anos de actividade sexual com contracepção cuidadosa dá uma média de 0.09 gravidezes não desejadas, e não 1,5.

Mas isto é um pormenor. Mais importante é a implicação que a mulher não é responsável pela gravidez porque o método de prevenção é falível. Isto não faz sentido. Há sempre possibilidade de acidentes em tudo o que fazemos, e não deixamos de ter responsabilidades por isso. E é revelador que ninguém propõe o mesmo para o homem: como a contracepção é falível, se ela engravida ele não tem que “assumir este azar”. Treta. Se ela tiver o filho a lei obriga-o a ajudar a sustentar a criança, e todos concordamos que é assim que deve ser, azar ou não.

Mas o que me fez interromper estas férias sem aborto é que este exemplo, e outros do mesmo género, são apresentados como apoiando o voto “Sim”. Isso é uma forma errada (ouso dizer falaciosa...) de pensar no problema. Se a proposta a referendo fosse uma pena mínima que punisse sempre o aborto quaisquer que fossem as circunstâncias, então exemplos como este seriam relevantes para opor esta legislação. Eu também votaria contra uma lei que obrigasse a punir todas as mulheres que abortam porque reconheço que há casos em que isso não se justifica.

Mas a proposta é nunca punir quem esteja envolvido em abortos até às 10 semanas. O relevante é a possibilidade de situações merecerem punição. Por exemplo, com técnicas modernas de diagnóstico pré-natal (e.g. análise de fluído celómico) é possível determinar várias características antes das 10 semanas. Penso que a lei deve intervir se uma clinica oferece um pacote de diagnóstico e aborto para os pais terem os filhos do sexo ou cor dos olhos que preferem. E mesmo assumindo que o sexo responsável isenta o praticante de qualquer responsabilidade, é preciso considerar também os que não são responsáveis e abusam desta técnica. Cerca de 7% das mulheres que abortam nos EUA já abortaram quatro ou mais vezes antes. Parece mais irresponsabilidade que azar.

Exemplos em que a punição não se justifica são irrelevantes pois a lei já os contempla, não impondo uma pena mínima para este crime. A questão neste referendo é nunca penalizar o aborto, e para isso o que temos que considerar é se há alguma situação em que deva ser penalizado.

1- Shyznogud, 30-11-06,Um exercício fútil e idiota mas às vezes dá vontade de o ser...

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Mutação. Degeneração. Confusão...

No seu livro “Genetic Entropy & the Mystery of the Genome”, John Sanford revela que não há mecanismos naturais capazes de manter o genoma humano fixo no seu estado actual. Mutações surgem demasiado depressa para que a selecção natural as possa eliminar a todas, e os genes da nossa espécie vão mudando ao longo do tempo. É uma descoberta importante para um criacionista, mas os biólogos já sabiam disto. Chama-se evolução.

Não admira que os criacionistas achem isto surpreendente. Eles leram num livro que cada ser vivo foi criado de acordo com o seu tipo, e assim ficaria para sempre. A nossa espécie especialmente. Segundo esse livro fomos criados à imagem de Deus, que toda a gente sabe é gordo, magro, claro, escuro, alto, baixo, homem, mulher... bem, mulher não, que essas foram criadas à imagem da costela. Mas seja como for não é suposto mudarmos ao longo do tempo.

Para a biologia dos últimos séculos isto é tão novidade como o pão às fatias. Inspirando-me nas analogias que Sanford oferece, deixo aqui uma ao leitor. As espécies são episódios duma longa novela Venezuelana. A nossa espécie é aquele em que Marisol descobre que Alonso afinal já é casado. Na altura parece uma grande coisa, mas uns episódios mais tarde já ninguém se lembra disso. E se bem que as cenas mudem de episódio para episódio não há nenhum propósito em vista e ninguém sabe como aquilo vai acabar. Se algum dia acaba.

Um exemplo que Sanford julga refutar a teoria da evolução é a diferença entre os humanos e os chimpanzés. Sanford estima que desde a separação das duas linhagens, há seis milhões de anos atrás, se acumularam na nossa espécie cerca de 20 milhões de mutações, e que a selecção natural apenas podia ter fixado mil destas. Mas vou explicar mais do principio.

Primeiro, não imaginem o ADN como uma sequência de letras. São moléculas de ácido desoxirribonucleico. As letras foram ideia de pessoas que passam o dia a inalar éter no laboratório, e são apenas abreviaturas para designar partes dessas moléculas. Ao longo da molécula de ADN há regiões que interagem com outras moléculas e desencadeiam complexas reacções químicas que acabam por determinar a cor dos olhos, da pele, a estatura, o sexo, e assim por diante. Esses trechos são os genes, e pessoas diferentes podem ter genes diferentes no mesmo sitio do seu ADN.

Voltemos ao exemplo de Sanford. Um gene fixa-se na população quando todas as outras variantes desaparecem. Por exemplo, o gene para os olhos azuis estará fixo na nossa espécie quando toda a gente tiver o mesmo gene e os olhos azuis. Sanford diz que só houve tempo para fixar mil novos genes nos últimos seis milhões de anos, baseando-se nos cálculos de Haldane (de 1957... os criacionistas gostam de livros antigos). Haldane considerou um cenário extremo: uma alteração no ambiente reduz a sobrevivência de toda a espécie excepto a pequena minoria que tem uma mutação que é benéfica nas novas condições. Daqui estimou ser preciso 300 gerações para esse gene se fixar na população, mas este valor pode ser bastante mais pequeno noutras situações. Mas vamos dar a Sanford o benefício da dúvida, e usar os números dele: em números redondos, para cada mutação benéfica que se fixe por selecção natural há cerca de 10 mil mutações que se fixaram por acaso.

Mudando novamente de direcção (este post parece uma gincana...). O que observamos em espécies como a nossa é que os trechos que especificam a estrutura química das proteínas ocupam, no total, apenas a milésima parte da molécula de ADN. Além disso, a taxa de mutações nestas regiões é cerca de dez vezes maior que nas regiões mais importantes. Dez vezes mil. Dez mil mutações sem efeito para cada mutação que faz diferença. Mais uma vez, Sanford descobre a roda.

É claro que isto é em números redondos. Mutações fora das regiões que codificam proteínas podem ter efeitos, e mutações que alteram as proteínas podem não ter impacto na sobrevivência do organismo. O número exacto de pelos no nariz, a cor dos olhos, a velocidade de crescimento das unhas dos pés, tudo isso pode variar sem afectar minimamente a sobrevivência ou a informação contida no genoma. O facto importante é que uma espécie é um conjunto diverso de indivíduos em constante mudança. Sanford descobriu isso e ficou assustado, mas não é degeneração, nem perda de informação, nem o fim do mundo. É evolução.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Entropia Genética: primeiras impressões.

Há umas semanas o Jónatas Machado teve a amabilidade de me oferecer o livro «Genetic Entropy & The Mistery of the Genome», do John Sanford, o que me deu a oportunidade de ficar a conhecer melhor os argumentos mais recentes do movimento criacionista.

O livro é um pouco estranho. Pretende ser uma divulgação científica e objectiva, mas todos os capítulos começam com um subtítulo que diz «Newsflash», no meio do texto há frases sublinhadas, frases a negrito, e muitos pontos de exclamação. A sensação é de estar a ouvir um pregador emocionado a exortar os seus seguidores em vez de uma explicação científica. Também incomoda a forma como o livro subestima a capacidade de compreensão do leitor. Quando o autor diz que as instruções para fazer um carrinho de mão caberiam num livro, temos um desenho de um carrinho com um livro em cima. Quando o autor fala da fábula da princesa que sentia uma ervilha através do colchão, lá vem o desenho da princesa em cima de uns colchões e ervilhas espalhadas à volta.

Mas interessa mais o conteúdo que a forma. A proposição central do livro é que o nosso genoma está a degradar-se pela acumulação de mutações. Todos nascemos com mutações e, segundo Sanford, a selecção natural não consegue eliminar um número suficiente para prevenir a destruição da informação no genoma humano. Para isto Sanford invoca o custo de selecção, um termo criado por Haldane para designar a quantidade de mortes (ou esterilidade) necessária numa população para que um alelo (um gene de um tipo) substitua outro.

Suponhamos que todos os indivíduos de uma população têm o gene A, e surge um mutante com a variante B deste gene. Para que a população fique toda com o gene B é preciso que muitos indivíduos com o gene A morram sem descendentes. Como só uma parte da população pode ser eliminada a cada geração, e como em geral vão morrer também indivíduos com o gene B, é preciso muitas gerações para que o gene B substitua o gene A na população. Haldane estimou que este processo numa espécie como a nossa demoraria cerca de 300 gerações.

Mas isto é muito diferente do problema de eliminar mutações novas. Quando surge uma mutação deletéria num indivíduo basta que esse indivíduo morra sem descendentes para que a mutação seja eliminada da população. É surpreendente que Sanford tenha confundido o custo de eliminar uma mutação nova com o custo de substituir um gene presente em toda a população.

Sanford também assume que a proporção de mutações prejudiciais é uma constante, mas isso é falso. Imaginemos um o organismo com os melhores genes possíveis para todos os atributos. Adão, para os criacionistas; a criação perfeita (antes de perder a costela). Neste qualquer mutação será prejudicial. Mas conforme os descendentes vão acumulando imperfeições vai aumentando a probabilidade de uma mutação aleatória melhorar algo, quanto mais não seja por reverter um gene mutante ao gene original.

Na realidade não há uma degradação constante mas um equilíbrio dinâmico. Mutações aleatórias introduzem um grande numero de imperfeições e algumas melhorias ocasionais. A selecção natural elimina defeitos graves rapidamente faz com que as melhorias se propaguem lentamente pela população. Alterações que têm um impacto pequeno demais simplesmente se acumulam ou desaparecem ao acaso (a evolução neutra proposta por Kimura e outros). E é verdade que a distribuição de genes pela população está em constante evolução. Não há nenhum processo natural que fixe para sempre o genoma de uma população. Mas é só o criacionismo que exige que o Homem seja o produto final duma criação perfeita. Para a teoria da evolução somos apenas um passo num deambular sem fim.

O que podemos esperar deste equilíbrio dinâmico é uma grande diversidade de características e indivíduos. Uns serão mais fortes, outros mais rápidos, outros mais atraentes, e assim por diante. Todos terão alguns defeitos, e alguns terão muitos defeitos. Exactamente o que observamos em qualquer população.

Nos próximos posts vou elaborar melhor alguns pontos que o Jónatas Machado sugeriu e que são discutidos neste livro. Mas como apreciação geral posso dizer que este livro sofre dos mesmos problemas que todos os argumentos criacionistas que conheço: uma má compreensão da teoria da evolução, e uma análise incompleta e tendenciosa dos factos.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A propósito da vida em Marte...







(Via Bad Astronomy)

Aborto: Fechado para Férias

Tenciono fazer uma pausa nisto do aborto. Tenho outros desabafos para fazer e isto está a ocupar muito tempo. Quero só deixar um resumo adaptado às críticas mais recentes.

Em causa está escolher uma de duas alternativas. Abortar, e aquele ser humano morre, ou não abortar, e esse ser humano vive sete ou oito décadas como nós. Isto não é uma mera possibilidade, mas a consequência esperada de cada alternativa. O aborto elimina propositadamente toda a vida daquele ser em desenvolvimento. Por isso rejeito como irrelevantes os argumentos que desvalorizam essa vida por algo que está ausente nas primeiras semanas. Não por uma questão de valores ou convenções diferentes, mas porque objectivamente o que está em causa são décadas de vida e não meras semanas.

Há dois argumentos dos quais discordo por uma questão de valores. Um é que a mãe tem o direito de matar o filho porque o filho está dependente dela para sobreviver. Rejeito este argumento por ser contrário ao que esperamos da responsabilidade dos pais para com os filhos, e porque nem os seus proponentes admitem aplicar esta regra noutros casos que não o aborto. O outro é o equilíbrio entre o direito à vida e o direito ao planeamento familiar. Eu tenho o direito de decidir se tenho ou não filhos, mas esse direito acaba assim que engravido uma mulher. Não tenho 10 semanas a seguir para decidir se sou responsável ou não pelo sucedido. E não vejo justificação para dar às mulheres esse direito adicional em detrimento da vida do feto.

Sei bem que os métodos contraceptivos não são completamente fiáveis, mas quem decide ter relações sexuais assume a responsabilidade pelas consequências. Como com qualquer outro acto voluntário. Não há razão para que o sexo seja excepção.

Nem estou aqui a advogar abstinência. Há muitas formas de dar e ter prazer sexual sem enfiar o pénis na vagina. Usem a imaginação, leiam o Kama Sutra, ou aluguem um vídeo. E se quiserem arriscar, arrisquem. Mas não reclamem o direito de não ter filhos depois de os fazerem.

Parece-me possível que surjam situações que legitimem punir quem mata ou pede para matar o feto, mesmo às 10 semanas. Por isso não concordo que se ponha de parte esta possibilidade despenalizando este acto.

Coitada da mosca...

Na edição do jornal O Público de dia 8 há um artigo sobre Charles Brabec, que está a montar um museu criacionista em Mafra (1):

«Charles Brabec traz para a mesa uma série de fósseis. Dentro de uma caixinha transparente está um pedacinho de âmbar amarelo, com uma minúscula mosca-do-vinagre lá dentro. "É resina fossilizada, muito antiga; por que é que as moscas-do-vinagre continuam a existir? Não evoluíram!"»

Temos então uma mosca em resina “muito antiga”. Claro que não diz quão antiga é. Se disser que a mosca tem 4000 anos ninguém acha estranho que seja parecida com as que vivem hoje em dia. E se disser que tem milhões de anos vai ser difícil defender que o universo tem poucos milhares de anos. Mas uma é clara: ele sabe que a mosca não evoluiu.

Chamamos moscas aos insectos da ordem Diptera (duas asas). Conhecem-se 85 mil espécies nesta ordem e estima-se que haja um total de 200 mil. Do género Drosophila, a tal mosca-do-vinagre, há cerca de mil espécies descritas. O senhor criacionista olha para uma mosca que lhe parece ser duma destas espécies e diz logo que não evoluiu.

Não sei o que Brabec procurava numa mosca primitiva. Um machado de pedra e uma tanga de pele de leopardo? É que aos nossos olhos uma mosca é uma mosca. Primitivas ou não parecem-nos todas a mesma coisa, e é por isso que agrupamos 200 mil espécies no mesmo termo “mosca”. Talvez um entomólogo experiente saiba distinguir moscas primitivas de moscas modernas, mas a pergunta de Brabec sugere que ele não é perito na matéria. Além disso muitas características podem evoluir sem que se note nada olhando para a mosca adulta fossilizada. O tipo de alimento, os rituais de acasalamento, onde põem os ovos, o que comem as larvas, e assim por diante. Mas Brabec dá uma olhada e diz que não houve evolução. E porquê? Porque ainda existem moscas do vinagre. É claro, se não existissem ele também dizia que não tinha havido evolução porque se tinham extinguido. O criacionismo tem mesmo resposta para tudo... é pena é ser sempre a mesma resposta.

A fé dos criacionistas protege-se com uma grossa camada de ignorância. Ignoram a teoria que criticam, ignoram os factos, e ignoram até o propósito duma explicação. E é ignorância que nos querem vender, substituindo a compreensão que temos por um milagre incompreensível.

1- Clara Barata, disponível online no Conta Natura

terça-feira, dezembro 12, 2006

Custo de vida em Marte

O Luís Pestana pediu aqui uma opinião:

«Sr. Ludwig [...] gostava de ouvir a sua opinião sobre o facto de se gastar milhares de milhões de euros para se descobrir se há vida em Marte e depois faltar dinheiro para proteger as espécies em extinção onde vivemos...»

Apesar de me parecer que se dirigiu ao meu pai (“Sr. Ludwig”?) vou responder porque, como devem ter reparado, gosto de dar opiniões.

A recentemente defunta Mars Global Surveyor custou cerca de 400 milhões de euros, metade em desenvolvimento e lançamento, metade nos dez anos seguintes no processamento de dados e manutenção da missão, a uma média de 40 milhões de euros por ano. A missão Mars Exploration Rover explora a superfície de Marte há três anos por cerca de 800 milhões de euros.

O custo monetário de proteger espécies é difícil de estimar, mas vamos considerar um problema específico: a pesca excessiva, que coloca muitas espécies marinhas em perigo. O mercado global de pesca vale cerca de 70 mil milhões de euros por ano, mais 50 mil milhões de subsídios governamentais, cem vezes mais que o orçamento anual da NASA. Os dez anos da Mars Global Surveyor pagam um dia e pouco de pesca. É uma gota de água no oceano. E a principal causa de perda de biodiversidade é a procura global de recursos naturais, e não a falta de investimento; é difícil ver como o dinheiro pode reduzir o consumo de peixe.

A minha opinião é que a investigação científica é um investimento muito modesto e com o maior potencial de retorno a longo prazo. Por outro lado estes problemas ambientais têm mais a ver com legislação, cultura e atitude que com investimentos específicos. Por isso aqui vão dois desejos para este natal: continuado sucesso para a Mars Reconnaissance Orbiter, e que ninguém coma bacalhau.

sábado, dezembro 09, 2006

Ordenação Criacionista

Para quem se interessa por informática, está aqui um excelente contributo criacionista: um algoritmo de ordenação por design inteligente.

Como a probabilidade de um dado conjunto de elementos ter a ordem que tem por mero acaso é muito reduzida, conclui-se que foi ordenado por um Criador duma forma perfeita, mesmo que incompreensível para nós. Assim a melhor forma de ordenar qualquer conjunto é deixá-lo como está.

(Via Pharyngula)

Pontas soltas... (Mais sobre o aborto)

Agradeço o grande número de críticas e comentários, e lamento não conseguir responder a todos individualmente. Mas vou tentar resolver aqui os que me pareceram mais importantes. Peço já desculpa pelas inevitáveis omissões. Começo pelo Miguel Krippahl:

«Pensei que o direito á vida era um valor absoluto, não relativo, do teu ponto de vista.»

Eu proponho que não faz sentido falar de valor absoluto. Até a definição de valor absoluto (valor superior a qualquer outro) é relativa. E o problema ético de uma escolha está sempre no valor relativo das alternativas. Além disso o direito não é o valor; o valor é normativo (X melhor que Y) e o direito é prescritivo (quando X e Y estão em conflito prevalece o X). Ainda o Miguel:

«Se rejeitas a hipótese de classificar fetos como humanos e não humanos em função da idade, também não o podes fazer em função da sua perfeição.»

A questão não é como eu os classifico, nem é questão de classificar como humanos (humano é qualquer organismo do género Homo). A questão normativa é comparar o valor da vida toda do filho com o valor da autonomia da mãe durante aqueles meses e o custo ético da intervenção legal (1). Vida temos uma cada um, da concepção até à morte, por isso na questão de eliminar toda essa vida o valor perdido não é menor por ser mais novo quando o matamos.

Proponho também que os humanos dão mais valor a uma vida saudável do que, por exemplo, a uma vida sem pernas nem braços. Esta não é uma questão normativa, é uma descrição da ordem de preferências que os humanos expressam. Nem é uma falha na minha teoria normativa pois esta consiste precisamente em comparar estes valores e favorecer o mais alto.

O Francisco Burnay comentou:

«Todos os fetos com menos de 24 semanas estão em igualdade de circunstâncias. A menos do património genético, são equivalentes.»

Tecnicamente não é verdade. Há muito mais diferenças que as meramente genéticas; é precisamente por causa da forte dependência de mínimas flutuações ambientais durante a gestação que não podemos criar ainda um feto humano fora do útero. Mas vamos admitir que sim. Mesmo assim, isto é pouco relevante, porque o que está em causa no aborto é uma escolha entre dois futuros: a morte desse organismo agora ou daqui 70 anos. É essa diferença que temos que considerar. A autonomia, a inconsciência e tudo o mais que apontem durante umas semanas é relevante apenas para as primeiras semanas desses 70 anos. Mas o resto também conta pois também está em causa.

O leitor que assina Calhandro comentou:

«Só seres humanos têm potenciais vidas pela frente. Senão o espermatozoide tb tem uma potencial vida pela frente caso encontre as condições certas...»

Em última análise, 100Kg de átomos de Hidrogénio têm potencial para ser um ser humano nas condições certas. É preciso uma estrela, depois um planeta e biliões de anos de evolução, mas eventualmente lá poderá chegar. Por isso acho que a noção de potencial é inútil, e prefiro falar em vez disso nas consequências esperadas das nossas acções. Matar um espermatozóide tem uma probabilidade pequena de evitar a formação de um ser que é potencial. O aborto é o acto deliberado de matar aquele embrião ou feto específico, que já existe, e eliminar toda a vida que esse ser já está a viver.

Finalmente, o Ricardo Alves escreveu (2):

«há o problema prático de a sociedade não se poder ocupar do feto e garantir a sua sobrevivência (e este é um facto biológico que não é contornável). Responder a isto com a falsa analogia da «criança perdida na neve» é retirar o problema do quadro em que se coloca realmente.»

O problema é o que fazer quando a vida do filho está exclusivamente dependente dos pais e a sociedade não pode intervir para o salvar. O pai com o recém nascido ao colo no meio da neve é um exemplo desta situação, pois não há ninguém que possa intervir e salvar a criança se o pai a abandonar. O que pretendo com este exemplo é simplesmente mostrar que nestas situações a sociedade exige dos pais que cuidem dos filhos até que a sociedade possa fazê-lo por eles. Dar aos pais o direito de matar os filhos seria uma situação excepcional.

Também é falso que se trate de um «um facto biológico que não é contornável». É uma mera limitação técnica circunstancial: não temos tecnologia que permita cuidar dos fetos com 10 semanas ou detectar a tempo todas as crianças que possam ser abandonadas na neve.

1- Aborto e Darwinismo?
2- Ricardo Alves, 7-12-06, Ainda a IVG: investimento, fronteiras, etc.

Um Pró-Prisão Hipócrita na Nicarágua...

Concordo com a crítica do Helder Sanches (1) à propaganda que prolifera nesta questão do aborto. Incomoda-me principalmente que defensores do pensamento livre tentem influenciar outros com slogans desonestos. Parece-me uma traição aquilo que como eles defendo. O blog Vota Sim (2) dá vários exemplos. O primeiro:



Sugere uma falsa dicotomia entre punir tudo ou não punir nada, mas não há pena mínima para o aborto na lei vigente. O referendo é sobre a possibilidade, e não a obrigatoriedade, de punir o aborto antes das 10 semanas. Nem é questão de punir mulheres, pois quem mata um feto a pedido da mãe pode ser punido seja homem ou mulher. E é arriscado assumir que o aborto antes das 10 semanas nunca é condenável. Por exemplo, nos Estados Unidos a razão principal para o aborto é adiar o nascimento (25% dos casos), segundo a wikipedia (3). Não é por razões económicas (21% dos casos) ou problemas familiares (14%). É apenas porque não dá jeito agora. O voto «não» não condena as mulheres todas à prisão; apenas mantém a possibilidade de punir algumas pessoas em casos em que matar o feto não seja uma solução aceitável.

O segundo:



A primeira impressão é que o voto é decidido pela geografia, mas rapidamente se percebe a insinuação que a nossa lei é tão má como a da Nicarágua. É claro que não é. Não estamos a decidir se as mulheres violadas ou com problemas de saúde podem abortar. Estamos a decidir se o aborto até às dez semanas é aceitável sempre que a mulher quer. Seguinte:



Não chamamos hipócrita a quem quer deixar de fumar e não consegue, ou a quem diz que é errado mentir mas de vez em quando lá se sai com algo menos verdadeiro. Além disso, não se percebe como é que a alteração da lei vai reduzir a hipocrisia. Ninguém se manifesta contra o aborto só por medo da lei.

Finalmente, temos a liberdade de escolha:



Este slogan é pau para toda a obra, pois em qualquer situação podemos defender a liberdade de escolha. Basta escolher quem é que vamos favorecer: eu sou a favor da liberdade de escolha, por isso não aceito que a mãe tenha o direito de matar a filha.

Resumindo, estes bonecos são uma treta. E prometo não ofender a inteligência dos meus leitores pondo aqui bandeirinhas a contar que algém se convença por ver o «Não» a piscar...


1- Helder Sanches, 4-12-06, Aborto - Propaganda bilateral
2- Vota Sim
3- Abortion in the United States

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Visões Diferentes

O Bernardo Motta comentou aqui recentemente que a revelação mostra a todos os crentes uma “mesma verdade transcendente”:

«Considero que o Homem crente tem reagido de forma diferente em locais e alturas diferentes a uma mesma verdade transcendente. O "revelatum", quando surge, é para todos! Grande parte da minha fé está fortalecida pela clara constatação de estruturas intelectuais comuns em várias crenças radicalmente separadas no tempo e no espaço e sem contactos históricos ou transferências de ideias que sejam conhecidas.»

Vou tentar mostrar aqui por três hipóteses que a verdade não é revelada pela fé, mas pela dúvida. Começarei pelo contraste entre o modelo Cristão e o modelo Hindu da escola advaita vedanta, o meu preferido nestas coisas da fé.

Segundo o modelo Cristão o universo é uma criação deliberada de um deus inteligente. Há uma diferença clara entre o criador eterno e a criação temporal, que tem inicio e fim. Somos dotados de independência e autonomia, mas temos o dever de contribuir para um plano divino que é o propósito de toda a criação. O criador fez um universo com um propósito sério, recompensa quem contribui para esse fim, e castiga quem se opõe. O mal e o bem são absolutos, determinados pelo propósito do criador.

Segundo o modelo Hindu a consciência de cada um de nós (atman) é idêntica ao ser absoluto para além do tudo e do nada (brahman). O universo não é uma criação, nem tem um propósito. Todos nós e tudo o que vivemos é esta totalidade consciente a brincar e a representar papeis, a fingir que é um médico, uma professora, um morcego, uma pedra, e a perder-se num jogo de faz-de-conta sem inicio nem fim. Não há um propósito. É como uma música ou uma dança; o objectivo não é levar o bailarino deste lado do palco àquele, mas sim dançar. É um fim em si mesmo, e não há mais nada que isto. Não há mal nem bem, culpa nem castigo, mas sim karma, a relação entre acto e consequência que dá drama a esta peça.

Estes são apenas dois exemplos de milhares de modelos contraditórios que a fé criou. Mas se a fé traz discórdia, a dúvida traz consenso. O terceiro modelo, dado pela ciência moderna, inverte a posição da consciência no processo. Sendo humanos vemos tudo com consciência, e por isso assumimos que a consciência está na origem das coisas. Mas combatendo esta tendência compreendemos a consciência como o produto de processos inconscientes. Como a chuva, o diamante, ou a divisão celular. Assim vemos um universo que é. Não é para. Não é porque. É. Neste modelo o mal e o bem, explicações, razões, causas, tudo isso são conceitos nossos que podemos aplicar apenas onde aplicável. A realidade transcendente é a realidade que, a qualquer momento, nos transcende, mas que se torna acessível quando desenvolvemos ferramentas materiais e conceptuais para a compreender. O electromagnetismo, a gravidade, o DNA, a vida. A origem do universo. A consciência em si, eventualmente.

Mas falei inicialmente de três hipóteses, e não de modelos. Estas hipóteses são que cada um destes modelos corresponde à realidade. Separar a hipótese do modelo pode parecer um preciosismo desnecessário, mas é importante. Se virmos o modelo como verdadeiro ou falso vamos avalia-lo de dentro do modelo e cair em argumentos circulares. A consistência interna que o Bernardo invoca, ou o acreditar para compreender e compreender para acreditar, como dizia Ricoeur. Mas a hipótese de o modelo corresponder à realidade é exterior ao modelo, e por isso a única forma de validar o modelo é compará-lo com a realidade externa ao modelo. Qualquer que seja o modelo.

A fé é a nossa relação íntima com o modelo. A dúvida questiona a hipótese de o modelo corresponder à realidade e abre o modelo ao confronto com o que observamos à nossa volta. É a dúvida que usa os modelos para revelar o que a realidade nos esconde.

Concordo com o Bernardo que o “revelatum” é para todos. A realidade revela-se a todos. Mas pela dúvida, não pela fé. É por tentar encaixar modelos com a realidade que a ciência se torna uma e igual para todos, e este confronto constante entre modelos e realidade amplia gradualmente o nosso conhecimento. A fé é o apego sentimental a um modelo qualquer, e gera um conjunto disjunto de crenças contraditórias que são mais reveladoras das limitações humanas que da realidade que nos transcende.

Aborto e Darwinismo?

A teoria da evolução é a forma mais correcta de descrever os mecanismos de origem e modificação das espécies, mas acho que o Ricardo Alves confundiu descrição, norma, e prescrição (1):

«espanta-me que um darwinista como o Ludi não compreenda que existem razões evolutivas básicas para que uma criança seja mais valorizada pelos progenitores do que um feto.»

Claro que compreendo. Na nossa evolução houve uma enorme pressão selectiva favorecendo fortes instintos de protecção do recém nascido. Mas durante este longo período a gestação esteve fora do alcance das nossas decisões voluntárias, pelo que não surgiu na nossa linhagem um instinto de protecção do que muitos chamam um “amontoado de células”. Se fossemos marsupiais ou ovíparos os aspectos emocionais desta discussão seriam muito diferentes.

Mas isto é uma descrição. É o que as coisas são. É como dizer que a maioria dos adultos tem cáries. Não podemos inferir uma norma que diga que é bom ter cáries só porque constatamos que a maioria as tem. Esse é o primeiro erro do Ricardo: confundir o que é com o que é desejável. Uma ética normativa aplicada ao aborto tem que pesar o bem e o mal nos diferentes factores, e não apenas considerar o que as pessoas fazem pela sua natureza. Destes proponho que os três mais importantes são:

1- O valor da vida.
2- O valor da liberdade de acção.
3- O custo de punir.

O primeiro é o valor que toda a vida daquele organismo terá para ele que a vai viver. Não é a vida às 10 semanas pois não o matamos só provisoriamente. É a vida toda porque a morte é permanente. O segundo é o valor da liberdade de usar o nosso corpo como entendemos, mas que nos responsabiliza pelos nossos acto. É um equilíbrio de direitos e deveres. O terceiro é o valor negativo de obrigar, coagir, e punir.

Há outros factores que podemos considerar, mas este referendo cobre o caso em que uma mulher adulta e responsável mata um feto saudável fruto de um acto consensual apenas porque quer. Proponho que nesse caso particular o segundo valor é reduzido pela responsabilidade inerente a qualquer acto voluntário, e que o primeiro é tão alto para o feto como para qualquer um de nós pois em jogo está a sua vida toda. Isto compensa o custo moral de uma lei que permita punir quem o mata.

Se nos afastamos deste caso extremo, se há violação, malformação do feto, se a mãe é menor ou de outra forma não imputável, então o balanço destes valores pode ser diferente, e a melhor opção pode ser outra. E aqui o Ricardo confunde a norma com a prescrição:

«gostaria que algum dos defensores do “não” me assinalasse um sistema jurídico que seja que penalize (ou tenha penalizado) da mesma forma um aborto (e já agora de primeiro trimestre...) e um homicídio.»

Não me parece que haja, e, se houver, deve ser muito mau. A ética, normativa, procura o equilíbrio ideal entre valores contínuos. A lei, prescritiva, cria regras discretas para situações definidas. O Título 1 do código penal Português, «Crimes contra as pessoas», tem nove artigos no capitulo «Crimes contra a vida» e três no capítulo «Crimes contra a vida intra-uterina». O pai matar o filho recém nascido pode ser homicídio qualificado (art. 132º), com pena de 12 a 25 anos de prisão. A mãe matar o filho recém nascido é infanticídio (art. 136º), com pena de 1 a 5 anos de prisão. A lei reconhece que a influência do parto na mãe reduz a sua responsabilidade por este acto.

É claro que cada caso é um caso, e há diferenças subtis e contínuas que não podemos codificar num conjunto de regras. E é por isso que temos os tribunais. Não é um sistema perfeito, mas é melhor que não ter regras nenhumas, e melhor que aplicar a lei como se fossem as regras do Monopólio, sem considerar as particularidades de cada situação.

Muitos criticam a minha posição porque não se aplica a todos os casos, porque a lei distingue situações diferentes, e assim por diante. Espero que isto ajude a esclarecer. Eu tenciono votar «não» porque acho útil uma prescrição como a que temos agora (art 140º):

«2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.»

Esta permite que a morte deliberada do feto seja punida, mas não obriga a punição, pois não há pena mínima. O «sim» põe de parte a possibilidade de punir este acto, o que só se justifica se as vidas que eliminamos nunca tiverem valor. Não vejo justificação para negar a protecção da lei a seres como nós, e é ilegítimo fazê-lo por voto de maioria.

1- Ricardo Alves, 7-12-06, Ainda a IVG: investimento, fronteiras, etc.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

O Estatuto Ontológico.

Tenho tido relutância em criticar directamente textos do Diário Ateísta, porque penso que ainda têm a política de não responder a criticas de outros blogs. Isto cria uma relação assimétrica e um pouco injusta para eles. Mas hoje decidi que não tenho nada a ver com isso, e vou tentar responder à pergunta que a Palmira colocou(1), com imparcialidade e tacto característicos:

«Portanto, senhores pró-prisão, um pouco de seriedade, deixem as falácias debaixo do chapéu e expliquem bem explicadinho porque razão deve ser crime interromper uma gravidez até às 10 semanas e apenas nos casos que ainda não são previstos na lei. Ou seja, porque é alterado ao sabor das conveniências o estatuto ontológico do embrião, o único ponto que deveriam estar a discutir!»

A explicação é simples. O estatuto ontológico não muda. Cada um de nós tem uma vida, e não temos vidas diferentes antes e depois das X semanas, e esta vida vale como um todo. Não tem um valor à terça e outro ao sábado. Por isso matar o feto ou embrião é sempre matar, seja a que semana fôr.

Para decidir se penalizamos a morte de um ser humano podemos considerar muitos factores: o custo do funeral; o patrão fica sem um empregado; a família e os amigos ficam tristes, e assim por diante. Mas o factor principal é a vida que esse ser vai viver se não o matarmos, o enorme custo de oportunidade para quem é morto. Esse não muda nada às 10 semanas, mas é diferente para quem tem uma doença terrível e incurável, ou para um feto com malformações graves. A eutanásia é aceitável porque é do interesse de quem é morto.

E o problema no aborto não é unilateral. É um conflito de dois direitos: a autonomia de decidir o que fazer com o nosso corpo, e o direito de não ser morto que é dado pelo valor que a nossa vida tem para nós (a vida toda, não a vida hoje). Por isso, mesmo em casos em que a malformação não é tão grave que justifique a eutanásia, o valor dessa vida pode ser suficientemente reduzido para que não se justifique penalizar o aborto. Mas é de salientar que o valor da vida não é reduzido por problemas temporários, apenas por algo permanente e irreversível que afecte a vida como um todo. Nunca se é novo demais para ter valor.

Para justificar que não se penalize o aborto em caso de violação podemos considerar o famoso exemplo (hipotético) dado por Judith Thompson (2): imaginem que eu acordo no hospital ligado por tubos a um violinista que precisa de usar o meu corpo durante nove meses para sobreviver. Ninguém o pode desligar de mim senão ele morre. O violinista é claramente uma pessoa, mas não é condenável que recuse esta situação imposta contra a minha vontade, mesmo que o violinista morra.

Mas imaginem que a situação foi consequência de um acto voluntário da minha parte. Decidi brincar com o equipamento mesmo sabendo que havia o risco alguém ficar dependente do meu corpo durante uns meses. Tomei todas as precauções, mas correu mal e lá ficou o violinista agarrado a mim. Isto é diferente. Como vítima contrariada tinha legitimidade de me livrar do violinista, mesmo que ele morresse, mas como participante voluntário e causador da situação não tenho essa legitimidade. A diferença de abortar no caso de violação e no caso de sexo consensual não está no estatuto ontológico do feto, mas sim na responsabilidade que a mãe, o pai, e todos nós, temos pelas consequências previsíveis de um acto voluntário.

Finalmente, nesta pergunta há um erro fundamental. Não sou eu que tenho que justificar que antes das 10 semanas seja errado matar um ser humano. Também não tenho que justificar que seja errado matar antes das 20 semanas, dos 3 anos, dos 25 anos, e assim por diante. Em geral, todos concordamos que é errado matar um ser humano. São os que propõem uma excepção a essa regra que a têm que justificar.

1- Palmira Silva, 7-12-06, You Can Leave Your Hat On II.

2- Judith Jarvis Thomson: A Defense of Abortion, Philosophy & Public Affairs, Vol. 1, no. 1 (Fall 1971).

Por Opção da Mulher.

O sim ao referendo sobre o aborto apresenta-se como opositor da discriminação sexual. Quando se questiona a ética de matar um embrião ou feto porque a mãe quer, alegam que somos machistas, que tratamos a mulher como uma incubadora, e assim por diante. Mas parece-me que é exactamente o contrário, e que estão a pedir excepções para as mulheres só por serem mulheres.

O parecer do CNECV de 97 recomenda:

«É de rejeitar, liminar e frontalmente, a exclusão de ilicitude para o chamado aborto a pedido. A vida humana, mesmo incipiente, é um bem e a grávida não pode dispor livremente desse bem, que não é seu» (1)

Quando Walter Osswald, no Conta Natura (2) defendeu esta recomendação, a Fernanda Câncio no Gloria Fácil (3) deu um exemplo deste tipo de argumentação:

«aliás, se calhar devia-se era nomear uma comissão parlamentar para decidir, em nome do povo, cada direito de decidir de cada grávida. e as audições deviam passar na tv, para 'os portugueses' poderem votar, a 1 euro cada voto, que depois revertia para o enxoval da criança e para os leites em pó»

Alhos e bugalhos. Quando um membro da nossa espécie mata outro é natural que se queira avaliar as razões. Não é uma questão do foro íntimo, que só quem mata tenha direito a decidir. Ao exigir que se avalie porque a mãe quer matar o filho estamos a aplicar os mesmos princípios que aplicamos em todas as outras situações em que a lei intervém. O motivo é muito importante para decidir se se penaliza o acto. O que o sim exige é que se faça uma excepção para as mulheres; essas podem matar à vontade, sem que se pergunte sequer porquê.

Tentando rebater a objecção de canalizar recursos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para os abortos por opção da mulher, a Palmira Silva, no Diário Ateísta (4), falha também o alvo por causa da jogada do machismo. Argumenta que esta objecção penaliza a mulher por um alegado comportamento irresponsável, quando o SNS também tem que usar os seus recursos para mitigar as consequências da irresponsabilidade dos obesos (e dos fumadores, acrescento eu). Mas o problema não tem nada a ver com ser mulher, nem com responsabilidade ou falta dela. O problema é o SNS fornecer este tipo de serviço a pedido do paciente, sem justificação médica. Isto vale para homens, mulheres, responsáveis, e irresponsáveis. Mais uma vez, o sim pede que se faça uma excepção para as mulheres, passando a ser as únicas que podem exigir do SNS exames e intervenção cirúrgica apenas porque querem, sem precisar de justificação médica nem sequer de dizer porquê.

Finalmente, a proposta que é à mulher que compete decidir. Parece-me difícil ser mais machista que engravidar uma mulher e achar que o problema é só dela. A igualdade de responsabilidades familiares é uma das principais armas contra a discriminação, e é importante que a sociedade tente educar todos os cidadãos a ver o pai e a mãe como parceiros de iguais responsabilidades e direitos. Mais uma vez o sim se revela pela discriminação, exigindo que seja só a mulher a decidir pela vida de um filho que é da responsabilidade duma mulher e de um homem.

1- Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, 1997, Relatório-Parecer 19/CNECV/97
2- Santiago, 3-11-06, O referendo que aí vem
3-Fernanda Câncio, 22-11-06 sem pedir autorização ao professor doutor? [...]
4- Palmira Silva, 7-12-06, You Can Leave Your Hat On e You Can Leave Your Hat On II.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Finalmente, arte que eu compreendo.

Tenho irmãos artistas, irmãs em letras e jornalismo, e até o meu pai dantes pintava, mas a arte sempre me passou ao lado. Assumi-me sempre como o geek da família. Mas agora tudo mudou: o tribunal Norueguês reconheceu o strip tease como forma de arte (notícia na BBC). Agora também sou um apreciador de arte.

terça-feira, dezembro 05, 2006

Alhos e bugalhos, parte 2.

O Francisco Burnay levantou duas objecções ao meu post anterior (aqui). A primeira foi o direito à reprodução:

«Se aceitar o ponto de vista do Ludwig de que abortar um ser humano em desenvolvimento é criminoso porque estamos a anular a possibili[d]ade de uma consciência se vir a tornar independente, não posso pôr de parte o problema que se levanta por me ter reservado o direito de ter criado uma consciência independente de mim»

O que condeno é matar aquele ser específico (aborto), e não um ser hipotético que pode ou não vir a existir (contracepção). Fazendo uma analogia, quando um engenheiro aprova um grande projecto de construção sabe que é quase certo haver fatalidades entre os trabalhadores (morrem cerca de 100 por ano em Portugal), mas eticamente (e legalmente) isto é muito diferente de dar um tiro num deles. O direito a não ser morto aplica-se àquele organismo vivo que está a tornar-se consciente, e não à mera possibilidade abstracta de consciência. O direito oposto, o direito de nunca ter sido criado, não me parece fazer sentido, por isso não vejo conflito de direitos quando alguém decide ter filhos.

A segunda é novamente a questão da autonomia, na forma do coma irreversível:

«Porque é que um ser em coma irreversível perdeu todos os direitos? Porque perdeu a sua autonomia e a sua liberdade.»

Não concordo que a autonomia tenha muito a ver com isto, especialmente na relação entre pais e filhos. Parece-me até o contrário: quando um filho mais precisa dos pais, os pais têm mais responsabilidade e não mais direitos de o matar ou deixar morrer. Mas o problema principal é justificar um efeito permanente – a morte – com uma incapacidade temporária. No exemplo do Francisco a perda é permanente, mas se soubermos com a certeza com que sabemos no caso do feto que esta falta de autonomia e liberdade dura apenas alguns meses não se justifica dizer que o paciente perdeu todos os seus direitos.

Em suma, aceitar que é errado matar um ser humano vivo e em pleno desenvolvimento não implica que seja errado ter filhos, ou deixar de os ter. E não é razoável que a falta temporária de autonomia dum ser imaturo permita que os pais o matem.

sábado, dezembro 02, 2006

Alhos. Bugalhos.

A grande dificuldade em discutir o aborto é a diferença fundamental dos argumentos. O sim argumenta pelo direito de escolha da mulher, contra a ineficácia da lei vigente e a humilhação do processo jurídico, pela perspectiva de melhorar questões sociais e de saúde, e assim por diante. O não argumenta pela defesa da vida humana. Isto são coisas diferentes; mesmo que sejam todas verdade, as razões apontadas pelo sim não justificariam a morte de um recém-nascido ou qualquer vida humana que se preze.

Os defensores do sim assumem que aborto não é como o infanticídio, mas é isso que se discute. O resto é secundário e nem sequer é ponto de divergência; eu concordo com quase todos os argumentos propostos pelo sim. Onde o sim falha é em mostrar uma diferença ética clara entre o infanticídio e o aborto.

A maior dificuldade é que ser morto às dez semanas ou à nascença é a mesma coisa para aquele que é morto. O acto em si também é idêntico: a morte deliberada de um ser vivo em pleno desenvolvimento. As diferenças entre aborto e infanticídio são apenas nas circunstâncias em que ocorrem.

Um argumento é que o feto é apenas uma pessoa potencial. Mas parece-me que a melhor definição de pessoa é precisamente o potencial de viver como pessoa, e é a única que se pode aplicar ao recém nascido. Um recém nascido normal levanta a cabeça, reage quando ouve uma campainha, olha para caras, e só ao fim do primeiro mês é que começa a sorrir (1). Não é isto que faz do recém-nascido uma pessoa, mas sim a vida de pessoa que tem pela frente.

O Francisco Burnay ilustrou uma variante deste argumento:

«A grande objecção que eu faço aos critérios do Ludwig é o facto desse ser não ter papel nessa escolha simplesmente porque a questão não se coloca - daí eu me referir ao anacronismo. O que eu penso é que do ponto de vista do feto ou embrião antes e depois de um aborto o saldo de direitos é nulo. Não há perda de direitos. Tal como na eutanásia de um indivíduo em coma permanente.»

Note-se: permanente. Um estado de coma reversível não justificaria a morte. É apenas o carácter permanente desta incapacidade que torna nulo o saldo de direitos. E o feto não ter papel na decisão de abortar não o diferencia do recém-nascido, que também não terá papel na escolha do infanticídio. O feto, o recém-nascido, e o paciente em coma reversível não valem pelo estado em que estão mas pelo futuro que têm pela frente. Não é de forma nenhuma anacronismo considerar esse futuro se estamos a decidir eliminá-lo permanentemente.

Outro argumento é que o feto não é pessoa porque não sobrevive autonomamente. O problema principal é que a autonomia é eticamente irrelevante. Se eu levo um recém-nascido ao colo durante um nevão não é por ele estar dependente do uso do meu corpo que eu tenho o direito de o largar e deixar morrer. E quando se trata de um filho, resultado de um acto consensual, esta dependência dá ainda mais responsabilidades. Não me parece nada razoável dar aos pais o direito de matar os filhos por estarem os últimos dependentes dos primeiros.

Uma razão porque tenciono votar “não” é que não estou nada satisfeito que matar um feto seja tão diferente de matar um recém-nascido. Para despenalizar tal acto teria que ter muita confiança numa diferença radical entre os dois casos. Pelo contrário, parece-me que são eticamente equivalentes nos aspectos mais importantes. Podemos dizer que só a partir das 24 semanas é que a tecnologia moderna permite a sobrevivência fora do útero, mas esse facto não justifica dar á mãe o direito de matar o filho.

Mas há outra razão que me levaria a votar “não” mesmo que estivesse confiante que o feto não merece protecção: não é admissível que o direito mais fundamental – o direito de não ser morto – seja decidido por referendo. Não é uma coisa que a maioria tenha legitimidade para decidir, especialmente quando os visados não votam. Pior ainda, com esta questão disfarçada de interrupção da gravidez.

(1) Kliegman, Behrman, “Nelson Essentials of Pediatrics”, 3ª Edição, 1998, Saunders

sexta-feira, dezembro 01, 2006

It's fun to live at the...

Este está muito baril (via P.Z. Meyers, do Pharyngula).

Falácias.

Ultimamente tenho ouvido muito esta palavra. No debate sobre a IVG e em alguns comentários neste blog fui acusado de apresentar argumentos falaciosos. Por isto, e por ter leccionado esta matéria recentemente, deu-me para escrever umas coisas sobre falácias.

Uma falácia é um erro de raciocínio, uma inferência incorrecta. Não é uma opinião da qual discordamos. Não é falácia ser do Benfica ou do Sporting, nem considerar o embrião uma pessoa ou uma migalha de carne. Nem é a omissão de dados. Dizer que tenho razões para o que faço e não as enumerar enfraquece o argumento, mas não é um erro de raciocínio. Nem sequer é falácia partir de falsas premissas: “Como chove pianos acho melhor ir de Metro”. A premissa é falsa, e por isso podemos discordar da conclusão, mas o raciocínio é correcto: se de facto chover pianos é boa ideia ir de Metro. Vejamos algumas falácias comuns.

Apelo à crença ou prática comum. Nesta falácia justifica-se uma crença ou prática por ser aceite por muitos. Mas mesmo que seja verdade que é aceite por muitos não se justifica concluir que é crença verdadeira ou prática adequada. A conclusão não segue das premissas, pelo que o raciocínio é falacioso. Exemplos: Tanta gente acredita em deuses e no sobrenatural, por isso deve haver aí algo de verdade. Tantos países no Ocidente legalizaram o aborto, por isso devíamos fazer o mesmo.

Na petição de príncipio, ou raciocínio circular, as premissas dependem da conclusão. Por exemplo: Eu sei que Deus existe porque vem na Bíblia, que é a palavra inerrante de Deus. O erro não está em afirmar que algo é verdade se for verdade; essa inferência é trivialmente correcta. O erro está em concluir daqui que esse algo é mesmo verdade. Em teologia é comum ver-se esta falácia no apelo à coerência interna de um modelo. Por exemplo, dar a ausência de contradições na Bíblia como prova da sua veracidade (a Bíblia tem contradições, mas isso não é falácia, é um erro factual).

Ad hominem, o ataque à pessoa, é infelizmente muito vulgar. Consiste em rejeitar um argumento com base numa característica irrelevante de quem o defende. Por exemplo, rejeitar um argumento pela protecção do feto porque é proferido por um padre ou um crente católico. Uma variante é o ad homimem tu quoque, em que se rejeita um argumento porque as acções passadas do que o defende contrariam a conclusão. Por exemplo, rejeitar que mulheres que abortaram condenem o aborto, ou pessoas que roubaram condenem o furto, ou pessoas que já mentiram condenem a mentira. Esta falácia é especialmente comum entre crianças e dirigentes de clubes de futebol, mas aparece um pouco por todo o lado.

Há duas coisas que não são falácias mas que muitas vezes são confundidas com falácias. Uma é o argumento indutivo: a maioria dos pássaros voa, por isso concluo que o pinguim voa. A conclusão é falsa, mas o raciocínio não é falacioso: a menos que haja informação que indique que o pinguim é excepção, é razoável concluir que é como a maioria dos pássaros. Uma falácia comum associada ao argumento por indução é a generalização precipitada: como o pinguim não voa, a maioria dos pássaros não voa. A outra fonte de confusão é a explicação causal: chove porque a deusa do céu está triste. Isto pode parecer uma falácia mas é uma relação causal apresentada como facto e não uma inferência lógica.

Resumindo, falácias são erros específicos de raciocínio, e independentes das questões de facto. É útil apontar falácias nos argumentos se identificarmos a inferência errada e o erro cometido. Mas se é inútil, e incorrecto, gritar “Falácia!” só porque discordamos da conclusão. A menos que seja num debate, para interromper o outro a meio do raciocínio...

quinta-feira, novembro 30, 2006

Sorte ou injustiça?

Há quem diga que devemos agradecer a um deus aquilo que temos, como disseram nuns comentários aqui a um dos meus irmãos. Eu tenho muito porque estar satisfeito com a minha vida. Vou ao supermercado e compro o que me apetece, gosto do meu trabalho, tenho saúde, e uma grande família de malta porreira. Tive muito mais sorte que os milhões de doentes, famintos, desabrigados, estropiados, órfãos, que sofrem por todo o mundo. E admito: não é justo. É injusto que uns corram cem metros em menos de dez segundos e outros nasçam sem pernas, ou que uns sejam compositores geniais e outros surdos. Mas ao menos é uma injustiça cega, como a lotaria. Calha a uns como podia ter calhado a outros.

Mas se a lotaria está viciada é uma injustiça terrível e maldosa. Se é por cunha que uns são corredores exímios e outros paraplégicos, que uns vivem felizes e outros sofrem, é revoltante. Se eu vivo bem enquanto outros morrem de fome e doença porque um deus puxou os cordelinhos do universo para me beneficiar à custa deles não estou nada grato. Nem percebo como se pode estar de boa consciência pensando que é assim.

Sirvam-se à vontade.

Algumas pessoas perguntaram se podiam citar ou reproduzir os meus textos noutros blogs. Outros não gostaram que isso acontecesse. Ora quem leu os meus posts sobre direitos de autor deve saber que só considero estes textos meus no sentido em que fui eu que os escrevi. Não inventei a língua nem as palavras, e as ideias são de todos. Quem quiser reproduzir estes textos só tem que fazer duas coisas: copy, e paste. Não peçam autorização porque não tenho nenhuma para dar. E por favor lembrem-se que isto é um espaço público de discussão; tudo o que for aqui escrito será considerado pertença de todos.

Para tornar isto mais claro, coloquei um aviso de copyright em rodapé.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Mas porque é que eu faço isto!?

Num comentário a um post recente, o António Parente fez uma pergunta que merece mais que a breve resposta que dei:

«Se o Ludwig não exige que eu acredite em si porque tenta através de posts, da sátira e do humor corrosivo, da lógica aristotélica primária tentar provar que eu estou errado?»

Vejam o que esta pergunta faz: pede razões. Isto é fundamental no diálogo, e a única coisa que justifica chamarmo-nos “animal racional”. Exigimos razões. Damos razões. Temos razões. E não podem ser razões quaisquer. Porque sim, porque me dá na gana, ou porque Odin mandou não justificam o que faço. Quanto muito, são razões para achar que não sou racional.

É difícil dizer o que são ou não razões adequadas em geral, mas no caso do diálogo é relativamente simples. As razões adequadas são as que os intervenientes aceitam. O cerne do diálogo é a procura destas razões comuns que permitem partilhar um raciocínio e concordar numa conclusão. Em ciência, por exemplo, o diálogo racional (com razões) transforma uma infinidade de hipóteses, modelos, opiniões, e especulações em descrições consensuais da realidade. O Bernardo Motta diz que isto é positivismo (não é), e propõe outra definição para realidade:

«O Metafísico, em última análise, é o domínio do real absoluto. E o real, como bem explicou Guénon, é o possível metafísico. O que é possível metafisicamente, é real metafisicamente (mesmo que fisicamente isso não seja notório ou nítido).»

A isto chamo mafaguinhos (referência ao tal post anterior). Cada um de nós tem as suas ideias, a sua visão do mundo, e estamos isolados nesta subjectividade. Mas temos em comum um conjunto de observações que partilhamos e que muitos chamam realidade. E é aí que estão as tais provas científicas, e é ai que encontramos a base para o diálogo e a compreensão mutua. Qualquer um pode definir a palavra realidade como quiser. É como os mafaguinhos. Mas o problema de encontrar bases comuns para o diálogo mantém-se. As razões, em última análise, temos que as ir buscar ás observações que partilhamos.

E nisto a fé é irracional, pois não precisa de razões e não aceita razões que a demovam. Dizer que a fé é uma faceta da razão é como dizer que a careca é um penteado, ou que estar morto é uma maneira de viver a vida. Se exigimos razões e estamos abertos às razões dos outros nunca podemos ter certezas absolutas, pois fica sempre alguma dúvida pela possibilidade de haver razões que desconhecemos.

E eis que finalmente chego à razão que o António me pediu. Eu faço isto porque acho que é da responsabilidade de todos dar e exigir razões. Razões assentes naquilo que temos em comum entre nós: o que observamos da realidade que nos rodeia. Ter fé, ter a certeza absoluta que Jesus ressuscitou, fechar-se às razões dos outros é bom para quem quiser viver sozinho numa gruta no deserto. Quem vota, tem filhos, participa nesta sociedade, usufrui do direito de pensar e de se expressar, e age de forma que afecta todos os outros tem a obrigação cívica de se manter aberto às razões.

E, praticando o que apregoo, fundamento esta razão numa observação: a certeza absoluta e infundada é um perigo para todos. É o factor comum na inquisição, nos actos de Pizarro, Hitler, Stalin, ou Pol Pot, nas cruzadas, na escravatura, na discriminação de crianças e mulheres, nos massacres no Rwanda, e muitos outros exemplos. Por outro lado a dúvida e a procura de razões estão por trás dos maiores avanços morais, filosóficos e científicos. De Sócrates a Bentham, de Tales a Rawls, de Arquimedes a Heisenberg, é evidente o bem que trouxe a todos esta abordagem de testar e assentar ideias na realidade que partilhamos.

Todos fazemos coisas boas e coisas más. Mas para fazer coisas terríveis é preciso estar absolutamente convicto do que se faz, e para fazer coisas excelentes é preciso estar sempre preparado para mudar e melhorar.

sábado, novembro 25, 2006

Provado cientificamente.

A palavra provar tem dois significados diferentes. A demonstração, como na matemática ou na lógica. E testar, como provar um fato ou prestar provas. Parece-me que uma grande dificuldade em compreender a ciência vem de confundir estes dois significados.

Um leitor deste blog (João Silveira) comentou que não posso provar cientificamente que a minha mãe gosta de mim. Engana-se. A minha mãe deu já muitas provas de gostar de mim, em muitas ocasiões que testaram o seu amor por mim. É assim que a ciência prova: testando. Está provado cientificamente que a minha mãe gosta de mim.

O problema é pensar que a ciência prova as coisas como a matemática. A prova dedutiva é útil na manipulação de modelos simbólicos (equações, proposições lógicas, e assim por diante), mas não é uma forma de adquirir conhecimento. Se todos os mafaguinhos são calafráticos, e se o Jibidim é um mafaguinho, então prova-se que o Jibidim é calafrático. Mas o que é que isso adianta?

Para tirar algum partido desta prova tenho que encontrar mafaguinhos, determinar se são todos calafráticos, e verificar se o Jibidim é um mafaguinho. E para isso preciso de provas no outro sentido. Preciso de definir os termos, especificar hipóteses, confrontar previsões com o que observo, para pôr à prova a adequação do modelo à realidade. Sem isto fiz apenas um jogo de palavras sem utilidade nem sentido, mesmo que provado por demonstração lógica. É por isso que a ciência nos dá modelos da realidade que são rigorosos, precisos, e úteis: tudo na ciência é para provar, no sentido de por à prova, e toda a ciência está provada, no sentido de ter prestado provas.

O Bernardo Motta revelou a mesma dificuldade quando propôs que a diferença entre esta abordagem e a fé (a Católica, pelo menos) é uma diferença de «visão do mundo»:

«A virgindade de Maria, para mim, é algo de perfeitamente natural e normal, porque tenho uma visão do Mundo que não é positivista. [... O] crente instruído não acredita num dado dogma "porque sim". Acredita porque esse dogma faz todo o sentido dentro da "weltanschauung" católica. Perfaz um todo coerente de uma beleza que nos convence da sua veracidade.»

Isto é apenas um passo do processo científico: a construção do modelo. Criar uma representação simbólica coerente, elegante, mesmo bela. Pode ser o dogma Católico, pode ser a economia de Marx, pode ser a psicologia de Freud ou a mecânica Newtoniana ou a Relatividade de Einstein. São modelos; palavras e símbolos encadeados duma forma lógica e estruturada.

Mas, como disse Thomas Huxley, mesmo a teoria mais bela pode ser morta por um facto feio. Podemos dizer que o nosso modelo vem da intuição, ou é revelado, ou é metafísico, transcendente, o que quisermos. Mas enquanto não prestar provas de que corresponde à realidade não é mais que o Jibidim e os mafaguinhos calafráticos.

A crença e a ciência não se distinguem pelas suas visões diferentes do mundo. Visões do mundo tem a ciência às dúzias, e muda-as regularmente. Até o dogma Católico já fez parte da ciência ocidental, e nenhum Católico rejeitaria provas científicas da virgindade de Maria ou da ressurreição de Jesus por virem de outra visão do mundo. Apenas o faria se as provas fossem contrárias à sua doutrina. E aqui é que está a diferença. A ciência quer modelos para compreender a realidade, por isso além de os construir também os testa, corrige, rejeita, melhora, e substitui.

A religião quer modelos para acreditar que são realidade, por isso limita-se a enfeitar um modelo com palavras sonantes. Aceita tudo o que facilite a crença. Rejeita tudo o que indique erros no modelo. Como adora o modelo, nem percebe a necessidade de o pôr à prova. Não se testa; tem-se fé. Mistério. Milagre.

Treta.

quinta-feira, novembro 23, 2006

O conflito entre Ciência e Religião.

O vigia num navio de guerra avista uma luz entre o nevoeiro. Avisa o comandante, que manda o imediato ordenar ao outro navio que mude de rota. O imediato tenta várias vezes, mas pelo rádio recebe apenas um pedido idêntico. Irritado, o comandante pega no microfone: «Daqui fala o Comandante Silva. Este é um navio da Marinha, e não alteramos o nosso rumo! Saiam da nossa rota!». Do outro lado vem a resposta paciente «Aqui fala o Martins, e isto é um farol. Faça lá o senhor Comandante como achar melhor...»

O conflito entre ciência e religião faz me lembrar esta anedota. A religião traz a autoridade da tradição, duma coisa séria e importante, mas a ciência está limitada pela realidade e daí não pode sair. Se a astronomia, a geologia, ou a biologia contradizem uma certa interpretação de um dos muitos livros sagrados não é a ciência que tem que mudar. E o humor em si ilustra outro ponto de divergência. Para uma piada ter graça temos que a compreender, mas não precisamos de acreditar. O gozo de fazer ciência é essa compreensão, associada a uma dúvida que antecipa algo ainda mais fascinante. A religião é o oposto. A Santíssima Trindade ou a hóstia que se transforma no corpo de Jesus são ideias incompreensíveis, que a religião quer que se acredite sem reserva, sem compreensão. Sem humor. A ciência tem piada; a religião é séria e sisuda.

E isso vê-se nas atitudes. Em todos os laboratórios vemos piadas ou cartoons com sátiras à ciência. A prestigiosa universidade de Harvard atribui anualmente os prémios Ig-Nobel, uma crítica sardónica às argoladas dos cientistas. Mas basta um desenho de um papa com um preservativo no nariz ou de um profeta com um turbante em forma de bomba e ficam milhões de crentes ofendidos. O humor é uma forma poderosa de crítica, que suscita a exploração de outros pontos de vista. Enquanto a ciência se alimenta deste diálogo crítico, a religião não quer nada com isso.

E a maior diferença é na reacção a outras ideias. Os cientistas que discordam colaboram para determinar quem tem razão. Quando crentes discordam não há nada a fazer. Nunca Católicos e Judeus vão colaborar num projecto para determinar objectivamente a divindade de Jesus. Há quem queira resolver o conflito entre ciência e religião isolando os campos, com a ciência encarregando-se dos factos e a religião dos valores. Mas o problema não é o conflito de ideias. Há conflitos de ideias na ciência, na arte, e na filosofia sem qualquer problema. Pelo contrário, este conflito de ideias é bom porque estimula o diálogo, o progresso, e novas ideias. O problema é que certas ideologias não toleram o conflito de ideias. Os nacionalismos, ideologias políticas, e religiões tendem a reagir muito mal a ideias contrárias, e a transformar conflitos de ideias em conflitos de pessoas.

Não é o farol que tem que sair da frente, e não são as ideias diferentes que criam o conflito entre ciência e religião. O que causa este conflito é basear uma ideologia na certeza absoluta que é Verdade. Quem tem esta certeza está fechado a posições contrárias, nega a possibilidade de mudar de ideias, e não tem interesse em manter o diálogo. Interessa-lhe suprimir a oposição em vez de aprender com ela, desde a subversão do ensino científico por meios políticos até aos atentados bombistas.

domingo, novembro 19, 2006

Debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses (parte II).

O debate do passado dia 17 foi muito bom, e agradeço aos organizadores, especialmente à Filomena Carvalho, pelo amável convite, e ao meu irmão por ter sugerido a minha presença. Moderado por Fernando Catroga, participaram António Rego pela Igreja Católica, Mário Mota Marques pela comunidade Baháï, Jónatas Figueiredo pela comunidade Evangélica, e Mahomed Abed pela comunidade Muçulmana. Eu estava no panfleto como representante da “comunidade céptica”, mas fiz questão de deixar claro que não representava uma comunidade, mas sim uma ideia: a ideia de viver sem religião. A descrença.

Comecei por esclarecer que descrença não é acreditar no contrário. Isso é apenas uma crença diferente. A descrença é perguntar em vez de afirmar, principalmente perguntar como é que o crente sabe que a sua crença é verdadeira. Como é que sabe que Maria era virgem? Que Jesus ressuscitou? Que Mahomed era mesmo um profeta? Estas perguntas incomodam os crentes, mas são perfeitamente legítimas.

E podemos ver o que acontece sem estas perguntas. As crenças religiosas apresentadas são fruto de um longo processo de aplicar a crença para obter respostas. Todas as religiões têm respostas, e todas têm a certeza absoluta que têm as respostas certas. Mas têm respostas diferentes. Parece que o método da crença não é o melhor. Principalmente porque a certeza absoluta dificulta o dialogo com os que têm a certeza absoluta do contrário, como podemos ver em muitas partes do mundo (nem sempre com crenças religiosas, mas sempre com certezas absolutas).

Por isso propus o método da dúvida, da questão, da descrença. Não dá recompensas, nem nesta vida nem na próxima, nem dá castigos para quem discorda. Não dá a verdade absoluta nem uma ligação directa ao criador. Mas dá a possibilidade de corrigirmos os nossos erros, e abertura ao dialogo com quem tem outras posições. Não tive oportunidade de o dizer no debate, mas acho que isso é melhor que qualquer deus ou verdade absoluta.

Da assistência veio a inevitável pergunta: sendo céptico, como posso evitar cair no relativismo moral? Como posso encontrar valores? Já estava à espera desta. Por sorte, imediatamente antes outro membro da assistência tinha comentado que todas estas religiões tinham em comum a prática do bem, o que me facilitou a vida. Se reconhecemos algum bem em todas é porque já temos uma noção de bem que é independente da religião. E crente ou descrente, o ponto final de qualquer juízo moral é sempre cada um de nós. Mesmo que um deus nos venha bater à porta a dizer o que é bom ou mau temos que decidir se concordamos ou não. O fundamental é sermos capazes de julgar as crenças e a fé de acordo com os nossos princípios morais, e não deixar que a fé dite o que para nós é certo ou errado. Esse é o caminho do fundamentalismo, e a razão para os extremismos em todas as crenças (não só as religiosas).

No final do debate o moderador lançou uma boa pergunta: há verdade na religião? Mais especificamente, se todas as religiões são verdadeiras, se só uma é verdadeira e as outras falsas, se todas são falsas, ou se há uma mais verdadeira que outras. Os outros participantes deram a resposta previsível: todas as religiões têm alguma verdade, mas há uma que é mais verdadeira. Claro que não houve consenso quanto àquela que supostamente é mais verdadeira.

Eu respondi que verdade não é aquilo em que acreditamos, mas aquilo que resiste à dúvida; para saber se as religiões são falsas ou verdadeiras temos que duvidar delas e ver o que aguenta. A audiência riu-se, mas acho que alguns ficaram a pensar. No fundo, era só isso que eu queria.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses.

Na próxima sexta feira, dia 17 vou participar num debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses. Vai ser em Seia, no grande auditório da Casa Municipal da Cultura, às 10:00h, no final das IX Jornadas Históricas que decorrem de 15 a 17.

Tenciono focar três pontos na minha intervenção. Primeiro, a atitude demasiado reverente que a nossa sociedade tem perante a crença religiosa, impedindo o diálogo crítico essencial numa democracia (ver aqui). Em segundo lugar o erro de ver a religião como fundamento ético e moral. Como propus aqui, o desejável é eliminar duma tradição religiosa preceitos incompatíveis com a ética contemporânea, e nunca o contrário.

O terceiro é o problema da educação religiosa de crianças e menores. Este tem em comum com o problema do aborto a consideração pelo futuro de um ser humano, e por isso vou aproveitar para colocar ambos no mesmo contexto e tentar resolver uma objecção que o Francisco Burnay levantou num comentário recente.

Começando da mais tenra idade podemos tornar qualquer humano num crente devoto. Enquanto criança não tem maturidade para se opor, e quando cresce, como é crente, até aprova. Assim se forma milhões de Católicos, Protestantes, Muçulmanos, Hindus, etc. Mas ainda que não vá contra a vontade do visado nem enquanto criança nem quando adulto, mesmo assim proponho que é imoral uns determinarem a religião de outro, por lhe restringirem a liberdade de guiar a própria vida. Este respeito pela auto determinação fundamenta vários aspectos da nossa sociedade, como a liberdade de crença, de associação, ou de expressão. E é especialmente importante na protecção de menores, a quem tentamos evitar privações ou experiências que afunilem as suas possibilidades e fixem a orientação da sua vida.

Não devemos impor a outro um rumo escolhido por nós. É imoral drogar uma criança, fazer-lhe tatuagens, prometê-la em casamento, restringir-lhe o acesso ao conhecimento, ou prendê-la a um conjunto arbitrário de crenças, mesmo se o fizermos antes que possa protestar e mesmo que nunca proteste. É imoral porque lhe limita as possibilidades de determinar a sua própria vida. E o aborto é um exemplo extremo de limitação total e irreversível desta possibilidade de auto determinação.

O Francisco Burnay criticou o meu argumento por ser anacrónico, ao valorizar aquilo que o feto vai ser e não o que ele é. Em primeiro lugar, é no futuro que estão as consequências de qualquer acto, e o aborto não é excepção, por isso é relevante considerar o futuro. É isso que faz uma mulher se decide abortar por não querer criar um filho: considera o futuro, não o presente. Em segundo lugar, o que eu valorizo é a vida humana como um todo, e não o momento em que o feto se encontra. Temos uma vida cada um, e é sempre a mesma desde a concepção até à morte. Finalmente, o maior valor da vida humana é a sua auto determinação, a capacidade de cada um determinar o que é ao longo da sua vida. Não a podemos respeitar considerando o apenas presente ou um futuro determinado por outros. Só a podemos respeitar permitindo a um ser humano escolher entre os seus futuros possíveis.

Se isto parece filosofia abstracta e pouco convincente, ouçam o “My Way”, de preferência cantado pelo Frank Sinatra. É retrospectivo, mas dá uma boa ideia do que quero dizer.

I've lived a life that's full
I traveled each and ev'ry highway
And more, much more than this, I did it my way